You are on page 1of 551
wy yen fort hci HART ys ARID eV 34 WI BYKYS MATTED ART Seat UTA ERAAY 7 4ny-97 A way Tah Ady sy YOR SAK ty RAY WHY BHASLLEM Karl Kautsky nasceu em Praga, em 18 de outubro de 1854, e estudou filosofia, histéria e economia politica em Viena, onde aderiu ao Partido Social-Democrata da Austria, Posteriormente, viveu em Londres, onde estabeleceu relagdes de amizade com Karl Marx (1818-1883) € Friedrich Engels (1820-1895), com os quais colaborou e dos quais se tornou legatédrio. A ele coube a tarefa de compilar € editar os manuscritos de Marx sobre Theorien iiber den Mehrwert (Teorias sobre @ mais-valia), que formaram 0 quarto volume de Das Kapital (O capital). Em 1890, ano em que se casou com Luise Ronsperger, mudou-se para a Alemanha e la também se filiou ao Partido Social-Democrata, cujo programa de Erfurt elaborou com August Babel e Eduard Bernstein. Fundou a revista tedrica Die Neue Zeit (O Novo Tempo) e se tornou © principal intérprete da doutrina de Marx e Engels, o mais importante tedrico da Internacional Socialista. Divergiu entao de Eduard Bernstein, quando este, em 1903, propos a reviséo do marxismo, e, em 1909, publicou Der Weg zur Macht (O caminho do poder), também traduzido para o portugués pelo professor Luiz Alberto Moniz Bandeira (Hucitec, 1979). Em 1914, Kautsky opds-se & deflagracao da guerra mundial pela Alemanha, mas suas divergéncias com Vladimir Lenin, lider da faccao bolchevique do Partido Social-Democrata da Russia, comecaram a agravar-se por volta de 1914 e exacer- baram-se quando ele denunciou dura- mente o modo como foi instituido o Estado soviético, com a implantagao, na Rissia, do Terror Vermelho, apés a tomada do poder pelos bolcheviques, em 1917. Com sua autoridade moral, intelectual e teérica, condenou os métodos de Lenin e Trotsky, quando aboliram a democracia politica em nome da ditadura do prole- tariado. Suas criticas aos rumos da Revolugao Russa, em varios livros, entre os quais Die Diktatur des Proletariats (A ditadura do proletariado), em 1918, € Terrorismus und Kommunismus (Terrorismo e Comunismo), em 1919, levaram Lenin a estigmatiza-lo como “renegado”, em um. livro panfletério bastante divulgado na esquerda. Nesse mesmo livro, no entanto, Lenin reconheceu que Kautsky sabia Marx “quase de memé6ria” e, mais adiante, asseverou que “por muitos dos seus tra- balhos sabemos que Kautsky soube ser um historiador marxista, e esses trabalhos ficarao como patriménio perduravel do proletariado, apesar da apostasia do autor”. Entre os trabalhos de historia, aos quais Lenin se referiu como “patrimonio perdurdvel do proletariado”, destaca-se Der Ursprung des Chistentums (A origem do cristianismo), cuja primeira edicao foi publicada, em 1908, pela J. H. W. Dietz Nachf, em Stuttgart, Alemanha. ‘Apés a revolucaio na Alemanha, em dezembro de 1918, Kautsky, entao mem- bro do Partido Social-Democrata Independente, um dos dois partidos em que a partir de 1914 a social-democracia alema se dividira, tornou-se secretario do Ministério dos Negocios Estrangeiros, no Conselho dos Comissarios do Povo, cargo que ocupou até 1919. Em 1924 regressou a Viena, de onde teve de fugir quando as tropas de Adolf Hitler invadi- ram e anexaram a Austria. Exilado em Amsterda, nos Paises Baixos, faleceu em 17 de outubro de 1938. capa Evelyn Grumach A Origem do Cristianismo Kare Kautsky A Origem do Cristianismo Tradugao, introdugao, apéndice e notas de Luiz Alberto Moniz Bandeira CIVILIZAGAO BRASILEIRA, 2010 Copyright © da tradugio Luiz Alberto Moniz Bandeira, 2010 Cana EG Design ~ Evely Grumach FOTO DE CAPA: © Dr. John C. Trever, Ph. D./Corbis/Latinstock e © Richard T. Nowitz/Corbis/Latinstock PROJETO GRAFICO Evelyn Grumach e Joao de Souza Leite DIAGRAMAGAO DE MIOLO Abrew's System C1P-Brasil. Caralogacdo-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Kautsky, Karl, 1854-1938 K320 A origem do cristianismo/Karl Kautsky; tradugio, introdugio, apéndice ¢ notas de Luiz Alberto Moniz Bandeira, — Rio de Janeiro: Civilizagio Brasileira, 2010. Tradugao Untersuchung Anexo: Comunismo cristo ¢ hercsia/Luiz Alberto Moniz Bandeira ISBN 978-85-200-0738-4 Der Ursprung des Chistentums, Eine historische 1. Jesus Cristo = tianismo ~ Histéria. I. Bandeira, Moniz, 1935: Comunismo cristio ¢ heresia. oricidade. 2. Cristianismo - Origem. 3. Cris I Titulo. IHL. Titulo: 07-1855 CDD: 270.1 CDU: 27(09) Todos os dircitos reservados, Proibida a reproducao, armazenamento ou transmissio de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorizagao por escrito. Este livro foi revisado segundo 0 novo Acordo Ortogrdfico da Lingua Portuguesa. Direitos desta tradugio adquiridos pela EDITORA CIVILIZAGAO BRASILEIRA Umseloda EDITORA JOSE OLYMPIO LTDA. Rua Argentina, 171 -20921-380 — Rio de Janeiro, RJ ~ Tel.: 2585-2000 Seja um leitor preferencial Record Cadastre-se ¢ receba informagdes sobre nossos langamentos € nossas promogdes. Atendimento ¢ venda direta a0 leitor mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002 g y Impresso no Brasil 2010 Sumario Prologo 7 Introdugao 25 PRIMEIRA PARTE — A personalidade de Jesus 37 1. As fontes pagas 39 2. As fontes cristas 47 3. Aluta pela imagem de Jesus 59 SEGUNDA PARTE A Sociedade Romana na era imperial 67 1. O sistema escravista 69 2. Aesséncia do Estado 109 3. Correntes de pensamento no perlodo do Império Romano 137 TERCEIRA PARTE Osjudeus 221 1. Opovode israel 223 2. Os judeus apés 0 Desterro 265 QUARTA PARTE — Os principios do Cristianismo 361 1. A primitiva comunidade cristé. 363 . Aideia cristé do Messias 397 . Os judeus cristdos e os gentios cristéos 423 . Ahistéria da paixdo de Cristo 437 . A evolugao da organizacao da comunidade 451 aunwn Cristianismo e social-democracia 499 APENDICE Comunismo cristo ¢ heresia 513 Prélogo Luiz Alberto Moniz Bandeira Karl Kautsky (1854-1938), nascido em Praga e educado em Viena, foi o legatario de Karl Marx (1818-1883) e de Friedrich Engels (1820-1895), com os quais estabeleceu relagdes de amizade, quando de sua viagem a Londres em 1881. Coube a ele depois compilar e editar os manuscritos de Marx sobre Theorien tiber den Mebrwert (Teorias sobre a mais-valia), que constitufram 0 quarto volume de Das Kapital. Kautsky tornou-se membro do Partido Social-Democrata da Austria e, posteriormente, do Partido Social-Democrata da Alemanha, para onde se mudou, e fundou a revista tedrica Die Neue Zeit (O novo tempo). Tornou-se entao o princi- pal intérprete da doutrina de Marx, dentro da Internacional Socialista, mas suas divergéncias com Vladimir Lenin, lider da facgéo bolchevique dos social-democratas russos, comecaram a agravar-se por volta de 1914, e ele criticou acerbamente 0 modo como foi constituido o Estado soviéti- co ¢ clamou contra o Terror Vermelho, implantado na Russia apés a re- volugio de 1917. Assim, com a maior veeméncia e toda a forca de sua autoridade moral, intelectual e politica, opds-se aos métodos de Lenin e Trotsky, por suprimirem, na Riissia, a democracia politica em nome da implantagao do socialismo. Segundo Kautsky, 0 socialismo, como meio para a libertagdo do proletariado, sem democracia, era “impensavel”, conceito este que insistentemente reafirmou: Para nds (...) socialismo sem democracia é impens4vel. Nés enten- demos sob o moderno socialismo nao a simples organizacdo da pro- dugao social, mas também a organizagio democratica da sociedade. O socialismo para nds estd inseparavelmente ligado com a democra- cia. Nenhum socialismo sem democracia.! A ORIGEM DO CRISTIANISMO Kautsky, criticando o regime soviético e a inconsisténcia do pensa- mento de Lenin, do Angulo da prépria teoria de Marx, ponderou que, quando se tratava de ditadura como forma de governo, nao se podia falar de ditadura de uma classe. Uma classe sé poderia dominar, nunca gover- nar. E, além do mais, quando o proletariado se dividia em diferentes par- tidos, a ditadura de um deles nao era a ditadura do proletariado, senao de uma parte sobre as outras, E, no caso da Riissia Soviética, a situagdo ainda mais se complicava, pois a ditadura do proletariado nao seria se- quer uma simples ditadura do proletariado sobre o proletariado ¢ sim também uma ditadura de operdrios e camponeses sobre o proletariado.? Kautsky enfatizou que a liberdade ndo era menos importante que 0 pao? e salientou que nao se podia entender a ditadura do proletariado, da qual Marx falara, como uma forma de governo (Regierungsform) e sim como uma situagao polftica (politischer Zustand), somente vidvel quando con- tasse com o suporte das massas, ou seja, da maioria da populagio.* Este conceito de ditadura do proletariado como situagao politica (politischer Zustand) é similar ao de Rosa Luxemburg e aproxima-se bastante do que Antonio Gramsci formulou, ao defini-la como hegemonia polftica con- sentida pelas massas, nao imposta a estas, tal como ocorria na Uniao So- viética. Segundo Kautsky, (...) a organizagao estatal da produgao, através de uma burocracia ou através da ditadura de uma unica camada da populagao, nao signi- fica socialismo.‘ A organizacao socialista do trabalho, ele observou, nao devia ser uma organizagao de caserna (Kasernenorganisation) e um sistema de guerra ci- vil crénica, que tornavam impossivel a construgao do modo socialista de producao® e provocavam a apatia e o desanimo das massas. O socialismo, representando o total bem-estar no contexto da moderna cultura, somen- te seria possivel através de poderoso desenvolvimento das forgas pro- dutivas, que o capitalismo trazia consigo, e da enorme riqueza por ele ge- rada e concentrada nas mos da classe burguesa,’ observou Kautsky, que qualificou como um estado camponés (Bauernstaat) 0 que os bolchevi- ques organizavam na Rassia e evocou a adverténcia de Engels no sentido de que, em condigées de subdesenvolvimento das relagdes de produgio, uma economia comunista poderia servir de base para o despotismo.® PROLOGO Tais criticas ao curso da Revolugo Russa levaram Lenin a apodar Kautsky de “renegado”, em livro muito difundido no meio da esquerda.? Nesse mesmo livro, porém, Lenin reconheceu que Kautsky sabia Marx “quase de meméria”"’ e, mais adiante, fez-lhe justiga, ao observar que “por muitos dos seus trabalhos sabemos que Kautsky soube ser um histo- riador marxista, e esses trabalhos ficarao como patriménio perduravel do proletariado, apesar da apostasia do autor”.!! Entre os trabalhos de his- toria, aos quais Lenin se referiu como “patrimdnio perduravel do prole- tariado”, destaca-se Der Ursprung des Christentums (A origem do cristia- nismo), cuja primeira edicao foi publicada, em 1908, pela J. H. W. Dietz Nachf, em Stuttgart, na Alemanha. Sua terminologia reflete naturalmente © espirito da época e a militancia de Kautsky como social-democrata e como o mais conceituado intérprete da doutrina de Marx e Engels. Algu- mas pessoas podem estranhar que ele se refira A plebe, e aos escravos e li- bertos, os segmentos baixos da populagao judaica na Palestina, como pro- letariado. Kautsky, porém, usou o termo proletariado, de origem latina, no seu sentido etimoldgico, proletarii, como se chamava, no Império Ro- mano, os cidadaos da ultima classe social, que no pagavam impostos, os cidadaos de baixo poder aquisitivo, considerados titeis apenas pela prole que geravam. O notavel historiador inglés Edward Gibbon observou que a seita crista, inicialmente, foi inteiramente composta pela esc6ria da po- pulaga (dregs of the populace), de camponeses e mecAnicos, de jovens e mulheres, de mendigos e escravos, os tiltimos dos quais, os escravos, al- gumas vezes podiam haver introduzido os missiondrios nas familias ricas e nobres as quais pertenciam.' Ela recrutara seus prosélitos entre a massa condenada & obscuridade, ignorancia e pobreza.’ O mesmo Engels res- saltou, ao assinalar, em seu pequeno ensaio Zur Geschichte des Urchris- tentums (Sobre a historia do cristianismo primitivo), que o cristianismo se propagara inicialmente entre os escravos, os homens livres empobrecidos € Os camponeses, nos latiftindios da Itdlia, Sicilia e Africa, para os quais 0 Parafso fora perdido. Kautsky também denomina de comunismo, comunismo de consumo, © coletivismo em que viviam certas comunidades judaicas, sobretudo os ess€nios ¢ os zelotes. Nao ha melhor classificag3o do que essa — comu- nismo de consumo — para o regime em que os cristdos primitivamente viviam. Entretanto, nao obstante a moldura teOrica, fundada no materia- lismo histérico, e o matiz ideoldgico, A origem do cristianismo nao cons- A ORIGEM DO CRISTIANISMO titui apenas um “patriménio perdurdvel do proletariado”, como disse Lenin. Constitui uma obra histérica de valor universal, embora, natural- mente, possa gerar muitas controvérsias e discordancias. Seu mérito aca- démico transcende quaisquer concepgGes polfticas e ideoldgicas. A ori- gem do cristianismo constitui enorme contributo, deveras importante, inclusive do angulo teolégico, para a compreensio de Jesus, em sua con- creticidade histdrica, e do cristianismo, como um fendmeno social e poli- tico, que transcendeu sua época, razio pela qual traduzi esta obra para o portugués, entre 1968/69, ha quase 40 anos passados, agora por mim re- visada com base na primeira edigdo alema de 1908. Em A origem do cristianismo, Kautsky estuda as condigdes econdmi- cas € sociais tanto do Império Romano quanto da Palestina, como elas in- fluiram sobre o povo de Israel, e mostra os costumes e tendéncias de suas diversas seitas — fariseus, saduceus, essénios e zelotes. Busca explicar os verdadeiros fatores ¢ as circunstancias hist6ricas que determinaram os acontecimentos, interpretando o vasto material existente sobre o judais- mo e o cristianismo. A profunda andlise que Kautsky faz dos Evangelhos é deveras significativa, esclarecedora. Ele aponta as suas contradiges e busca desvelar Jesus como homem, 0 Jesus histdrico, resgata-lo debaixo das camadas que lhe foram posteriormente sobrepostas pelas interpola~ Ges dos escribas ¢ tradutores. Quanto a Jesus, supde-se que ele recebera a influéncia dos essénios, entre os quais talvez vivera, embora se insurgisse contra a pureza ritual.’ Seus ensinamentos, tal como transcritos nos Evangelhos, eram de inspi- rao profética, escatolégica, 4 maneira dos mestres essénios, ¢ nao ensi- namentos da tradigao, conforme preferiam os mestres fariseus. Essa in- fluéncia essénia talvez houvesse sido transmitida a Jesus por Joao Batista, que aparentemente vivera na comunidade Qumran, a noroeste do Mar Morto, onde, em 1947, foram descobertos, dentro de cavernas ao longo do uddi, os Manuscritos do Mar Morto."® Ha indicios de que essa comu- nidade era de essénios, embora o tema gere controvérsias e alguns histo- riadores e arquedlogos discordem de tal teoria.'” De acordo com André Dupont-Sommer, no Regulamento da Comuni- dade (Serek Hayyakhad), conhecido como 0 Manual de Disciplina e encon- trado em Qumran, o termo usual € 0 “partido” (‘esah); a seita é 0 “Partido de Deus” e 0 termo ‘esah, que significava seita, foi o que possivelmente deu origem A palavra essénio, tanto que em grego as duas formas do mesmo 10 PROLOGO nome — essénoi e essaioi — tem em comum a raiz ess, que poderia represen- tar exatamente a raiz hebraica ‘es—. Daf que se pode interpretar que a pa- lavra essénio significaria “homens do partido”, os partisans, referidos pelos historiadores israelitas Filon (Philon) ¢ Flavio Josefo (Flavius Josephus).!? Segundo o tedlogo Geza Vermes, diretor do Oxford Forum for Qumran Research, “a identificagao do essenismo com a seita de Qumran perma- nece como a hipétese mais proyavel de todas que jé foram propostas”.2? Aceita essa interpretagao, poder-se-ia estabelecer o vinculo entre a seita da Alianga, como descrita nos documentos de Qumran, e os essénios.?! E Joao Batista, mesmo que nao fosse um essénio, parecia compartilhar os mesmos ideais e inspiragio mistica. Era um “quasi-essénio”, observou André Dupont-Sommer, em sua obra The Jewish Sect of Qumran and the Essenes, a0 ponderar que, embora 0 cristianismo nao fosse uma réplica do essenismo, era uma das muitas seitas “quasi-essénias” que aquele tem- po existiam na Palestina.?? Geza Vermes admitiu como provavel que a Igreja jovem tomou por modelo a comunidade essénia, “bem experiente na época”, uma comunidade que aguardava seu fim escatoldgico.* Ele salientou que “caracteristicas mais especificas, tais como a administragdo monarquica (i. €., os lideres tinicos, inspetores em Qumran, bispos nas comunidades cristas) e a pratica do comunismo religioso na rigida disci- plina da seita, pelo menos nos primeiros tempos da Igreja de Jerusalém, sugeririam uma ligacao causal direta”. Os cristéos, assim como os essénios, rejeitavam o Templo de Jerusa- lém. E as praticas rituais e comunitarias partilhadas pelos membros de Qumran apresentam, segundo o professor James VanderKam, da Univer- sidade de Notre Dame, “alguns paralelos impressionantes com 0s cristaos do Novo Testamento”.** Uma das principais caracteristicas dos essénios era a de que os recém-chegados davam seus bens e pertences aos superio- res, que também recolhiam os salarios ganhos por todos os sectarios.> Por sua vez, em Atos dos Apéstolos, ao descrever os eventos do primeiro Pentecostes, apés a crucificagao de Jesus, diz-se que “todos os que acredi- tavam estavam juntos e tinham as coisas em comum, vendiam suas pro- priedades e bens, distribuindo o produto entre todos, de acordo com as necessidades de cada um”. Os documentos de Qumran, encontrados cerca de 39 anos apés a pu- blicagdo de A origem do cristianismo, confirmam a andlise de Kautsky, baseada nos relatos de Flavio Josefo e Filon, relativa aos essénios, cujo W A ORIGEM DO CRISTIANISMO regime ele qualificou de comunidade de consumo (Gemeinsamkeit des Konsums), em que nao somente os alimentos, mas também as roupas, eram comuns a todos; porquanto o que era posse de um era posse de to- dos.?7 De acordo com Josefo, aqueles que aderiam a seita entregavam seus bens a comunidade (yakhad), “de tal forma que entre eles nao se vé absolutamente nem a humilhagao da pobreza nem o orgulho da riqueza, porquanto as posses se encontram reunidas, nao existindo para todos se- nao um tinico haver, como ocorre entre irm&os”. O Regulamento da Co- munidade ou Manual de Disciplina, de Qumran, um dos documentos do Mar Morto, descreve sua organizagao mais ou menos nos mesmos ter- mos que Josefo, Filon de Alexandria e Plinio, o Velho. Varias vezes alude & incorporagio das propriedades particulares dos membros a posse da comunidade e este tema € especialmente destacado na transcrigéo dos procedimentos de iniciagao a seita, Somente apés completar um ano in- teiro na comunidade e havendo sido decidido que poderia continuar, “suas propriedades ¢ ganhos serao entregues ao Tesoureiro da Congrega- ¢a0, que os registrard em suas contas, (mas) nao os gastard para a Con- gregacdo” e somente depois de passar, com éxito, por mais de um ano de provacio, “sua propriedade ser incorporada” aos bens da comunida- de.?8 A comunidade de bens era total, ao menos para os membros com- pletamente iniciados, e quaisquer fraudes relacionadas com a sua admi- nistragao eram punidas.” Ha muita similitude ¢ também diferengas em varios aspectos entre a literatura de Qumran e o Novo Testamento. Um dos manuscritos refere- e a uma comunidade da Alianga (berit), cujo carater era fundamental e essencialmente religioso e democratico, onde nao havia escravos e todas as medidas que afetassem a vida material e moral eram submetidas a voto? Os membros da Alianga formavam uma congregagao (‘edah), guiada por um personagem messianico, chamado de Mestre da Virtude ou Mestre da Justica (Moreh hazzedeq), que sofreu perseguigdo e marti- rio, E seus adeptos criam que o fim do mundo era iminente e somente se salvariam os que tivessem fé no Mestre, 0 prototipo exato de Jesus, em muitos aspectos. André Dupont-Sommer ressaltou, porém, que os ma- nuscritos de Qumran eram judeus, essénios, ¢ nao judeus-cristaos, razdo pela qual o Mestre da Justica nao podia ser identificado com Jesus, ape- sar das similitudes.3! Segundo ponderon, Jesus parecia ser uma “reencar- nagio” do Mestre da Justiga, se bem que a semelhanga nao fosse comple- 12 PROLOGO ta. Jesus foi crucificado em torno de 30 d.C., sob o dominio do prefeito romano Péncio Pilatos.* O Mestre da Justica morrera por volta de 65-63 a.C., durante o reinado do sacerdote judeu Aristébulo (Aristobulus). E, embora ele sentisse claramente as obrigacdes mais profundas, implicitas na Lei Mosaica, faltava-lhe, segundo Geza Vermes, “a genialidade de Je- sus, 0 judeu que conseguiu desvelar a esséncia da religiao como um rela- cionamento essencial entre os homens e entre homens ¢ Deus”.* Os paralelos que se podem tracar entre os manuscritos descobertos em Qumran e os Evangelhos sao varios. Muitos historiadores reconhe- cem que a seita judaica dos essénios preparou, imediata e diretamente, 0 caminho para o cristianismo e contribuiu para modelar a alma e 0 corpo da Igreja Crista.** H4 naturalmente espaco para muitas interpretacdes divergentes e conjecturas. Mas a scita dos zelotes, tudo indica, foi tam- bém incubada entre os essénios* e seus membros, na medida em que 0 jugo de Roma se fez mais opressivo, comecaram a empreender, no ano 48 a.C., uma campanha terrorista visando a encorajar a insurreigdo, me- diante o assassinato de legiondrios romanos e de judeus colaboradores, por sicarii, que se infiltravam nas cidades e os apunhalavam com a sica (adaga curva), ou sequestravam membros da guarda do Templo para pedir resgate, ou usavam yeneno em larga escala. Muitos dos atentados eram suicidas, porque os zelotes atacavam suas vitimas a luz do dia, no centro de Jerusalém, em seguida aos quais logo eram capturados e cruci- ficados ou queimados vivos.’” A legitimidade do terrorismo, quando ou- tras formas de protesto falhavam, foi ardentemente discutida, com refe- réncia ao papel dos zelotes e dos sicarios, que se insurgiram e promoveram feroz resisténcia contra o dominio de Roma.** Segundo Paul Johnson, possivelmente Pilatos desconfiou de que Jesus fosse um dos zelotes, ain- da mais porque alguns dos seus discipulos eram assim conhecidos, entre os quais Simao, o Zelote, e talvez o prdprio Judas, conhecido como Iskariot(e), possivelmente uma corruptela de sicarii e zelote.? Os zelotes também ensinavam a nao pagar tributos.*” A provocagSo que lhe foi feita e Jesus, evadindo, respondeu “dai a César o que é de César, e a Deus 0 que € de Deus”,*! reforga a hipétese levantada por Paul Johnson. Possi- velmente queriam que ele dissesse algo que o incriminasse. “Dai a César o que é de César”, se verdadeira a frase, nao significava necessariamente pagar o tributo aos romanos. E a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, onde ensinou publicamente no Templo, durante a Festa de Taberndculos,” 13 A ORIGEM DO CRISTIANISMO nao permite descartar de forma alguma a hipdtese de que ele estivesse 4 frente de uma sedigdo contra o jugo de Roma. Jesus manifestara sua ira contra a hipocrisia. Atacou os que faziam negécios com dinheiro dentro do Templo. E declarou: Nao penscis que vim trazer paz 4 terra; nao vim trazer paz, mas espada. Pois vim causar divisdo entre o homem e seu pai; entre a filha sua mae e entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serao os da sua prépria casa.*3 Estas palavras de Jesus podem ser interpretadas como incentivo a re- belido contra o Sinédrio, contra os sacerdotes do Templo e o dominio de Roma. Por mais submisso e gentil que em algumas passagens dos Evange- Ihos Jesus possa parecer, ele expressava ocasionalmente ideias completa- mente distintas, Fazem supor que fora efetivamente um rebelde e 0 reino de Deus, o reino escatolégico por ele anunciado, afigurava-se como inci: tamento a revolta, Jesus falava por meio de pardbolas, com frases cripti- cas € enigindticas, ¢ a explicagio mais comum é a de que ele se julgava 0 Messias, 0 servo de Deus esperado para destruir 0 dominio de Roma e restaurar o reino de Israel, e foi crucificado para desencorajar qualquer tentativa de insurreigao.** Kautsky observou que tal presungao, a de que Jesus fora de fato um rebelde, nao é somente a tinica que permite esclare- cer certas passagens dos Evangelhos, mas também a tinica completamente de acordo com 0 carater da época e da regido, a Palestina sob o dominio de Roma, que suportava a autonomia da comunidade judaica apenas para manter sob controle seu nacionalismo.** Alguns scholars cristaos reco- nhecem que houve um elemento politico no julgamento e execugao de Jesus. De fato, conforme Paul Johnson ressaltou, a crucificagdo era a “most degrading form of capital punishment”, reservada para rebeldes, escravos amotinados e outros inimigos da sociedade. *” E, apesar de que os sacer- dotes fariseus e saduceus temessem a sua pregagao, Jesus nado foi morto a pedradas, por meio de lapidagio, como a lei judaica determinava. Foi crucificado, como lider de uma insurreigdo frustrada, de conformidade com o procedimento de Roma. Assim, tanto a morte na cruz, forma usa- da pelos romanos para executar os rebeldes, quanto a inscrigio I.N.R.1. (lesus Nazarenus Rex Iudaeorum)* indicaram que a condenagao de Jesus 14 PROLOGO fora por crime de perduellio, i. e., sedicao contra Roma, species atrocissi- ma criminis laesa maiestatis,* ao proclamar-se Messias (Mashiyakh),® rei dos judeus. O “ungido”, o rei, descendente de David, sempre fora espe- rado pelos judeus e chamado de Messias. E, de acordo com os Evange- Thos de Mateus e Lucas, Jesus era descendente da casa real de David e aparentemente foi percebido nao como um simples Ifder religioso, ou mesmo um pequeno rebelde, mas, de fato, como real ameaga A elite diri- gente ¢ a0 dominio de Roma, um revoluciondrio, clamando pelo trono de Israel. Nao sem razao Kautsky assinalou que a historia da paixao de Nosso Senhor Jesus Cristo é, no fundamental, apenas um testemunho da historia da paixao do povo judeu.5' E 0 fato de que Jesus foi crucificado como rebelde contra Roma, conforme ressaltou o professor S. G. F. Bran- don, € ironicamente 0 que ha de mais certo sobre a existéncia de Jesus, a prova mais consistente de sua historicidade, registrada por Tacito, ao referir-se 4 perseguicao dos cristéos promovida por Nero: O autor desse nome, Cristo, fora executado pelo procurador Péncio Pi- latos na era do imperador Tibério; e a perigosa supersticao, reprimida pelo momento, irrompeu novamente, nao s6 na Judeia, origem desse mal, mas também na cidade (Roma), onde tudo o que é atroz e vergonhoso conflui de todas as partes ¢ é venerado.® (Tacitus, Annales XV, 44, 2-5.) Nietzsche, mesmo a avalid-lo de um Angulo adverso, nao podia tam- bém deixar de concluir que Jesus era um revoluciondrio, Nao viu, no en- tanto, contra que ou contra quem seria a rebeliao de que Jesus, “com ra- 240 ou sem razio”, fora considerado organizador, a nao ser contra a igreja judaica, o Sinédrio. Para Nietzsche tratava-se de uma rebeliao con- tra “os bons e os justos”, contra a hierarquia da sociedade — ndo contra a respectiva corrupgao, mas contra a casta, 0 privilégio, a ordem, a fér- mula; era a descrenca nos “homens superiores”, 0 #40 proferido contra tudo o que fosse sacerdote e tedlogo. A hierarquia, que assim foi atacada, embora apenas momentaneamente, era 0 alicerce lacustre sobre a qual o povo judeu, em meio da “Agua”, ainda conseguia sobreviver — era a sua derradeira possibilidade, aflitivamente conquistada, de permanecer, o re- siduo da sua existéncia politica peculiar: um ataque contra ela era um ataque contra o mais profundo instinto nacional, contra a vontade de vi- ver de um povo, a mais tenaz nunca vista na Terra. Jesus, conforme Nie- 15 A ORIGEM DO CRISTIANISMO tzsche o qualificou, era um “heilige Anarchist” (santo anarquista), que in- citava a populaga, os pecadores e exclufdos, os Tehandala (termo hinduista para designar a casta inferior, paria), entre os judeus, a opor-se 4 ordem vigente — com uma linguagem que, caso os Evangelhos fossem confia- veis, ainda hoje levaria 4 Sibéria*# —; era um criminoso politico, tanto quanto os criminosos politicos eram possiveis em uma comunidade ab- surdamente apolitica. Isto o levou a cruz. A prova estd na inscrigao INRI (Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum) afixada na cruz, afirmou Nietzsche, a ressaltar que Jesus morreu pela sa propria culpa, e nao ha qualquer ra- 240 para se pretender, mesmo que se tenha dito muitas vezes, que hou- vesse morrido pelas culpas dos outros.°$ Nao 6, entretanto, na personalidade de Jesus, senao na criagao rela- cionada com seu nome, a comunidade crista, que Kautsky busca a razio pela qual sua atividade messianica nao teve sorte similar 4 de tantos ou- tros beatos e pregadores que aquele tempo apareceram ¢ foram esqueci- dos. Nao foi a fé na ressurreicgao do Crucificado o que criou a comunida- de crista, mas foi a forga e o vigor da comunidade crista que adensaram a fé na ressurreigao do Crucificado. E, como dizia Soren Kierkegaard (1813-1855), a f€ nao se explica, pois esta além da razdo, A fé 6 0 salto no absurdo. Este salto representa o reconhecimento do irracional, como escandalo e paixdo, o paradoxo e 0 risco da existéncia. * Exige a crucifi- cagao da compreensao. E o principal paradoxo, Kierkegaard argumenta- va, estd na doutrina da Igreja, segundo a qual Jesus era inteiramente divi- no e inteiramente humano, o paradoxo do Deus-Homem. Este paradoxo do Deus-Homem, i. e., de que o Deus eterno, infinito, transcendente, tornou-se simultaneamente o ser humano, temporal e finito, que Jesus encarnou, constitui, segundo Kierkegaard, uma ofensa a razao: 0 parado- xo da fé néo autoriza mediacao dentro do universal, nao pode reduzir-se anenhum raciocinio, porque a fé comega precisamente onde a razio aca- ba. E qualquer pretensio de solucionar este paradoxo constitui uma ten- tativa ou de objetivar o que nao pode ser conhecido objetivamente — porque tudo se transforma, é e nado é — ou de desprezar a fé como 0 absurdo, e procurar conhecer algo de modo absoluto, o que nao € possi- vel. Kierkegaard mantém os termos da contradigao dialética — tese e an- titese — inconciliavelmente separados, antagonicos. A contradigao nao se resolve, Nao hd sintese. O que ocorre € 0 salto no absurdo, 0 paradoxo da fé, a fé € paixdo, e Deus, 0 absoluto, nao cabe na razao. 16 PROLOGO Jesus, decerto, s6 pode ser historicamente compreendido e racional- mente explicado fora da fé, E foi o que Kautsky tratou de fazer em A ori- gem do cristianismo. Pesquisou ¢ estudou Jesus, o homem, o Jesus histé- rico, © Messias, e avaliou-o ndo apenas como um rebelde, disposto a promover um levante contra Roma e o Sinédrio, mas como o represen- tante ¢ lider, quigd o fundador, de uma organizag3o que lhe sobreviveu e continuou a aumentar em niimero e forca, com a esperanca escatolégica, alicergada na fé, apés a terrfvel catdstrofe que culminou na destruicao de Jerusalém, em 70 d.C. Os judeus foram 0 tinico povo no Oriente Médio que empreendeu uma ofensiva em larga escala contra o Império Romano, No ano 67 dc, a cidade de Gamla, nas colinas de Gola, opés-se as legides de Roma, que marchavam contra Jerusalém, e 4.000 habitantes foram massacrados. E cerca de 5.000 judeus suicidaram-se, pulando do alto dos abismos, a fim de escapar a brutalidade dos romanos. Essa catdstrofe nacional possivel- mente modelou os sentimentos as ideias da seita em Qumran. As escava- goes mostram que o monastério se tornou 0 centro da resisténcia, durante 4 guerra, entre 66 e 70 d.C., quando a 10* Legifo de Roma, comandada por Vespasiano, comegou a sitiar Jerusalém, cuja populacao havia tiplica- do, em virtude da afluéncia de refugiados de outras cidades destruidas, O ataque principiou com um bombardeio de catapultas e durou cerca de dois meses, até que, finalmente, os romanos derrubaram as muralhas e in- cendiaram a cidade, massacrando milhares de judeus. A energia popular, virtualmente, desapareceu, na Palestina. A destruigdo de Jerusalém, submetendo os judeus ao jugo de Roma, afigurou-se para os adeptos da Alianca como o fim das idades, 0 preli- dio do apocalipse e da vinda do Messias, o Mestre da Justiga. Esse tré- gico episédio inaugurou nova era na historia da Palestina, E assim, des- de a destruigao de Jerusalém, o cristianismo, cada vez mais, deixou de ser um partido politico dentro do judafsmo, com praticas comunitarias, coletivistas, baseadas nas tradigdes dos essénios e zelotes, e se tornou um partido politico dos gentios, externo e hostil ao judaismo. O Impé- tio Romano, tolerante com o judaismo ¢ o helenismo, sentiu-se, porém, ameagado pelo cristianismo, cujos aderentes nao aceitavam a divindade reivindicada pelos imperadores Calfgula, Nero e Domiciano, e forma- vam comunidades diferentes, A perseguigao contra os crist’ios, movida pelos imperadores, nos dois primeiros séculos, deveu-se em larga medi- 17 A ORIGEM DO CRISTIANISMO da ao fato de que renunciavam a sua familia e ao seu pats, estavam liga- dos entre si por um indissoltivel lago de unio com uma sociedade pe- culiar, a qual em toda parte assumia um carater diferente do resto da humanidade.*” A primitiva comunidade cristdo-judaica empenhava-se em combinar a observancia da Lei Mosaica com a Nova Alianga. Seus membros nao eram menos adversos aos negdcios do que aos prazeres do mundo.* Entretan- to, na medida em que o cristianismo mais difundia os novos ensinamen- tos nas comunidades judaicas fora da Palestina, mais ganhava em seu imenso poder de propaganda, se despojava de suas peculiaridades judai- cas, cessava de ser nacional e se fazia de natureza predominantemente so- cial. Edward Gibbon ponderou que o judafsmo era uma religido admira- velmente assentada para a defesa, mas nao para a conquista.°? Nao podia tornar-se uma religido mundial sem mudar seus ensinamentos e organiza- G40, as caracteristicas originalmente tribais, em que os sacerdotes eram supostos descendentes da tribo de Aardo; os atendentes do Templo, de Levi; ¢ os reis e governantes, de David.” O filésofo alemao Ludwig Feuerbach escreveu que Israel era a defini- cao histérica da natureza da consciéncia religiosa, que, porém, era afeta- da pela barreira de um interesse especial, o interesse nacional. Faltava cair essa barreira para surgir a religiao crista. “O judafsmo € 0 cristianis- mo mundanizado; o cristianismo € 0 judafsmo espiritual” — definiu Feuer- bach, acrescentando que “a religido crista é a religido judaica libertada do egoismo nacional, mas certamente uma reli efeito, segundo Kautsky, somente o Messias social, nao o Messias nacio- 0 distante, nova”.6! Com nal, podia transcender os limites do judaismo, E observagio semelhante fez o historiador britanico Paul Johnson, para quem o préprio Jesus nao foi um judeu nacionalista. Pelo contrario, foi um judeu universalista.* Mas, ao afastar-se do judaismo, perdendo seu cardter nacional, o cristia- nismo dos gentios tornou-se submisso e servil. O coletivismo das primiti- vas comunidades cris virtualmente desapareceu, embora sempre vies- sem a ocorrer tentativas de resgataé-lo e que foram perseguidas como heresias. E, conforme Kautsky assinalou, foi a comunidade crist4, nao 0 comunismo cristao, ante a qual, finalmente, os imperadores romanos se ajoelharam. Kautsky equivocou-se, entretanto, ao comparar, na parte final da obra, 0 destino do movimento cristio com o destino do movimento social-de- 18 PROLOGO mocrata (socialista), na Europa, tentando demonstrar que havia grandes diferengas entre os dois e, consequentemente, nao havia possibilidade de que as mesmas deformagoes, ocorridas no cristianismo oficial, se reprodu- zissem no movimento social-democrata. Segundo ele, 0 movimento so- cial-democrata nao sofreria as mesmas contradicGes e desvios que se pro- cessaram no cristianismo e possibilitaram o seu reconhecimento e estabelecimento como religiao de Estado, por Constantino, no século IV. Kautsky, sob este aspecto, errou. Havia muito de utopia — e de pro- paganda — na sua avaliagdo e previsdo, que nao se confirmaram. Pelo contrario, a social-democracia, cerca de seis anos depois da publicagao de A origem do cristianismo, dividiu-se. Os partidos social-democratas e so- cialistas apoiaram seus respectivos governos na guerra de 1914-1918. Dividiu-se, em consequéncia, e algumas faccées, a comegar na Riissia, formaram os partidos comunistas. Os social-democratas, gradativamen- te, amoldaram-se ao sistema capitalista, perderam o primitivo cardter re- belde, revoluciondrio, em oposigio ao Estado, e converteram-se em par- tidos do Estado, dentro do Estado e pelo Estado. Os comunistas também. Mas a trdgica semelhanga com a Igreja da Idade Média configurou-se na Unido Soviética, onde o partido comunista (bolchevique) se tornou o préprio Estado, instituiu a ideologia, chamada entao de marxista-leninis- ta, como ideologia oficial, ou melhor, como religiao de Estado, e implan- tou, a partir sobretudo dos anos 30 do século XX, seu Santo Officio, a in- quisicao, ¢ produziu milhares de vitimas, ao longo da tirania de Stalin, 0 Sumo Pontifice, chamado “guia genial de todos os povos” e “sol que ilu- mina a humanidade”. A evolucao e o destino da social-democracia, bem como dos seus de- tivados, os partidos comunistas, foram muito similares 4 evolucdo e ao destino do cristianismo, a Igreja, embora em outras condigées histéricas. Tanto um como outro perderam suas caracterfsticas originais. St. Leon, inverno de 2005/2006 19 A ORIGEM DO CRISTIANISMO NOTAS 1. 10. 11, 12. 13. 14. 15. 16. “Fiir uns also ist Sozialismus ohne Demokratie undenkbar. Wir verstehen unter dem modernen Sozialismus nicht blo gesellschaftliche Organisierung der Produktion, sondern auch demokratische Organisierung der Gesell- schaft. Der Sozialismus ist demnach fiir uns untrennbar verbunden mit der Demokratie. Kein Sozialismus ohne Demokratie.” K. Kautsky, Die Diktatur des Proletariats, Berlim, Dietz Verlag, 1990, p. 11-12. Id., ibid., p. 33. Id., ibid., p. 56. Id., ibid., p. 33-83. “(...) Staatliche Organisierung der Produktion durch eine Biirokratie oder durch die Diktatur einer einzelnen Volksschicht bedeutet nicht Sozialismus.” Id., ibid., p. 36. Id., ibid., p. 36-37. Id., ibid., p. 37. Id., ibid., p. 11. F, Engels,“Soziales aus Rufland” in Marx e Engels, Werke, Berlim, Dietz Verlag, 1976, Band 18, p. 556-557. V. Lenin, “La Revolucién Proletaria y el Renegado Kautsky” in Obras Esco- gidas, Moscou, Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1948, tomo Il, p. 346-539. Id, ibid., p. 449. Id., ibid., p. 482. Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, Londres, Penguin Books, vol. I, p. 508. Id., ibid., p. 508. Friedrich Engels, “Zur Geschichte des Urchristentums” in Marx e Engels, Werke, Band 22, Berlim, Dietz Verlag, 1977, p. 463. Paul Johnson, A History of the Jews, Nova York, Harper Perennial, 1988, p. 126. Otto Betz, “Joao Batista era essénio” in Hershel Shanks (org,), Para com- preender os Manuscritos do Mar Morto, Rio de Janeiro, Imago, p. 218-219. Ygael Yadin, “O Pergaminho do Templo — O mais longo dos Manuscritos do Mar Morto”, ibid., p. 114-115. Robert Eisenman ¢ Michael Wise, Jesus und die Urchristen — Die Qumran- Rollen entschliisselt, Munique, C. Bertlsmann Verlag, 1993, p. 280-281. Os. arqueélogos israclenses Yitzhak Magen e Yuval Peleg, apés dez temporadas de escavagdes em Qumran, em julho de 2004 romperam 0 consenso aca- démico segundo o qual os essénios que viveram naquela localidade nao 20 18. 19, 20. 21. PROLOGO cram ascetas, mas présperos agricultores ligados a0 comércio internacional Os Manuscritos do Mar Morto teriam sido escritos por sacerdotes de Jeru- salém, que os esconderam das legides de Roma, no século | d.C., nas grutas de Qumran, Entretanto, Plinio, o Velho, fornece algumas informagoes que indicam ser de essénios da comunidade localizada em Qumran: “Na parte ocidental do Mar Morto os essénios se afastam das margens por toda a ex- tensio em que estas sao perigosas. Trata-se de um povo tinico em seu género cadmirvel no mundo inteiro, mais que qualquer outro: sem nenhuma mu- lher e tendo renunciado inteiramente ao amor; sem dinheiro e tendo por Unica companhia as palmciras. Dia apés dia esse povo renasce em igual nti- mero, gragas a grande quantidade dos que chegam; com efeito, afluem aqui em grande ntimero aqueles que a vida leva, cansados das oscilagdes da sorte, a adotar seus costumes (...) Abaixo desses ficava a cidade de Engaddi, cuja importancia s6 era inferior a de Jericé por sua fertilidade e seus palmeirais, mas que se tornou hoje um montao de rufnas. Depois vem a fortaleza de Massada, situada num rochedo, nao muito distante do Mar Morto.” A. Dupont-Sommer, The Jewish Sect of Qumran and the Essenes — New Studies on the Dead Sea Scrolls, Nova York, The Macmillan Company, 1956, p. 62-63, Em nenhum dos manuscritos publicados encontra-se a pa- lavra essénio. Outra hipétese etimoldgica, mais usual, é a de que essénio deriva do hebraico khassfdim (O"77OM, piedosos), em aramaico khassayya, em grego essaioi (Ecoaiot) ou essénoi (Eoonvoi), daf essénios. Id, ibid., p. 62-64. Geza Vermes, Os Manuscritos do Mar Morto (edigao revista e ampliada), Sao Paulo, Mercuryo, 2005, p. 77. De acordo com Flavio Josefo (Iotogia Tovdaixod noAéuou 7006 ‘Papaiovs Bellum Iudaicum, ll, VII, 119), existiam “entre os judeus trés escolas filosGficas: os adeptos da primeira so os fariseus; os da segunda, os saduceus; os da terceira, que apreciam justamente praticar uma vida vene- ravel, sio denominados essénios: so judeus pela raga, mas, além disso, es- vo unidos entre si por uma afeicdo mitua maior que a dos outros”. Tam- bem Filon, de Alexandria, diz em Quod omnis probus liber sit, § 75, que “a Siria Palestina, que ocupa uma parte importante da populosa nagao dos ju- deus, nao é, também ela, estéril em virtude. Alguns deles, que somam mais de 4.000, sao denominados essénios”. Esse nimero é confirmado por Fla- vio Josefo nas Tovbairi) daxatoAoyia (Antiquitates Iudaicae) XVII, 1, 20: “Sdo mais de quatro mil homens a se comportarem dessa maneira.” Os ar- quedlogos admitem que viveram em Qumran de 150 a 200 pessoas, Em dois séculos de existéncia da comunidade, ali devem ter vivido cerca de 21 22s 23. 24, 25. 26. 27. 28. 29. A ORIGEM DO CRISTIANISMO 1.200 pessoas. As ferramentas encontradas e as instalagdes escavadas fazem presumir que cles cultivaram a terra — em ‘Ain Feshka, ao sul das ruinas —, faziam cerimica, curtiam peles e copiavam manuscritos. Comiam, rezavam ¢ decidiam juntos. Os essénios, porém, nao viviam apenas em Qumran. De acordo com Flavio Josefo, eles nao tinham “uma cidade tinica, mas em cada cidade compéem com alguns outros uma coldnia”. Os Fragmentos Sado- quitas, também conhecidos como Documento de Damasco, confirmam que muitos ess¢nios habitavam cidades ¢ aldeias da Palestina, em acampamen- tos. Esses fragmentos da literatura hebraica ¢ judaica, da ordem de 140.000, foram descobertos na sinagoga de Ben Ezra, no Cairo, por Salomon Sche- chter, por volta de 1896-1897, ou seja, 50 anos antes da descoberta dos do- cumentos do Mar Morto. $40 chamados de Documentos Sadoquitas (Za- ddikim), dado que a seita, que tinha caracterfsticas idénticas 4s de Qumran, era guiada por sacerdotes levitas descendentes do sumo-sacerdote Zadoq, um dos ramos da familia de Aarao. Schechter inferiu que os fragmentos por ele encontrados eram remanescentes daquela seita. Id., ibid., p. 148-150. Geza Vermes, Os Manuscritos do Mar Morto (edigao revista ¢ ampliada), Sao Paulo, Mercuryo, 2005, p. 32-33. James C. VanderKam, “Os Manuscritos do Mar Morto € 0 Cristianismo”, ibid., p. 198-199, 202-203. Geza Vermes, Os Manuscritos do Mar Morto (edigio revista ¢ ampliada), Sao Paulo, Mercuryo, 2005, p. 76. Atos dos Apéstolos I, 44-45, cf. Atos dos Apéstolos IV, 32. Karl Kautsky, Der Ursprung des Christentums. Eine historische Untersu- chung, Stuttgart, Verlag Von J. H. W. Dietz Nachf, 1908, p. 322-325. James C. VanderKam, “Os Manuscritos do Mar Morto e 0 Cristianismo”, ibid., p. 202-203. A. Dupont-Sommer, The Jewish Sect of Qumran and the Essenes — New Studies on the Dead Sea Scrolls, Nova York, The Macmillan Company, 1956, p. 64-65 Id., ibid., p. 77. Id., ibid., p. 160-163. Id., ibid., p. 163. Geza Vermes, Os Manuscritos do Mar Morto (edigio revista e ampliada), Sao Paulo, Mercuryo, 2005, p. 35-36 A. Dupont-Sommer, The Jewish Sect of Qumran and the Essenes — New Studies on the Dead Sea Scrolls, Nova York, The Macmillan Company, 1956, p. 164-165. 22 35. 36. 375 38. 39, 40. 41. 43. 44, 45. 46. 47. 48. 49, PROLOGO Paul Johnson, History of Christianity, Londres, Weidenfeld e Nicolson, 1976, p. 19, Karl Kautsky, Der Ursprung des Christentums, Stuttgart, J. H. M. Dietz Nachfolger, Zwolfe Auflage, 1908, p. 316-322. Robert A. Pape, Dying to Win. The Strategic Logic of Suicide Terrorism, Nova York, Random House Trade Paperbacks, 2005, p. 11-12 Paul Johnson, History of the Jews, Nova York, Harper Perennial, 1988, p. 122-123, Segundo outra hipétese, o termo Iskariot(es) deriva do hebraico, [sh-Qe- rioth, “homem de Qerioth”. Paul Johnson, History of Christianity, Londres, Weidenfeld e Nicolson, 1976, p. 31. Lucas, XX, 20-25. O taberndculo era onde Deus habitava no meio de seu povo, dele recebia adoracio e sacrificio e com ele falava, no perfodo da Antiga Alianga. Este € o tema de Taberndculos: Deus habitando com Seu povo. A Festa do Ta- berndculo era uma das trés ocasides em que se dava a peregrinagio em massa, de todo o pais, para Jerusalém. Mateus, X, 34-36, Morton Smith, The Secret Gospel, Clearlake, California, The Dawn Horse Press, 1984, p. 86. Karl Kautsky, Der Ursprung des Christentums, Stuttgart, J. H. M. Dietz Nachfolger, Zwilfe Auflage, 1908, p. 390-391. Vide também Paul John- son, History of the Jews, Nova York, Harper Perennial, 1988, p. 128-130. S. G. FE. Brandon, Jesus and the Zealots, Nova York, Charles Scribner's Son, 1967, p. 46. Paul Johnson, History of Christianity, Londres, Weidenfeld e Nicolson, 1976, p. 29. Jesus, 0 nazareno, rei dos judeus. Em Roma, ja nos primeiros tempos da Republica, considerava-se perduellio todo ato que atentasse contra o Estado ou a paz, e seu autor (perduellis) era levado perante 0 povo (populi indicio), ¢ executado, se fosse condenado. Lucio Cornélio Sila (Lucius Cornelius Silla, 138-79 a.C.), durante a sua di- tadura (82-79 a.C.), decretou a Lex Cornelia de Maiestate, regulando o procedimento penal contra 0 crimen maiestatis, de modo a proteger tanto a pessoa do governante como as instituigdes politica, punindo quem exe- cutasse, colaborasse ou planejasse atentado contra os magistratus Populi Romani ou contra quem tivesse imperium ou potestas. Em 70 a.Cy a legis- lagdo de Sila foi abolida. E Julio César, provavelmente, foi quem promul- 23 50. 31, 52. 53. 54. 55s 56. 57. 58. 60. 61. 62. A ORIGEM DO CRISTIANISMO gou, por volta de 46 a.C., a Lex Iulia de Maiestate, para punir os delitos contra 0 povo romano e sua seguranga, incluindo alta traigio, sedigao, de- sergao do exército, ataques criminosos contra magistrados e outros. Mas a Lex Iulia de Maiestate nao foi aplicada contra Cina, Bruto, Cassio, Cimber e outros assassinos de Jtilio César. Como sempre, a eficacia da lei dependeu da correlagao de forgas politicas. A palavra hebraica Mashiyakb (I°W}), também existente em aramaico (Meshikha), é transcrita para o grego como messias; porém a palavra grega para “ungido” é christos, e € interessante que fosse o titulo em grego, ¢ nao aquele em hebraico, 0 que foi adicionado ao nome de Jesus. Paul Johnson, A History of the Jews, Nova York, Harper Perennial, 1988, p. 124-125. Karl Kautsky, Der Ursprung des Christentums, Stuttgart, J. H. M. Dietz Nachfolger, Zwilfte Auflage, 1908, p. 432. S. G. F. Brandon, Jesus and the Zealots, Nova York, Charles Scribner’s Sons, 1967, p. 46. Auctor nominis eius Christus Tiberio imperitante per procuratorem Pon- tium Pilatum supplicio adfectus erat; repressaque in praesens exitiabilis su- perstitio rursum erumpebat, non modo per Iudaeam, originem eius mali, sed per urbem etiam, quo cuncta undique atrocia aut pudenda confluunt celebranturque. Nietzsche publicou Der Antichrist (O anticristo), em 1888, época em que os revoluciondrios russos eram deportados para a Sibéria. Friedrich Nietzsche, Der Antichrist in Friedrich Nietzsche. Gesammelte Werke, Bindlach, Gordon Verlag GmbH, 2005, p. 1116-1117. Soren Kierkegaard, Fear and Trembling, Londres, Penguin Books, 2003, p. 95-108. Kierkegaard, 1967, p. 82-99, p. 164-165. Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, Londres, Penguin Books, vol. I, p. 521. Id,, ibid., p. 481. Id., ibid., p. 449. Paul Johnson, The History of Christianity, Londres, Weidenfel e Nicolson, 1976, p. 13-14. “Das Judentum ist das weltliche Christentum, das Christentum das geistli- che Judentum. Die christliche Religion ist die vom Nationalegoismus gerei- nigte jtidische Religion, allerdings zugleich eine neue, andere Religion.” Ludwig Feuerbach, Das Wesen des Christentums, Leipzig, Verlag Von Philipp Reclam, s/d, p. 200. Paul Johnson, A History of the Jews, Nova York, Harper Perennial, 1988, p. 125. 24 Introdugao O cristianismo e as questdes da Biblia sio temas que hd muito tempo me interessam, J& se passaram 25 anos desde que colaborei com um artigo para Kosmos sobre Die Entstehung der biblischen Urgeschichte (S urgimen- to da pré-histéria bfblica), e dois anos apds haver escrito outro para Die Neue Zeit sobre a origem do cristianismo. E este um velho amor para o qual novamente volto. A oportunidade foi criada pela necessidade de pre- parar a segunda edigao de meu livro Vorlaufer des Sozialismus (Precursores do socialismo).' As criticas ao livro anterior, que pude ler, apontaram erros, principal- mente na introdug3o, na qual fiz um breve esboco do comunismo no cristianismo primitivo: segundo essas crfticas, minha opiniao nao resisti- tia aos novos resultados da pesquisa. Pouco tempo depois, Gdhre* e outros proclamaram que ja estava su- perada a opiniao de que nada se poderia dizer de concreto sobre a perso- nalidade de Jesus de que o cristianismo poderia ser explicado sem refe- réncia a ela— opiniao primeiro defendida por Otto Bauer’ e depois aceita €m seus pontos essenciais por Franz Mehring* e formulada por mim des- de 1885. Por essa razio, nao quis lancar nova edigao de meu livro, publicado havia 30 anos, sem outro estudo, fundamentado na literatura que ultima- mente aparecera sobre 0 cristianismo. A conclusao a que cheguei, com esses estudos, foi a de que nada tinha de revisar. As tiltimas pesquisas, entretanto, abriram-me novas perspecti- vas e deram sugest6es para ampliar minha introdugao Vorldufer (Precur- sores), transformando-o em um noyo livro, Naturalmente nao pretendo haver esgotado 0 assunto, que é gigantes- co. Estou satisfeito se contribuir para a melhor compreensao daquelas paginas do cristianismo, que se me afiguraram como as mais decisivas do ponto de vista da concepgao do materialismo histérico, 25 A ORIGEM DO CRISTIANISMO Nao posso comparar meus conhecimentos sobre as questées da hist6- ria religiosa e da teologia com os daqueles que dedicaram toda a sua vida a tais estudos. Escrevi este livro nas poucas horas livres que me permiti- ram minhas atividades de redagao e politicas, em uma época em que os acontecimentos tomavam a atengao de todos os que participavam das lu- tas de classes do presente, i. e., entre o infcio da Revolugao Russa de 1905 ea eclosio da Revolugao na Turquia, em 1908. Nao obstante, talvez a intensa participagdo nas lutas de classe do pro- letariado fosse o que me permitiu aquela percepgao da esséncia do cristia- nismo, que pode parecer inacessfvel aos professores de teologia e de his- toria religiosa. Jean-Jacques Rousseau disse uma vez em sua Juli Entendo que é uma loucura querer estudar a sociedade (/e monde) como simples observador, Quem deseja apenas observar nada obser- vara, uma vez que sendo inttil no trabalho e um estorvo nas brinca- deiras, nao esté em nenhum dos dois lados. Observamos a agao dos demais na medida em que nds mesmos atuamos. Na escola do mun- do, como na do amor, temos de comegar com o exercfcio pratico da- quele que desejamos aprender.® Este ensinamento, aqui restrito ao estudo do homem, pode ser amplia- do e aplicado & pesquisa de todas as coisas. Em parte alguma, conseguir- se-4 muito mais através da simples observagao, sem pratica. Isto é valido inclusive para o que se refere 4 pesquisa de objetos tio remotos como as estrelas, Onde estaria a astronomia se ela se restringisse a simples observa- goes, se no as ligasse A praxis: o telesc6pio, anélises espectrais e fotogra- fias? Este principio é ainda mais valido no que se refere as coisas terres- tres, com as quais a praxis nos levou a um contato mais fntimo que a mera observagao. O que aprendemos com a simples observag’o das coisas € in- significante comparado com 0 que aprendemos por meio da experiéncia. CO leitor lembrar-se-4, sem diivida, da enorme importancia que o método experimental alcangou nas ciéncias naturais. Experiéncias nao podem ser feitas como meio de conhecimento da sociedade humana. A atividade pratica do pesquisador, de qualquer modo, é menos importante; as condigdes de seu sucesso sao similares as condigdes de uma fecunda experiéncia. Estas condigdes sao um conhe- 26 INTRODUGAO cimento dos mais importantes resultados obtidos por outros pesquisa- dores e da intimidade com um método cientifico, que aguca a avaliagao dos pontos essenciais de cada fendmeno, possibilitando distinguir 0 es- sencial do nao essencial e descobrindo o elemento comum das diversas experiéncias, O pensador dotado de tais condigées ¢ estudando um campo em que trabalha, ativamente, tera mais facilidade de chegar a resultados que se- riam inacessfveis se ele fosse mero observador. Isto é valido, particularmente, para a histéria, Um politico militante, se dotado de suficiente preparacdo cientifica, entendera com mais facili- dade a histéria polftica, na qual poder orientar-se melhor do que o estu- dioso de gabinete, que nunca teve o menor conhecimento pratico das forcas motrizes da politica. E o pesquisador ser favorecido por sua ex- periéncia, se se trata da pesquisa do movimento social da classe em que ele mesmo atua e cujo cardter peculiar muito conhece. Esse conhecimento fora até agora favordvel, quase exclusivamente, As classes possuidoras, que monopolizam a ciéncia. Os movimentos das clas- ses inferiores da sociedade encontraram até 0 momento poucos estudio- SOS que Os compreendiam. O cristianismo, no comego, era, sem dtivida, um movimento de cama- das sociais empobrecidas, dos mais variados tipos, que podem ser denomi- nadas pelo termo comum de “proletarios”, sempre que esta expressdo nao seja entendida como designativa apenas dos trabalhadores assalariados. Um homem familiarizado com 0 moderno movimento do proletariado e que conhece 0 elemento comum de suas fases, nos diversos pafses, em vir- tude de sua ativa participagdo; um homem que aprendeu a viver em meio dos sentimentos e aspiracdes do proletariado, lutando ao seu lado, pode alegar que esta habilitado para entender muitas coisas sobre os primérdios do cristianismo mais facilmente que os intelectuais que somente de longe viram o proletariado. Entretanto, embora o militante politico, com preparo cientifico, te- nha mais vantagem em muitos outros aspectos do que o homem apenas instrufdo através dos livros, esta vantagem se acha frequentemente preju- dicada pela tentagao mais forte a que esta exposto, i. e., a de permitir que sua objetividade seja perturbada. Dois perigos principais ameagam mais os trabalhos histéricos dos militantes politicos do que aqueles dos pesqui- sadores: em primeiro lugar, podem tentar modelar o passado inteiramen- 27 A ORIGEM DO CRISTIANISMO te de acordo com a imagem do presente e, em segundo, buscar ver 0 pas- sado & luz das necessidades da politica atual. Nos, socialistas, na condigao de marxistas, contamos, entretanto, com uma excelente protecao contra esses perigos na concepgio materialista da hist6ria, estreitamente vinculada ao nosso ponto de vista proletario. A concepgio tradicional da histéria focaliza os movimentos politicos somente como a luta para implantar determinadas instituigdes polfticas — monarquia, aristocracia, democracia etc. — representadas, por sua vez, como o resultado de aspiracOes éticas especificas. Porém, se nesse ponto se permanece, se nao se buscam os fundamentos dessas ideias, as- piragGes e instituigdes, entao se pensa que elas sofrem mudangas superfi- ciais, no correr dos séculos, mas 0 nticleo permanece 0 mesmo; que toda a hist6ria é um esforco ininterrupto para alcangar a liberdade e igualda- de, que enfrentam periodicamente a opressao e a desigualdade, que nun- ca se realizam, mas nunca se destroem completamente. ‘Todas as vezes que os combatentes da liberdade e da igualdade alcan- ¢aram a vit6ria, transformaram-na sempre em nova base para a opressao ea desigualdade. Todo o curso da histéria se apresenta assim como um ciclo que sempre volta ao seu comego, eterna repetigao do mesmo drama, sem um avango real para a humanidade. Quem defender tal ponto de vista sentir-se-4 sempre inclinado a re- presentar o passado, com a imagem do presente e, quanto mais conhecer o homem como ele agora é, mais tratar4 de representd-lo com o modelo do presente. Contraria a essa concepgio da histéria, hi outra que nao se satisfaz com a consideragio das ideias histéricas, mas tenta descobrir suas causas, que residem nos fundamentos da sociedade. Eles esto sempre no modo de produgao, que por sua vez depende de varios fatores, mas, so- bretudo, do nivel de desenvolvimento técnico. Tao logo iniciamos a pesquisa dos recursos técnicos e do modo de produgao da Antiguidade, abandonamos o pressuposto de que a tragico- média eternamente se repete no cendrio mundial. A economia dos seres humanos mostra uma continua evolugio de formas inferiores para for- mas mais altas; esta evolucio, entretanto, nao é de modo algum ininter- rupta ou uniforme em sua diregdo. Ao investigarmos as relagdes econd- micas da existéncia dos seres humanos, nos diversos perfodos da histéria, libertamo-nos da ilusao de que as mesmas ideias, aspiracGes ¢ instituigdes esto sempre a repetir-se. Constata-se que no decorrer dos séculos as 28 INTRODUGAO mesmas palavras podem passar por mudangas no seu significado; que as ideias e instituigdes, que aparentemente se assemelham umas 4s outras, tém um contetido diferente, surgidos das necessidades de diferentes clas- ses, sob distintas circunstancias. A liberdade que o moderno proletariado reivindica é completamente distinta daquela que era a aspiragao dos re- presentantes do Terceiro Estado, em 1789, e esta, por sua vez, era funda- mentalmente diferente daquela pela qual lutavam os fidalgos’ do Império Germanico no comego da Reforma. Dado que as Iutas politicas nao representam simples conflitos de ideias abstratas ou de organizagoes politicas, mas tém bases econdmicas, logo se compreende que af, tanto quanto na técnica e no modo de produ- do, processa-se uma evolugao constante de novas formas, que nao existe uma época que se assemelhe a outras, que as mesmas palavras e os mes- mos argumentos podem adguirir, em tempos diferentes, significados muito distintos. Assim como o ponto de vista proletario permite mais facilmente ver aqueles aspectos do cristianismo primitivo que s40 comuns ao moderno movimento do proletariado, do que é possivel aos pesquisadores burgue- ses, a énfase dada as condigdes econdémicas, derivada da concepgao mate- rialista da historia, evita que se esquega o cardter peculiar do proletariado antigo, ao identificar-se 0 elemento comum a ambas as épocas. O cardter peculiar do proletariado antigo decorria de sua posigao econdmica, que, nao obstante a semelhanga, tornava suas aspiracgdes completamente dis- tintas das do proletariado moderno. A concep¢ao materialista da hist6ria também evita a tendéncia para medir 0 passado segundo os padrées do presente e para adaptar sua representacdo aos interesses da pratica politi- ca imediata, exercida na atualidade. Decerto nenhum homem honrado, qualquer que seja seu ponto de vista, seguira conscientemente uma dire- ao em virtude de uma falsa representacao do passado. Contudo, em ne- nhuma outra area, como nas ciéncias, a imparcialidade do pesquisador é tao necessiria e tao diffcil de alcancar. A tarefa da ciéncia, certamente, néo € s6 representar 0 que existe, produzindo uma fotografia, de modo que qualquer observador normal- mente organizado possa formar a mesma imagem. A tarefa da ciéncia consiste em extrair da “abundancia de aspectos” dos fendmenos o ele- mento essencial e em desvendar 0 fio que guie o caminho no labirinto da realidade. 29 A ORIGEM DO CRISTIANISMO A tarefa da arte, alias, é similar. Também a arte néo deve fornecer uma simples fotografia da realidade; 0 artista deve reproduzir aquilo que parega ser 0 essencial, o que ha de caracteristico na realidade que se pro- poe a representar. A diferenca entre a arte e a ciéncia consiste no fato de que o artista representa o essencial em forma fisica e tangfvel, que im- pressiona, enquanto o pensador representa o essencial como um concei- to, uma abstracao. Quanto mais complicado é um fenémeno e menor o ntimero de ou- tros fenémenos com os quais possa ser comparado, tanto mais é dificil separar o essencial do acidental, e tanto mais se faz sentir a subjetividade do pesquisador e escritor, porém, tanto mais se torna indispensdvel que ele tenha uma percepgao imparcial e isenta de preconceitos. Nao ha, provavelmente, fendmeno mais complicado do que o da so- ciedade humana, a sociedade dos seres humanos, cada um dos quais em si € mais complicado do que qualquer outro ser que se conhega. O nu- mero de organismos sociais, que podem ser comparados uns com os ou- tros, no mesmo nfvel de desenvolvimento, é, ademais, relativamente muito pequeno. Nao é de admirar que o estudo cientifico da sociedade tenha comegado depois de qualquer outro campo de pesquisa, e nao é de preocupar que, neste campo, as concepgGes dos pesquisadores sejam tio diferentes. Tais dificuldades aumentam ainda mais se os diversos pesquisadores, como ocorre no caso das ciéncias sociais, tém interesses praticos, tendéncias diferentes, e muitas vezes opostos, como frequente- mente ocorre, 0 que ndo significa que esses interesses prdticos sejam apenas de natureza pessoal, uma vez que podem ser claramente interes- ses de classe. Evidentemente é imposs{vel manter uma atitude inocente em relagao ao passado quando se est interessado, de algum modo, no combate e nas lutas sociais de sua prdpria época, contemplando tais fendmenos como se fosse mera repeticio do passado. As tiltimas afiguram-se como simples precedentes, implicando justificagéo e condenagao dos combates e lutas antigas, de cujo julgamento depende o presente. Quem é fiel 4 sua causa pode permanecer imparcial? Quanto maior seja 0 seu envolvimento, mais importante se lhe afiguram os fatos do passado, considerados essenciais do seu ponto de vista e que parecam apoiar seus conceitos, abandonando aqueles aparentemente favordveis aos conceitos contrarios. O pesquisa- dor transforma-se em moralista ou advogado, glorificando ou menospre- 30 INTRODUCGAO zando fenémenos especificos do passado, tais como igreja, monarquia, democracia ete. O caso é completamente diferente, porém, quando o pesquisador, em virtude de sua compreensao dos fendmenos econdmicos, reconhece que nao existe simples repetigao da histéria, que as relagdes econdmicas do passado nao mais retornarao, que as contradigoes e lutas de classes sao inteiramente distintas das da atualidade e que as ideias e instituigdes modernas sao diferentes das existentes no passado, a despeito da apa- rente similirude que possam apresentar. Compreende-se assim que cada época tem de ser avaliada segundo sua propria medida, que as aspiracées do presente tém de basear-se nas relagdes do presente, que os éxitos e fracassos do passado pouco significam quando considerados isolada- mente e que uma simples evocagao do passado pode levar a erros. Os democratas e os proletarios da Franga, no tiltimo século, fizeram muitas vezes experiéncias, quando se apoiaram mais nos “ensinamentos” da Revolugio Francesa do que no entendimento das relagGes de classe en- t4o existentes. Quem aceitar a concepgio materialista da Histéria pode assumir uma atitude sem preconceitos em vista do passado, mesmo que esteja participando ativamente nas lutas do presente. Sua praxis pode tornar mais aguda sua visio de muitos fendmenos do passado, nao mais obscurecida. Assim, tratei de apresentar os fundamentos do cristianismo primitivo, sem pretender enaltecé-lo ou estigmatiz4-lo, somente com o propésito de compreendé-lo, Sabia que quaisquer que fossem os resultados, a causa, pela qual luto, no seria prejudicada. Nao havia divida de que, sob qual- quer Angulo, o proletariado da Era Imperial, quaisquer que fossem suas aspiraces e seus resultados, era inteiramente diverso do moderno prole- tariado, que atua e luta numa situagao bastante diferente. Quaisquer que fossem as realizagdes ¢ sucessos, os pequenos defeitos e derrotas dos pro- letdrios antigos nada podem significar, nem favoravel nem desfavoravel- mente, para o carter e as perspectivas do moderno proletariado. Se € assim, qual 0 propésito pratico de ocupar-se com a Histéria? De acordo com a perspectiva usual, considera-se a Histéria uma carta marf- tima para quem navega nas atividades polfticas: a carta deve indicar as falésias e os locais pouco profundos, onde outros marinheiros se defron- taram com problemas, capacitando seus sucessores a navegar sem dificul- 31 ‘A ORIGEM DO CRISTIANISMO dades, Entretanto, para que serve o estudo da Histéria, sendo talvez para entretenimento, se os canais navegaveis estao a mudar constantemente, os bancos de arcia também, formando-se em outros lugares, se cada pilo- to deve encontrar suas proprias rotas de navega¢4o, se ao simplesmente seguir a rota do mapa antigo pode extraviar-se? O leitor que assim supée esta realmente colhendo o trigo junto com 0 joio. Se quiséssemos continuar no quadro acima, terfamos de admitir sua inutilidade como guia permanente para o piloto de uma nave politica. Mas isto nao significa que a Historia nao tenha outro uso. Ela serve como instrumento para sondar os canais nos quais 0 piloto navega, para conhecé-los, e compreender a posigao em que se encontra. O tinico meio de compreender um fendmeno é saber como ele comegou. Nao posso compreender a sociedade atual sem saber como surgiu, como seus varios fendmenos (capitalismo, feudalismo, cristianismo, judaismo etc.) se desenvolveram. Se quero ter clareza quanto a posigio social, as tarefas e as perspecti- vas da classe 4 qual pertengo, ou a qual aderi, entao devo entender 0 or- ganismo social existente, conceitud-lo em todos os seus aspectos, o que é impossivel, se ndo sei como se processou. Sem o conhecimento da evolu- cho da sociedade € impossivel ter uma consciéncia e ampla visdo da luta de classe, fica-se a depender das impresses dos circulos préximos, do momento imediato, € nunca se esta seguro de que através daqueles canais se chega ao destino ao chocar-se contra arrecifes, dos quais nado se pode escapar. Seguramente muitas lutas de classe tiveram sucesso, embora seus participantes nao tivessem uma consciéncia clara da esséncia da socieda- de em que viviam. Na sociedade atual, porém, as condiges para 0 éxito dessas lutas de- sapareceram, na mesma medida em que se torna absurdo deixar-se levar pelo instinto e a tradigao para a escolha da comida e bebida. Esses ele- mentos talvez bastassem em condigées simples, naturais. Porém, quanto mais se tornam artificiais as condigdes de vida, devido ao progresso da industria e das ciéncias naturais, quanto mais se afastam da natureza, mais necessario se faz para o conhecimento cientifico ao escolher, em meio da abundante oferta de produtos artificiais, aqueles que mais con- vém ao seu organismo. Quando os homens bebiam somente agua, era su- ficiente o instinto para encontrar boas fontes e evitar aguas estagnadas e 32 INTRODUGAO. pantano. Mas esse instinto nao é suficiente no caso das bebidas manufa- turadas. Af se torna necessdrio 0 conhecimento cientifico. Na politica e nas atividades sociais em geral é igual. Nas frequente- mente mintisculas comunidades antigas, com suas condigdes simples e transparentes, que permaneceram imutdveis durante séculos, bastavam a tradi¢ao e o “saudavel senso comum” — em outras palavras, a inteligéncia de cada indivfduo, adquirida por meio de experiéncias pessoais — para mostrar a alguém sua posigdo e suas tarefas na sociedade. Atualmente, em uma sociedade cujo mercado abrange o mundo inteiro, que continuamen- te se transforma, com a revolucio técnica e social, em que milhdes de tra- balhadores se organizam e os capitalistas concentram bilhdes em suas maos, é impossivel para uma classe insurgente que nao pode limitar-se a manter 0 status quo, mas que deve aspirar a uma total renovacao da socie- dade, conduzir sua luta de modo conveniente e com éxito apenas pelo “saudavel senso comum” e pelo trabalho minucioso dos homens praticos, Torna-se necessdrio que cada combatente amplie seu horizonte através de conhecimentos cientfficos, reconhega as grandes conexdes sociais, no es- Paco ¢ no tempo, nao para suprimir o trabalho detalhado, nem mesmo re- lega-lo a um segundo plano, mas para o vincular conscientemente a0 pro- cesso social no seu conjunto. Isto se torna ainda mais necessério, porquanto essa sociedade, cada vez mais abrangente, aprofunda a diviséo do traba- lho, restringe o individuo mais ¢ mais a uma simples especialidade, a uma Gnica atividade, tendendo a degradar progressivamente seu nivel mental, a fazé-lo mais dependente e menos capaz de entender 0 processo como um todo, processo este que se expande concomitantemente em propor- Ges gigantescas, Assim, cada homem que faz da ascensio do proletariado a tarefa de sua vida deve opor-se a essa tendéncia, ao empobrecimento espiritual e estupidez, e orientar o interesse dos operdrios para os grandes aspectos, gtandes contextos e grandes objetivos. A nao ser por meio do estudo da Histéria, é dificil que exista outro modo através do qual se possa perceber e compreender a evolugao da so- ciedade, em grandes perfodos de tempo, particularmente quando esta se processou em meio de violentos movimentos sociais, que continuam a influenciar as forgas dominantes na sociedade. A fim de levar 0 proletariado a ter uma compreensdo social, uma consciéncia prépria e maturidade politica, ¢ a ter um pensamento mais 33 A ORIGEM DO CRISTIANISMO abrangente, é indispensdvel 0 estudo do processo histérico por meio da concepgio materialista da Histéria. Destarte, a pesquisa do passado, para nés, longe de ser mera paixio antiquada, converte-se em poderosa arma nas lutas do presente, visando a acelerar um futuro melhor. K. Kautsky Berlim, setembro de 1908 34 INTRODUCAO NOTAS 1, Karl Kautsky, Vorldufer des Neueren Sozialismus, Ester Band, Kommuni- stische Bewegungen im Mittelalter; Zweiter Band, Der Kommunisnus in der Deutschen Reformation, Berlim, Verlag J. H. W. Dietz Nachf., 1947. (N. do T.) Paul Gohre (1864-1928), tedlogo evangélico alemao, politico social-de- mocrata, é autor de varias obras, entre as quais Der unbekannte Gott. Ver- such einer Religion des modernen Menschen, Leipzig, F. W. Grunow, 1919. (N. do T.) Bruno Bauer (1809-1882), tedlogo, fildsofo ¢ historiador alemao, em sua obra Kritik der evangelischen Geschichte der Synoptiker (Critica da historia dos evangelhos sin6ticos), publicada em 1841, procurou refutar a teoria de David Friedrich Strau8 (1808-1874), em sua obra Das Leben Jesu, kritisch bearbeitet (A vida de Jesus criticamente examinada), publicada em 1835- 1836, segundo a qual os Evangelos cristaos seriam mitos que surgiram de uma atividade inconsciente das comunidades primitivas. Bauer entendia que, ao contrdrio, resultaram de uma invengao dos evangelistas. (N. do T.) Franz Mchring (1846-1819), historiador alemao e militante do Partido So- cial-Democrata, autor da biografia de Karl Marx ¢ de outras obras sobre a historia da Alemanha ¢ da Social-Democracia. (N. do T.) Kautsky se refere & novela romantica epistolar Julie ou la nouvelle Héloise, publicada em 1761 por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), fildsofo ilu- minista franco-sufgo. O titulo original da obra foi Lettres de deux amants habitants d'une petite ville au pied des Alpes. (N. do T.) Kautsky fez a citagao de Rousseau em alemao. No original francés, 0 pardgrafo € 0 seguinte: “Je trouve aussi que c’est une folie de vouloir étudier le monde en simple spectateur. Celui qui ne prétend qu’observer n’observe rien, parce qu'étant inutile dans les affaires et importun dans les plaisirs, il west admis nulle part. On ne voit agir les autres qu'autant qu'on agit soi- méme; dans l’école du monde comme dans celle de V'amour, il faut com- mencer par pratiquer ce qit’on veut apprendre.” (N. do T.) Kautsky, no original alemio, emprega a palavra Reichsritterschaft, que sig- nifica a pequena nobreza que dirigia diretamente as cidades ¢ aldeias, liga- da aos senhores do Império Romano-Germianico, ao tempo da Reforma protestante promovida por Martinho Lutero. (N. do T.) 35 PRIMEIRA PARTE A personalidade de Jesus 1. As fontes pagas Qualquer que seja a atitude diante do cristianismo, nao se pode deixar de considerd-lo um dos fendmenos mais importantes da historia da humani- dade. O fato de que a Igreja Crista haja perdurado cerca de dois milénios e ainda permanega cheia de vigor e, em muitos pafses, mais poderosa do que o Estado, nao pode deixar de provocar enorme admiragio. Assim, tudo o que possa contribuir para a compreensao desse colossal fendmeno € o estudo das origens dessa organizagao tem extrema importancia, atua- lidade e significagao pratica. Isso garante 4 pesquisa sobre os primédrdios do cristianismo um inte- resse muito maior do que em qualquer outra, na drea da Histéria, que va além dos dois séculos passados.' Mas isso também torna a investigagao dos seus primérdios ainda mais diffcil. A Igreja Crista tornou-se uma organizacao de dominio, no interesse de seus préprios dignitarios, ou de outros dignitarios, do Estado, que conseguiram obter 0 seu controle. Quem derrotasse seus poderes teria também de derrotar os poderes da Igreja. A luta pela Igreja, tanto quanto a luta contra a Igreja, foi, consequentemente, uma causa de partido, com a qual estao ligados os mais importantes interesses econémicos. De fato esta condi¢ao parece obscurecer demasiadamente 0 objetivo a que se pro- poe um estudo hist6rico da Igreja, ¢ durante muito tempo as classes diri- gentes proibiram qualquer investigacao sobre os principios do cristianis- mo, atribuindo um carater divino a Igreja, que permanece acima e além de toda a critica humana. A burguesia esclarecida do século XVIII conseguiu finalmente colo- car em seu lugar, de uma vez por todas, este halo divino. Até entéo nao tinha sido possivel a investigacao cientifica do cristianismo. Mas embo- ra parega estranho, ainda no século XIX a ciéncia laica permaneceu se- parada desse campo, considerando-o ainda integrado no dominio da teologia e em nada relacionado a ciéncia. Um grande ntimero de traba- 39 A ORIGEM DO CRISTIANISMO Ihos histéricos escritos pelos mais importantes estudiosos classicos do século XIX, tratando do periodo da Roma Imperial, referiu-se timida- mente ao mais importante fendmeno desta época, isto é, ao surgimento do cristianismo. Assim, Theodor Mommsen,? no quinto volume de sua Rémischen Geschichte (Hist6ria romana), faz um estudo detalhado da histéria dos judeus e dos Césares € nao péde af deixar de mencionar ocasionalmente o cristianismo, mas este aparece em sua obra como um fato realizado, pressupondo o conhecimento de sua existéncia. Em re- sumo, somente os tedlogos e seus oponentes, os propagandistas livre- pensadores, demonstraram, até agora, algum interesse pelos primérdios do cristianismo. Nao foi, porém, a covardia que exatamente impediu esses historiado- res de pesquisar a origem do cristianismo, uma vez que eles produziam somente a historia e nao literatura de controvérsia. A escassez de fontes disponiveis para obter os conhecimentos sobre a matéria talvez consti- tuiu, suficientemente, motivos para nao empreenderem esse trabalho. A cristandade, de acordo com 0 conceito tradicional, é a criagdo de um s6 homem, Jesus Cristo, e este conceito nao foi de forma alguma substitufdo. Certamente, pelo menos nos ilustres cfrculos “esclarecidos” ¢ “instrufdos”, Jesus j4 nao é considerado um Deus, mas um personagem sem diivida extraordindrio; uns decidem-se a encontrar uma nova reli- gido, outros triunfam nesse esforgo de forma tio notavel ¢ tao superficial. Esse conceito nao é apoiado somente por tedlogos ilustres, mas também por livre-pensadores radicais, que se distinguem dos primeiros apenas pela critica que fazem da personalidade de Jesus, da qual tentam extrair, na medida do possivel, tudo que seja nobre. Entretanto, ainda no final do século XVIII, o historiador inglés Edward Gibbon, em sua Histéria do declinio e queda do Império Roma- no (escrita entre 1774 e 1778), assinala com delicada ironia o fato sur- preendente de que nenhum dos contemporaneos de Jesus houvesse infor- mado alguma coisa a seu respeito, apesar de Ihe serem atribuidos feitos tao maravilhosos. Porém como vamos desculpar a indolente desatengéo do mundo pagio ¢ filosdfico para aquelas evidéncias que eram apresentadas pela mao do Onipotente, nao para a sua razdo e sim para os seus sentidos? Durante a época de Cristo, de seus apdstolos ¢ de seus primeiros dis- 40 AS FONTES PAGAS cfpulos, a doutrina que pregavam era confirmada por intimeros pro- digios. O coxo andava, o cego via, o enfermo era curado, 0 morto ressuscitado, os demOnios expulsos, as leis da natureza eram suspen- sas frequentemente em beneficio da Igreja. Mas os sabios de Grécia e Roma voltavam as costas ao terrivel espetaculo e, prosseguindo com suas ocupac6es quotidianas da vida e estudo, pareciam inconscientes de qualquer alterago no governo moral ou fisico do mundo. De acordo com a tradigao crista, toda a terra, ou pelo menos toda a Palestina cobriu-se de trevas durante trés horas, apds a morte de Je- sus. Isto teria sido durante a vida de Plinio, o Velho,‘ que dedicou um capitulo especial aos eclipses, em sua Histéria natural, mas nada es- creveu sobre esse eclipse.’ Mas, prescindindo desses milagres, é dificil entender como uma per- sonalidade como a de Jesus dos Evangelhos que, de acordo com o que se diz, levantou tal comogao na mente dos homens, pudesse levar adiante sua agitagao e morrer finalmente como um martir de sua causa, sem con- seguir que os hebreus e os pagios contemporancos Ihe dedicassem uma nica palavra. A primeira mengao a Jesus feita por um nao cristéo é encontrada nas Antiguidades judaicas de Flavio Josefo. O terceiro capitulo do décimo oita- vo livro, que trata do procurador Péncio Pilatos, diz, entre outras coisas: Nesta época viveu Jesus, um homem sabio, se € que pode ser de- nominado homem, pois realizou milagres e foi um senhor dos ho- mens, que com prazer aceitavam sua verdade e conseguiu muitos par- tidarios entre os judeus e os helenos. Esse homem era o Cristo. Embora Pilatos 0 tenha crucificado, baseando-se na acusagao dos ho- mens mais importantes de nosso povo, aqueles que primeiro 0 ama- ram permaneceram fiéis a ele. Entao no terceiro dia ele Ihes apareceu, ressuscitado para uma nova vida, como os profetas de Deus e milha- res de coisas maravilhosas haviam predito. Dele tomam os cristaos 0 nome e sua seita (UAV) nao cessou de crescer desde entao. Josefo fala novamente de Jesus no vigésimo livro, capitulo nove, i, di- zendo que 0 alto sacerdote Ananias (Annanus), durante a administragao do governador Albino (no tempo de Nero), “conseguiu levar perante os tribu- 41 A ORIGEM DO CRISTIANISMO nais e apedrejar a Tiago, irmao de Jesus, chamado o Cristo (to Aeyopévou XQt¢to’), juntamente com outros, acusados de violar a Lei”. Essas evidéncias foram sempre muito consideradas pelos cristaos, pois sio a palayra de um n§o cristdo, um judeu e fariseu, que nasceu em 37 d.C., viveu em Jerusalém e, consequentemente, pdde muito bem obter informagées auténticas sobre Jesus. Além disso, seu testemunho era mui- to importante porque, sendo judeu, nao tinha motivo algum para enfati- zar os fatos a favor dos cristaos. Mas exatamente o elogio excessivo de Cristo pelo piedoso judeu tor- na suspeita essa passagem de sua obra, mesmo para o estudante princi- piante. Sua autenticidade foi posta em diivida no século XVI, e agora se tem a certeza de que é uma interpolagao, nao foi escrita, de forma algu- ma, por Josefo.° A passagem foi acrescentada, durante o século III, por um copista cristao, que evidentemente se sentiu ofendido pelo siléncio de Josefo ao nao dar informagao alguma concernente a pessoa de Jesus, em- bora relate todos os mexericos da Palestina. Esse cristéo piedoso compre- endeu, com raz4o, que a auséncia de semelhante meng4o equivalia a ne- gacdo de sua existéncia (a de Jesus) ou pelo menos da importAncia de seu salvador, mas o descobrimento da interpolagao transformou-se pratica- mente numa evidéncia contra Jesus. A passagem sobre Tiago é também de natureza muito duvidosa. E ver- dade que Origenes, que viveu de 185 a 254 d.C., menciona, em seu co- mentdrio sobre Mateus, uma passagem de Josefo sobre Tiago. Assinala que é interessante que Josefo, apesar de tudo, nao acreditasse em Jesus como o Cristo. Novamente cita essa informacao de Josefo sobre Tiago em sua polémica contra Celso e acentua novamente 0 ceticismo de Josefo. Es- sas palavras de Origenes constituem uma das evidéncias de que no original de Josefo nao existia a passagem relativa a Jesus em que este € reconheci- do como Cristo, o Messias. Parece entao que a passagem relativa a Tiago, que Orfgenes encon- trou em Josefo, é também falsificagao de um cristéo, porque, segundo cita Origenes, € completamente diferente do contetido dos manuscritos de Josefo que nos chegaram. A citagio de Orfgenes apresenta a destrui- Gao de Jerusalém como um castigo pela execugio de Tiago. Essa falsifi- cagdo ndo passou a outros manuscritos de Josefo e consequentemente nao foi preservada. Mas, por outro lado, a passagem que nos foi transmi- tida nos manuscritos de Josefo nao é citada por Origenes, embora men- 42 AS FONTES PAGAS cione as outras trés vezes; isto apesar do fato de que Origenes citou cui- dadosamente todas as evidéncias de Josefo que pareciam favorecer a fé crista. E razodvel, consequentemente, presumir que a passagem de Josefo que nos foi transmitida é também uma falsificagao, feita por algum cris- to piedoso, para maior gloria de Deus, desde os tempos de Origenes, mas antcriormente a obra de Eusébio, que as citou. Nao somente a mengao a Jesus e Tiago, na obra de Josefo (Antiguida- des, XVIII, capitulo V, 2), mas também a de Jodo Batista é suspeita de interpolagao.” Vemos entao que desde principios do segundo século defrontamo-nos com falsificagdes cristas da obra de Josefo. Seu siléncio com relagao aos principais personagens do Evangelho era muito impressionante e teve de ser alterado Mas se so genuinas as informagoes relativas a Tiago, elas somente demonstraram que existiu um Jesus a quem se chamou o Cristo, isto €, 0 Messias. Possivelmente nao poderiam provar mais que isso. Contudo, ainda admitindo a passagem como genuina, nao seria mais forte do que uma teia de aranha, sobre a qual a critica teolégica teria dificuldade em sustentar uma forma humana. Houve muitos pseudo-Cristos no tempo de Josefo e até o segundo século, de quem 86 temos noticias sumdrias. Houve um Judas da Galile! , um Teudas, um egipcio desconhecido, um samaritano e um Bar Kochba. Pode muito bem ter havido um Jesus entre eles. Jesus era um nome muito familiar entre os judeus: Josias, Josué, o Salvador.* A segunda passagem de Josefo informa, além disso, que entre os agi- tadores que entao operavam na Palestina, como Messias, como ungidos do Senhor, havia um chamado Jesus. A passagem nao nos diz nada relati- vo a sua vida ou sua obra. Nos Anais do historiador romano TAcito, escritos em cerca do ano 100 d.C., encontra-se a seguinte mengio a Jesus. No livro XV descreve- se o incéndio de Roma no periodo de Nero e Ié-se no capitulo XLIV: Para fazer frente ao rumor (que apontava Nero como o culpado pelo incéndio), ele acusou as pessoas conhecidas como cristaos e odia- 43 A ORIGEM DO CRISTIANISMO das por seus crimes, culpando-as e debandando-as aos maiores tor- mentos. O Cristo, de quem haviam tomado o nome, tinha sido exe- cutado no reinado de Tibério” pelo procurador Péncio Pilatos; mas ainda que esta supersticao tenha sido abandonada por um momento, surgiu noyamente, ndo sé na Judeia (Iudaea), o pats original desta praga (mali), mas na prépria Roma, onde cada ultraje e cada vergo- nha (atrocia aut pudenda) encontra acolhida ¢ ampla disseminagao. Primeiro, uns poucos foram detidos e interrogados e depois, basean- do-se em suas dentincias, um grande ntimero de outros, que nao eram acusados do crime do incéndio, mas somente de 6dio 4 humanidade. Sua execucdo constituiu uma diversdo publica; foram cobertos com peles de feras e depois devorados pelos ces, crucificados ou levados A fogueira e queimados de noite, iluminando a cidade. Nero abriu seus jardins para esse espetdculo e ainda preparou jogos circenses, misturou-se a0 povo com roupa de carroceiro ou dirigindo um carro de corrida. Embora esses homens fossem criminosos que mereciam os castigos mais severos, havia uma simpatia publica por eles, pois pare- cia que nao eram sacrificados para o bem piiblico, mas pela crueldade de um tinico homem. Esse testemunho seguramente nao foi falsificado pelos cristéos em seu favor, conquanto sua exatidao seja contestada, pois Dio Cassio” nao conhece nenhuma perseguigao aos cristaos durante o reinado de Nero. Entretanto, Dio Cassio viveu um século apds Tacito. Sueténio, que escre- veu pouco depois de Tacito, informa em sua biografia sobre uma perse- guig4o aos cristaos, “gente que havia abragado uma nova e perniciosa su- persticdo” (capitulo XVI). Porém, de Jesus, Suetonio nada diz, e Tacito nem sequer transmite seu nome. Cristo, a palavra grega para “o ungido”, nao passa da tradugao0 grega da palayra hebraica “Messias”. Com relagio as atividades de Cristo e ao contetido de seus ensinamentos, TAcito nada tem a dizer. Isto € tudo que dizem de Jesus as fontes nao cristas do primeiro sécu- lo de nossa era. 44

You might also like