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PETER BURKE CULTURA POPULAR NA IDADE MODERNA Europa, 1500-1800 Traducdo Denise Bottmann ComPANHIABE poco 7.O MUNDO DO CARNAVAL MITO ERITUAT No tltimo capitulo, tentamos abordar as altitudes ¢ nalores populares atrasés dos heréis populares. Um risco dessa abordagem era 0 de que os heréis tinham de ser retirados do seu cenério. Na cultura popular europeia tradicional, o tipo de cendrio mais importante era a festa: festas de familia, como os casamentos; festas de comunidade, como a festa do santo padrociro de uma cidade ou pardquia (Féle Patronale, Kirchenweihtag etc.); festas anuais comuns a nuitos europeus. como a Paéscoa, 0 Primeiro de Maio, 0 Solsticio de Verio, os doze dias de Natal, o Ano-Nono ec o dia de Reis, ¢ por fim o Camanial. Eram ocasiGes especiais em que as pessoas paranam de trabalhar, ¢ comiam, bebiam e consumiam tudo o que tinham. O padre italiano Alberto Fortis obseniou desapronadoramente, em sua misita a Dalmacia, que “a economia doméstica nao é comumente entendida pelos morlacchi, um pono pastoril daquela regifio; nesse aspecto, eles se parecem com os hotentotes, e acabam numa semana com o que poderia durar por muitos meses, simplesmente porque se apresenta uma oportunidade de se divertirem"! A Dalmécia podia ser um caso extremo, mas ilustra claramente o lugar da festa na sociedade tradicional. Em oposigéo ao cotidiano, era uma época de desperdicio justamente porque o cotidiano era uma época de cuidadosa economia. Secu cardter de ocasiaio especial minha simbolizado nas roupas que 0 potlo usasa para dela participar — as melhores. Um misitante inglés em Napoles notou que "basta muito pouco para uestir 0 lazaro [pobre], exceto nos feriados; entaio, cle de fato se enfeita espalhafatosamente, com casaco rendado e meias de cores brilhantes; suas finclas sfio de um tamanho enorme"? As roupas especiais eram sinal de que o dia nao era um dia comum. Certos tipos de espetéculo s6 ocorriam durante as festas, como os jogos ingleses de maio e seus equivalentes toscanos, Maggi ou Bruscelli, ou os espanhdis, 0 auto pastoril encenado no Natal e 0 auto sacramental encenado em Corpus Christi — para nao falar dos varios tipos de pecas camavalescas. Dentro das casas, muitas ve es os jartos, copos e pratos mais ricamente decorados sé eram usados em ocasiGes festivas, e assim as pecas remanescentes podem enganar o historiador, se néo_ for cuidadoso, quanto 4 qualidade da vida cotidiana no passado. Com efeito, metade da casa podia ficar reservada para ocasides especiais; na Suécia dos séculos IMM e€ HEMT, 0 tipo de habitagao corrente era a parstuga, casa com dois aposentos principais, um para o uso diario, outro para festas e convidados. Se a casa tivesse apenas uma sala principal, ela podia ser transformada para as ocasiGes especiais colocando-se pinturas em tecido que ficavam guardacas. Particularmente apropriado para essas ocasi6es especiais era 0 bonadsmateri com temas populares, como 0 casamento em Cané ou a visita da rainha de Saba a Ralaman rma anracanta am im aenalha wlaalivada da anfiuriain a VAUUIHAs YUL GPL OOUILCIIILE UIE LOPLI TUCAI UU UU ELL et & seus convidados.* Um socidlogo francés sugeriu que os homens nas sociedades tradicionais vivem "da lembranga de uma festa e da expectativa da préxima". Thomas Gray insistiu no mesmo ponto quando escreveu sobre ‘Turim, em 1739: "Esse Carnaval sé dura do Natal até a Quaresma; metade do ano restante se passa lembrando © tiltimo Camaval, a outra metade se esperando o Camanial seguinte"+ As pessoas contalam o tempo pelas grandes festas, como o dia de sio Miguel (29 de setembro) ou 0 dia de séo Martinho (11 de nomembro). Nas grandes festas urbanas, as mullidGes se engrossallam com os camponeses Jocais, que minham @ cidade para néo perder as dittersdes. Alguns miajanies ingleses que estanam em Prato, na Toscana, para a festa de Nossa Senhora, puderam ter uma boa miso da multidao na piazza, "entre a qual calculamos que metade trazia chapéus de palha e um quarto tinha as permas de fora". Um clérigo inglés, que em 1787 passou a Semana Santa em Barcelona, obseriou que “em ocasiées como essa, muitos HaO a Barcelona nindo das aldeias mizinhas, ¢ alguns de pronincias distantes". As peregrinagdes a locais sagrados por ocasiao das ptincipais festas constituiam grandes acontecimentos na nida do pono. Na Pronenga, um homem que nisitara 0 santuario de sio Claudio, no Jura, ficou conhecido pelo resto da mida como Romieu, como hoje em dia os peregrinos a Meca recebem 0 titulo de Haji4 As imagens nas paredes de casas de aldeia muitas ve es podiam ser lembrangas de peregrinagdes, pois perto dos santudrios vendiam-se figuras de imagens sagradas, como em Mariamell, na Austria, ou Czestochowa, na Polonia. Mesmo uma peca de mobilia, como um armario ou cama, de uso diario, podia estar associada 4 festa para a qual fora feita, promasiclmente o casamento dos seus primeiros possuidores. Muitas ucmes cla traria as iniciais deles ¢ a data do grande acontecimento. Discutir festas é necessariamente discutir rituais. "Ritual" é um termo de dificil definigao; nas paginas que se seguem, cle se referira ao uso da aco para expressar significados, em oposi¢io as ac6es mais ulilitarias e também a expressiio de significados atrasiés de palasiras ou imagens. A mida cotidiana nos inicios da Europa modema estana repleta de rituais religiosos ¢ seculares, ¢ as apresentacgées de contos e cantigas nao constituiam excecdes. Os contadores de estérias italianos comeganiam com o sinal da cruz, e na Escécia do séculommt um relatério dirigido a Sociedade das Terras Altas citana “um eclho sujeito na paréquia que com o maximo de gramidade tira secu gorro a cada mez que canta Duon Dearmot [...] cle me disse que era em consideracao a memoria daquele herdi".6 Para rituais mais elaborados, porém, tinha-se que esperar as ocasi6es especiais. Esses rituais mais elaborados deixaram pouquissimos tragos para que o historiador possa reconstrui-los com alguma preciso. Contudo, devemos tenté-lo, pois um quadro da cultura popular tradicional sem esses rituais seria ainda mais enganador do que a reconstrugio do historiador. Por exemplo, o significado de um heréi popular pode se modificar com o ritual através do qual ele é apresentado ao ptiblico. Um exemplo notério dessa modificagio é a de Robin Mand Dalia aléan da ba. An baladan avn treshios b Ann MVOU. MODI, AICI Ue CIOL GC Ualadds, Cla LAILIDCHIL (CIOL GOt jogos de Maio. Muitas tezes participana da festa da Primanera inglesa, com secu rei ¢ sua rainha de Maio. As roupas nerde-olina de Robin e sua casa na floresta faziam dele um simbolo adequado da primanera, mas, para ser rei de Maio, Robin precisaria de uma rainha. Nao existem registros da ligacéo da donzela Marion com Robin até o século Imi, centenas de anos depois que a est6ria dele foi contada pela primeira mez, mas Robin Hood e a donzela Marion foram o tei ¢ a rainha de Maio em Reading, em 1502, em Kingston-on-Thames, em 1506, em Londres, em 1559, em Abingdon, em 1566. Seria enganador descrenter Robin como um “espirito da negetagaio", segundo termos framerianos, pois isso seria ignorar seu significado social, ainda que 0 Robin fora da lei possa ter ennergado 0 papel ¢ assumido os atributos de um espitito da primavera? A est6ria de sao Joao Batista est4 mais bem documentada e, curiosamente, segue linhas semelhantes 4s de Robin. A noite de sao Joao cai no Solsticio de Verio. Nos inicios da Europa moderna, essa festa era a ocasiaio de muitos rituais, que inclufam acender fogueiras e pular por cima delas, tomar banho em rios, mergulhar ramos. O fogo e a Agua sao simbolos usuais de putificagao, de modo que é plausivel afirmar que o significado da festa era a renovagiio e a regeneragao, e também a fertilidade, pois existiam rituais para adivinhar se a préxima colheita seria boa ou se uma determinada moga se casaria no ano seguinte. O que tudo isso tem a ver com sio Joao? E como se a Igreja medieval adotasse uma festa pré-cristfi e a fizesse sua. Assim como a festa do Solsticio de Inverno, em 25 de dezembro, veio a ser celebrada como o nascimento de Cristo, da mesma forma a festa do Solsticio de Verio meio a ser celebrada como o nascimento do anunciador de Cristo. O banho no rio era reinterpretado como uma comemoracfo do batismo de Cristo por sao Joao no rio Jordao. Sao Joao, como Robin Hood, parece ter ennergado 0 papel de espirito da negetacao. As nezes cle aparecia com um ramo na mio, ¢ muitas Hezes cra apresentado como um eremila, com pouca roupa, ninendo em lugares seluagens (ner p. 205). Por isso nao seria dificil 1-lo como um woodwose, um homem seliagem dos bosques, figura popular na arte medicnial que parece simbolizar a Naturema (em oposi¢éo Cultura) Uma famosa teoria do século mm sobre os mitos sustentava que eles tém sua origem nos rituais. Segundo ela, ao longo do tempo, os rituais deixaram de ser compreendidos e foi preciso inventar mitos que os explicassem. Essa teoria é simples demais, e podem-se encontrar exemplos em que 0 mito antecede o ritual, como no caso da missa; mas os exemplos de Robin Hood e sao Joao Batista sugerem que o ritual 4s ve es realmente influencia 0 mito. Ainda mais claros sfio os exemplos de santo Anténio Abade e so Martinho. Por que o santo ermitéo Ant6nio haveria de ser representado com um porco? Porque seu dia de festa cai em 17 de janeiro, época do ano em que as familias matavam seus porcos. Entre as cang6es tradicionais sobre séo Martinho havia uma que comegava: Wann der heilige Sankt Martin Will der Riwchof why entiiehn Pre ean Renee, Onur Crepeacrue Sit ter in dem Géinse Stall [...- Nao existe nada sobre esse incidente nas biografias tradicionais do santo. Contudo, a Festa de sfio Martinho cai em 11 de novembro. Os gansos eram abatidos nessa época, e particularmente na Alemanha era tradicional comé-los naquele dia. O ganso fa ia parte do ritual e assim ele se insinuou dentro do mito CARNAHAT. O exemplo par excellence da festa como contexto para imagens ¢ textos é certamente o Carnanal. Particularmente no sul da Europa, 0 Camanal era a maior festa popular do ano, época ptinilegiada na qual o que muitas memes se pensania poderia ser expresso com relatina impunidade. O Carnanal cra uma época faniorita para a encenagaio de pegas, e muitas delas nao podem ser corretamente entendidas sem se ter algum conhecimento dos rituais camantalescos, a que tanto aludem. Antes de se poder tentar qualquer interpretagio, é preciso reconstruir um Camanial tipico a partir das prostas fragmentarias que sobreniieram. Essa reconstrugio é inetitanelmente arriscada, pois, embora as proaias italianas sejam as mais ricas, é um tanto perigoso ner a Europa atrais de lenies italianas. A maior parte das prosias remanescentes se refere as cidades, ¢ nao nos disem © que gostarfamos de saber sobre a cultura camponesa, embora alguns camponeses morassem em cidades ¢ atten oe pralass ainda wilnanawe ni Z alan aenan senedioleanc In Canin Oulros protiasicimente wMiessem ale clas para parucipar aa Testa. Grande parte das provas vem de forasteiros, turistas estrangeiros que podem ter entendido mal o que viam e ouviam (ver p. 102). Nenhum Carnaval era exatamente idéntico a outro. Existiam variagées regionais, e existiam outras diferengas devidas ao tempo, A situagéo politica ou ao prego da carne numa determinada época. No entanto, essas variagdes sé podem ser avaliadas com algum tipo de critério normativo que permita medi-las, algum quadto composto de um Carnaval dos inicios da Europa moderna. A estagao do Camaval comecava em janeiro, ou mesmo em finais de de embro, sendo que a animagao crescia A medida que se aproximava a Quaresma. O local do Carnaval era ao ar livre no centro da cidade; em Montpellier, Place Notre Dame; em Nuremberg, a praga do mercado em torno da prefeitura; em Veneza, Piazza San Marco, e assim por diante. O Carnaval pode ser visto como uma pega imensa, em que as principais ruas e pragas se convertiam em palcos, a cidade se tornava um teatro sem paredes, e os habitantes eram os atores e espectadores, que assistiam & cena dos seus balcdes. De fato, nao havia uma distingio marcante entre atores e espectadores, visto que as senhoras em seus balcGes podiam langar ovos na multidéo abaixo, e os mascarados muitas vezes tinham licenga para itromper em casas particulares!2 A acéo dessa gigantesca peca era um conjunto de acontecimentos esttuturados mais ou menos formalmente. Os acontecimentos de esiruturagio menos formal prosseguiam intermitentemente durante toda a estacio de Carmanal e se difundiam por toda a cidade. Em primeiro lugar, havia consumo macigo de carne, panquecas e (nos Paises Baixos) waffles, que alingia seu climax na Terga-Feira Gorda, que na Inglaterra do século IIT era referida como ocasifio de tanto cozer e grelhar, tanto torrar e tostar, tanto ensopar e fermentar, tanto assar, fritar, picar, cortar, trinchar, devorar e se entupir A tripa forra que a gente acharia que as pessoas mandaram para a panga de uma s6 vez as provisGes de dois meses, ou que lastrearam suas barrigas com carne suficiente para uma viagem até Constantinopla ou as Indias Ocidentais. As bebidas também corriam. Na Riissia, segundo um visitante inglés, na tiltima semana de Carnaval "eles bebem como se munca mais fossem beber" © pono cantana ¢ dancana nas ruas — nao que isso fosse incomum nos inicios da Europa modema, mas sim a excitagiio, ¢ algumas cangGes, dangas e instrumentos musicais cram especiais, como 0 Rommeipot holandés, uma bexiga de porco esticada sobre uma botija com agua pela metade. "Quando se enfia uma nara de junco no meio da bexiga € se a mone entre o polegar e os outros dedos, 0 instrumento produm um som que nao difere do emitido por um porco esfaqueado."2 © povo usava mascaras, algumas com narigées, ou fantasias completas. Os homens se vestiam de mulher, as mulheres de homem; outros trajes populares eram os de padre, diabo, bobo, homens e animais selvagens, como, por exemplo, arena No ttalinwan antares da na Contac USO. WTI TLAUANIOS 2OULAVALILOC SC Lalla al COMO PCLSOHaZCHs Ua commedia dellarte, © Goethe comenta ter misto centenas de Pulcinellas no corso de Roma, Um inglés em Paris para o Camanal de 1786 escrenicu que "papas, cardeais, monges, diabos, cortesaos, arlequins e magistrados, todos se misturanam numa mesma multidéo promiscua"-3 Essa multidio nao se limitava a se fantasiar, mas também representava papéis. “Um se faz de doutor em direito, e sobe e desce pelas ruas com 0 livro na mao, discutindo com cada um que encontra." Bobos ¢ seluagens corriam ruas afora, batendo nos circunstantes com bexigas de porco ¢ até com maras. As pessoas atiranam farinha umas nas outras, ou mesmo confeitos com a forma de magiis, Jaranjas, pedras ou onos, que podiam ou nao estar cheios de dgua de rosas. Em Cadis, 0 ubiquo nisitante inglés niu mulheres nos baleSes a despejar baldes d'égua nos homens embaixo-= Os animais eram vitimas usuais da loucura do Carnaval; os cachorros podiam ser balangacdos de um lado para outro, dentro de cobertores, e os galos apedrejados até a morte. A agressio também era verbal; trocavam-se muitos insultos e cantavam-se Hersos satiricos. 1 Outros acontecimentos eram estruturados de mancira mais formal: concentraiam-se nos tltimos dias de Camanal, nas ptacas centrais, estabeleciam uma maior distingao entre atores ¢ espectadores, ¢ muitas Hezes cram organizados por clubes ou confrarias dirigidas por "reis" ou "abades" do desgonierno, formados principalmente, ainda que nao exclusinamente, de rapames das classes altas, como nos casos da Abbaye des Dinieneda Dna Nd Caweetn neta da Tn Rian Datla (ine dn Conaras (Kouen), da Compagie ae 1a Mere role Won), aa Compagnie della Calza (Veneza) ou do Schembartlaufer (Nuremberg)42 As apresentacées que cles organizanam eram “impronisadas" no sentido em que nao hasia um roteiro ¢ (pronanelmente) nem ensaios, mas cram coordenadas por um grupo de conhecidos, que tinham participado antes de tais ocasiGes. As apresentagGes nao eram nem exatamente imutéutcis, nem exatamente limres, assim como nao eram nem propriamente sérias, nem pura dinersdo, mas sim algo intermediario. Inclufam com frequéncia os trés elementos que se seguem. Em primeiro lugar, um desfile, em que pronasiclmente haneria carros alegéricos com pessoas fantasiadas de gigantes, deusas, diabos e assim por diante. Em Nuremberg, hania um tmico carro alegérico, Héile, trasido num tren6 pelas ruas até a praca principal. Muitas nemes, cle adotania a forma de um nantio, que lembrasia as prociss6es com catros-nailios ocasionalmente mencionadas em épocas antigas ¢ moedicnais. Os carros alegéricos eram particularmente frequenies e famosos em Florenga. Os atores representanam jardinciros, amas-secas, esgrimistas, estudantes, turcos, Lanasknechien e outros tipos sociais. Cantaiam cangdes compostas para a ocasiao, que dirigiam as damas nos balcdes que olhaiiam o desfile passar. Em alguns carmaniais franceses, os maridos que tinham apanhado das suas mulheres, ou tinham se casado recentemente, cram lettados em procissao pelos stiditos do "grande principe da Terga-Feira Gorda" ou conduzidos pela cidade montados de costas num burro! Tim seotindo elemento recarrente no rimal carna alesco era DOM Quan WiSE Cr COE rere nny caus Cann ewe ete algum tipo de competicéo; as disputas no ringue, as corridas de canalo ¢ as corridas a pé cram muito populares. O Carnanal romano inclufa uma corrida de rapazes, uma corrida de judcus ¢ uma corrida de relhos. Ou podia hanier justas ou torneios em terra ou na agua; em Lille, no século MMT, os competidores ficanram de pé em dois barcos no rio. Partidas de futebol na Terga-Feira Gorda eram comuns na Gra-Bretanha e no norte da Franga. Em Ludlow, brincasta-se de cabo de guerra; em Bolonha, um lado atirania o1os no outro, que tentania apard-los com bastées.2 Um tetceiro elemento recorrente no Camaval era a apresentacdo de algum tipo de pega, geralmente uma farsa. No entanto, é dificil tragar uma linha entre uma pega formal e “brincadeiras" informais. Havia cercos sinulados, populares na Italia, onde um castelo construido na praga principal seria tomado de assalto; processos simulados, as causes grasses populares na Franga; sermées sinulados, populares na Espanha; aragdes simuladas, populares na Alemanha, em que mulheres solteiras empurravam 0 arado; e casamentos simulados, em que a noiva podia ser um homem, ou 0 noivo um urso (cf. p. 171, sobre a parédia). Muitas brincadeiras desse tipo se centravam na figura do préprio "Carnaval", que geralmente assumia a forma de um homem gordo, pangudo, corado, jovial, muitas vezes enfeitado com comidas (salsichas, aves, coelhos), sentado num barril ou acompanhado (como em Veneza, em 1572) de um caldeirao de macarriio. A “Quaresma", em contraste, assumia a forma de uma velhinha magra, vestida de preto e enfeitada com peixes — 0 "Zé Quaresma" ( Jack a Lent) inglés parece ter sido uma excegaio, enquanto personagem masculino. Esse contexto do Carnatial dente nos ajudar a explicar os nomes ¢ imaginar as caracteristicas de dinersos palhagos famosos do periodo: "Hans Wurst" certamente cra uma figura carnanalesca com uma salsicha, enquanto Pickleherring [Arenque Azedo] e¢ Steven Stockfish [Esteaio Bacalhau] cram descarnados personagens da Quaresma2 stem alguns indicios que sugerem que as lutas entre o Camaval e a Quaresma nao eram apenas fruto da imaginacao de Brueghel, Bosch e outros pintores, mas sim representadas em publico; em Bolonha, em 1506, houve um tomeio entre o "Carnaval", montado num cavalo gordo, e a "“Quaresma", nam cavalo magro, cada qual com um batalhao de seguidores. O Uillimo ato da festa muitas ve es era uma peca na qual o “Carnaval" enfrentava um processo simulado, fazia uma falsa confissio e uma imitag%o de tesiamento, era executado de brincadeira, em geral na fogueira, e recebia um funeral de gozagio. Ou, ainda, um porco podia ser solenemente decapitado, como acontecia anualmente em Vene a, ou uma sardinha podia ser enterrada com todas as honras, como era 0 2 caso em Madri.24 O "MUNDO DE CABECA PARA BATHO” O que o Camanal significana para o pono que participania dele? Num sentido, a pergunta é desnecessdria. O Carnanal cra aim favinda ema heinandaiva aim firm am ci macmna dicnancanda UIE LCLIaUU, Ula DUE AUCH a, UE EE CH PE BECP HO, Gat POusanUY qualquer explicagéo ou justificativa. Era uma ocasifio de éxtase e liberagZo. Em outro sentido, a pergunta precisa ser desdobrada. Porque a simulagao assumia essas formas especificas? Por que 0 povo usava mdscaras com narig6es, por que aliravam ovos, por que execulavam o "Camaval"? Os contemporaneos nao se deram ao trabalho de registrar 0 que o Camaval significava para eles — devia parecer 6bvio —, de modo que teremos de proceder indiretamente, procurando temas recorrentes e suas 2 associagées mais conn: Haatia trés temas principais no Carnaaal, reais e simbolicos: comida, sexo e mioléncia. A comida era 0 mais anidente. Foi a came que compés a palasra Carnantal. O macigo consumo de came de porco, de maca e outras ocorria de fato ec cra representado simbolicamente. O “Carnanal" pendurana frangos e coelhos nos seus trajes. Em Nuremberg. Munique ¢ outros lugares, os acouguciros desempenhasiam um papel importante nos rituais, dancando. correndo pelas ruas ou mergulhando algum nonato na dgua. Em Koenigsberg, em 1583, nonenta acouguciros carregaram em desfile uma salsicha que pesamia quase duzentos quilos. Came também significana a carnalidade". O sexo, como é usual, cra mais interessante simbolicamente do que a comida, dentido as ndrias maneiras de se disfargar, por mais transparentes que esses 1Kus possam ser. O Carnanal cra uma Gpoca de atinidade sexual particularmente intensa, como tém conseguido mostrar os historiadores do século MMT francés, com suas tabelas do monimento sagonal das concepeGes; 0 pico era em maio-junho, mas havia um segundo pico em fevereiro ou por volta disso. Os casamentos frequentemente se reali avam durante o Camaval, e os casamentos simulados eram uma forma de brincadeira popular. Nessa época, nao s6 se permitiam, como também eram praticamente obrigatérias as cantigas com duplo sentido. Uma cangao tipica era a cantada por um carro alegérico de “chaveiros" florentinos, que di iam 4s mulheres, 4 medida que passavam pelos seus balcGes, que: E bella e nuova ed util masserizia Sempre con noi portiamo Diogni cosa dovizia, E chi volesse il pué toccar con mano” Em Napoles, em 1664, as senhoras ficaram chocadas ao ner um falo de madeira, com “o tamanho do de um castalo", carregado pelas ruas.~ Em vista desse incidente, no parece muito forgado interpretar mascaras com longos nari es ou chifres como simbolos falicos, isso sem falar da salsicha levada em procissio em Koenigsberg; ou chamar a alengao para o significado sexual da “aragao" em que as mogas solteiras tinham de participar, ou para a bexiga de porco usada para tocar miisica, jogar futebol e bater nas pessoas. O galo e o porco eram_ simbolos contemporaneos de luxtiria, ao passo que os peludos homens selvagens e ursos que frequentemente apareciam no Carnaval e podiam raptar mulheres certamente eram simbolos de poténcia. O Carnaval nao era apenas uma festa de sexo, mas também ama facta da anracean dactmieaa nrnfanaria Nea fata tal az UII WUOIL UL AS LLONA, ULOUUIGERyy PILE.) LAL Lay LALIT seja de se pensar no sexo como 0 meio-termo entre a comida ec a mioléncia. A mioléncia, como 0 sexo, cra mais ou menos sublimada em ritual. Nessa ocasiéo, a agressiio merbal era permitida; os mascarados podiam insultar os indiniduos ¢ criticar as autoridades. Era a hora de denunciar o niginho como comudo ou saco de pancada da sua mulher. Numa procissio de Carnantal em Madri, em 1637, uma figura, que parecia esfolada, trazia a inscri¢aio: Sisas, alcavalas y papel sellado Me tienen desollado- Outras figuras, aludindo ao corrente trafico de distingdes, traziam os uniformes das ordens militares, com inscrig6es “A venda". A agressio frequentemente se ritualizava em batalhas simuladas ou particas de futebol, ou era transferida para objetos que no podiam se defender facilmente, como galos, cachorros, gatos e judeus, que eram atingiclos com pedras e lama em sua corrida anual por Roma. Nao raro ocorriam violéncias mais sérias, quer porque os insultos fossem longe demais ou porque nao se queria perder uma ocasiao ideal para descontar velhos rancores. Em Moscou, 0 ntimero de assassinatos na rua aumentava durante a época de Carnaval, ao passo que um visitante inglés em Veneza, no final do século IMM, registrou que “no domingo de Carmaval 4 noite foram mortas dezessete pessoas, e intimeras ficaram feridas; além do que eles informavam, quase toda noite havia um assassinato, durante todo © lempo de Camanal". Em Londres, a molencia dos aprenuizes na Terga-Feira Gorda era t&0 comum como comer panquecas: “Rapazes armados de cacetes, pedras, marretas, réguas, trolhas ¢ serras de mio saqucasiam os teatros ¢ atacaniam os bordéis", com os bolsos cheios de pedras para atirar no aguazil e scus homens, quando chegasam ao local. Por nolta de 1100 foi dito que “a média de ferimentos sérios ou mortais em cada grande festa em #1 25 Sevilha" era "cerca de dois ou tés’ Claude Lévi-Strauss nos ensinou a procurar pares de Opostos ao interpretarmos os mitos, rituais e outras formas culturais. No caso do Carnaval, havia duas oposigGes basicas que fornecem 0 contexto para interpretar muitos aspectos nos comportamentos, oposigGes essas de que os contemporéneos tinham clara consciéncia. A primeira delas é entre o Carnaval e a Quaresma, entre 0 que os franceses chamavam de jours gras e jours maigres, geralmente personificados como um gordo e uma magra. Segundo a Igreja, a Quaresma era uma época de jejum e abstinéncia — nao sé de carne, mas de ovos, sexo, ir ao teatro ou outros entretenimentos. Portanto, era natural apresentar a Quaresma como uma figura emaciada (a prépria_palavra “Quaresma" — Lent — significa “tempo de privagio" — lean tine), desmancha-prazeres, associada aos peixes da dieta de Quaresma. O que faltava na Quaresma era naturalmente o que abundava no Carnaval, de modo que a figura do "Carnaval" era representada como um comiléo e bebertéo jovem, alegre, gordo, sensual, como um Gargantua ou um Falstaff shakespeariano. (Decerto a conexfo era no sentido inverso, e o Carnaval é que fornece o contexto para interpretar Gargéintua e Falstaff.) A segunda oposic¢fio basica requer uma maior explicagaio. O Carnanal nao se opunha apenas 4 Quaresma, mas também a tida cotidiana, no s6 aos quarenta dias que comecaiam na Quarta-Feira de Cinsas, mas também ao resio do ano. O Camanial cra uma representacdo do "mundo mirado de cabega para baixo", tema fanorito na cultura popular dos inicios da Europa moderna; le monde renversé, il mondo alla rovescia, die verkehrte Wel O “mundo de ponta-cabega" prestama-se a ilustragdes, e dos meados do século MIT em diante foi um tema ptedileto em estampas populares. Hania a innerséo fisica: as pessoas ficarram de ponta-cabeca, as cidades ficanam no céu, 0 sol ec a lua na terra, os peixes moasiam ou, item caro aos desfiles de Camanal, um canalo andana para tras com o canaleiro de frente para a cauda. Hamtia a inniersaio da relacao entre homem ¢ animal: 0 canalo mirana ferrador e ferrasia 0 dono; o boi mirana acouguciro, corlando em pedagos um homem: 0 peixe comia 0 pescador; as lebres carregasiam um cagador amarrado ou giranam-no no espeto. Também se representania a inniersio das relagées entre homem ¢ homem, fosse inmiersio cléria, innersdo de sexo ou outra innersio de status. O filho aparecia batendo no pai, o aluno batendo no professor, os criados dando ordens aos patrées, os pobres dando esmolas aos ricos. os leigos dizendo missa ou pregando para o clero, o rei andando a pé e¢ o camponés a canalo, o marido segurando o bebé e fiando, enquanto sua mulher fumava e segurava uma espingarda2® Qual era o sentido dessa série de imagens? Néo ha uma resposia simples para essa pergunta. Elas cram ambiguas. com sentidos diferentes para diferentes pessoas, e possinelmente ambinalente, com diferentes sentidos para a mesma pessoa. E muito facil documentar a atitude das classes altas, para as quais essas imagens simbolimanam caos, desordem, desgonemno. Os adutersétios da mudanga nos inicios do perfodo moderno com frequéencia caracterizamam-nas como literalmente "subiersinas", uma tentatina de iniierter 0 mundo. Seu pressuposto era o de que a ordem existente era a ordem natural, que qualquer alternatina a ele era simples desordem. Lutero, por exemplo, foi atacado por “uirar o mundo de cabega para baixo" e, por sua mez, atacou da mesma forma os rebeldes camponeses de 1525. Na Inglaterra, em meados do século MINT, Os quacres, entre outros grupos, eram chamados pelos adutersarios de "niradores do mundo de cabeca para baixo" 22 JA muito menos claro é se o povo achava ruim esse "mundo de pernas para o ar. Quando os rebeldes camponeses de 1525 invadiram a casa da Ordem Teut6nica em Heilbronn, obrigaram os cavaleiros a trocar de lugar com eles. Enquanto os invasores se banqueteavam, os cavaleiros tinham de ficar de pé junto 4 mesa, com o chapéu na mio. "Hoje, junkerzinho", disse um dos camponeses, "somos nds os cavaleiros." (Heut, Junkerlein, syn wir Teulschmeister.) Os plebeus de Norfolk, em 1549, na rebelidio de Ket, declararam que os "fidalgos governaram antes e agora eles vio governat". No Vivarais, em 1670, os camponeses exigiram o mesmo. "Chegou o momento da profecia", diziam, “em que as panelas de barro vio quebrar as de ferro." Depois da Ra ahiean Francaca rircularam shine actamnac nanularac rma TKUIUIUGAY LE Laeoods UCU UU LoL nipas pUpuneteas ULE com 0 nobre montado no camponés, a outra com o camponés montado no nobre, com a inscrig¢éo “eu sabia que estana chegando nossa ve "28 (ilustragGes 8 e 9). Um mundo as avessas estava presente na utopia popular do pais da Cocanha, “terra dos preguicosos" ou “terra do preste Joao", onde as casas tinham os telhados cobertos de panquecas, nos riachos corria leite, os porcos assados corriam soltos com facas convenientemente fincadas nas costas, e corridas onde o ganhador era quem chegava por tiltimo. Um poeta popular francés acrescentou suas variacbes a esse tema comum: Pour dormir une heure De profonde sommeille Sans quion se réveille, On gagne six francs, E & manger autant, Et pour bien boire On gagne une pistole; Ce pays est dréle, On gagne par jour Dix francs & faire Famour A A Cocanha é uma miséo da mida como um longo Carnanial, ¢ 0 Camanial é uma Cocanha passageira, com a mesma énfase sobre a comida ec as innets6es. O Carnanal cra uma época de comédias, que muitas memes apresentaniam situagdes innertidas, em que 0 juiz era posto no tronco ou a mulher triunfasia sobre 0 marido." As fantasias de Carnanial permitiam que os homens ¢ mulheres trocassem seus papcis. As relagGes entre patrao ¢ empregado podiam se innetier, na Inglaterra, "a liberdade dos criados na Terca-Feira Gorda" era tradicional. Os tabus cotidianos que coibiam a expressio de impulsos sexuais ¢ agressintos cram substituidos por estimulos a cla. O Carnanal, em suma, era uma época de desordem institucionalizada, um conjunto de rituais de inmersio. Nao admira que os contemporaneos 0 chamassem de época de “loucura"™ em que reinana a folia. As regras da cultura cram suspensas; os exemplos a se seguir cram o selilagem, 0 bobo ¢ o "Carnanial", que representana a Natureza ou, em termos freudianos, o Id. Como Mantuano, um poeta italiano, escrareu no inicio do século Per fora per vicos it personata libido Et censore carens subit omnia tecta voluptas£ Os versos tém uma ressonincia freudiana. E claro que os termos libido ecensor tém para nés associagdes que nao existiam no séculommf, mas 0 poeta est4 indicando que o Camaval proporcionava uma vdlvula de escape para desejos sexuais normalmente reprimidos.24 As oposigdes gémeas entre Carmanal ¢ Quaresma, o “mundo de ponta-cabeca" ¢ 0 mundo cotidiano, nfo esgotam, cutidentemente, os significados do Carnanal. Um outro tema, que surge particularmente nos carnasiais de Nuremberg, é 0 da iumentude. Em 1510. um carro alegérico renresentou a fonte da jw entde: em 1514, representou uma velha a ser devorada por um deménio gigante. Talve o "mundo de pernas para o at" fosse, em si mesmo, um _ simbolo gigantesco de rejuvenescimento, de volta 4 liberdade dos anos anteriores 4 2 idade da ramao. Quando sir James Fraser discutiu o Carmanal em seu Golden bough [O ramo de outro] cle sugeriu que era um ritual para famer crescer a lanoura, e interpretou no s6 os seluagens, mas também o prdéprio "Carnasal" como espiritos da negetagdo. Qualquer que seja a origem do ritual, nao parece que tenha sido esse 0 seu significado para quem participana da festa nas cidades dos inicios da Europa modema. Mas seria um erro descartar Framer pura e simplesmente. A "fertilidade" é um conccito consideranielmente til para ligar elementos dispares do Carmauntal, desde onos a casamentos ¢ os narios simbolos falicos. Uma salsicha podia simbolizar um falo; mas entio um falo podia simbolizar algo mais, quer os contemporancos tinessem consciéncia disso ou nfo. S6 podemos especular3? O que é claro é que o Camaval era polissémico, significando coisas diferentes para diferentes pessoas. Os sentidos cristéos foram sobrepostos aos pagaos, sem obliteré-los, e a resultante precisa ser lida como um_ palimpsesto. Os rituais transmitem simultaneamente mensagens sobre comida e sexo, religidio e politica. A bexiga de um bobo, por exemplo, tem diversos significados, por ser uma bexiga, associada aos érgiios sexuais, por vir de um porco, 0 animal do Camaval par excellence, e por ser trazida por um bobo, cuja "fatuidade" é simbolizada por ela ser Hamia. O CARNAHALE CO O Carmanal néo tinha a mesma importincia em toda a Europa. Ele cra forte na drea mediterranica, Italia, Espanha ¢ Franga, razoanclmente forie na Europa central, e mais fraco no norte, Gra-Bretanha e Escandindaria, pronanelmente porque o clima desencorajania uma claborada festa de rua nessa época do ano. Onde o Carnanal era fraco, ¢ mesmo em alguns lugares onde era animado, outras festas desempenhanam suas fungdes ¢ apresentaniam as mesmas caracteristicas. Assim como as estérias citculanam de um herdi para outro, da mesma forma "particulas" elementares do ritual circulaniam de uma festa para outra. De caracteristicas mais nitidamente "carmanialescas" cram os sdrios dias de festa que caiam em demembro, janciro ¢ fenereiro — em outras palamras, dentro da época do Carnastal em seu sentido mais amplo. Um exemplo famoso é a festa dos Bobos, realisada em 28 de desembro (a festa dos "inocentes" massacrados por Herodes) ou em toro dessa data, particularmente bem documentada na Franga. A festa dos Bobos cra organimada pelos nomtigos, equinalente eclesidstico das associagées de rapazes que tanto se destacaniam durante o Carnanal. O pono participana da mesma forma que participaiia da missa, na congregacfo. Durante a festa dos Bobos, clegia-se um bispo ou abade dos bobos, hastia danga na igreja e nas mas, a prociss&o usual e uma missa simulada cuando os clérigos usanam mascaras. rounas de niilher. ou a vestiam seus habitos de tras para a frente, seguravam 0 missal de ponta-cabeca, jogavam cartas, comiam salsichas, cantavam cantigas obscenas e maldi iam a congregaciio, ao invés de abengoa-la. As “indulgéncias" proclamadas no sul da Franga (em langue d’Oc, ao invés de latim) podiam ser assim: wa wana oes meee ey epee ee cee Se Mossehor, ques eissi présen, Vos dona xx banastas dé mal dé dens, Et a ts vos aoutrés aoussi, Dona una céa de Roussi! Dificilmente se poderia querer uma representagio mais literal do “mundo wirado de cabega para baixo". Ele cra legitimado por um nersiculo do Magnificat. Deposuit potentes de sede et exaltavit humiles [Ele depés os poderosos ¢ ergucu os humildes]. Em outros lugares. como na Inglaterra antes da Reforma, a ocasiao assumia a forma mais branda da festa do “bispo menino" ou da "missa dos Inocentes". Segundo a proclamagao que aboliu esses costumes, em 1541, cles inclufam “criangas com enleites esquisitos, uestidas para imitar padres, bispos ¢ mulheres, ¢ assim serem lentadas com cangGes e dangas de casa em casa, abengoando as pessoas e coletando dinheiro, ¢ os meninos de fato cantam a missa e pregam no ptilpito" 34 No aniversario do massacre de Herodes, permitia-se que as criangas assumissem 0 comando. A festa dos Inocentes caia nos do e dias do Natal, e todo esse periodo era tratado de forma carnavalesca, algo bastante apropriado do ponto de msla crislao, Ja que o nascimento do filho de Deus numa manjedoura era tm exemplo espetacular do “mundo de cabega para baixo". Como o Carnanal, os doze dias de Natal cram grandes ocasiées de se comer e beber, para a encenagio de pecgas e “desgonemo" de wdrios tipos. Na Inglaterra, 0 hébito era encenar "pecas de arado", que podiam incluir casamentos simulados, na primeira segunda-feira depois do dia de Reis. Também podia hasier "uma troca de roupas entre homens e mulheres" no Ano-Nono. Como no Carnasial, essa época era personificada. A "canalgada" ou procissio de Yule (0 Papai Noel original) ¢ sua esposa era um grande acontecimento em York no séculomm, "atraindo grande afluéncia de gente atras deles para olhar", como admitiu a corporagio, ao abolir o ritual, em 1572. Na Itélia, cra a Epifania que era personificada como La Befana ouLa Veechia, wna bruxa uelha um tanto parecida com a “Quaresma", que podia ser queimada no final dos festejos 5 Na Rissia, segundo um visitante inglés do século mI, no Natal “cada bispo em sua igreja apresenta um espetaculo das trés criangas no forno, em que se faz. vir 0 anjo voando do telhado da igreja, com grande admiragéo dos espectadores, e aparecem muitos clardes terriveis de fogo, feitos com resina e pélvora pelos caldeus (como os chamam) que correm pela cidade durante os do e dias, disfargados em seus casacos de atores e praticam esse esporte tao saudavel em honra ao quadro vivo do bispo". O lado carnavalesco das atividades aparece mais marcadamente num relato alemao do século mum, que explica aue esses "caldeus". assim chamados por causa das pessoas cue L : 1 1 L connenceram Nabucodonosor a atirar Sidrac, Misac e Abdénago na "fornalha de fogo ardente" (Daniel 3, 8-30), eram: [...] cerlas pessoas dissolutas que a cada ano recebiam autorizagio do patriarca, por um periodo de oito dias antes do Natal até 0 dia dos Trés Reis Magos, para corter pelas mas com fogos de artificio especiais. Muitas ticues cles queimasiam as barbas dos passantes, ptincipalmente dos camponeses [...] quem qttisesse ser poupado tinha que pagar um copeque. Andanam uestidos como folides de carnanal, com chapéus de madeira pintada na cabeca. Ainda na época do Camanial, em 5 de fentereiro hantia a festa de santa Agata, santa Agueda para os espanhdis, para quem o dia era ocasiéo para um outro rito de innersaio: as mulheres mandasiam ¢ os homens obedeciam. E como se os torturadores de santa Agata, ao cortarem scus scios, tinessem-na connertido numa ama ona Fora da época do Carnaval, havia festas que enfati_ avam os temas da renovacio, comilanga, sexo, violéncia ou inversio, e assim podem ser descritos como carnavalescos. Na Inglaterra, a ‘Terga-Feira da Pascoa ou Hock Tuesday constituia uma delas: as mulheres capturavam os homens e faziam com que eles pagassem um resgate pela sua libertagaio. O mesmo acontecia com o dia Primeiro de Maio, pois na Inglaterra a animada festa de Maio parece ter compensado uma Terga-Feira Gorda ralati amanta calma Ta ia alaharadac inane cla Main LUAU CU Lavi WIAUYLaUUE JURUa Ue Ls organizados por um rei ¢ uma rainha de Maio, em que podiam se incluir pegas sobre sAo Jorge (que cra um misinho, pois sua festa cafa uma semana antes) ou Robin Hood (ner p. 246). Homens, mulheres ¢ criancas iam para os bosques onde, como diz um relato do final do século ml, “eles passam a noite inteira em passatempos agraddsicis", noltando com ramos de bétula ce o mastro de Maio. Em outras palamras, os ritos de primanera ennolutiam liberdade sexual. Na Londres do século mmm, os limpadores de chaminé cobriam-se com farinha no dia Primeiro de Maio, exemplo mais claro possisicl do ritual de innersio: 0 branco toma aqui o lugar do preto. Na Italia, os mastros da festa eram conhecidos como alberi della Cucagna [amores da Cocanha], outro clo com o mundo do Carnanal. Na Espanha, 0 dia Primeiro de Maio cra, como o Carnanal, comemorado com batalhas ¢ casamentos simulados, “uma espécie de pega", por exemplo (como Conarrubias menciona em seu diciondrio), “encenada por rapazes e mocas que p6em um menininho e uma menininha num leito matrimonial que significa casamento" 32 O verao também tinha seus carnavais, principalmente Corpus Christi e a festa de sao Joao Batista. A festa de Corpus Christi, que se difundiu pela Europa a partir do século mm, era um dia de prociss6es e pecas. Na Inglaterra dos finais da Idade Média, era a época em que os mistérios eram apresentados nas pragas do mercado de Chester, Coventry, York e outros lugares. Também na Espanha, Corpus Christi era o grande dia de apresentacfo de pecas religiosas, mas os procedimentos eram permeados de elementos carnavalescos. Elaboracdos carros alegGricos passasiam pelas ruas, transportando santos, gigantes ¢, © mais importante, um enorme dragéo, explicado em termos cristéios como a festa do Apocalipse, enquanto a mulher As suas costas supostamente representaria a prostituta da Babilénia. Os ountidos da multidéo podiam ser tomados por sons de fogos de artificio, gaitas de foles, pandeiros, castanholas, tambores e corneas. Os diabos tinham um papel importante a desempenhar, dando cambalhotas, cantando e trasando batalhas sinuladas com os anjos. O bobo tinha outra oportunidade de bater nos circunstantes com a sua bexiga“8 Ja se sugeriu que a noite de Siio Joao, 0 Solsticio de Verao, era uma importante festa organizada em torno do tema da renovagio (ver pp. 246-7). Essa festa adotava uma forma carmnavalesca em algumas comunidades que tinham sao Joao como santo pacroeiro. Era o caso, por exemplo, de Chaumont, na diocese de Langres, onde as semanas que antecediam a festa eram dedicadas ao '"desgoverno", organizado, ou antes, desorgani ado por demGnios. Os demGnios, um tanto parecidos com os "caldeus" russos, atiravam fogos de artificio na multidao, corriam pela cidade nas noites de domingo, aterrorizavam o campo e cobravam taxas no mercado. Essas atividades eram interpretadas como uma representacfio do poder do Deménio sobre o mundo, que durava até a festa de séo Joao. Florenga também era dedicada a sio Joao Batista, e sua festa vinha marcada nao sé por pegas religiosas, procissGes e carros alegoéricos, mas também por fogueiras gigantes, fogos de artificio, corridas, partidas de futebol, touradas e spiritelli, homens com andas. No norte ¢ Iesie da Europa, a noite de Sao Joao era uma festa particularmente importante durante nosso periodo, fosse porque as reminiscéncias pagéis cram mais fortes OU porque os rituais publicos que ocorriam no Carnanal em paises mediterranicos e em Maio na Inglaterra ficariam melhor nesses climas mais frios se adiados para junho. Na Est6nia do século IMI, a noite de so Joao era marcada, segundo um pastor luterano, por “chamas de alegria por todo o pais. Em tomo dessas foguciras, o porto dangana, cantania ¢ pulanta com grande prazer, ¢ nao poupaia as grandes gaitas de foles [...] traziam-se muitos carregamentos de ceneja [...] que desordem, prostituigao, brigas, mortes e medonha idolatria 14 ocorriam!". Na regiaio rural em tomo de Riga, um outro pastor luterano descrentcu a festa da noite de sao Joao em termos mais simpiéiticos, no final do século mmm. Seu nome: J. G. Herder (ver p. 26 ss 22 A énfase do Carnaval em comida e bebida parece ausente dessas festas de primavera e vero, mas 0 povo se compensava no outono. Comer e beber eram o ponto alto da ceia da colheita oferecida aos ceifadores, embora nao se esquecessem outras diversdes: "Um rabequista tem que tocar para eles quando enchem a barriga, indo para o celeiro e dangando no chao de madeira até que pingam suor, havendo um canecio de cerveja A mao para eles e um pedaco de fumo para cada". Isso foi em Cardiganshire, em 1760. Na Sicilia, poucos anos depois, um visitante francés observou que "depois da colheita os camponeses comemoram uma festa popular, uma espécie de orgia", dangando ao som de tambores; "uma moga vestida de branco montada num asno [...7 é cercada por homens a pé que tot 1 ou trazem molhos de trigo nos bragos e cabeca, e parecem homenagea-la com cles". Na Inglaterra, hastia um igualitarismo carnanalesco no decorter das festinidades. Na ceia da colheita, conta-nos um obserador do século MITT, "o criado ¢ seu patréo sao iguais ¢ tudo é feito com igual liberdade. Sentam-se a mesma mesa, connersam juntos linremente, ¢ passam o resto da noite dangando, cantando etc., sem nenhuma diferenca ou distingao" 22 Outros rituais outonais de comidas e bebidas eram as festas de sio Bartolomeu (5 de agosio) e sao Martinho (11 de novembro). Sao Bartolomeu, que se dizia ter sido esfolado vivo, era um padroeiro adequado, ainda que hortivel, para os agougueiros. Em Bolonha e Londres, seu dia era ocasiao de algumas comemoragées carnavalescas. Em Bolonha, era chamado "a festa do porco", que era levado em triunfo e, em seguida, morto, assado e distribufdo. Em Londres, 0 mesmo dia era a ocasifio da feira de sao Bartolomeu, realizada em Smithfield, centro do setor de carnes de Londres. A pega de Ben Jonson descreve com precisao os principais ingredientes dessa festa: porcos de Bartolomeu (vendidos em barracas com uma cabega de porco como tabuleta), pio de gengibre, teatro de bonecos e varios dias de bagunga autori ada. Na Franga, Alemanha e Paises Baixos, 0 dia de sao Martinho era uma grande ocasido, quando 0 povo obedecia alegremente 4 ordem da cangaio "beba o vinho de Martinho e coma ganso" (irinck Martins wein und gens isz), tanto mais alegremente porque em alguns lugares, como em Groningen, no inicio do século IMIT, era costume que os estalajadciros semiissem ganso assado de gragast As execug6es ptiblicas, a "entrada" solene de pessoas importantes na cidade, a comemoracio de vildrias (ou coroagdes, ou ainda o nascimento de filhos dos reis) e, pelo menos na Inglaterra do século mmm, as eleigGes parlamentares, eram todas elas ocasides carnavalescas.

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