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centron em convulsdo, Decidiram intern4-la para tra tamento. Fstava sofrendo de um transtorno psiquico -muito severo e perigoso, disse 0 médico. Levaram a Imaculata para aquele hospital psiquiatrico do sus no jardim Botanico,um hospital moderno, novo, no muito grande, Acharam que ali ela teria uma chance de se recuperar. Mas aconteceu que a Imaculata foi violentada repetidas vezes por dois pacientes. Fles se revezavam, Um a agarrava e tapava sua boca, 0 outro a estuprava. Isso durou meses. Ela nfo con- segula dizer nada, ficava em estado catatonico. Até que engravidou. $6 ento descobriram o que estava acontecendo. Quando a crianca nasceu, um menino, ela sofreu um novo transtorno de personalidade, uma muptura mental. Ora acalentava a erianea, dava de ‘mamar, trocava a fralda e banhava, ora a agredia, Ti- veram que separi-la do filho. Diagnostica esqui- zofrenia, Os pais levaram o neto para casa e pediram um novo diagndstico, de comprovacio, para que a pudessem tratar. Hoje ela se medica com antipsics- ticos, vive com os pais, embora sem nenhuma ativi, dade, desligada do mundo. A familia se mudou para uma chicara, assim ela tem mais espago e também ‘no fica exposta a vizinhos. Mas nao deixam que ela tenha acesso a ferramentas, facas, essas coisas, Eo menino? = O garoto esti com quatro anos, éesperto, diz.que a mie ficou doente por causa de uns homens do mal ‘que a maltrataram e que quando crescer vai comprar ‘uma espada bem grande ¢ matar todos eles. 0 VeLonlO Um enterro especial requer um caixao especial. © velhio Antunes escotheu 0 modelo mais bonito, Um atatide de imbula maciga munido de bragadeiras e fechos de bronze, com acabamento em laca da fndia. Para o ve~ orio, encomendou quatro velas grandes em castigais de prata sobre colunas de alabastro. E/uma coroa de flores com faixa de seda azule branca na qual mando esctever: “Ao Roberto, dos seus pais, tios e irmas, que nunca te esqueceram”. Na parede dos fundos da sala, transformada em ct ‘mara mortuaria, um pouco acima da altura do caixo, Antunes mandou pendurar um retrato do filho tirado na sua formatura, no qual ele esté ligeiramente de lado, ce modo a ressaltar seu perfil anguloso. © filho tinha olhos negros como os do pai, cahelos ondulados, libios grossos e queixo salfente. Puxou o pai, 0 velho nio se eansou de repetir esses anos todos. Era uma fotografia pequena que ele pediut 20 japo- inés da loja Kodak para ampliar. Preferiu essa a outro retrato, bem mator, do filho com toda a turma de for- ‘mandos, por causa da beca e do destaque aos tracos enérgicos. 0 Kazuo precisou refotografar, porque nao havia negativo. Roberto era o filho mais velho. Formara-se em engenbaria civil Antunes acabou de completar noventa anos, A fam- lia longeva, Sua irm& Herminia, que chegou cedinho e ajudou a montar o veloro, esté com oitenta e sete anos; a outras duas irmas tem uma oltenta e quatro ea outra oitenta e um anos, 0 irmao mais velho morreu no ano passado com noventa etrés, Foi quando ele decidiu fazer ‘enterro do ilho, Pensout nosso limite é entre noventae hoventa e trés, Meu irmao, Deus jf levou, Logo sers mi ‘nha vez. Nao quero morrer sem enterrar o meu Roberto. Explicou a ideia a patroa. Devota, dona Rita foi con sultar 0 padre Gongalves, que nao disse nem sim nem ‘nao; pediu tempo para poder consultar o bispo. Na ‘semana seguinte, o padre explicou que, nas circuns ‘tinclas, nfo oficiaria missa de corpo presente nem de sétimo dia, mas levaria conforto& familia no velério © no sepultamento. Ao contririo do marido, que se tornou um homem seco e calado, dona Rita ainda chora quase todas as notes a auséncia do filo. Também por isso 0 velho Antunes decidiu fazer o enterro, Pela sua Rita, pelas rms do Roberto, pela familia toda. Os mortos tém {que ser enterrados. ‘As vizinhas também vieram cedo. As irmas Mer- ‘cedes, do lado de baixo da rua, ¢ a Diva, do lado de ima, ajudaram na preparagSo dos salgadinhos e san duiches. As Mercedes to solteironase vivem s6s, No comego fofocaram sobre o sumigo clo Roberto, depois no. A Rita dizque nio foi pormaldade, A Divasofreu como se fosse parente; a filha dela, a Cristina, era li- sada ao Roberto, Fizeram o grupo escolar na mesma classe, depois o gindso, lam juntos, woltavam juntos. Nio chegaram a namorar,talvez até porque fossem pr6ximos demais, uaseirmios. As dez horas chegaram de Campinas as filhas, Catia e Celina, com os genros e os netos pequenos. Vieram em dois earros, em caravan, Duas horas de Viagem. No caminho entraram na chicara das flo res e compraram ramalhetes de rosas vermelhas. las eram adolescentes quando o imo desapare eu; tiveram muita difieuldade em entender o que se passava, principalmente Célia, a menor. Os pais nfo explicavam. Criou-se um segredo de familia, No telefone, s6 falavam aos cochichos, Primeiro, nio queriam que elas soubessem. De~ pois, quando elas viram a pequena noticia no jornal, pediram que nunea tocassem no assunto com as ami Bas, com os vizinhos, com ninguém. Diziam que era para o bem delas e de todos. Fsse segredo as tornou ainda mais ligadas. $6 muito tempo depois é que os pais contaram 0 pouco que sabiam, Os velhos nunea voltaram a ser como antes, viraram outras pessoas, distantes, tristes. Nos ultimos anos, coma vinda dos netos, voltarama sorri. Logo chegam mais moradores da ladeira, com seus filhos e netos. Criancas correm pela casa toda, st Deixa correr, diz o velho Antunes. Quero um velério alegre, como era 0 Roberto. Mas velorio sempre so- lene, Os homens formam rodas austeras e conversam ‘yor, As mulheres ocupam as cadeiras ao longo 08. {das paredes € falam aos coe! [As irmas Mercedes circulam as bandejas com 0s salgados, 08 sanduiches e copos de guaran. Aos pou- cos a5 conversas se tornam mals animadas. Alguém critica a devassidao nos programas de televisio. AMa~ bordadeira, do outro lado da rua, comenta a deci- fo da Prefeitura de trazer o asfalto até 0 bairro. Diva trouxe um élbum de fotografias em que aparecem 0 Roberto, a filha dela e outros rapazes e mogas. Suce- dem-se comentarios ¢ lembrangas sobre esse eaquele, ‘As onze e pouco chega o Teixelra, cunhado do An. tunes, irmao mais velho da Rita, alto e gordo. Veio de Bauru coma mulher, dona Isaura, uma senhora quicta que se mostra sempre submissa. Teixeira é abonado, dono de fazenda. Uma oeasiao recusou um pedido de empréstimo do Antunes para cobrir um ano de safra rim. Fra ninharia, Ficaram dezanos sem se falar. Mas quando o Beto desapareceu o Teixeira se mexeu mais que ninguém, Fra gamado no Roberto, seu primeiro sobrinho, Chegou a ir para Brasflia falar com uns ho- ‘mens que ele conhecia. Nao adiantou. ‘Teixeira da um abrago no Antunes, outrona Rita; por alguns minutos o voreirdo dele domina o vel6rio. Depois se aproxima de onde esté montado o caixao, permanece um tempao olhiando o retrato do Roberto nna parede, Balanga a cabeca, inconformado. Isauri- tha conversa com Rita na cozinha. As duas se fitam por um longo minuto. Depots se abragam, Ambass20 ‘mais novas que os maridos, mas parecer mais velhas. ‘As duas da tarde a casa estdcheia eo povo trans- bora pela calgada, para cima e para baixo da ladeira, sepultamento esti marcado paraas quatro, antes da chuva. Circulam mais bandejas com sanduiches, broa de mitho e cuscuz de sardinha. E quando chega 0 Dino violeiro, amigo de infaneta do Beto, acompa~ tnhado de outros dois, um de nome Aleides eo outro, Mario, 0 Dino fez até 0 colegial.Jogou muito futebol com o Beto. Tam juntos a matiné. No sibado notte paqueravam as mogas em torno do eoreto. Quando 60 Beto foi para So Paulo fazer faculdade, Dino fico no armazém ajudando o pai Depoisformou esse con juntinho de violeiros (Os miisicos entram para cumprimentar 0 velho "Antunes edona Rita. Depoisse aproximam do ataide, tiram os chapeldes de palha, respeitosos.Fitam a fo- tografa na parede, depois saem dando passadas cul~ dadosas, cumprimentando as outras pessoas delta ‘ea esquerda com um menear decabeca. Lé fora, de~ pois de algum tempo, tocam uma toada triste com um refrdo que diz “Nossa vida pasa, como fuga.” Li dentro os convidados comentam aconteci- ‘mentos, Quem casou, quem descasou. Quem teve filho, O farmacéutico Diogo conta mais um de seus ccausos. A Diva continua circulando o album de foto- sgafias, Do quintal emana um aroma de churrasco. Aleebfades, da banca de jornal, churrasqueiro fanatico. 0s violeiros agora vio para o quintal, onde hi mais espaco. O velho Antunes manda que cantem miisica 3 alegre eles respondem com o samba daft amare: {Quando eu morrer, nio quero choro nem vela, quero ‘uma fita amarela,gravada com o nome dela. Apare ‘cem duas senhioras com jrtas de refresco de lmao © abacaxi. Alguém distrbui picolésgarotada, ‘As tés da tarde tem-se a impressio de que todos os iventes da cidade esto no velorio do Roberto, in~ clusive os eachortos eos gatos, Comentam que munca hhouve um veliro to concorrdo, Nao se ve ninguém nas outras ras, na praga da matriz, na rodoviria. Vi rou cidade fantasma, E quando surge li longe, no topo da ladeira meio estumagado como se fosseassombra- ‘fo, o Chevrolet preto da Prefeitura, O caro se apro ima entamente e para um poucoantesdo terrago dos “Antunes. Descem o prefeto Belisiio,o delegado de polcia, dr. Costa, © padre Goncalves. A chegada das autoridades, o povoabre espago. Os novos vistantes entram, o prefeito frente; aenam para.ns, inelinam a cabeca para outros. Um de cada ver, oferecem condoléncias.ao velho Antunes, depols se dirigem a0 ataide. Fitam a fotografia do Roberto Jongamente em postura de reveréneia. Conversam um pouto entre siem vor baixa, Dona Rita vern da cozinha e cumprimenta o prefeito os demals, agra decea visita, pede bengo ao padre, Alguém oferece refreseo de lima as autoridades, Padre Goncalves ergue obraco, pedind silencio, jo a uma oracio pelos mortos: sem esperar di “Pai santo, Deus eterno € Todo-Poderoso, nés Vos pedimos por Roberto Antunes, que chamastes deste ‘mundo. Dai-Ihe a felicidade, a luz e a paz... que sua alma nada sofra..”. Algumas vozes acompanham, hesitantes, a oracZo nfo muito conhecida. “Perdoai -lhe 08 pecados para que alcance junto a V6s.a vida mortal no reino eterno. Por Jesus Cristo, Vosso Filho, na unidade do Espirito Santo. Amém.” As quatro em ponto tem inicio osaimento. A frente docorteo, oatatideé sustentado pelo tio Teixeira, pelo prefeto, pelo Dino vioeiro e pelo farmaceutico Diogo. ‘Ovelho Antunes acompanha, coma mio direita sobre ‘ caixto, Faz forga para caminhar ereto e com passa das firmes, Sente-se exausto mas feliz. Seu sonho de tantos anos finalmente se reliza;jé pode morrer em ‘paz. Etoda a cidade compreendeu. Iso foi o mais im- portante, Toda a cidade. Até o padre Gonealves, que primeizo lavou as mios, depois deu a bencio, {anta gente que os tiltimos do cortejo s6 alean~ ‘gam a cova dez minutos depois dos primeiros, No eéu, bem acima do cemitério, as nuvens engrossam. As duas inmas do Roberto, Célia ¢ Celina, sobem numa pedra e pedem silencio para dar inicio a cerimonia, assam entao a ler uma meméria sobre Roberto. Ce~ Jina lé um parigafo e passa para Célia, que Ié 0 se~ guinte, Falam de como ele era quando menino, de suas travessuras, depots de seus sonhos de adoles- céncia, do drama do vestibular, da alegria de ter pas sado, da colagio de grau, Algumas pessoas solugam. Falam brevemente do sofrimento da familia. Depois, ‘em unissono, agradecem: muito obrigada pela pre senga de todos voces. ‘Aum sinal de Antunes, o caixao ¢ baixado a sepul- tura e padre Gongalves repete a oragio pelos mortos. ss Pessoas passam rente a cova e atiram punhados de JOANA terra, mulheres jogam as rosas vermelhas trazidas pe- las irmas, O coveiro Jozo assume, despejando muito depressa coma pa quantidades robustas de terra. Otio ‘Teixeira de Bauru pega outra pa e apressa o sepulta~ mento. As pessoas comecam a dispersar. Caem os pri- ‘meiros pingos de chuva. O caixao est enterrado, Den {ro deleestio um paleté e um parde sapatos do Roberto. Seu corpo nunca foi encontrado. Observem aquela mulher de lengo preto na cabega, caminhando na calgada. Concordam comigo que pa- rece uma pessoa comum? Que sé chama a atencao por vagar sozinha tarde da noite, sendo idosa? Pois saibam que hi uma historia por tris das peregrina bes dessa mulher. Sim, suas andangas na madrugada fria sto verdadeitas peregrinagoes. la se chama Joana e mora aqui perto. Passa por esta rua a caminho do centro da efdade, onde dor- ‘mem muitos moradores de rua, fa eles que ela busca ‘Vejam também, um pouco adiante, 0 vulto estirado Adebaixo da marquise. Aquele é 0 Chico, um apanha dor de papel. Como tantos moradores de rua, ele 6 alcodlatra. Quando fea sobrio, some; depois recaie volta ao nosso quarteirao. Notem como ela vai se aproximar do Chico, abai- xar-se e cumpriment4-lo. As vezes ela lhe dé uma 6 7 Peery eee eee eee eRneerc rate Deere ee Pecccte enna tera Perr etre etn ny Renee ee Ree eee ee ee ee ea Sees Pee cae ee) 1w2pp. Pe eee coe ey eer crs Reet Perera eee nn Cees Pec Renney Pe eee Peeters

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