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oeioari2 (© mestre-cuca sem nome - Revista de Historia O mestre-cuca sem nome De autor desconhecido, O cozinheiro imperial, primeiro livro brasileiro de culinaria, revela, além de receitas exdticas, o gosto e o comportamento das elites do século XIX Leila Mezan Algranti 19/9/2007 0 cozinheiro imperial é considerado o primeiro livro de cozinha brasileiro. Publicado pela primeira vez em 1840, recebeu edicdes sucessivas até o final do século XIX, indicativo do sucesso que atingiu na época. Recentemente reeditado, continua a chamar a atencao dos leitores nao apenas pela antiguidade curiosidades que suas receitas contém, mas pelo mistério que envolve o autor, que preferiu nao se identificar. Mais interessante se torna o livro ao se constatar que a intencao do autor de trazer a puiblico uma obra inovadora e atualizada nao corresponde a seu contetido, ja que o Cozinheiro imperial é uma compilacao ampliada dos dois primeiros livros de receitas portugueses, datados, respectivamente, do final dos séculos XVII e XVIII. O que teria motivado um “chefe de cozinha” (conforme se intitula o autor) a ocultar-se atras de apenas trés iniciais: R.C.M.?_ Quais os significados que este livro apresenta para os admiradores da arte culinaria e para a historia do Brasil? ‘Muitos motivos podem ter levado 0 autor do Cozinheiro imperial a preservar sua identidade. Porém, seu interesse pela culinaria e pelos rituais ligados & alimentagao torna-se evidente na cuidadosa consulta que realizou em livros de receitas estrangeiros antigos. Em especial, na Arte de cozinha, de Domingos Rodrigues (1680), e em O cozinheiro moderno ou Nova arte de cozinha, de Lucas Rigaud (1780), ambos afamados cozinheiros da casa real que marcaram a culinaria portuguesa com suas receitas e informacoes técnicas. exatamente a auséncia de um estilo de cozinha e de instrucdes pessoais que leva a supor que o autor do primeiro livro de culindria brasileiro nao tenha sido um cozinheiro. Além disso, muitas secdes do livro se ressentem da falta de produtos locais em suas receitas, como, por exemplo, o segmento da docaria, no qual no ha referéncias aos frutos tropicais. O fato de o autor se intitular chef pode ter sido uma forma de conferir respeitabilidade a obra, reafirmando uma antiga tradicao na histéria da edicdo dos livros de cozinha, cujas obras mais divulgadas, desde a Idade Média, foram escritas por cozinheiros experientes, a servico das grandes casas da nobreza européia. Assim, nao se sabe se o autor de fato elaborou as receitas apresentadas, ou se era um mero curioso e pesquisador de textos antigos. Mas é certo que teve cuidados especiais em atualizar pesos e medidas, a fim de viabilizar a execucdo das receitas que compilou. Também ampliou e revisou a segunda edicao de sua obra, acrescentando anexos e apéndices, mesmo que estes fossem tao antigos quanto boa parte das receitas apresentadas. Um exemplo é 0 anexo intitulado “Método para trinchar e servir bem & mesa”, aparentemente de pouca utilidade em uma época em que as aves e as cacas ja vinham cortadas da cozinha. © trinchador, importante figura nos banquetes medievais e da época moderna, ha tempos ja havia desaparecido, inclusive nas cortes européias. Cabe mencionar também o “Adendo sobre boas maneiras & mesa”, que continha uma série de prescricoes, algumas delas divulgadas nos manuais de civilidade editados desde o século XVI. Em termos de titulos e modo de preparo, as receitas sao tao parecidas com as dos dois livros portugueses que sugerem, em muitos casos, uma simples transcri¢ao. Na légica da edicao dos livros de cozinha da época, contudo, nao se pode dizer que o Cozinheiro imperial tenha sido um plagio dos outros dois. Tratava-se apenas de procedimento corriqueiro. Os tratados de culinéria se inspiravam, em geral, em um modelo anterior, muitas vezes datado de alguns séculos. Mas um livro nao € pura repeticao de outro; datadas e localizadas, as receitas permitem comparacées tanto no tempo quanto no espaco. Na verdade, elas revelam © que se poderia comer, € nao o que se comia. 0 cozinheiro imperial apresenta as receitas na ordem em que os pratos deveriam ser servidos na refeicao (sopas, carnes, aves, peixes, doces). Mas ha também capitulos organizados por tipos de alimentos: pratos de ovos, de leite, de legumes, de massas e molhos, contendo receitas doces e salgadas. No capitulo dedicado aos ovos, por exemplo, encontram-se desde ovos cozidos e omeletes a fios-de-ovos e outros doces. © mesmo sucede no capitulo sobre as massas, que contém receitas de tortas de carnes ¢ legumes, assim como de tortas de frutas. Os doces - indispensaveis no Ultimo servigo de mesa, desde o século XVII, quando oeioari2 (© mestre-cuca sem nome - Revista de Historia © acicar fez sua entrada triunfal na cozinha - recebem um capitulo especial. Mas ha receitas de doces em outras secdes. A estrutura do livro nao segue, portanto, uma légica dinica. Para compor uma refeicao, 0 melhor seria consultar atentamente o indice em busca das sugestdes sobre como preparar os produtos disponiveis. Mas 0 leitor nao se decepcionara. Encontrara uma grande variedade de receitas para as mais diferentes ocasides, bem equilibradas em termos de tipos de alimentos, com explicacdes e medidas razoavelmente claras. Se a intencao, por exemplo, for um prato de ave, sao oferecidas 34 opcdes, contendo “frangos, frangdes e capes”, preparadas na forma de ensopados, grelhados, alméndegas e pasteldes. Nao faltam, tampouco, muitas receitas de pombos, patos, perus e perdizes. No dominio das carnes, as mais presentes sao a carne de carneiro, com cingllenta receitas; vaca, com 49 receitas; vitela, 25; porco, 23; veado, seis; e cabrito, com cinco. Estas sempre representadas em diversos cortes ¢ incluindo os mitidos - (rins, miolos, lingua, figado, cabeca, rabo, pés etc). Presuntos, lingilicas e chouricos de varios tipos também estao presentes. O leitor brasileiro do século XIX, contudo, poderia se surpreender com a quantidade de receitas contendo produtos pouco comuns no Brasil da época, tais como alcachofras, trufas, varias espécies de feijGes e favas, bem como peixes desconhecidos, além de uma infinidade de doces feitos com améndoas e frutas tipicas do hemisfério Norte. Quanto aos temperos mais freqilentes, a tradicio portuguesa se faz presente até mesmo no termo utilizado para designa-los. Segundo 0 autor, “os adubos que se costumam usar na cozinha sao: sal, pimenta-do-reino, cravo-da-india, noz-moscada, gengibre, canela, pimenta longa, semente de coentro, erva-doce, cominho e semente de funcho”. Mas a combinacao de cebola com alho e salsa e cebotinha reinava na culinaria do Cozinheiro imperial. S80 produtos considerados indispensdveis no preparo de muitas carnes, sopas e mothos. As folhas de agriéo, por sua vez, temperadas com sal e vinagre, servern, segundo nosso “chefe”, para guarnecer as aves; e 0 estragao, a hortela e a pimpinela sdo usadas para enriquecer alguns pratos, assim como 0 tomitho, 0 louro e 0 manjericao. A variedade de temperos sugere que a culindria do primeiro livro de receitas brasileiro pode ser considerada “moderna”, ja que o excesso de especiarias, como canela e cravo, nos pratos de carne, tipica da Idade Média, nao se faz notar. E de fato a culindria do ja citado Lucas Rigaud que o autor segue mais de perto. Afinal, desde o final do século XVIII, foi ela que predominou na mesa da elite portuguesa. Em termos de gorduras para refogar, fritar, assar e cozinhar, as op¢ées séo 0 toucinho e a manteiga. Na docaria, a manteiga clarificada, a gordura de vaca derretida e mesmo de porco proporcionam a liga feita com farinha de trigo e gemas de ovos. Quanto as técnicas culindrias, ndo ha grandes inovacdes. Estas ocorreram de forma mais intensa entre o final do século XVII e meados do XVIII, como se pode avaliar a0 comparar os livros de receitas dos dois periodos, nos quais se nota uma maior preocupacao com o tempo de cozimento, 0 controle do fogo e os acabamentos, preservando-se, por exemplo, os molhos das carnes engrossando-os com farelo de pao. A presenca de massa folhada é marcante no final do século XVIII ocasional no século anterior. 0 cozinheiro imperial apresenta, assim, varias formas de utilizacdo desse tipo de massa. Também na confeitaria, predominam as técnicas j4 consagradas da patisserie francesa do século XVIII, que, paulatinamente, foram ampliando aquelas da docaria tipica conventual portuguesa do século XVII, quando os doces eram cozidos em tachos e panelas e diretamente levados ao fogo para apurar a massa base de ovos, gemas e améndoas. Nosso chefe de cozinha, embora nao renegue os famosos doces de ovos portugueses e as compotas de frutas, parece adepto de uma docaria mais sofisticada, cuja massa basica é feita com farinha de trigo, gordura e ovos, assada ao forno e finalizada com acticar e pa quente para carametizar. Certamente a preocupacao com a higiene na cozinha, a boa qualidade dos produtos e a conservacao dos alimentos esto presentes na obra, reforcando as instrucdes de livros anteriores. Mas, se a proposta do Cozinheiro imperial era trazer a piiblico o que havia de mais abrangente em termos de culinaria, compilando € pesquisando receitas antigas, 0s utensilios de sua cozinha nao sao tao sofisticados, talvez por nao atualizar os instrumentos de trabalho que constavam nas receitas originais. Esse fato dificulta uma avaliacao das mudancas ocorridas nas cozinhas e nos utensilios usados no preparo de alimentos entre o final do século XVIII e meados do XIX. Panelas, prensas, pilao, formas, caixas e caixinhas, além de peneiras, funis, alfinetes, facas e colheres, compder 0 grosso do equipamento dos cozinheiros. Em uma época em que o garfo ja era de uso fregiiente, verificar a consisténcia do cozimento com 0 auxilio de um grande alfinete pode parecer um tanto estranho, até mesmo para um cozinheiro do século XIX. 0 primeiro livro de cozinha brasileiro oferece ainda uma selecdo de cardapios para banquetes com sua seqiiéncia de servicos, todos eles composts de varios pratos doces e salgados. Ha ainda um menu especial para a quaresma, além de um ttl glossario de termos de cozinha. A preocupacao com a alimentacao dos doentes - uma questo sempre abordada nos repertérios culindrios antigos - também transparece nas oeioari2 (© mestre-cuca sem nome - Revista de Historia Feceitas especificas de caldos para o tratamento de varias moléstias. As receitas internacionais, por sua vez, dao um toque especial ao livro, indicativo de trocas culindrias e intercAmbios culturais, mas também de sofisticacao do cozinheiro e do anfitriao que as utilizar: “peru assado a italiana”, “pombos turcos”, “frangas a inglesa”, “rabos de carneiro prussiana” e “pudim inglés” séo alguns exemplos. A forma de nomear os pratos excede suas origens e ganha certa graca, como o “coelho agachado”, o qual, apés ser aberto e Fecheado, deve ser costurado “com as patas traseiras sob a barriga e as dianteiras embaixo do focinho, como se 0 coelho estivesse agachado”. Para quem gosta de cozinhar ou aprecia um bom prato, ha muito com o que se entreter no Cozinheiro imperial. Como testemunho histérico, esta é também uma obra que traz o que pensar. Os livros de receitas ou de cozinha revelam nao apenas certos habitos alimentares, mas também as técnicas culinarias, os produtos e os instrumentos utilizados e, fundamentalmente, as mudancas e persisténcias no gosto. Os tratados antigos foram escritos para cozinheiros, mas também para atender as necessidades de seus senhores, com a intencao de informar como deveriam ser as refeicdes para que 0s convidados as apreciassem. Saber receber denotava civilidade por parte do anfitriéo. Ou seja, a culinaria estava presente na idéia de cortesia; isto é, 0 comportamento que se desenvolveu inicialmente nas cortes européias e que acabou se ampliando para outros segmentos da sociedade. Comer sempre foi um ritual de convivéncia e havia normas e procedimentos a seguir nesses momentos de sociabilidade. Esses livros fazem parte, portanto, de um segmento da literatura em expansao desde 0 inicio da época moderna, no qual se incluem os manuais de civilidade, € podem ser entendidos como sua extensao ou especializacao. Ao que tudo indica, a publicacao do Cozinheiro imperial tem o mesmo significado na sociedade brasileira de meados do século XIX. Nao importa se as receitas e os produtos apresentados eram “europeus” ou “brasileiros”. Tratava-se de instruir as elites na arte de cozinha e de receber bem, 0 que poderia significar estabelecer uma fronteira bem nitida entre a culindria trivial e didria e a culinaria sofisticada destinada aos banquetes. Afinal, os produtos sempre poderiam ser substituidos, mas as técnicas, 05 utensilios € a ordem dos pratos em um banquete deveriam seguir os modelos europeus, mesmo que datados de dois séculos; sinal de que o controle dos corpos e dos gestos se insere num proceso em que as mudangas ocorrem muito lentamente. ‘A auséncia de uma tradicao de livros de cozinha no Brasil até meados do século XIX torna evidente que este saber foi transmitido de outras formas desde os tempos coloniais, mesmo entre os membros da elite. Certamente 0s cadernos de receitas particulares e a experiéncia cotidiana foram mais presentes € importantes nesse tipo de divulgacao. De qualquer modo, 0 primeiro livro de cozinha brasileiro nao atesta uma “culinaria brasileira”, nem indica as transformacées ocorridas entre as praticas alimentares portuguesas e aquelas que se desenvolveram na América. Mas pode sugerir a falta de apreco das elites brasileiras pela culinaria nacional e a necessidade de importacao de modelos de comportamento referentes & mesa, ainda em meados do século XIX. E provavel que o piiblico leitor do primeiro livro de cozinha brasileiro tenha se ampliado ao longo das sucessivas edicées da obra, conferindo-lhe significados diferentes, a despeito dos desejos de seu autor, o qual, ao que tudo indica, divulgara aquilo que acreditava ser Util & elite brasileira que vivia na corte ou a sua imagem. Leila Mezan Algranti é professora do Departamento de Histéria da Unicamp, livre docente em histéria do Brasil colonial, e autora de Livros de devocao, atos de censura - Ensaios de histéria do livro e da leitura 1750-1821 (Hucitec, 2004).

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