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Ne RES 2: “henbAS CAMPINAS . Leyla Perrone-Moisés" Resuwo 4 alguns anos publiquei uma andlise do conto “Nenhum, nenhu- man a qual procurei demonstrar que, na topografia rosiana, ha um lugar que é “nenhures”. Prosseguindo na mesma linha, pretendo analisar o conto “La, nas campinas” (Tutaméia), cujo nticleo € uma Iembranga obsessiva da infancia da personagem. Essa anilise sera arti- culada a outros textos de Guimaries Rosa, em que 0 autor especifica vi- rios tipos de “saudades”, Procurarei demonstrar que, entre a “saudade de idéia” ea “saudade de coragio” (Grande sertao: veredas), o segundo tipo € uma abertuira para o conhecimento do inconsciente, ¢ que os con- tos centrados nesse tipo de saudade convidam oc nilise. ico a recorrer’ psica- grande obra literdria, portadora de miltiplos saberes, oferece a critica muitas entradas nenhuma saida definitiva. A leitura psicanalitica é apenas uma intre muitas, e a critica ideal permanece sendo aquela capaz de integrar 0 maior namero possivel de niveis de leitura. E nunca é demais lembrar que o risco das interpretagdes fundadas num tinico tipo de saber é 0 da redugao da obra 3 teoria ow ao método. Entretanto, alguns textos parecem solicitar, por sua temitica ou pro- jeto, uma visada critica particular, que se revela mais rentavel do que outras. Hé exatamente vinte anos, propus uma leitura psicanalitica de um conto de Guimaraes Rosa que parecia solicitar essa visada. ‘Tratava-se'de “Nenhum, ne- nhuma” (Primeiras est6rias). Dei a meu artigo o titulo de “Nenhures”.! Procurava entio demonstrar que, na topografia rosiana, hé um lugar que € nenhum lugar, € que esse ndo-lugar bem poderia ser 0 do inconsciente: “lugar” de onde vém as pulsdes, “lugar” onde ficam inscritas as lembrangas obsessivas, determinantes de percepgoes © comportamentos futuros. Segundo Lacan, ao inconsciente “o nome de todo lugar convém tanto quanto 0 de nenhum lugar. (Lacan, 1974, p. 15) Solicitada a participar deste encontro rosiano, numa mesa “ps dispus-me a enfrentar outro conto do autor, em que um lugar obsessivamente lem- analitica”, * Universidade de Sio Paulo | “Nenhures: consideragGes psicanaliticas 8 margem de um conto de Guimaties Rosa", Coléquio/Letras, 44, Lisboa, Fundagio Calouste Gulbenkian, 1978. Retomado em meu livro Flores da eserivaninha, Sio Paulo: Companhia das Leteas, 1990, 178 SRIPTA, Belo Horizonte, 2, 178-189, 2° sem 1998 Leyla Perrone-Moisés brado assombra a personagem durante toda a sua vida, dando forma a esta ¢ a0 conto. Trata-se de “LA, nas campinas”, de Tutaméia.” Refresquemos a meméria dos leitores. O enredo do conto é minimo, em termos de agio. O protagonista da est6ria, Drijimiro, nada sabia de sua infincia. Crianga abandonada, viera de lugar desco- nhecido e ficara “bem de vi ia”. Mas uma lembranga perseguia: “Que jeito reco- brar aquilo, o que ele pretendia mais que tudo?”. Recordava um lugar, ciftado num fragmento de frase: “Frase tinica ficara-Ihe, de no nenhum lugar antigamente: — “L4, nas campinas...” ~ desinformada, inconsoante, absurda [...] Antes ele buscara, orfandante, por todo canto e parte. ~ “L4, nas campinas?...” — 0 que soubesse acaso. ‘Tinha ninguém para Ihe responder”. Acabou por renunciar: “Esqueccu-a, por fim. Calava reino perturbador; viver € obrigagio sempre imediata”. A lembranga s6 Ihe voltara no fim da vida, no fim do conto. Vejamos, um a um, os elementos que compéem essa est6ria, Em primeiro lugar, o agente, ou melhor dizendo, o paciente dessa trama. O melancélico Drijimiro® vive numa permanente sensagio de perda e, conseqiientemente, num estado de fal- ta. Mas s posse? De qualquer modo, ele vive a falta como perda, que é menos a perda de um lugar real, a que pudesse voltar, do que a perda da meméria integral desse lugar, posse que seria mais fundamente sua do que a das coisas tidas ¢ lembradas. Drijimiro fala a falta, € obrigado a dizé-la: “Nada diria, hermético feito um ria a falta uma conseqiiéncia da perda ou seria ela anterior a qualquer coco, se © fundo da vida nao o surpreendesse, a s6 saudade atacando-o, nao perdido 0 siso”. A necessidade de comunicar verbalmente a outros sua dor caracteriza Dri- jimiro como um simples neurético, ¢ ndo como um psicético. Dai o narrador indicar, com precisio, que ele nao perdera 0 siso. O desejo, como se sabe, € 0 desejo do Ou- tro, ¢ seu campo é a linguagem. A resposta do interlocutor € sempre frustrante, pois 0 desejo é sem objet : “Tinha ninguém para Ihe responder”. Mas dizer-se como de- manda, embora imperfeitamente, € a nica mancira que 0 desejo encontra para pros- seguir sua busca € minorar sua frustracao. Drijimiro fala porque a “s6 saudade” ataca. Poderiamos dizer que ele falado por seu desejo. 1 Gitarei a pantr dal edigio: Tataméia (Terceiras est6rias), Rio de Janeiro; José Olympio, 1967 5 Numerosos estudos tém sido dedicados aos nomes préprios na obra de Guimaries Rosa. No encontrei ne- inhuma interpretagio para esse estranho nome de Daijimiro. Posso apenas obscrvar ‘etbo mirar,conveniente para alguém quc vive perseguindo uma miragem. E. que a terminagio miro em hnomes prdprios como Valdemiro, Almiro, ct. vem do grego Miron, “talvez igado a myro cinterpretado como “oque choracse lamenta’™ (Sebastiao Laércio de Azevedo, Diciondrio de nomes de pessoas Civilizagao Brasilei- 1a, 1993, p.419). 1550 pode parecer averinerpretation, mas quem lida com Guimardes Rosa, sabe que tudo é possivel principalmente a etimologia. Também posso observar que, por uma razao que desconhego, numero- fos nomes de personagensem Titaméia apresentam a recoreéncia da vogal : Drizlda, Ziica, Livira (ivi, Inlvia ou Vila), Jenzitico, Rijino, Guiteil, Sinhiza, Rgriz, etc. No texto de “Li, nas campinas", o nome Daijimiro tem assoniincias com 0s “miriqiilhos” do lugar lembrado. Fa letra i também est no nome das outras personagens: Divida, Tica e Rixfo, Quanto a0 nome Rixio, este parece ser um “signo motivado”. Rixio era “entendido e provador de eachaca”, “ardido”, fi as". Depois de fugit, volta “quebrado e rendli- do"; depois de morta, fica “il, fi, fil”. Tado faz ‘esse dessuizado, agitado e impulsivo Rixio tenha se metido-em muitasritar A exaltagio ativa de Riso €ocontraponto da melancolia estitica de Driimiro, ue ele contémn miro, do SERIPTA Dado Hann vac pW, Pac 1H 179 NENHURES 2: “14, NAS CAMPINAS” Drijimiro “tudo ignorava de sua infancia mas recordava-a, demais” (grifo meu). A palavra “recordar” contém “coragio” (cordis); recordar é muito diferente de Iembrar, O que se recorda € do dominio dos afetos, € menos uma coisa, pessoa ou lugar, do que um tom, uma qualidade, um estado do ser. A lembranca pode ser nitida, a recordagio ser4 sempre fluida, imprecisa. Com as lembrangas, sabemos li dar conscientemente; com as recordacées, lidamos como pode o coracio, e muitas vezes cle nao pode. E, entao, as recordagées nos aprisionam, num retiro melancéli- 0.1 F 0 caso de Drijimiro, apertado pelo “né das recordagdes”. Em varios pontos da vasta obra de Guimaraes Rosa aparecem reflexes bre o sentimento da saudade, Em Grande sertdo, diz Riobaldo: “O senhor sabe? J4 tenteou softido o ar que € saudade? Diz-se que tem saudade de idéia e saudade de coragio” (1956, p. 28). E muda logo de assunto. Nao resta diivida de que a saudade maior de Riobaldo, como a de Drijimiro, é “saudade de coragao”, nao aquela que se cultiva como lembranga, mas aquela que déi sem remédio. “Saudade de idéia” era aquela que Riobaldo sentia das madrugadas vividas em companhia dos outros cava- leitos, que gostava de lembrar: “até hoje eu represento diante de meus olhos aquela 0 80- hora, tudo tio bom; ¢, o que é, é saudade”, “Saudade de coragio” é a que sentia de Diadorim, ¢ seu discurso inteiro é a expresso desse sentimento fundo € doloroso. Na “Est6ria de Lélio ¢ Lina” (Corpo de baile, Ia saudade que Lélio tem da Moci- nha também € “saudade de coragio": “cla para ele havia de ser sempre linda no mundo, um confim, uma saudade sem raz4o”; “uma saudade gloriada, assim confu- sa (Rosa, 1956, p. 258-259). A “saudade de coragao”, procedente dos afetos, parece sempre confusa ¢ sem razao. A “saudade de coracao” de que sofre Drijimiro é ainda mais vaga do que a de Lélio, porque é um afeto quase sem suporte, ligado nao a uma pessoa mas a um lugar apenas entrevisto e desabitado. Esse desejo sem objeto palpavel é 0 que move a personagem ao longo de toda a sua vida, e faz dela um ser em busca. FE admiravel a caracterizagio da personagem pelo escritor, por meio de tracos breves mas densos de informagao, ¢ de uma coeréncia profunda que s6 podemos chamar de “verdade”. Drijimiro € definido por quatro predicados: cle sofre de uma falta, cle anda em bus- ca, ele sofre, ele oculta essa dor. Ora, na primeira visio que o narrador nos oferece da personagem, ela ja estd inteira, com todos esses predicados: “Drijimiro passava, debai- xo de chapéu, gementes as botinas” — 0 andar incessante, 0 segredo oculto ¢ a dor, materializados no chapéu desabado e nas botinas gementes. Drijimiro era “orfandan- te”, palavra que condensa a falta ¢ a busca, érfito ¢ andante. “Calava, andava, mais bezerros negociava”. Viver é preciso. Drijimiro vive “entre a necessidade ¢ a ilusio”, personificadas por duas mulheres. Divida, a esposa, como seu nome indica, vital: “Dona Divida debruga- va-se a janela, redondos os peitos, os perfumes instintivos”; “Divida, matéria boni- Ver Fabio Herrmann, 1997. Devo-the também outras valiosas sugestdes para a leitura deste conto. 180 wa IPTA, Belo Horizonte, 2, m3, p. 178-189, 2° sem, 1998 Leyla Perrone-Moisés ta’; “Dona Divida, sacudida e bela, chamava-o, temia o envelhecer, queria que 0 marido nao bebesse, homem de bigode’ “Dona Divida aparecia, sua pessoa de filha de Deus, tio vistosa”. Mas a vida vistosa de Divida nao supre a nebulosa falta de Dri- jimiro, que dirige seus olhares ¢ afetos & alva Tavica, figura propicia a seu imagindrio de orfandante: “Aparecia, na clara ponta da rua, Dona Taviea, jasmim em ramalhete, tantas criangas a rodeavam”; “Tavica, alva tao diferente, para simplificagao do cora- a0. Gostou dela, como de madrugada geia”; “Diante dali passava Dona Tavica: en- trea horda de filhos, cla ralhava, amaya parcelava-se”; “E viu Dona Tavica,a quem calado entregou seu coragio, formosa desbotada”, Uma terceira mulher aparecerd por fim, mas ainda é cedo para a referirmos. Divida e Tavica correspondem a dois planos: 0 da realidade e 0 do imagind- rio, No primeiro, Drijimiro prospera: de “tangerino, positivo, ajudador de arrieiro”, passou a criador de bezerros, sécio de 16 Nhé e posteriormente seu sucessor como dono de um alambique. No plano psiquico, Drijimiro empaca, prisioneiro de sua saudade de lugar nenhum. A realidade social em que vive e prospera nao Ihe da ne- nhuma satisfagao, Os qualificativos aplicados & personagem mostram seu secreto di- laceramento: suas ages permitem qualificd-lo como “bem de vida”, “esperto e pri- tico”, mas sua real condigdo é a de “afortunado falsamente”, “sem regalo nenhum”. Obrigado a esconder essa condigio, ele fica “tacito”. E passa a ser visto pelos outros como “velhaco”, “silencioso mentiroso”, ou mesmo “burro”. Ao longo de uma “vida nunca conseguida”, ele vai perdendo “o dom” da recordagio, até “[ousar] estar intei- ramente triste”. Embora 0 conto, como os outros de Tutaméia, seja curto (pouco mais de 3 paginas), ele abarca o tempo de uma existéncia humana. O tempo narrado € 0 tempo cronolégico, que flui e carrega, deteriorando-os, os homens: “Tempos de fatos”, nos quais Drijimiro prospera, o chefe 16 Nhé se entreva e morre, 0 amigo Rixio vai, volta € morre, e o her6i, como suas duas mulheres, envelhece: “rugoso, sob chapéu, sem regalo nenhum, a ceder-se ao fado”. Esse € 0 tempo do “mundo volteador”, tempo do calendario: “Outro dezembro ¢ 0 Rixfo voltou”... Mas um outro tempo, o da du- ragao inconsciente, paira em contraponto: o tempo do rio nao é 0 tempo da ponte.” Nesse tempo do “real” (no sentido lacaniano do termo), Drijimiro permanece o mes- mo, aprisionado em su da realidade ~ “as vasta saudade. A esses dois tempos correspondem dois espagos, 0 terras ¢ lugares” por onde passou Drijimiro, as ruas da cida- dezinha em que vive ~ ¢ 0 do imaginério, “I4, nas campinas”, “durado na imagina- cio”. Naquele, vive Divida; neste, Drijimiro projeta Tavica, figura condizente, Em Vao, Drijimiro e Rixfo tentam situar aquele lugar na geografia: “Dizendo-lhe o Rixio: que com esse nome de Campinas houvesse, em Sao Paulo e Goids, arraial antigo e célebre cidade”. Evidentemente, nao é desse espaco geogrifico que se trata. ‘O mundo do rio no € 0 mundo da ponte”. In: Orientacio. Tutaméia, p. 108. SGRIPTA a Haruone vk pF BR 181 NeNHuRES {i NAS CAMPINAS” Ora, j4 é tempo de olharmos, com Drijimiro, para o lado de suas campinas. O lugar perdido ¢ incessantemente buscado é parcialmente descrito em trés momen- tos do conto: no inicio, no meio e no fim. A primeira descrigio, na voz modulada de Drijimiro, é transcrita pelo narrador: Vinha-the a lembranca— do titimo intimo, o mim de fundo ~ desmisturado milagre. Sé lugares. Largo rasgado um quintal, o chao amarelo de oca, olhosd égua jorrando de barrancos. A casa, depois de descida, em fojo de drvores. Tudo 0 orvalho: faisca-se, campo afora, nos pendaes dos capins passarinhos penduricam e se embalancatn... A segunda descrigao, constitufda, igualmente, de tragos esparsos, ocorre quando Drijimiro jé est abandonando a busca: Mas achava, jé sem sair do lugar, pois onde, pois como, do de nas viagens aprendido, ou oque tinha em si, dias com sobras de aurora. Notava: cada pedrinha de arcia um redar- gilir reluzente, até os véos dos passarinhos eram atos. O ipé, meigo. O sol poente cor de cobre — no tempo das queimadas — a lua verde e esverdeadas as estrelas. Ou como se combinam inesquecivelmete os cheivos de goiaba madura suor fresco de cavalo. Essa descrigao esté contaminada de lembrangas conscientes, lembrangas “de idéia” ("ja sem sair do lugar”, isto € sem voltar realmente ao passado, “o de nas viagens aprendido”, isto €, 0s dados da experiéncia posterior), ¢ vale mais como se- melhanga com 0 “Ii, nas campinas” do que como recuperagdo daquele “la”. O esfor- go da memGria consciente ja anuncia a perda da recordagio. A frase que segue esta descrigo confirma: “Dom, porém, que foi perdendo.” A terceira descrigao aparece no fim do conto. Depois de ter envelhecido € aparentemente esquecido, Drijimiro se depara com a terceira “mulher” de sua vida, € esta 6a morte: “Surgindo-lhe, ei, vem, de repente, a figura da Sobrinha do Padre: parda, magra, releixa para segar, feia de sorte. Sés frios olhos, 4rdua agravada, negra mascara de ossos, gritou, apontou-o, pade com ele”. Atras da Sobrinha, vem,o pré- prio Padre com sua batina preta e a extrema-ungio. Apavorado, Drijimiro foge e se esconde no quintal de sua casa, ¢ 2 Mas logo néo sorviu, transparentemente, por firmitude ¢ inquebranto. Falou, 0 que guardado sempre sem saber the ocupara o peito, rebentado: luz, 0 campo, pdssaros, a casa entre bastas folhagens, amarelo 0 quintal da vocoroca, com mirigitilhos borbu- thando nos barrancos.. Tudo € mais, trabalhado completado, agora, tanto — revalor ~ como que raia pela indescrigio: a dgua azul das lavadeiras, lagoas que refletem os pi- cos dos montes, as drvares e os pedidares de esmola. Tudo era esquecimento, menos 0 coragio —“Lé, nas campinasl..."— um morro de todo limite. O sol da manha sendo 0 mesmo da tarde. Os tragos recorrentes desse lugar sao a claridade, a cor (amarelo € azul), a presenca da agua borbulhante, a vegetagio, os passarinhos. Numa leitura ret6rica, 182 SORIPTA, Belo Horizonte, 2,13, ps 178189, 2° sem, 1998 Leyla Perrone-Moisés dirfamos que se trata de um locus amenus, motivo literario conhecido desde a Anti- giiidade classica. Segundo Curtius, “é uma bela € nsombrada nesga da Natureza”; “seu minimo de apresentagio consiste numa Arvore (ou varias), numa campina € numa fonte ¢ regato” (Curtius, 1957, p. 203). O retérico Libanio, informa o mesmo Curtius, dizia no século IV de nossa era: “As causas da alegria sio fontes, plantagoes, jardins, ares suaves, flores ¢ cantos de passaros”, Na Idade Média, 0 locus amenus é identificado ao Paraiso Terrestre, “o lugar dos lugares” As “campinas” de Drijimiro tem todos esses elementos, devidamente trans- postos para a natureza agreste das Minas Gerais: “o¢ 0 amarelo de oca — 0 amarclo quintal da vogoroca”, “a casa em fojo de Arvores — a casa entre bastas folhagens”, “olhos d’4gua jorrando nos barrancos — miriqiiilhos borbulhando nos barrancos”, passarinhos penduricados nos capins ~ p4ssaros”. Em outras obras de Guimaraes Rosa aparecem referéncias a esse tipo de lugar ameno, sempre com as mesmas ca- racteristicas, sobretudo a presenga da 4gua: “Perto de muita agua, tudo é feliz”. (1956, p. 31) Em sua anélise fundadora de Grande sertio: veredas, Antonio Candido apontou 0 irrealismo geografico da obra, em que “o deserto € sobretudo projecao da alma, ¢ as galas vegetais simbolizam tracos afetivos”, em que 0 Rio Sao Francisco “divide o mundo em duas partes qualitativamente diversas”: 0 direito, fasto, ¢ 0 es- querdo, nefasto (Candido, 1964, p. 124). O lado fasto, o Urucuia, € um locus amenus: “Muito deleitivel. Claraguas, fontes, sombreado e sol”, “tudo dado ¢ clareado”, per- to do céu”. Apesar desse cardter simbdlico do lugar, ele é dado af como realmente existente: “O senhor v4 I4, veré. Os lugares sempre esto af para confirmar” (p. 29). No conto que estamos analisando, desaparece essa ambigiiidade entre a geografia fi- sica € a metafisica ou psiquica. Drijimiro admite a semelhanga mas descarta a iden- tidade entre sua eram os ‘alegre encostas”. Mas ele teima em afirmar que o lugar entrevisto era outro: “Disse-se-lhe: “campinas” ¢ os “alegres” do sertao: “No sertdo, entanto, campinas *: as assentadas nos morros, esses altos claros, limpos, ondeados nas que, se num lugar tal alguém aquilo falara, entio nao seriam 4 as campinas, mas em ponto afastado, diverso”. Diferentemente dos “alegres”, as “campinas” esto num lugar impossivel de confirmar e permanentemente deslocado. “Teria Drijimiro, que sofria de recordagao, morrido de um ataque cardiaco? O narrador sublinha a ambivaléncia: “o peito, rebentado”. O mesmo rebentar fisico que o mata liberaa recordacao completada. No momento da morte, fecha-se o efrcu- lo, Drijimiro recupera o lugar. A interpretacao que se apresenta, de imediato, como a mais natural, é idealista. Drijimiro teria voltado ao lugar origindrio, anterior & vida. H4 nessa volta, como em outros momentos da obra de Guimaraes Rosa, tragos mar- cados de platonismo. “L4, nas campinas” seria 0 mundo perfeito de onde viemos ¢ para onde voltaremos ~“O sol da manha sendo 0 mesmo da tarde”. O lugar perdido € buscado seria aquele que o mesmo Guimaraes Rosa define, no preficio “Aletria € Hermenéutica”, como “o de algum Eden pré-prisco, ou da restituigao de qualquer SCRIPTR Ree ota snp RD Pw 183 NENHURES 2: “LA, NAS CAMPINAS”, de nés a invulnerabilidade e plenitude primordiais”. Nesse caso, a linha psicanaliti- ca mais adequada seria a de Jung, que explicaria a recordagio de Drijimiro como um arquétipo do inconsciente coletivo. O conto tem, também, ressonAncias nietzchianas, nas alusdes ao “eterno retorno”: “o mundo volteador [...] se repete mal porque h4 um imperceptivel avango”. Os religiosos diriam que Drijimiro voltow ao seio de Deus. ‘Acessas leituras podemos contrapor uma leitura psicanalitica nao idealista, ancorada em Freud ¢ Lacan, Essa leitura nao diverge das outras quanto a estrutura, mas quai to a fundamentagio ontoldgica. A estrutura é como nas interpretag6es idealistas, a da falta. Mas, nestas, a falta € perda de um bem origindrio, enquanto na leitura freudo- lacaniana, ela é falta da propria origem. Est dito expressamente, no conto, que o lugar pertence a existéncia de Drijimiro, mais precisamente, a sua infincia: “tudo ignorava de sua infancia ma cordava-a, demais”. Numa leitura informada pelo freudismo mais elementar, dire- mos que se trata de um lugar materno, titero ou regago, “le vert paradis des amours enfantines” de Baudelaire. Numerosos indices permitem essa interpreta re- dade de Drijimiro, sua atracao pela figura maternal de Tavica, 0 fato de 0 lugar ser 0 daca , do ninho: “Num ninho, nunca faz frio”. Lugar onde “teria havido 0 amor, capaz de consumir vozes e rostos ~ como a felicidad”. ‘Tentemos “psicandlise” da personagem com base em sua “biografia”, Na primeira descricio, o lugar € inabitado. Contrariamente ao habitual das lembrangas de infinc , nao havia pessoas nas lem- brangas de Drijimiro: “De pessoas, mae ou pai, nao tirava memoria”. O que parece confirmar o fato, referido por Freud, de que em geral as lembrangas infantis so re- claboradas com elementos das narrativas dos adultos, daf a propria erianga figurar no quadro. Drijimiro, érf%io abandonado, nao ouvira nenhuma narrativa de sua in- fancia, tendo por isso guardado apenas um lugar deserto em que nem ele mesmo es- ta presente. Na tiltima lembranga, a “completada”, aparecem figuras humanas: lava- deiras ¢ pedidores de esmola, talvez aqueles pais “pobres, migrantes” que “davam as vezes 0s filhos” 0 que corresponde a possivel histéria de sua primeira infancia. Essa Icitura, embora aceitavel, é pobre, se confrontada A opuléncia significante do conto. Seria voltar ao inevitavel “complexo de Edipo”, que por explicar tudo nao explica nada Ora, uma leitura lacaniana, em vez de se associar esse lugar 4 mie real de Dri- jimiro, preferi a vé-lo como a “origem” ontoldgica de que todos os homens sio 6r- fiios, nao por terem perdido uma completude anterior mas por serem constitutiva- mente incompletos. A completude sé é imaginavel ¢ desejével porque ha uma falta origin4ria, uma incompletude constituinte do ser humano como ser de linguagem: “a falha que produz o ente no dizer-se”. (Lacan, 1970, p. 78) Mais do que o fato de esse lugar poder corresponder aquele lugar real de onde viera Drijimiro, e sua perda ser apenas um dado biogréfico, o que nos interessa €o lugar desse lugar na estrutura do conto. Esse lugar € coragio do conto, que se configura, na fala ¢ na escuta, na escrita e na leitura, como o paraiso perdido de todo ser humano, consignado em intimeras mitologias ¢ religides. Em vez de encarar esse 184 IPTA, Belo Horizonte, 2, 0.3, ps 178189, 2° sem, 1998 Leyla Perrone-Moisés lugar de modo figural, alegérico, como um arquétipo do inconsciente coleti podemos considerd-lo a par (Lacan) Aquele lugar impre: ge, na indefinigao, a serra de atrés da serra”. lembranga obsessiva é referido de modo muito semelhante: “A man fugindo, atrds de serras ¢ s 0 (Jung) do “inconsciente estruturado como linguagem”. so em scu “tiltimo intimo” estava “nem onde nem lon- m “Nenhum, nenhuma”, o lugar da io estranha, .erras, sempre, €8 beira da mata de algum rio, que profbe 0 imaginar. Ou talvez. nao tenha sido numa fazenda, nem no indescoberto rumo, nem tao longe? Nao é possivel saber-se, nunca mais”. Exatamente como Drijimiro, o Me- nino de “Nenhum, nenhuma” e: va As voltas com “os irreversos grandes fatos” da infincia, cuja recuperagao lhe traria a paz: “Ultramuito, porém, houve o que ha, por aquela parte, até aonde 0 luar do meu mais-longe, 0 que certi conseguir recordar, ganharei calma, se conseguisse religar-me: adivinhar 0 verdadeiro ¢ real, jé havido”. A “serra atras da serra” de “Nenhum, nenhuma” no é uma vida ante rior 4 propria vida, mas um lugar da infancia do Menino: “Infancia é coisa, coisa?”. A relagdo de Drijimiro com o lugar das campinas, ico € sei. [..] Se eu assim como a do Menino com a mansio atra das serras, € uma relagio pessoal, que depende de suas vidas particulares e da qual suas vidas dependem. Embora arquetfpico em sua configura- gio paradisfaca, 0 “I4” de Drijimiro é uma coisa sua , do “mim de fundo”. A persona- gem nio é uma alegoria da expulsdo mitica, mas um homem histérico (“Era uma vez, uma vez, ¢ nessa vez um homem”); é “um caso achado”, nico. O que lhe con- fere universalidade € a fala ¢ a escuta, mais do que 0 contetido do que é dito. E ilustrativo comparar o “Ia” que ele busca com 0 “I” do conto “A menina de la” (Primeiras est6rias). Nhinhinha, “a menina de |: , ndo sofre de nenhuma fal- ta, Ela nao esté desalojada do “I4”, est apenas provisoriamente deslocada no “aqui”. Tranqiiila, sabia, alegre, ela parece nunca ter saido totalmente daquele “la” de onde viera e para onde volta, no fim do conto, Ela esti “aqui” s6 de passagem, estranha € impessoal ("“S Eu quero ir para 14”. O conto “A menina de la” nao convida a uma leitura psicanalitica, pois leva explicitamente o leitor as questoes demasiadamente incertas da parapsico- logia ou demasiadamente certas da fé. Nhinhinha € ou uma debiléide (“cabecudota © com olhos cnormes”), ou uma paranormal (tem 0 dom da previsio e da realizagio dos desejos), ou uma santa (“ tiza os incidentes de um “aqui e agora” contingente e passageiro. Seu “la” é clara- mente o reino do céu ou o reino dos mortos. Diferentemente dela, 0 Menino de “Ne- ua casa ficava para tras da Serra do Mim”), ¢ suspira docemente: anta Nhinhinha”). Ela nao recorda nem sofre; profe- nhum, nenhuma” e nosso Drijimiro “recordam” suas respectivas infincias, tentan- do sofrer menos em suas vidas “aqui e agora” E essa recordacao que pode ser enfocada pelo angulo da psicanilise. Para tanto, é util determo-nos naquilo que Lacan chama de rememoragdo, opondo-a & memoria. A memGria € consciente, a rememoragio € repeti¢ao inconscient ouoin- consciente enquanto repeti¢ao. A rememoragio nao é a reminiscéncia plat6nica, lem- SCRIPTR lo Hono a pO, sen 185 NENHURES 2: “LA, NAS CAMPINAS” bra-nos Lacan; “nao é a volta de uma forma, de uma marca, de um cidos de bel de bem, que nos vem do além, de um verdadeiro supremo. E algo que nos vem das necessidades de estrutura, de algo humilde |...] da estrutura do significante” (Lacan. 1973, p. 47). A rememoragao ocorre entre a percepgao ¢ a consciéncia. Ela € um pro- blema do sujeito, que necessita voltar para “I4 onde era”, segundo a famosa formula- cio de Freud: “Wo Es war, so Ich werden”, que Lacan traduz ¢ examina como “L oi c’était, le sujet doit advenir” (La onde era, 0 sujeito deve vir a ser). Esse “la” € um. encontro, que Lacan compara ao tuché de Arist6teles, ¢ esse encontro, repentino ¢ aparentemente casual, é determinado pela estrutura simbélica do sujeito, bem-suce- “La onde era agora mesmo, Id onde era por um instante, entre essa extingao que ainda dido porque é encontro, ¢ sempre malogrado porque nele 0 sujcito se dissolv brilha ¢ essa eclosdo bloqueada, o Eu pode vir ao ser de desaparecer no dito” (Lacan, 1971, v. II, p. 160-161). O sujeito nao é uma substancia, € 0 efeito sempre recomega- do de um processo. O sofrimento reminiscente de Drijimiro pode ser visto como uma experi- éncia Ginica, individual, decorrente de sua biografia de crianga pobre abandonada. Maso lugar lembrado por ele € um lugar comum a todos os homens, nao como locus mas como topos, como elemento recorrente da estrutura inconsciente dos seres fa- situa- lantes. A linguagem é uma rede de lugares vazios, s6 ocupados em provis6ri Bes e em permantentes deslocamentos. A palavra “utopiedade”, criada por Guima- Rosa nesse conto, junta afopia (outro lugar) ¢ piedade (comiseragio); pela seme- Ihanga fonica, utopiedade lembra autopiedade. A orfandade ¢ o abandono eram expe- ri€ncias particulares de Drijimiro, masa falta ¢ 0 desejo sao de todos os homens que, como cle, sofrem e merecem piedade. Saber dizer esse lugar comum faz a grandeza de Guimaries Rosa, ¢ 0 alcance universal do conto. A natureza da recordagao de Drijimiro é verbal: “Frase tinica , ficara-lhe [.-] - Lé, nas campinas”. O lugar existe apenas como discurso, ¢ discurso nio é s0- |. As descriges so harmoniosas mente referen: io apenas pelos referentes evoca- dos, mas pelas recorréncias fonicas dos significantes: “largo rasgado”, “jorrando de barrancos”, “nos pendoes dos capins passarinhos penduricam”, “miriqitilhos borbu- thando nos barrancos”. Além de residir num fragmento de frase, repetidamente des- dobrada em outras frases, ndo basta a Drijimiro cultivar interiormente esse discurso; cle precisa falar desse lugar, comunic4-lo a outros homens (“comunicado 0 tom”). Ao falar, sua voz é diferente, mais clara, musical: “Escura a voz, imesclada, amolecida; modula-se, porém, vibrando com insélitos harménicos, no ele falar naquilo”. Essa voz, que vem como surpresa irreprimivel, ¢ 0 que cla diz, por mais incompleto que seja (c talvez por isso mesmo) fascina os outros, que querem ouvi-la. O amigo Rixio, porexemplo, depois de correr mundo volta s6 para “rever Drijimiro, pedir-lhe pergun- tado 0 segredo: ‘Ld, nas campinas.”” E sobretudo, a personagem tem um ouvinte que ainda nao referimos, mas a quem pertencem a palavra inicial ¢ a final: o narrador da storia, 186 SGRIPTA Bab osaie np. TT, Leyla Perrone-Moisés A primeira frase coloca 0 narrador, talvez em companhia de outros, na si- tuagio de ouvinte: “Esté-se ouvindo”. Ess ico do sujeito também cumpre a fungao de incluir, entre os ouvintes, o leitor. Logo em seguida, sabemos que esse ou- vir € uma intercomunicagao pessoal ¢ afetiva de Drijimiro com alguém que fala na I* pessoa: “Teve recurso a mim. Contou, que me emocionou”. E uma “fala plena”, da qual poderiamos dizer: “Falou e disse”. A fala é reconhecimento do desejo como desejo do Outro. Mesmo no momento da morte, sdzinho, Dri “rebentado”, finalmente liberto: “Stibito, sem sofrer, diz, afirma: ‘Lé...’” O lugar é reduzido a um advérbio com fungio de d quer superfluidade de pormenor. A propria linguagem torna-se entio supérflua, por que o ego sofredor ¢ falante se anula. Entendemos, entio, a epigrafe do conto: 0 minhas lembrangas, eu mesmo desapareci”, epigrafe atribuida a um livro de sabedoria eclesidstica, um “Diurno”. a indet imiro fala. Fala entao ctico, A sua esséncia de lugar, sem qual- nessas “Tudo cra esquecimento, menos 0 coragio”. Drijimiro perde a meméria ¢ por um minuto, 0 tiltimo, habita totalmente o lugar da recordagio, Chegamos ao “morro de todo limite”, morro que € acidente geogrifico, obsticulo ¢ jimite, € morro do verbo morrer: obstaculo a qualquer linguagem, fim de tudo. Ao transcrever a des- crigio final feita por Drijimiro, o discurso se interrompe: “Entio, a0 narrador foge 0 fio, ‘Toda estéria pode resumir-se nisto: — Era uma vez. uma vez, ¢ nessa vez um ho- mem, Sabito, sem sofrer, diz, afirma: ~ “La, nas campinas...”. Mas nao acho as pala- vras”. O “sem sofrer” final faz pendant positivo a outros “sem”, que diziam a falta so- frida por Drijimiro ao longo do conto: “sem sair do lugar”, “sem regalo nenhum”, “sem crer”, e sobretudo “sem saber”, ja que, agora, ele sabe, e por isso nao sofre mais. A suspensao do discurso &, 20 mesmo tempo, do “narrador imaginério” (Drijimiro), edo narrador do conto, que reassume a primeira pessoa: “nao acho as palavras”. A busca de Drijimiro, como toda exploragao do inconsciente na linguagem, cra uma busca de identidade. Nao conhecemos a identidade do narrador do conto. Ele poderia ser um narrador-participante pois, no inicio, esta na condigao de ouvinte emocionado, como 0 outros integrantes do mundo de Drijimiro. Entretanto, no fim do conto, ele é um narrador onisciente, que sabe tudo 0 que a personagem sente ¢ diz. no momento so- litério de sua morte. O narrador poderia, talvez, ser 0 proprio Guimai nas campinas” se encontra num ponto-chave de Tutaméia. Como se sabe, 0s 40 con- ies Rosa. “La, tos do livro esto organizados por ordem alfabética dos titulos, ocorrendo uma que- bra da ordem a partir do 13°, para a introdugio subseqiiente das letras JGR, iniciais do escritor. Ana Maria Machado observa que, com essa ruptura da ordem, pode-se ler, no {ndice: “Hiato: intruge-se Joio Guimaraes Rosa Id nas campinas” (Machado, 1976, p. 92). Considerado porém no plano do discurso aberto para o inconsciente, 0 problema de saber se 0 narrador que diz “nao acho” é 0 homem Guimaraes Rosa é mal colocado desde a base: 0 “Guimaraes Ros: Rosa; € aquele que s6 existe em sua linguagem e que, nela, tem sua identidade pro- ” escritor nao é 0 homem Guimaraes FTN Belo Honzome 2m hp ET, oem 187 Nennunes 2: “LA, Nas CAMPINAS” blematizada, Vera Novis observa que os contos de Tataméia “niio apenas infringem, por sua disposigio, a ordem alfabética do volume criando a seqiiéncia JGR, mas também tematizam a questio do nome préprio ¢ da identidade” (Novis, 1989, p. 40). O mesmo questionamento da identidade, no discurso da rememoragio, ocorre no final de “Nenhum, nenhuma”: “Eu?”. Haveria todo um estudo a fazer sobre a questio do sujeito da enunciagao como vacilagao da identidade no conjunto da obra de Guimaraes Rosa. Por exemplo: “Uai, eu?”, titulo de outro conto de Tutaméia, po- de ser visto como uma sintese mineira da teoria lacaniana do sujeito como ninguém, ¢ do “eu” como empr imaginario. “O inconsciente, diz Lacan, escapa totalmente iquele circulo de certez no qual o homem se reconhece como eu”. (Lacan, 1978, p. 16) Nas lembranas parciais, do imagindrio, ocorria uma abertura para o real Na fala, 0 inconsciente s6 , “faiscas”, “redargilir reluzente”. Na hora do inconsciente que fas java € emocionava os ouvintes. se revela em “retalhos do verbo”, lampejo: da morte, o real se revela todo mas nao pode ser dito. Poderiamos lembrar a famosa frase de'T. S. Eliot: “O homem nao pode suportar demasiada realidade” o homem nao pode suportar a infelicidade total, ele nao poderia suportara felicidade total. No prefacio “Sobre a escova ¢ a diivida”, lemos: Assim como Nao se imagina 0 perigo que ainda seria, algum dia, em alguma parte, aparecer uma coisa deveras adequada ¢ perfeita”. Profundo conhecedor do inconsciente, Guimaraes Rosa realiza 0 corte ne- cessdrio nese tipo de discurso, que “s6 vale na medida em que tropega ou mesmo se interrompe” (Lacan, 1971, p. 160-161). A suspensao do sentido final € caracteristica de toda grande obra liter4ria; e a interrupgio do discurso, antes de ser uma pritica psicanalitica, € um procedimento corrente na literatura moderna. Por essa brecha do discurso, por essa abertura final da narrativa, entramos também nés, leitores do con- to, que também desejamos reencontrar esse impossivel lugar origindrio, “Id, nas cam- pinas”. Em Ave palavra (Rosa, 1978, p. 65), encontramos o seguinte fragmento: “2-X ~ As sete sercias do longe: si-mesmo, o céu, a felicidade, a aventura, o longo atalho chamado poesia, a esperanga vendada ea saudade sem objeto.” “La, nas cam- pinas” responde ao apelo dessas sete sereias. Como Drijimiro, sofremos todos de uma falta incolmatavel, suprida pelo trabalho do imaginario, na linguagem plena da poesia rosiana. A conclusio, uma vez mais, éa seguinte: os psicanalistas sabem muito, 0 poetas sabem tudo. 188 SGRIPTR Be onze np OT Fae Leyla Perrone-Moisés Résumé, wublig, il y a vingt ans, une analyse du conte “Nenhum, nenhu- ? imeiras est6rias) dans laquelle je voulais montrer que dan topogra a une place qui est “nulle part’. Linconscient, selon Lacan, est “partout” et “nulle part’. J'analyse ici le conte “La nas campinas” (Tutaméia), dont le noyau est un souvenir denfance qui obséde le personage. Ce conte autres textes de Guimaraes Rosa oit il spécifie divers types de nostalgic. Je cherche A montrer que, entre la “nostalgie d’idée” et la “nostalgie de cocur” (Grande sertéo: veredas), la dcuxitme constitue une ouverture vers la connaissance de Pinconscient, et que les contes oft elle apparait invitent le critique & une lecture psychanalytique. hie de 'oeuvre de Guimaraes Rosa il est mis en relation avec Referéncias bibliograficas CANDIDO, Antonio. Tese antitese. Sio Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964. O homem dos avessos, p. 119-139. CURTIUS, Ernst Robert. Literatura européia e Idade Média Latina. Trad. Teodoro Cabral, Paulo Ronai. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do livro. 1957. HERMANN, Fabio, Psicandlise do quoti deiros da saudade. LACAN, J. Ecrits. Paris: Seuil, 1971. (Collection Points, 2). iano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. Apea- LACAN, J. Le séminaire: livre II: le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1978. LACAN, J. Le Séminaire: livre IX: les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. 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