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CAPITULO III FENOMENOLOGIA DO PROCESSO GRUPAL ~ \ \\1. Introdugao > } O grupo terapéutico ¢ um campo onde a realidade acontece. Esta contemplada pelo observador a partir de dois parametros: o da rea- lidade em si ¢ de como ele tende a percebé-la. Em certo sentido, o observador vé e descobre o que ele quer ver e descobrir. A realidade € sempre cla mesma, um fendmeno a ser descoberto, a ser lido. A minha realidade, entretinto, vai ao encontro de uma outra maior ain- da, que me transcende no seu siléncio, na sua quietude. Esse encon- tro sera transformador tanto para o observador quanto para a reali- dade em si. Existe uma contaminacdo inevitavel sempre que dois en- tes se encontram. O grupo é um fendmeno complexo, uma realidade maior que a totalidade dos clementos que o compédem. A leitura dessa realida- de supde cuidados especiais, sensibilidade agugada, observagado hu- milde e paciente, A fenomenologia nos oferece os passos necessdrios. Fenomenologia ndo é uma ciéncia do comportamento humano, muito menos uma forma de terapia, é um modo de observar ¢ com- preender a realidade. Vai além de um processo ou de uma aplicacdo de técnicas psicoterapéuticas. Qualquer forma de terapia gestaltica passa necessariamente por trés momentos: tem que ser fenomenoldgica e ter como concepgdo basica ¢ visio de mundo a Teoria do Campo e a Teoria Holistica. O grupo, na nossa concepcao, ¢ visto como uma realidade uni- ca, feita de momentos e possibilidades infinitas, que se organiza co- mo um campo, como um espa¢o vital unificado, onde a vida aconte- ce, se revela e se faz compreensivel. 46 A fenomenologia podera ser usada ou como uma teoria de com- reensao do fenémeno em si e, neste caso, serA uma filosofia pura, poderd ser usada como um instrumento técnico que sugere um modelo de comportamento, uma atitude que leva o observador a pers- crutar a realidade a partir dela, deixando de lado seus prejuizos e sem concluir nada @ priori, respeitando o préprio evidenciar-se da realidade, enquanto escolhe o melhor caminho para auto-revelar-se. O grupo, enquanto entidade-fenédmeno-processo, ¢ objeto da fe- nomenologia filosdfica, O grupo, enquanto procedimento, ¢ objeto da fenomenologia como postura que vai ao encontro da realidade tiltima do grupo como-um-todo e de cada um dos seus membros. Nossa reflexdo vai na linha de entender o grupo a partir dos con- ceitos basicos da Teoria do Campo e da Teoria Holistica a luz da fenomenologia filoséfica ¢ comportamental. 2. Natureza da fenomenologia e do processo grupal Fenomenologia é, concisamente, uma filosofia, um processo, uma técnica, um modo de ver o mundo. Supée uma Icitura, uma des- - ¢rigdo e uma explicacdo da realidade, enquanto fenédmeno a ser des- vendado. _ Fenémeno ¢ aquilo que aparece, é o aparente da coisa. E aquilo eom que me encontro, aquilo que vem ao meu encontro, que se ofe- rece ao desvendamento. Do ponto de vista do encontro da pessoa com a realidade em funcdo do pensar ¢ do fazer, o encontro pode ser simples enquanto esbarra na coisa em si, na aparéncia do apa- _ fente. Poderd ir além da aparéncia, tentando colher nela seu misté- Tio, seu lado oculto, o em si da coisa, onde, de fato, a relac&o ocorre. Essa relacdio entre fenomenismo e fenomenologia, que implica ver a coisa em si ou o em si da coisa, nos leva & andlise intencional do dado, a relacdo perceptiva e até emocional entre a realidade em si, da qual pouco ou nada sabemos, e a realidade como chega a nos- $a Mente, ou seja, como nds a constituimos. Na andlise intencional, temos que partir da coisa mesma: uma casa, por exemplo, enquanto percebida, e temos que chegar a coisa mesma, isto é, 4 relacdo entre a coisa ¢ a consciéncia. E essa relacado que cria a compreensibilidade do ser. O grupo é um dado, uma realidade em si. Todo acontecimento pode Ser visto como algo individual, pontual ou como um produto da realidade maior, As conexdes entre o que é do individuo ¢ 0 que €do grupo siio simbélicas e complexas. A coisa, enquanto percebida 47 por mim, sera analisada a partir de uma dada experiéncia e a coisa em si, enquanto vista pelo grupo como unidade, terd mais chances de ter suas probabilidades compreendidas num desvendar-se da rea- lidade mais proxima da sua esséncia, da sua verdade. A consciéncia é sempre consciéncia de alguma coisa. Jamais é consciéncia pura, porque é sempre algo em relacdo. Estamos entre acoisa em si, o em si da coisa ¢ sua representagao. Assim, o estudo da fenomenologia passa a ser o estudo da constituigao do mundo na consciéncia do observador. De fato, uma coisa, uma mesma coisa nunca é vista como idén- tica por pessoas diferentes, porque cada um trabalha a realidade a partir de seus préprios pardmetros. A realidade nao é um espetaculo a ser visto, mas um texto a ser compreendido. A realidade nao é ja- ‘mais idéntica para duas pessoas. Os afetos, as emocdes jogam um papel fundamental no modo como cada um a apreende, Na compreen- sao desse fendmeno, entretanto, devo renunciar ao que é meu, meus a priori, para me tornar livre na sua compreensdo. Quando nos apro- ximamos da realidade, estamos inteiros, porém ocupados com 0 nosso mundo anterior ao percebido e isso pode enviesar nossa compreen- so. O despojamento dos preconceitos nos purifica para lidar com a realidade como ela é em si mesma ¢ nao como nés a projetamos. Dada a complexidade dos processos grupais e a nossa natural tendéncia ao controle para fugir da ansiedade, nossa percepedo cor- re o risco de uma maior contaminacdo, se no nos abrirmos para ‘uma ampliagao do nosso horizonte a partir do qual vernos a realidade. A paciéncia joga aqui um papel fundamental. Consciéncia e fendmeno nao podem ser concebidos separada- mente. Existe uma relagao consciéncia-mundo, mas, de certo modo, a consciéncia suspende sua crenga na realidade do mundo exterior, para se tornar ela mesma consciéncia transcendental. E como se os olhos s6 ou a mera percepcfo da realidade nao fossem suficientes para chegar & certeza ¢ A verdade. A consciéncia precisa de um pro- cesso de desnudamento do ser para evitar o erro e a ambigiiidade. A realidade tem que ser reduzida para que a consciéncia se engaje de vez na aceitacéo do objeto-em-si. ‘O grupo pode ser visto ora como fenémeno em si, ora como cons- ciéncia transcendental, onde ele atinge ou supera as barreiras do fe- némeno, a coisa em si, e se coloca como compreensio maior do pro- cesso, aqui ¢ agora. Existe uma suspensdo da consciéncia individual © surge uma consciéncia maior, a consciéncia grupal. Torna-se uma consciéncia engajada. E o momento do insight, onde a redugdo fe- nomenoldgica sintetiza o processo pela transfenomenalizago do pré- prio fendmeno. E um momento criador. 48 A redugdo fenomenoldgica coloca em evidéncia a intencionali- dade da consciéncia, enquanto todo objeto no mundo, real ou ideal, éremetido a primeira camada do ser. A chegada da esséncia a cons- ciéncia faz com que ela passe do nivel das idéias ao da experiéncia, ‘onde o apelo ao agir surge naturalmente, A reducdo fenomenoldgi- ca poe em evidéncia o ser no mundo, o ser em situagdo, em funcdo da qual o sujeito nao é jamais puro sujeito, mas um sujeito aqui e agora, temporal e espacial. A redugéo fenomenoldgica nos coloca da consciéncia, enquanto é algo que nos persegue e ao mesmo tem-~ ‘po mos escapa. Bai que estd o lugar do acontecer, do devir. A redu- ‘cao fenomenoldgica é a busca do significado, que é a chegada da to- talidade a consciéncia. E a totalidade que contém o significado, que, "por sua yez, ¢ feita de momentos fenomenoldgicos (sensa¢ao, per- cepcao, insight). Essa éa realidade grupal. Ali nem o sujeito é puro sujeito, nem ‘0 grupo é puro grupo, mas ambos sdo aqui e agora, tempo ¢ espaco, _ esséncia e existéncia. A existéncia deixa de ser mero conceito para ser » algo engajado, como o devir se fazendo, acontecendo sem pedir licenga. : O grupo produz esta experiéncia: estar diante do mistério, algo ” sagrado que parece fugir ao dominio da consciéncia e algo extrema- "mente simples que é 0 contato com o visivel, experimental, com o conereto. Desvendar o fendmeno é chegar a esséncia mesma das coisas, éultrapassar a coisa em si. Essa transfenomenalidade do ser supde _ &negacdo de uma visdo simplista do ser, como se o que cu vejo ou _ deserevo fosse toda a realidade fenomenoldgica do presente. A rea- lidade € muito maior que o conhecimento que eu possa ter dela. A ~ Nossa relacdo com o ser s¢ defronta com uma dupla realidade, a coi- $a.em si ¢ o em si da coisa. A coisa em si ¢ a coisa tal qual vemos €tocamos. O em si da coisa ¢ 0 seu invisivel, o seu mistério, a signi- fieagdo que damos a ela. De certo modo, as coisas existem na pro- Porcdo em que lhe atribuimos significagdes, intengdes, emocdes. O grupo se debate o tempo todo nessa busca do significado real, da totalidade que chega mansamente ou, As vezes, com a impetuosi- dade do espfrito que sopra como um vento transformador. Essa luta constante entre a coisa em si e o em si da coisa persegue o espirito paciente e critico de cada membro do grupo. A busca da verdade é um desafio silencioso e inconsciente de cada pessoa, na experiencia- S40 da prépria ambigiiidade a espera da luz que ilumina, distingue © transforma. Dando um passo a frente, talvez possamos ainda dizer que a coisa €m si esta para a figura assim como o em si da coisa estd para o fun- 49 _ diretamente em coniato com a existéncia, a qual foge ao dominio \.' do. Acrescentando ainda que o conceito de intencionalidade diante do objeto cria a dinamicidade prdpria da relacdo figura-fundo. A intencionalidade é um movimento transcendente na diregao ser-ai da coisa. As coisas tém um significado em si que independe da minha intencionalidade. Aqui reside toda uma gama de possibilidades da relacéo de ambigtlidade com o ser-ai, porque as coisas simplesmente séo. Uma casa é uma casa e nada mais que uma casa, uma rosa é uma rosa e nada mais que uma rosa, mas uma rosa olhada por mim nao é mais uma rosa, mas uma rosa que eu olhei. O meu olhar muda a natureza da rosa na sua relagdo comigo e com o mundo, embora para os outros aquela rosa continue simplesmente uma rosa. O mundo 6, portanto, um conjunto de significagdes e nds o vemos a partir de nosso préprio horizonte, dai que o significado que eu empresto as coisas ndo é necessariamente o desvendamento da sua esséncia, mas uma projecao de minhas necessidades no mundo. Conceitos e coisas passam a existir mais ou menos fortemente na pessoa, na medida em que sua intencdo os afeta. A consciéncia, no entanto, é livre e cabe a ela dar sentido e in- tengao as coisas. Estar consciente de algo é ter refeito, é ter desco- berto toda a linha da intencionalidade da relagio sujeito-mundo. A consciéncia pura é um contato direto com a esséncia do objeto, isen- to agora da projeg&o do sujeito. Temos, no entanto, que retornar ao dado, temos que sair de uma mera visdo de esséncia, temos que chegar a facticidade, 4 inteng4o, a partir da qual o em si da coisa se apresenta a mente sem adjetivos ou restrigdes. A consciéncia é uma totalidade indivisivel. Esse movimento é também a esséncia do pro- cesso terapéutico, — A neurose é muito o escutar-se a si prdprio, o acreditar na pré- | \Pria certeza, fazendo-a lentamente uma verdade. F perda do dom _/ de poder mudar, de poder distinguir, de poder correr riscos, de po- der criar. F a perda da liberdade, pelo fato de que alguém se trans- forme no préprio parametro entre objeto ¢ sujeito, de uma mancira duvidosa e sem um questionamento transformador. O grupo ensina as pessoas a usar sua prépria duvida para se che- gar a verdade, a usar seus sentimentos mais profundos para fugir da prépria ambigilidade, a abrir os olhos para ndo enxergarem a si préprias como modelos acabados dos outros. O grupo ensina as pes- Soas a serem humildes diante da propria grandeza e da dos outros, pois o dado inclui e revela o prdéprio mistério, revela a facticidade © nos permite usar adequadamente os proprios adjetivos. O fendmeno ¢, portanto, a totalidade a ser descoberta pela cons- ciéncia. Esta, mesmo proviséria, chega como uma totalidade indivi- sivel, A consciéncia é 0 lugar onde as coisas se processam, onde rela- 50 gdescriam compreensao. Ela nado produz conhecimento, mas ¢ 0 lu- z onde as coisas, os eventos se fazem inteligiveis. A consciéncia chega como um todo ¢ essa totalidade significante e livre esta direta- mente ligada a intencionalidade. | . - Sartre afirma que o homem é um ser sem desculpas, pois a acdo € sempre precedida por um ato consciente, ainda que tal fato possa ger, as vezes, no percebido pelo sujeito, o qual nao conhece as coi- gas, mas se encontra com elas. Estas se oferecem & sua compreensdo e contemplacao, pois o ser tem um apelo interno de auto-revelacdo ~ e quando isso ¢ captado, a consciéncia provoca uma energia propria de acdo, de atualizacdo de ida ao encontro desse ser. Se nds nado impedirmos que esse enconiro ocorra ¢ se aprofun- de, ele ocorrerd ¢ se aprofundara infalivelmente. Nao o meu encon- ‘trar ou 0 encontrar dele, mas 0 nosso encontro. Nao predispomos, nao determinamos o fenémeno. Ele, simplesmente, ¢ e tomamos cons- ciéncia dele e com ele estamos e acontecemos. Ns somos o fenédme- no, porque somos sempre em relagdo. O grupo é o lugar marcado do encontro, pois nada mais dife- ‘Pente que as pessoas de um grupo, quando ele comega. Pode-se sen- tir a provisoriedade da consciéncia nessa fase inicial. E como se a consciéncia quisesse saber, predispor e recuasse 4 espera de que as coisas se facam inteligiveis, encontrem nexos, formem totalidade. O grupo é reverente diante da grandeza do mistério que a realidade en- cerra, a qual o convida a postar-se diante do ser na compreensao e contemplacado de uma busca que nem sempre tem resposta, porque a chegada da totalidade é meramente fortuita, __ Oser humano anseia pela totalidade. O inacabado, o incomple- _ to ésua angustia fundamental. Existe em nés uma tendéncia ao com- pleto, ao perfeito, a unidade total ¢ absoluta. Por mais precdrio que -alguém se sinta, dentro dele nao se extingue a chama pela totalida- de, pela perfeicdo. Isso significa olhar a realidade como um todo. Nada que é real esta isento de nossa atracdo ¢ percepcao fenomeno- lOgicas. Somos atraidos pelo belo, pelo perfeito assim como a mos- ea € atraida pelo mel, Essa atracdo, no entanto, esta sujcita ou é pro- Porcional ao nivel de emocGes com que as coisas nos chamam. Nes- S€ movimento, podemos, como a mosca, morrer, porque, levada pe- lo instinto, nao se apercebeu do perigo que é voar na direcdo da rea- lidade que nos nutre e nos liberta. O grupo nos da a sensacao clara de limites, a sensacdo de dife- tenga, de contato, sem o que o encontro nao ocorre. Viver e expe- thee, um grupo terapéutico é a arte de construir o igual, o seme- = Hae eer das diferencas. No grupo, as pessoas terminam por ve focllli Intensamente, sem necessidade de mascaras. O cara a ca- © encontro com a verdade. 51 A fenomenologia é ainda a recuperagao do afetivo-emocional, éa recuperacdo do corpo como totalidade significativa ¢ intencio- nal. E a ciéncia do chegar cada vez mais perto do ser como totalida- de. Ela nao divide para ver. O chegar 4 coisa mesma é um processo de permanente inclusdo da realidade. Fenomenologia ¢ uma ciéncia do homem para o homem e, co- mo tal, é objeto e sujeito de uma andlise esgotante do ser. Tudo é incluido, nada fica fora. E ainda uma ciéncia encarnada no tempo. Nos 86 temos acesso as coisas, agora. Esse tempo nao é uma idéia, éum fato, uma coisa. O tempo é agora, ¢ aqui. Tudo existe agora € agora podemos ter acesso as coisas. Os faios ndo existem amanha, existem agora e ¢ agora que seu sentido tem que ser encontrado. Indo mais longe, diremos que o tempo, assim como o concebe- mos, ¢ uma mera ilusdo, assim como a realidade enquanto resposta As nossas exigéncias interiores. Sucessdo de muitos dias ¢ de memd- rias formam o nosso tempo, o qual, por sua natureza, simplesmente é nds o preenchemos com nossos adjetivos. Aqui e agora, espaco e tempo nada mais séo que dimensdes do nosso interior na procura desesperada de nos sentirmos assentados, fixados, pois a possibili- dade da fluidez total nos apavora. ~.0 fenémeno, portanto, dentro desse aspecto de temporalidade, é também atemporal quanto A sua dinamicidade histérica. O que é agora € e continua sendo diferenciando-se eternamente. E como se o fenémeno, na sua transfenomenalidade, contivesse em si um cédi- go genético que lhe permitisse modificar-se permanentemente, sem deixar de ser ele proprio. A realidade, portanto, é sempre nova a ca- da momento que passa. Eu sou sempre novo a cada momento que passa, 0 fendmeno é sempre novo a cada momento que passa. Essa sensagdo de descontinuidade € comum no grupo. Mudan- ¢a é lei fundamental do grupo. Auséncia de repeticdo, poder ser di- ferente ¢ aceitar a propria diferenga so um constante aprendizado em grupo. Esta consciéncia é uma consciéncia submetida 4 temporalidade, na qual o objeto presente se modifica incessantemente, confirman- do ou desconfirmando a evidéncia através da qual ela se dd a nds. As coisas tém um principio interno que as mantém idénticas a si mes- mas NOs Momentos sucessivos e através dos quais podemos reconhecé- las. Descobrir esse principio ¢ descobrir a génese essencial da reali- dade. Isso supde uma busca constante do ser. O ébvio nem sempre éevidente, pois ele tem que entrar no campo da consciéncia para ser percebido, pois, do contrario, é como se nao existisse. Aevidéncia ndo nasce de uma tinica experiéncia, mas da sintese de uma infinidade de experigncias concordantes. Esse dado é funda- 52 mental, pois a evidéncia é apenas presumida, j4 que pode sempre, em principio, ser desmentida por uma experiéncia ulterior. E preci- s0, portanto, lembrar o sentido da contingéncia e facticidade de to- do ser, pois, por natureza, somos ligados 4 sua temporalidade ¢ es- pacialidade. A realidade jamais tem uma unica interpretacao, pois, sendo o homem um ser de relag4o, 0 confronto se torna inevitavel entre sujeito e objeto, entre a busca da certeza ¢ da verdade. O grupo convive o tempo todo com temas figurais. De qualquer Jado que se observe a realidade, descobrimos que, na sua leitura, nos deparamos com uma dupla face, figura e fundo. No jogo da dina- qmicidade do ir e vir, na procura do instalar-se da necessidade maior, figura ¢ fundo nos remeiem a dupla camada da realidade, do ser em si e do em si do ser. Experienciar a realidade nos remete ao grupo ¢ A necessidade de conferir constantemente 0 movimento interno atra- vés do qual a facticidade se objetiva e se torna transformadora. Uma consideragdo final sobre a ordem moral. Esta considera- cdo passa necessariamente pelo pensar essencial do ser bom ¢ do ser mau, ¢, dentro dessa polaridade essencial, podemos encontrar um certo equilfbrio préprio e comum 4 maioria dos seres humanos. Se o bem ¢ a virtude nao podem reduzir-se 4 observancia de leis univer- sais, dado que a pessoa é singular, cumpre, em cada caso, examinar a vocagiio experiencial de cada pessoa no contexto de sua realidade total. O fendmeno é tudo e tem sempre que ser superado. O pensar eo fazer, na busca de complementac4o, formam um tinico fendme- no, uma relacdo figura-fundo, onde a dinamicidade da troca do ato de perceber termina por criar a relagao perfeita entre as partes. Aquilo que é bom para alguém faz parte de um cosmos moral ao qual toda e qualquer atitude deve referir-se sob pena de no ser boa. © bem pessoal, enquanto singular, tem um alcance universal, mas essa universalidade ¢ a universalidade concreta das pessoas ¢ nado das idéias. Estamos, em ultima palavra, falando de AMOR. Amor é real, é aqui e agora. Amor depois, se nao for preguica émentira. Amor ndo é uma idéia, é um ato e este fato comega e ter- mina no corpo. E muito facil amar a idéia de amar 0 outro, mas 0 amor ¢ concreto, direto, sem desculpas. © outro é 0 infinito, 0 cor- po € o aqui e agora. Qualquer corpo, em qualquer lugar, ¢ agora. Levinas expressa bem essa idéia quando afirma: a manifestagao do semblante é 0 primeiro discurso. ‘‘Falar é, antes de qualquer coi- $a, ¢$sa maneira de vir de tras de sua aparéncia, de trds dessa forma, uma abertura na abertura’’.! “‘Absolutamente presente em seu sem- blante, outrem — sem nenhuma metdéfora — me faz face’’.? 53 O grande aprendizado do grupo terapéutico é a sua capacidade imensa de estar junto, de dar suporte, de compreender e amar pro- fundamente. No grupo, as mdscaras caem, 0 coracdo recupera sua capacidade de bater em sintonia, os canais lacrimais se desobstruem, os olhos podem banhar-se em lagrimas de purificagdo e as pessoas aprendem a amar os outros, porque aprenderam a se olhar primei- ro. Aprenderam que apaixonar-se é, antes de tudo, apaixonar-se por si mesmas. 3. Conclusio Minha tendéncia é trabalhar o grupo como um todo ¢ entender qualquer coisa que ocorra no grupo como algo que pertence a ma- triz grupal. O grupo passa a ser a unidade de referéncia. As coisas encontram sentido na relagdo existencial dos seus participantes, co- mo sendo provocadas por uma entidade anterior 4 soma dos proble- mas de seus individuos. Essa postura encontra sua maior sustentagdo na Teoria do Campo ena Holistica. A fenomenologia vem ao encontro dessa visdo, ensi- nando como observar, como ler cuidadosamente o que est ocorrendo. Nada melhor que o grupo para perseguir a verdade, para ir as coisas mesmas, para chegar a esséncia do oculto, do negado, Con- ceitos como intencionalidade, totalidade, consciéncia, facticidade, am- bigilidade, redugdo fenomenolégica, temporalidade revelam verda- deiros processos por que passa 0 grupo. O grupo, como os individuos, tem um principio auto-regulador e éa partir dessa idéia que tudo o que acontece no grupo deve ser interpretado. Uma palavra dura, “uma violéncia”, t8m que ser vis- tas como um momento fenomenoldgico que vai distribuindo o seu sentido ¢ mensagem na raz4o em que esse dado vai sendo processa- do pela matriz. A realidade se revela e se esconde ao mesmo tempo. Fazer fenomenologia é captd-la no seu processo de eterna mutagao para a totalidade. A relagdo figura-fundo nos ajuda a compreender essa perma- nente mutabilidade do fendmeno e nos fornece um modelo compreen- sivel de como entender que, nao obstante suas partes em permanen- te mudanga, 0 grupo como-um-todo é uma forma completa e permanente. Trabalhar fenomenologicamente o grupo tem sido um desafio Para muitos terapeutas, por afirmarem que a espontaneidade, a im- petuosidade das pessoas impedem que ocorra o amadurecer da cons- ciéncia transformadora. 54 O fenémeno nao é algo que se predetermine. O terapeuta lida com 0 que ocorre. Os clientes sdo clientes eles se comportam como querem se comportar. Eles ndo t@m que se comportar fenomenolo- gicamente, mas simplesmente se deixarem acontecer. O terapeuta tem de agir fenomenologicamente e nao os clientes. Gostaria ainda de introduzir uma questao vital para a vida dos grupos no que sé refere ao comportamento do terapeuta orientado fenomenologicamente. Pode o gestaltista fazer hipdteses? Do ponto de vista da fenomenologia, a resposta é negativa. O que é uma hipétese proibida a luz da fenomenologia? Hipotese, no contexto terapéutico, é um momento intelectual em que, apenas terminado o relato de um paciente ou do grupo, 0 terapeuta induz tornando uma unidade universal algo que se mani- festa fragmentado. ‘Neste caso, ele lidou com a aparéncia primeira, com o imediato a partir de seus conhecimentos anteriores, ou de seus a priori: ele observou a realidade ¢ a classificou a partir de conhecimentos ante- riores, sem esperar que a realidade se desdobrasse mais amplamente diante dele. Seria extremamente danoso que a partir deste momento ele pas- sasse a perseguir sua hipdtese, sua certeza. Estamos, portanto, falando de hipdtese a priori. Existem hipéteses @ posteriori? Existem e podem ser formu- ladas. Hipétese @ posteriori é um estado de espirito, em que o tera- peuta, apdés ver e descrever a realidade, comeca a ter diante de seus olhos uma descoberta irrevogdvel. Ela nao ¢ formulada por antecedéncia, ela acontece, ela nasce, ela surge da ¢ na relagdo te- rapéutica. Ela nao é criada, é algo que vem ao encontro da mente do observador. Trata-se de um processo maiéutico, como uma gestacaa, em que ‘© terapeuta vai colhendo, aqui e ali, elementos isolados que v4o fa- zendo pontes entre si, até que, em algum momento, a crianga esta pronta e nasce na mente do terapeuta como uma unidade viva ¢ di- namica. Apds a fragmentacao, surge a totalidade significativa, ocorre uma reducdo fenomenoldgica, onde a certeza fica & espera de que a realidade indagada Ihe revele a verdade. E 36 ai o processo tera- péutico encontra sua garantia, como algo que vem da relagdo e nao da mente linear do terapeuta. Em termos de campo, diria que a hipétese @ priori ¢ algo que ocorre no campo geogrdafico, onde a realidade se apresenta nua, a espera de ser significada, ao passo que a hipdtese @ posteriori surge ja de uma relagdo dinamica entre o campo psicoldgico ¢ o compor- 55 tamental, onde a relacdo esta presente como elemento transfenome- nalizador. A partir desse momento, ndo h4 como nao fer hipdtese, que é diferente de fazer hipdtese, porque a mente nao é livre diante da sua propria certeza. Ela poderd fazer opcdes de como lidar com a certe- za, mas nao é livre de livrar-se dela. Fenomenologicamente, ocorreu 0 insight, o caos se transformou em figura. Didaticamente 0 que pode o terapeuta fazer com sua cer- teza? Nada. Ele tem que esperar a confirmacdo por parte do cliente, pessoa Ou grupo. Somente eles poderdo dizer se a certeza do tera- Ppeuta corresponde a verdade da sua realidade objetiva. A arte, © poder criador, 0 contato, o encontro entre cliente ¢ terapeuta indicarao o caminho a seguir. Referéncias Bibliograficas 1. Levinas, G., 1964, p. 143. 2. Levinas, G., 1967, p. 186.

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