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Q? ; oe P. BURKE, A. CHASTEL, M. FIRPO E. GARIN, M. L. KING, J. LAW M, MALLETT, A. TENENTI, T. TODOROV 352 532 O HOMEM RENASCENTISTA Direcsio de Eugenio Garin czwoin Lf lenesnca Libow, 1991 © HOMEM RENASCENTISTA ‘por Eugenio Garin J. Largamente utlizad, a expresso um tanto ambigua «homem do Renasci- mento» aparece na Literatura ema Hist6ria associada a interpretagoes generaliza- as de um periodo histérieo muito preciso, o Renascimento,situado por volta de meedes do séoulo XIV e finais do sécvlo XVI, e que teve as suas origens nas ‘dades-estado italianas, de onde se propagou depois por toda @ Europa, como se fessa época tivessem eirculado em numero relevante tipos e exemplares humanos Com caractersticas especiais, dotes e atitudes particulares ¢ fungdes novas'. Pas- Sando, com 0 decorrer dos tempos, das cidadesitalianas para outros pafses euro- peus, e propagando-se a outras terras,essas figuras humanas ¢ essas caracteristi- as foram-se naturalmente medificando e por vezes mesmo de unva forma muito Sensfvel. Assim, a difusdo no extetior da Itélia de ideias e ternéticas prOprias do Renascimento italiano continuaria a verificarse ainda por muito tempo, assu- indo atitudes diversas, para Id dos limites cronoléicas habitwais, durante todo © século XVI ‘Sublinhe-se, porém, de imediato que, éesde as origens do Renascimento, a ideia do arenascer, do nascer para uma vida nova, acompanhou como um pro- grama e um mito varios aspectos do préprio moviments. A ideia de que uma fhova era e novos tempos tinham nascido circulainsistentemente no século Xv, de {al forma que alguns historiadores, em anos ndo muito 1emotos, a focam com. Snsistinel, chegando mesmo a consideré-la como uma earacteristica dstintiva de todo esse periodo?, Se tal conclusso € muito discutivel, deve porém ter-se pre- Sente que aquilo que renasce, que se reafirma, que se exaita, nfo é apenas, nem E sobretudo, 0 mundo dos valores antigos, eldssicos, gregos e romanos, @ que se repressa progressivamente, O despertar cultural, que caracteriza desde 0 inicio 0 Reneseimento € sobretudo uma afirmacio renovada do homem, dos valores numanos nos vérios dominios: desde as artes a vida didtia. Néo é por acaso que aguilo que mais impressiona nos escitores ¢ nos historiadores, desde as origens, G essa preocupagio com os homens, com o seu mundo, com a sua actividade no mundo, Se a célebte frase de Jacob Burckhardt — extraida, als, de Michelet — Segundo a qual «a civilizagdo do Renascimento é a primeira a descobrir © @ T Acar do conto de shomem do Resco», contest 0 exens rataéo de Agnes Hel las, A Reneronse Eber, Budapest, 1957. 4 pura on tees detendidas por H. Wakinger (32449) «, em parts, por Franco Simons, ef WK. Bsgerom, The Renassance in Historical Thowgh,Cambidee. 1988, 5 realgar totalmente a figura rica do homemm, estd impregnada de retrica e se tor row quase insuportdvel nos dias de hole, ndo deixa de ser verdade que enterra as ‘suas raizes numa realidade em que as historias des homens, os casos dos homens, 1s figuras © 08 préprios corpes dos homens, ocupam um lugar central, em que ppintores« escultores retratam inesquecives figuras bumanas e em que os filésofos repetem: «Grande milagre & 0 homem (magnum miraculum est horto).» Quein evocasse agora mentalmente a expresso andloga whomem da Idade Média», ea sua diferente configurasdo, teria de ter presente que, accite a perio zagio corrente do Renascimento, 0 conjunto dos problemas que se apresentam fem relagdo & dade Média, e a propria utilizagdo das expressdes, sio complets- ‘mente diferentes. Seo diferentes, acima de tudo, e muito, as coordenadas espa. ais e temporais, eestreitamente ligadas a caracteristcas culturais precisas de um perfodo bem caracterizado, pelo menos hipoteticamente, no plano das actividades © dos comportamentos. ‘Como se disse, o Renascimeato propriamente dito, o «grande» Renascimento, 4 muito curto se comparado com a Idade Média: sbrange pouco mais de dois séeulos; tem origens itallanas ¢ nfo se confunde com feabmaenos medievais, em certos aspectos anélogos, tals como as varias renascencas a partir da época caro~ lingia, florescidas noutros sitios ¢ diferentes, embora existam certas analogias ¢ resmo certas influéncias!. Em Petrarca, porém, as mudangas de uma sensibii- dade ¢ de uma cultura sio j& evidentes’e procuram, ¢ encontram, relagdo com acontecimentos de profunda ressondncia, muito para 1 das fronteiras nacionzis dos limites dos fendmenos lterdrios. Por isso, a oposicdo entre vida activa vida contemplatva, tio cara a Coluecio Salutat, que utiliza até a habitual forma a oe ore ee ee naquela exaltagdo da vida activa, mundan civil, cempentiadan vw fpalas Atena nascendo armada da eabesa de Zeus — destinada a converters, indo rmuitos decénios depois, numa moda dos mais requintados cfrculos intelec” tuais toscanes. A contestagdo da dospdo constantiniana no comega decerto em Yall (basta pensar-se em Nicolau de Cusa), mas Lorenzo Valla jé nfo pertence propriamente & Idade Média, nfo é «homem da Idade Média». Pelas suas lutas poltieas e teol6gicas, pelo elogio da volupras epicurista, pela sua disléctica e as suas celeginciasy, serd devidamente exaltado, compendiado ¢ publicado como _mesire dos tempos novos, pelo seu grande «discipulo», o principe dos humanistas da Europa, Erasmo de Roterdao. E precisamente da obra de critiea 20 Novo Tes- tamento de Valla, de que foi o primeiro editor mal a encontrou, que Erasmo — que, em muitas coisas, foi deveras o que se aproximou mais de Valla — trard 2 principal inspirago para os seus famosos trabalhos biblicos. ‘© Renascimento durou, portanto, cerca de dois séculos e meio; local de nasci- mento, sobretudo de algumas cidades-estado de Itilia. Sao estas as coordenadas onde se deve procurar, e situa, embora com caracteristicas bem definidas, 0 hhomem do Renascimento, ou seje, uma série de figuras, que nas suas actividades especificas pOem em prética, de modo andlogo, caracteristicas novas: 0 artist, que nio é apenas artifice de obras de arte originais, mas que através da sua acti- vidade altera a sua posiedo social, intervém na vida da cidade, especializa as suas relacBes com o§ outros; © humanista, © notério, o jurista, que se tornam "Para waa 8 que agus luge, mas que ¢ mult importante, cf. B. Pao, Renisonce nd Renascencesn Wesem Ar, Siockaol, 1960, © que eu propio si em Rise volie ‘oni Lateran RomaBat 1976, po. 3. 0 -magistrados, e que com os seus escritosinfluem na vida politica; 0 arquitecto que negoceia com o principe para construir «fisicamente» a cidade. 2. Nestes ensaios aparece com frequéncia, ainda que :4 remoto no cemmpo, ¢ tantas vezes discutido ¢ refutado, o nome de Jacob Burckhardt, construtor de uma imagem duradoura do Renascimento como momento decisivo da civilizagdo italiana. Pois bem, mesmo Burckhardt, que foi um dos eriadores do conccito de homer © Renascimenton, misturou continuamente — ¢ ndo sem equivoco — dois temas diferentes, embora estreitamente ligados entre si, © primeiro é a aren- (lo que, no Renascimento, se centra no hiomem com uma intensidade sem igual, Dara o descrever, exaltar,colocar no centzo du uuiverso. & v deseuvulviareuto Ue uma filosofia do homem, que implica uma teoria da sua fo-magio, da sua educa- Go. E 0 esboco de uma nova pedagogia nfo isenta de preocupayées politicas. Outra coisa, porém, é a manifestacdo, num momento de crise e de transfor- magao de uma sociedad, de uma riqueza singular de tipos relacionados com novas formas e especificagdes de actividades. Surgem entdo, nas oficinas dos artistas © nas escolas dos humanistas, figuras originals, por vezes de excepeio. Mudam, e por vezes transformam-se, 2s actividades e nascem homens «novos», due também degeneram — e que de modelos se transformam em mascaras, perso- nagens de farsa, objecto de trora. Eo pintor ov o escultor fantasista ¢ estranho, subtil e profundo, que eria fraudes extraordindries, que pOem em crise a identi- dade pessoal e os prOprios fundamentos da existéncia (por exemplo, «a novela do Gordo lenhador); € 0 humanista que se tora um pedante insuportével, a outra face do homem erudito que se transforma em objecto de sitiras e comédias. ‘Burckhardt tende a unificar — mesmo correndo 0 risco de confundir — a ela- boraglo de uma nova filosofia do homem («a descoberta do homem») com 6 interesse pela histéria dos homens em sociedade. A exagerada curiosidade do hhomem em relagio ao homem, tipica do Renascimento, radica-se, portanto, uma nova concepeio do homem no mundo. Os italianos, observa ele, «foram os pprimeiros europeus que revelaram uma tendéncia decisiva para descrever exacta- ‘mente 0 homem histérico nos seus tragos e nas suas qualidades interiores e exte- roves ¢ que se comportaram em fungéo dessa tendéncian. Nao se limitaram «i descrigdo do lado moral dos homens e dos povos, também o homem exterior € Cobjecto de observacton atenta e minuciosa. Por isso insiste demoradamente no ‘thar artistico com que, em documentos de todos oF géneros, mesmo os mais Impensados, vemos pecfilar-se individuos ¢ tipos. 3. No entanto, se mantém bem firme a distincdo entre nova filosofia do ‘homem, histéria dos homens « esbogo de novos tipos humanos, Burckhardt capta ‘bem © significado revelador do florescimento de biografias e autobiografias € realga com razio o &xito exceptional que no Renascimento obtiveram as grandes colectineas biogréficas da Amtiguidade cléssica, constantemente fdas, mas tam- Dém divulgadas em tradugGes destinadas a letores de cultura ¢ condi¢io modes- tas. Lé-se Plutarco com os seus herOis, mas também Didgenes Laézcio com 05 seus sfbies, ao mesmo tempo que se fazem ediges ilustradas, de caracteristicas ‘manifestamente populares, de adaptagées e compéndios em lingua vulgar, mesmo medievals, de historietas ¢ méximas de fildsofos greges. Por outras palavras, a ateacio filoséfica em relagto ao homem em geral ‘coneretiza-se nas histérlas dos homens e, sobretudo, na meméria deles préprios, na lembranca da sua vida terrena, no tempo presente: «© iomem, justamente, 40 " Renascimento.» Os arquivos de algumas cidades esto cheios de memdriass foram cditadas centenas, mas mujtas Outras permanecem manuscritas, e existem doct- entos de todos 0s tipos que contém, possivelmente inseridos numa declaragde Cadastral, fmagmentes de vida inesquectveis. E 0 caso dzquele pobre earpintciro Florentino, que, no cadastro de 1480, anota: «14 no tent oficina, porque nfo posso pager 2 renda», enquante o fitho «trabatha no hospital e aprende 2 medi Gar emo tem salérion. OW 0 de Antonio di Balduccio, edoente ¢ alejadon, com ‘om rancho de fihos aprendizes, ou que andam na escola para «aprender a lero, BD excepeio de Balduccio jinior que «ndo faz nada, é muito pequeno, tem seis ‘anos, © com a mie a seu cargo, éde setenta e dofs anos e sofrendo de gota, que ‘do s¢ pode levantar porque ¢ doente ¢ ndo pode andur: esta euferma e passa mel dé trabatho a toda a gente da casa». Por sorte, acrescenta Antonio, «eu ¢ 05 meus filhos varGes estamos em casa de Bartolomeo di Nicholaio, fabricante d¢ Copos € meu sogro e no The pago renda, ¢ estamos a trabalhar com eien. “Assim até uma declaragdo de sendimentos — ¢ hd tantas! — se converte ex esbogo de uma pagina autobiogréfica ou talvez no desenho de um perfil, Para ‘bao falar das epistolas, em latim ou em lingua vulgar, simples e eruditas, de Criangas e de mulheres, que se tornam um género cada vez mais divulgado, retra- tando a vida do dia-a-dia, e convertendo-se constantemente em auto-apresenta- ‘Glo ow em confronto de personalidades. "No seu extenso trabalho, initulado previsamente O Homem do Renascimento, cecitado em Budapeste em 1967, Agnes Heller, aluna de Lakics, afirma que 0 Renas- ‘cimento foi «a época das grandes biografiasy, ou melhor, a épaca das autobiogra fies. E isso, acrescenta ela, porque muitas figuras excepcionais iam aparecendo jruma sociedede que se construia, se transformava e se relatava a si propria. A um omento extélico — continual Heller — sucedera um momento dindmico. ‘Ohomem novo, o homem moderne, era um homem que se ia fazendo, construindo, fe gue estava consciente disso, Era, precisamente, «o Romem do Renascimenton. 4, Se se continua prudentemente a manter a distingdo entre uma filosofia do hhomem, que se vai tornando cada vez mais subtle profunda, e uma hist6ria de homens, que se transformam de acordo com novos modelos num momento ert tico da sociedade, também & 6bvio que umna reflexio tedrica acerea do homer, da sua natureza ¢ do seu destino, do seu sentir, das suas fungées e das suas activida- ‘Ges, das suas relagdes ndo apenas com 2 sociedade terrena, mas também com a Igreja e com Deus, contribul necessariamente para a sua mudanga e para @ ‘mudanga da sociedade em que vive. A medida que as fungies mudam, mudam os Varios tipos humanos. Basta reflectir um instante no peso crescente que em: algu ‘mas cidades-estado adquirem, no século Xv, certos «intelectuaisy, notétios, ret6- cos, ahiomanistas» e logo, em fundo, se perfilam as figuras dos chancelees, dos Secretdrios, dos oradores (embaixadores), em toda a sua variedade, na sua evelu- (glo e transformacio, nas suas intervengdes, nas suas fungdes. ‘Para no folar nos arquitectos, na sua importéncia nas cidades que, no Renas- ‘imento, se vio transformanda. Quando Filazete (Antonio Averlino, por alcunha 6 ufllareten) dediea o seu tratado, que nfo é s6 de politica mes também de argu tectura, primeiro a0 duque de Milio, Francesco I Sforza, depois a Piero di Cosimo o Velho, pe em destaque uma relagio muito precisa entre o senhor ¢ 0 técnico que projecta ¢ discute, de igual para igual, a nova cidade, em todas as suas estruturas, evelando 20 mesmo tempo a interdependéncia entre 0 edificio € fo servigo a que se destina, E }4 sem falar na arquitestura militar. 2 Estamos, & certo, numa época de rdpidas alteragSes nas actividades que os homens exereem e nas formas de as exereer. Pense-se apenas, quanto as variagbes dos modos de combater, nas repercussbes que as novas térnices da arte da guerra, fs novas armas € as novas maquinas tém, por um lado, na arquitectura ¢, por butte, nas tropes, desde os condovter! aos mercendrios. Citam-se frequentemente Sbservagees argutas e subtis de Guieciacdini acerca da mudanca radical da guerra fo século XV, € nflo 86 devido & introducdo do «furor das artilhariasn. Muda 2s defesas ¢, consequenterente, mudam as préprias arquitectures das cidades. ‘Mas, acima de tudo, mudam as tropas e 0 modo de reerutar os homens, © 05 pro prios homens qiie vo combater, Mudam «os engeahos dos homens», diz Guic- Graudini que, ua Zistdria de Tidtia, anotava: «Come as defesss, comecaram a ‘agugar-se 08 engenhos dos homens, aterrorizados com a ferocidade dos ataques. ‘Também os soldados mudam, Acerca dos mercendrios espanhdis no saque de Prato, em 1512, eseeve um cronista: «Os crutis barbaros ¢ infitis.» Agora sto 05 Lansquenetes que saquelam Roma, Slo as caras hortiveis, que durante tanto tempo ‘povoaram desenhos e estampas, multas delas mutiladas, de saqueadores e tortura- llores ue sentesa prazer em massacrar. SAO 0s assassins, por erueldade e cupi- ddez, que enchem tantas paginas de Erasmo, que fez deles personagens constantes, ide tma Europa completamente devastade pelas guerras («no ha canto da Tera {gue nao tenia estado cheio de desgragas infernais, de latrocinios, epidemias, con- filtos ¢ guerrasy). Também eles si0 homens do Renascimenton, soidados do Renascimento, como ontem Pippo Spano ¢ amanha Francesco Ferrucci. E mule res do Renascimento so, nio 36 as mées devotadas como Alessandra Macinghi ‘Strozzi, que vivia apenas para o comé:cio e para os filhos, ov as erudites Noga- rola e Cassandra Fedele, Alessandra Scala com as suas «palidas violetas», Battista Montefeltto, ou mesmo Margarida de Navacra. Mulheres do Renascimento sf0, com ‘as suas «coleges», Tlla de Araglo, prostitua filha de prostsuta, autora das pdginas Tequintadas de Didlogos da Infinidade do Amor, ¢ Veronica Franco, com as suas Gartas e 2s suas rimas, que, em Veneza, em Senta Maria Formosa, se wentregava», por intermédio de sua me, por «dois escudosn, e que prometia nas Terceiras Rimas fccertas intimidades em mim ocultas/vos revelarel de infinite doguran. Para néo falee da Nanna e da Pippa, e das outras heroinas dos Dias, de Aretino, que, com to amarga e desencantaca competénci, discutem acerea das téenicas da sua pro- fissio, do pagamento e dos ineidentes do oficio. Pr iss, talvez sela nessa reflexio autobiogrifica, nesse epensar, nessa meméria « nesse confronto social — em suma, no nivel cultural adquirido — que reside a caracteristica distintiva ¢ a diferenca especifica da cortesa do Renascimento (ow, pelo menos, de algumas cortesds célebres do Renascimento): de Veronica Franco {Tilia de Aragdo a Gasparine Stampa, que podiam ser recordadas pelos seus estri- tos ao lado de Veronica Gamibara c de Vittoria Colonna. Nao é por acaso que e Finais do século x¥i Montaigne admirard «a elegincia principesca» (vestements de princesses) das muitas prostitutas que encontrou em Itélia, enquanto Veronica Franco, profissional bastante modesta, parece ter mantido contactos «literérios» no 36 com o cardeal Luigi d"Este, mas também com Henrique 111, de Franga. 5. Com tudo ist, @ eitor, tal como ndo encontcard sob o titulo O Homem do Renascimenio nada que se essemelhe & obra histérico-filossfica homénima de ‘Agnes Heller, também no encontrard o perfil do novo «soldado da fortuna» ou (0 da prostituta profissional, com todas as contradigses de uma época que esta @ ‘mudar. Encontraré, porém, quase na totalidade, as figuras que uma literatura B consagrada fixou como tipicas de uma Epoca: aquelas em que 0s tempoé «novos» cexprimiram formalmente 2 suas novidades ou que, pelo menos, nos habitudmos 2 ver indissoluvelment>ligadas a0 Renascimento, desde os ttulos dos textos lit ratios famosos até obras de are insignes. Sto as estituas dos condotiri nas pra- fas piblles, obras de Donatello ¢ de Vieroceh; sZo 0s tratados sobre o prin- ‘Spe, 0 cardeal (de cardinalatu), 0 wcorteston; si0 «as vidas dos mais erel<0s arquitecios, pintores ¢ escultores», que realgam a importéneia do principe e do condotter, 60 cardcal e do wcortesao», do artista e G0 flgsofo, do mereador & do banqueiro e mesmo do mago ¢ do astrélono ‘Notar eed com Alvida a austncia de algumas figuras tipicas. Bo cato da Sgura do chaneeler humanist em varias repdblcas italiana, figure do caracteisce, quer za vertente polia, quer na vertente cultural, para ao falar da cresoznte impor tdncia das tenicase das actividades de propaganda, promovidas com os mals ade- ‘quads instruments etctricos> que homens como Leonasdo Bruni conseguiram impor na Europa. Por outro lado, os mores, os Salutali e os Brun, os Bracio- Tin, os Lasci eos Decembri so, em certo sentido, recuperados assim como todos o: humanists, os jurists, os intelectuais de qualquer nivel, que se misturam de arias formas & vida politica nas cores dos noves senhores, em redor dos grandes, 4a Igreja, nes chancelaras das dtimas repiblices. Sto, allernadaments, advogn- dos € cariesd0s, 20 servigo ou colaboradores de principes e de catdeais, Sa0 ees ue exploram sistematicemente as anigas bibliotecas conventuals¢ edifieam as fovas, enquanto vio difundindo os manifestos da nova cultura através de textos literésios de rae beleza, onde se msturam as noticias da recuperagzo dos antigos confrontadas com a vida dos modernes. S20 eles qu: lanyar es bases de fuera flologia. Sfo eles que organizam de uma forme mets ov menos informal as novas sscolas para a edveagao de damas pobres como Batista Malatesta, pare as quais até um chumanistay ctlebre como 6 chaneeler de Florenea, Leonarco Bruni, pode escrever um tratad, escolas como as de Ferrara, de Guarino da Verona, ou como 4 acasa dos jogos», em Mantus, driida por Vitorino de etre, escolas de «senho- feo», mas que no permanecem isoladas ¢ dio 08 seus frtos. ‘do € decero este o lugar para focar nas suas earactersticas, na sua evolugio «eas suas raze, a nova cultura humanistic, baseada no regresso As grandes fon tes gregase latins da grande cicia e da prande arte. Mas éesrio que essa cul- tur fol envolvendo estratos cada ver mais vastos. Lauro Mattines deu a um livro seu sobre as cidadesestado da Telia do Renascimento o tculo feliz de Power and Imagination. Na realidad, no iampulso da cultura participam «mercadores € esertoresn, 6s mesmos mercadoreseescriores que serviram de tema para eslén- didos teide d¢ Vitore Branca, ¢ acerca de quem Christan Bea’ escreveu pis as roulto sugestivas. Sho estudiosos e clientes, sio ivreros ¢editores que num ensaio deste liwo se véem surpir em fundo entre mercadores © banqucics E como esquecer que Erasino ¢ recebido como um amigo na casa veneziana de ‘Aldo Manzo, perto de Rialto, para acompanhar a impressio dos seus Adagia, tum grande livro que divalgar por toda a Europa a cultura humanisicarenaseida em Iulia? A comida nzo era grande coisa, mas Veneza era «a mais espléndida das cidades», e havia animadas conversas com Lascaria e Girolamo Aleandro, srande helenista © futuro nincio apestlio, com helenstas eruditos e famosor TE Maroc, Power ond Imazinaton, Ciy-States in Rerasonce lay, A. Knopf, Nom tor. ‘gut; Merce eran sab a secede . Branca, Ror, Milo 1986; Ch Be, Les marchand> Eeroains & Flovence 15781684, Mouton, Pais Haye 1867 1 ««humanistas», Bra uma Woficiaay como tantas outras; o done era Alberto Pio da CCazpi; entre 08 amigos, além de Etasmo, Reuchlin, Desse trabalho comum, muito antes da chegada de Erasmo, entre 1495 e 1498, resultara a magnifica primeira ‘edicdo do texto grego de toda a obra de Aristéveles, em cinco in-f6lio, auténtica ‘obra-prima da cultura e da arte ipogrfica. Depois Sairiam as edigdes de Petrarea ¢ Poliziano. Em 1500 seria a vez de Lucréelo, cujo texto, verdadeiramente inconci Havel com a doutrina crist2, Aldo editaria de novo antes de morrer, em 1515, numa bela ediggo de bolso. Centro do humanismo, com todos aqueles cruditos d= Grésia ¢ de todos os paises da Buropa, «academia» iasigne e woficinan, como as dos grandes pintores, fa casa editora de Aldo surge-nos como uma espécie de santuario dos grandes ‘dumanistas», que se servem do progresso tecnolégico para uma operagio de Ambito europeu: pOr em cireulagdo através da imprensa ed'gdes preciosas, ndo s6 de Platdo € Aristoteles, mas de Poliziano e de Erasmo, © graméticas ¢ léxicos, © 6s instramentos mais vélidos de ecesso a0 pensamento e a citncia antiga e moderns, «Oficina de humanistas» era a casa de Aldo, como fora, embora de forma diferente, em Plorenca, a de Vespasiano de Bisticci, que fornecen de elegantes ‘manuscritos com iluminuras ado s6 2s bibliotecas dos senhores italianos mas também a de Matias Corvino, rei da Hungria; ponto de encontro de «humanis- tas», de emercadores escritores» ainda fortemente ligados 20 ambiente chuma- nistico» de inicios do século xv, &s edescobertas» dos antigos, arepos ¢ latinos. Nao é por acaso que a primeira grande colecténea de biografias de «homens do Renascimento» j& ordenadas segundo figuras precisas: pontifices, cardeais e bis- OS; principes ¢ condottier; magistrados e humanistas, etc. — ¢ obra do erudito ‘epapeleiron de Bisticei. Na realidade, pelo menos na época herdica do Renasci- ‘mento, chumanistas» so em certo sentido fodes os intelectuais e uma parte con- siderdvel dos magistrados e dos mercadores — so-no ou tentam parecé-lo, ou misturam-se com os dhumanistass, enquanto um Marsilio Ficino dedica 2 Cosimo, a Piero di Cosimo, a Lorenzo e a Federica, duaue de Urbina, © Platfo latino, Sao eles os exemplos da validade do ideal platénico do governante sdbio. E, todavia, se 0 humanismo pode constituir uma espécie de referéncia comum para o «homem do Renascimenton, também é verdade que se ititularam «huma- histas> mesmo 0$ pequenos mesttes-escola, os professores de Gramética e de Retérica. Foram esses mestres que prepararam os jovens para os primeitos con- {actos com os clisscos, que substituiram finalmente os auerores octo medievais, {que ainde provocavam artepios de horror a Erasmo e Rabelais. «Que tempos aqueles — dizia Erasmo —- em que com grande pompa e comentitios prolixos se explicavam aos rapazes os versicolos moralizantes de Joo de Garlande.» Rabe- Jais, em péginas inesqueciveis, apresentaré simbolicamente a mudsnga radical de uma educapio, ainda que, na realidade, as coisas nfo tivessem sido ficeis. No Verdo de 1443, em Ferrara, a cidade onde exerceu a sua actividade um dos maio- res educadores do século xv, Guarino, e onde se situava a Universidade de Rodolfo Agricola e de Copémico, quem quisesse ensinar era obrigado a demons- trar que possuia as bonae ltterae (ov sei, studia humanitatis, estidas humanist- 0s). O transgressor que continuasse a divulgar barbaridades devia ser expulso como uma fera (de civitate gjiciatur, wt pestfera bellua). [No entanto, a pouco e pouco, os auctores octo, isto 6, 08 velhos livros medie- ‘ais para os jovens, desapereceram completamente da cireulacio, deixaram de ser impressos ¢, no Séculoxm, «os pequenos mestres das escolas clementarcs» 4 18 censinavara 0 Latim servindo-se dos Colloquia de Erasmo, restituindo & mensagem hhumanistica 0 seu valor origindrio de measagem de liberdade. Foi isso que Seide! ‘Menchi nos recordow ¢ documentou amplamente com as suas pesquisas sobre @ ifustio de Brasmo em Itélia, apresentando-n0s 0s muitos mestes-escol2 «huma- nistago, de quem o juiz dizia: eFiogindo ensinar gramatica, ensinava heresia.»! ‘Mas iso € outra histria, 6.0 letor deste fivro deve ter presente mais um aspecto: & que o Renasci mento como periodo da HistOria, e da Histéria da cultura ocidental, nas suas 0 zens, nos seus limites cronolégicos, nos seus contetidos, nas svas ceracteristicas, ha sta propria consistencia, fot sempre, ¢ continua a set, terreno de exernos con- fitos interpretativas. Discutiu-se, e discute-se, acerea das suas relagBes com a dade Média: se existia um contraste polémico ou uma substancial continuidac se existem limites cronolégicos suficientemente nitidos; se uma crise de ci 40, por vezes radical, e uma profunda alteragdo da cultura se verficaram deveras 40 mesmo tempo,-ot| quase, nos vérios sectores da actividade humans (ertes ¢ Ciencias, politica e economia, ete), ou ndo; se, 20 expandir-se para ld dos Timites das cidades italianas, onde teve otigem, o Renascimento conservou algumas das suas caracteristicas, ¢ quals. E ainda, qualis as relagSes entre os virios dominios fem que se manifestou. Cortesponderdo & grandeza de artistas como Miguel ‘Angelo conquistas idénticas no dominio técnico-ieatifico? Poder-se-ia conceber 1 ewcepcional pericia arquitecténica de um Brunelleschi sem um invulgar pro- igresso téonico global? Em que medida 2 problemétice ético-politica de Maquia- ‘vel, que continua a perturbar a consciéncia humana, e que & também uma grande FBlosofia politica, corvesponderd a experiéncias histéricas concretas e poderé aju- dar a entendé-tas? ‘Mais em geral, em que medida serdo aceitéveis, ou ainda vilides, mites ou reprodugies consagrados, cujas raizes remotas (muitas vezes renascentistas) se foram revelando cada vez com mais clareza como programtas partiddrios? ‘As interrogages, 0s conflitosinterpretativos, so muitos, dificeis de solucio- nar, © para eles convergem, fatalmente, e talvez por vezes inconsciemtemente, ‘reocupagies de todos os géneros: ideologias, e mesmo «orgullios» nacionais, Se D’Alembert, a0 apresentaz, em 1751, a Enciciopédia, agradecia ao Renascimento italiano por tet dado @ humanidade «as cigncias (J, as belas-artes © 0 bom. ‘gosto, indmeros modelos de inigualdvel perfeigdom, ainda hé actualmente histo- Tladores que falam do achamado Renascimento italiano», contestando a sua exis tancia e o seu valor. ‘Se as nove ensaios aqui reunidos (e 0 mimero nove nio tem nenbum signifi- cada esotéricol), todos elaborades por especialistas, pretendem reflectis com feor o estado actual da pesquisa, ndo comportam necessariamente uma identi- Gade de interpretagses gerais. Propositadamente, as varias op;Oes pretendem por fem confronto, e se necessdrio discutir, modos e métodos de enfrentar os proble- mas especilices, de forma a manter em aberto o debate mum confronto conereio ‘com os seres reais, De Facto, passa-se constantemente do esbogo de uma «figura» Lipiea para os exemplos vives que a Histéria oferece. Por outro lado, € no desva- necimento des tipos, not seus encontros e encaixes, na sugestzo continua de ‘Outros tipos, que teemergem em toda a sua individualidade viva mulheres omens do Renascimento. TS, Sede Meet, raz fn Hla, 15201890, Bolt Bringer, Toi 198, p. (2242. 16 CAPITULO I © PRINCIPE DO RENASCIMENTO por Joh Law

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