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JUAN MATEOS A UTOPIA DE JESUS PAULUS Dados Intexnacionais de Catalogagiio na Publicagiio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ‘Mateos, Juan A utopia de Jesus / Juan Mateos ; [traduefo ILF.L. Ferreira ; rovisto H, Dalboseo], ~ Sido Paulo : Paulus, 1994. ~ (Biblioteca de estudos biblicos) Bibliografia. ISBN 85-849-0051-5 1, Biblia. A.T. — Critica ¢ interpretagao 2. Biblia..N-T. -- Crftica. e interpretagao 3. Jesus Cristo I, Titulo. II Série. 93-0269 CDD-282 indices para eatdlogo sistematico: 1, Jesus Cristo : Cristologia 232 BIBLIOTECA DE ESTUDOS BIBLICOS + Biblia: AT — Introdugto acs eseritos e aos métodos de estudo, 1. W. Wolff * Os partidos religiosos hebraicos na época neotestamentéria, I. Schubert * Segundo as Bserituras: Estratura findamental do NT, C. ¥. Dodd + Aprende a ler o Hvangelho, X. Chalendar + desus eas estruturas de seu iempo, T. Morin * Oantineio do AT, A. Deisslor * Chave para a Biblia, W.J. Harrington * Biblia, palavra de Deuo — Cureo do introdueto & Searada Britura, V. Mannucei * Os fundamentos biblicos da missto, D, Senior ¢ C: Stubhmueller + Tratado sobre os judeus, F, Mussner + Israel em oragéo, C. Sante + Paulo, a Laie o povo judeu, ¥. P. Sanders » As origons eristiia a partir da mulher — Uma nova hermenéutioa, B. 8. Pioxenza + Evangelho, figuras ¢ strbolos, J. Mateos o If. Camacho + desus ea sociedade de seu tempo, J. Mateos ¢ ¥. Camacho + Autopia de Jesus, J. Mateos @RITERIO DE VERDADE E CARISMA jj ENSINO NO NOVO TESTAMENTO* O tema deste artigo é duplo, embora suas partes guardem certa relagdo. Para expor a primeira parte, o critério de verdade no Novo Testamento, limitar-nos-emos a examinar passagens evan- gélicas onde este critério é exposto claramente. Quanto 4 segunda parte, que trataré do carisma de ensino, exporemos 0 uso do termo “mestre” e a natureza do carisma em geral; para terminar, exami- naremos as passagens onde este carisma aparece explicitamente mencionado. I. O CRITERIO DE VERDADE Nesta primeira parte nao tratamos do discernimento que guia a ag&o, mas do critério que serve para discernir a verdade ou nao verdade de uma doutrina ou a autenticidade crista de uma atua- Gao. Todos sabemos que, entre os evangelhos, é o de Joio que apresenta com maior freqtiéncia 0 termo “verdade”, em grego alétheia (25 vezes). De fato, este evangelho é 0 tinico que propée explicitamente a questiio que queremos expor. Por isso, dedicare- * Exposicao para as Ill Jornadas de Estudo da Associagao de Tedlogos Jodo XXIII, en abril de 1986. 100 mos a maior parte de nossa exposicgao a Joao, assinalando depois algumas passagens dos sinéticos, de onde se possa deduzir eritério semelhante, Jotio: o prélogo Existe no prélogo de Joao uma frase que proporciona o critério que buscamos e que, de alguma maneira, fundamenta todos os desenvolvimentos que se podem encontrar depois no evangelho. A frase a que aludimos é a seguinte: “a vida é a luz do homem” (1,4). E preciso observar muito bem o que dizo texto. A vida 6a luz do homem, nao 0 contrario. Isto significa que nao existe para o homem uma luz que nao seja a prépria vida, enquanto vistvel e reconhecivel. Ao ver a luz, 0 que se percebe é a vida. Ao ser a luz dos homens, fisicamente vivos, a vida adquire significado que supera a mera existéncia: 6 a plenitude de vida (cf. 10,10: “eu vim para que tenham vida e a transbordem”), em contraposigdo a uma vida que nao merece este nome. Aluz, por sua vez, como realidade perceptivel e reconhec{vel, é metAfora para designar a verdade que ilumina e guia o homem. Levando em conta estes significados, 0 que se afirnna no texto nfo é que a verdade leve o homem & plenitude de vida, mas que para ele a plenitude de vida 6 a verdade e que, onde nao resplandece esta vida, nio hé verdade. Vale dizer: para o homem a tinica verdade (artigo exclusivo, “a luz”) é a plenitude de vida contida no projeto divino.? Ela o ilumina, mostrando-lhe ao mesmo tempo a verdade de Deus, a do Pai que 0 ama sem limi- tes e deseja comunicar-lhe sua prépria vida, e a verdade de si 1. Grego: t6n anthrépén, com sentido universal, que nas linguas neolatinas se expressa melhor pelo singular coletivo. 2. 0 termo “luz” (phés) designa a verdade enquanto cognosetvel para o homem. O que © homem percebe de Deus é amor sem limite (8,16: “Assim demonstrou Deus seu amor a0 mundo, chegando a dar seu Filho tinico"); este amor 6, portanto, a verdade (alétheia) de Deus. A isto corresponde a definieio “Deus ¢ Espfrito” (4,24), isto é, forca e atividade de amor. O amor fiel (1,14) ou Espfrito, que 6 a verdade de Deus, 6 a fora vivificante (6,63) propria da vida: a realidade divina é vida que se define pela atividade do amor ¢ se manifesta nela. 101 mesmo, ao conhecer a meta a que o chama o projeto divino rea- lizado em Jesus. A vida, como luz, é para o homem orientagao e guia, que é ela que lhe mostra a sua meta eo atrai para ela. Esta luz/verdade que ilumina (1,9) e guia o homem tem de encontrar-se necessariamen- te em seu interior, o que significa que 0 homem traz em si um anseio de plenitude que o estimula a realizar-se; e este anseio é constitutive do homem, porque a plenitude de vida esta contida no projeto divino (1,4a), segundo a qual foi criado. O homem percebe que é destinado a plenitude e que tal deve ser 0 objetivo de sua existéncia e atividade.® Com sua frase, Jo&o se opée A concepgiio rabinica da verdade. De fato, o termo “luz” era um modo ordindrio de designar a Lei de Moisés no ambiente judaico. A Lei como luz era a norma que devia guiar a conduta do israelita (S] 119,105; Sb 18,4; Eclo 45,17 LXX; Nm 6,25; Apoc. Baruc 59,2; 77,16). A concepgo rabinica poderia ser formulada desta maneira: “a luz (= a Lei) é a vida do homem”. Primeiro precisa conhecer a Lei, como luz e guia, e sua pratica levaré a vida (cf. 7,49). Jodo inverte a proposi¢&o: “a vida era a luz do homem”, a verdade que guia seus passos, constituindo-se como norma de sua vida e conduta. Tiremos a conclusio destas premissas: a verdade ¢ 0 resplen- dor da vida em sua plenitude, que atrai e orienta o homem, porque este traz consigo 0 desejo de plenitude posto por Deus mesmo. Este desejo j4 esta impregnado de verdade, eo critério para discernir a verdade esté na satisfag&o deste desejo, isto é, nao pode ser outro sendo a experiéncia pessoal de vida ou a experiéncia da comunica- ¢&o de vida aos outros, Onde quer que se descubra a vida, seja na propria pessoa, seja em outra pessoa, af hd verdade. Onde nao ha vida nao ha verdade. 8. Jofio previne assim contra a interpretacao intelectualista de seu evangelho, que originariauma leitura “ao avesso”. Tal leitura transforma Jesus no“revelador” (Bultmann) de verdades ocultas, em que esié osegredo da vida. Masem Joaonao 6 assim; pelo contrério, Jesus se manifesta como o doador da vida. Nao revela uma verdade suposta cujo conheci- mento produziria a vida; dé uma vida que, experimentada e reconhecida, se revela com verdade. Por isso, a prova desua misao ndo 6a sublimidade desua doutrina, nasa eficdcia das suas obras (6,36; 10,88). Reconhecar a vida que ole comunica 6 reconhecor a verdade. 102 Estes s&io precisamente os critérios complementares que Jesus propde para determinar ou encontrar a verdade: a experién- cia pessoal de vida e as obras que comunicam vida. Vejamos cada um dos dois eritérios. A experiéneia de vida (Jo 7,148s) Em Jo 7,148s, encontrando Jesus a ensinar no templo, os dirigentesjudeus se perguntam pela origem do saber de Jesus: “Como ele sabe de Escritura se nao estudou?”, Jesus replica informando-os de que seu saber nao vem das escolas, e sim de Deus: “Minha doutrina néo é minha, mas daquele que me enviou”. Contudo, esta afirmagao de Jesus necessitava ser provada e ele mesmo acrescenta em seguida: “Quem quer realizar o designio de Deus conheceré se esta doutrina é de Deus ou se falo por minha conta” (7,17). Como se vé, Jesus nfo prova sua extraordinaria afirmagéo com argumentos nem citando textos do AT. Nao invoca a autorida- de de Deus nem a sua propria. O critério para distinguir a verdade de sua doutrina est4 no préprio homem mesmo, e a ele se dirige Jesus, Ele nao se impée, cada um tem que encontrar sua certeza.4 O critério que Jesus propée, independente de sua pessoa, baseia-se na fidelidade do homem a Deus criador, no desejo de realizar seu designio, Este designio, que concretiza o amor univer- sal de Deus, assim se expressa: “que todo aquele que reconhece 0 Filho e lhe presta ades&o tenha vida definitiva” (3,16), isto é, vida em plenitude. Em quem anseia por ela, a doutrina de Jesus produz uma experiéncia que o faz perceber sua verdade: nela o homem vé a coneretizagao de suas aspiragées; ela corresponde ao seu anseio interior e Ihe mostra qual é a verdadeira plenitude. Aconvicgio é, portanto, pessoal, nio por testemunho alheioe, muito menos, por imposi¢éio externa.® 4. O verbo ginéské, usado nesta frase, tem entre seus significados 0 de “conhecor por experiéncia” (cf. gndsis). 5. A formula usada por Joao, “o Espirito da verdade” (14,17; 16,26; 16,18), 6 abundante no mesmo sentido, O Espirito 6. vida-amor do Pai ¢ é prinefpio de vida (3,6). Ao comuntcar- 103 Este critério é proposto por Jesus em outras ocasiées e podemos chamé-lo “critério positivo”. Entretanto, na mesma oca- sido propée também um critério negativo: “Quem fala porsimesmo busca sua prépria gléria; ao contrario, quem busea a gloria de quem o enviou é verdadeiro e nele nao ha injustica”. “A propria gloria” é fato exterior e, portanto, constatavel; por isso, sua busca ouarentincia a ela podem servir de critério parajulgar aprocedén- cia de uma doutrina. A busca do prestigio proprio demonstra que adoutrina que alguém propée n&o procedede Deus, mas do proprio homem; é meio para favorecer seus préprios interesses. Este critério completa o primeiro, exposto no versiculo anterior. Aqguele se dirigia a quem escuta a doutrina de Jesus, e consistia na experiéncia interna que esta provoca em quem esté a favor da plenitude humana. Mas, para o ptiblico a quem Jesus falava, existia outra doutrina oficial que pretendia também ter autoridade divina, a Lei, interpretada e manipulada pelos circulos de poder. Por isso acrescenta um critério externo, o dos interesses que defende quer propée uma doutrina; estes permitirao julgar sua validade. O critério maximo de verdade é a comunicag&o de vida ao homem, porque a verdade de Deus é ser Pai, aquele que por amor comunica sua prépria vida. Quem com seu falar nfo pretende comunicar vida, mas promover seu préprio prestigio, nfo 86 nio reflete o que Deus é, porém, ainda ao pé-lo a servigo de seu interesse, necessariamente o falsifica, Nenhuma doutrina que redunde em beneficio de quem a propée merece crédito. As obras como critério (Jo 5,36b-37a; 10,37-38a) Além do critério subjetivo, baseado na aspirago a plenitude, Jesus propée outro critério, que podemos chamar “objetivo”, a qualidade de suas obras. Assim o expressa em Jo 5,36b-37a: “as obras que o Pai me encarregou de realizar, estas obras que estou fazendo me acreditam como enviado do Pai”. se, produ no homem nova experiéneia de vida que, enquanto pereebida e formulada, é a verdade, 104 A argumentagao se baseia no conceito de Deus como Pai. Todo aquele que reconhega que Deus é Pai, tem que reconhecer que as obras de Jesus, que, como as do Pai, comunicam a vida, sao de Deus. O mesmo critérid é proposto em 10,37-38a: “Se eu nao realizo as obras de meu Pai, niio me creais; mas se as realizo, ainda que nao creais em mim, crede nas obras”. Jesus dirige-se aos representantes do regime judeu e propée-lhes este critério como indiscutivel. Pode-se apreciar’a base comum do critério das obras com a anterior, Ambos se fundamentam na realidade de Deus como doador de vida. A comunicag&o de vida, percebida em si mesmo (critério de experiéneia) ou nos outros (critério das obras), 6 0 que decide sobre a verdade de uma doutrina ou atuagao. Onde ha vida ecomunicagio de vida, afhé verdade; onde estas faltam, a verdade esté ausente, pois a verdade nada mais é do que o resplendor da vida. Condigé&o para conhecer a verdade (Jo 6,45; 17,7-8) A eficdcia desses critérios, todavia, exige uma condig&o: 0 desejo de vida, que traz consigo o amor ao homem. O critério da experiéncia, com efeito, supde que a aspiragao a plenitude nao esteja reprimida ou apagada. O critério das obras supée que Deus seja concebido como doador da vida e, como conseqtiéncia, contra- rio a toda injustiga ou opress&o ou, em outras palavras, a toda repressdo ou supressdo da vida no homem. Aqueles, como no caso paradigmAtico dos dirigentes judeus, propdem a idéia de um Deus legislador, exigente, que legitima o poder queeles exercom e subordina o homem & ordem estabelecida na Lei que eles manipulam, nunca aceitaréo os critérios que Jesus propée. Nao o critério de experiéncia, por no reconhecer Deus como doador de vida; tampouco o critério das obras, porque estas se opdem a seus préprios interesses. Esta condig&o aparece em Jo 6,45, texto que une o eritério pessoal a0 das obras: “Esté escrito nos profetas: ‘Serao todos 105 disefpulos de Deus’; todo aquele que escutao Paie aprende, demim se aproxima”. Jesus suprime no texto da profecia a alusio a Jerusalém (Is 54,13: “todos os teus filhos [os de Jerusalém] serao discipulos do Senhor”), dando assim ao dito amplitude universal. Amaneira como 0 Pai faz ouvir sua voz ¢ ensino, Jesus a utiliza ao interpretar o termo “Deus” da profecia pelo de “Pai”, o,doador da vida cheio de amor ao homem. Qualquer que veja em} Deus um aliado do homem que o leva & sua plenitude sentir-se+ Jesus, isto é, apreciaré a verdade de seu ensinamento de atuagcio. Paralelamente, na oragio de Jesusiqué conclui o-discurso da Ceia, encontramos este texto, em que Jesus fala ao’Pai de seus discipulos: “Agora j4 reconhecem que tudo o'que me deste procede de ti, porque as exigéncias queme entregaste eu as entreguei aeles e eles as aceitaram e, assim, reconheceram verdadeiramente que de ti procedo e creram que tu me enviaste” (17,7-8). No centro da passagem se encontra a raziio que faz saber e conhecer: “ exigéncias... eles as aceitaram”. HA uma decis&éo da vontade, aceitar as exigéncias, que precede o conhecimento e 6 condigao para ele. “As exigéncias” expressam a pratica da mensagem (14,10; 15,7; cf. 3,84; 6,63). O plural indica que a mensagem foi aceita nao como principio tedérico, e sim prevendo a multiplicidade de suas implicagées. Jesus expressa a mesma precedéncia da decisao com relagao ao conhecimento, dirigindo-se aos judeus que Ihe haviam dado crédito: “Para serdes de verdade meus discipulos tendes que vos ater a esta minha mensagem: conhecereis a verdade, e a verdade vos fara livres” (8,31), Nao hé conhecimento sem prévia decisio da vontade, nao se sai da diivida sem comprometer-se com o bem do homem. Com efeito, nfo se pode saber que Jesus é enviado de Deus, que sua mensagem é verdadeira e que suas obras demonstram sua missao divina ou, o que 6 a mesma coisa, ndo se pode dar a adesio a Jesus sem dé-la antes ao homem. Seu mandamento e suas exigéncias se referem ao amor dos outros; suas obras, que sio 0 argumento decisivo para provar a autenticidade de sua missao (5,36; 10,38; 14,11), s&o obras para libertar e ajudar o homem. Os 106 disefpulos chegaram A certeza porque aceitaram as exigéncias.do amor. Em Jo 3,338 afirma-se: “o enviado de Deus propée as exigén- cias de Deus, dado que comunicam o Espirito sem medida”; os discfpulos, ao aceitarem as exigéncias do compromisso, experi- mentam a agao do Espirito neles: isto os convence da miss&o divina de Jesus. Acerteza da fé nao se fundamenta, portanto, em testemunho externo, mas na experiéncia de vida (o Espirito) comunicada pelo compromisso com o homem, que cria a comunhdo com Jesus. Apoiada nesta evidéncia, a fé no ja necessita de prova e pode resistir a qualquer ataque. Aparece de novo o que 6 a verdade: a evidéncia da vida experimentada. O caso do cego de nascenga (Jo 9,1-39) O critério de verdade 6 apresentado por Jofo de maneira grafica no episddio do cego de nascenga (Jo 9,1-39). Resumo brevemente o significado da perfcope. O cego de nascenga repre- senta o homem que sempre viveu na treva, sem haver conhecido nunca a luz. Em outras palavras, representa os que nasceram € viveram em ambiente tio dominado por uma ideologia mutiladora, quentinca teve possibilidade de conhecer o que significa ser pessoa nem a dignidade prépria do homem, O cego é o homem em quem a treva extinguiu a luz, aquele que nao aspira a nada porque nada péde conhecer. Note-se que este individuo nao foi culpado de sua situagio, e tampouco seus pais (9,3). Sao outros os culpados; no evangelho, os fariseus, que, com sua interpretagao e praxe da Lei, propdem como luz o que eles sabem ser trevas (9,40s). A ago de Jesus com o cego consiste em dar-lhe a conhecer 0 que significa ser homem segundo o designio de Deus. Por isso, Joao utiliza o simbolo do barro amassado com a saliva (alusio & criagio do homem) e posto nos olbos, A saliva (nas antigas culturas, simbolo de forga) é a de Jesus; o homem que Jesus lhe dé a conhecer nao € 0 primeiro Addo, mas sua propria pessoa, o homem em sua 107 forinado de terra e de Lispirito (simbolizado pela saliva/ fazer que o cego perceba a luz, desperta nele a aspiragio, ida, & plenitude. ‘0 ‘cego corresponde a esta aspirag&o e aceita Jesus como modelo de homem. Mostra-o indo lavar-se na piscina do Enviado (9,7), cuja dgua representa o Espfrito. A experiéncia do Espirito/ vida lhe dé a visio e lhe infunde a forea para tender ao-ideal proposto.® - Com isto, o antigo cego adquiriu sua identidade, Daf poder pronunciar a frase: “Eu sou” (9,9), a mesma qué descréeve Jesus como Messias (4,26), isto 6, como Ungido pelo Espirito. Com sua identidade, obteve sua autonomia: néo tem mais que mendigar nem depender de outros (9,8). De posse desta verdade, sua nova experiéncia de vida, pode desafiar a ideologia/treva, representada pelos fariseus e dirigen- tes judeus, que, apoiando-se em sua autoridade doutrinal e institucional (9,24: “nés sabemos”), pretendem convencé-lo de que Jesus é pecador e, portanto, de que a obra que realizou nao podeser de Deus. Segundo eles, o designio de Deus era que continuasse cego. Esta é a mentira (8,44) ou treva, a ideologia que, em nome de Deus, impede a plenitude do homem. Para refutar a teologia dos dirigentes, o homem nfo apela a uma doutrina contréria, porém simplesmente & sua nova experiéncia: “Se 6 pecador ou nao é, nao sei; 0 que sei é que eu era cego e agora vejo”. Diante desta verdade estragalham-se todos os esforgos da ideologia. Notemos que neste episédio se une o critério subjetivo do cego com 0 objetivo das obras (9,38). Obras de Deus sio as que libertam o homem da opressio que sofre e Ihe dio a possibilidade de nova vida: abrindo seu horizonte e comunicando-lhe nova capacidade, liberta-o desua obscuridade, de sua dependéncia, de sua inutilida- de, de sua despersonalizagiio. E estas obras so as do grupo cristao: “temos que fazer as obras de quem me enviou” (9,4). ad Hy 6. A comunicagio do Espirito corresponde A frase do prélogo: “aos que o acolheram tornou capazes de se fazerem filhos de Deus". 108 Marcos: o ensinamento na sinagoga (1,21b-22) No episédio da sinagoga de Cafarnaum, tal como o descreve Marcos, Jesus entra nela para ensinar: “No s4bado entrou na sinagoga e imediatamente se pos a ensinar”. Diante doseu ensina- mento se produz uma reag&o geral do publico: “estavam impressi- onados com seu ensinamento, pois lhes ensinava como quem tem autoridade, nio como os escribas”. Como se vé pelo texto, nao 6 o contetido do ensinamento de Jesus, mas o modo de ensinar (“com autoridade”) que impressiona oauditério, O verbo usado por Marcos, “estavam impressionados”, n&o indica conhecimento intelectual, mas experiéncia. A autoridade (exousta) de Jesus nao é juridica, pois nfo se reveste de cardter institucional; nasce da plenitude do Espirito que possui (1,10). A impressao causada por Jesus se deve a experiéncia direta de sua autoridade, isto é, do Espirito que o impregna todo. Ele comunica antes de mais nada uma experiéncia, n&o um saber conceitual ou ideolégico. Esta experiéncia proporciona aos ouvintes um critério de juizo para distinguir entre verdadeira e falsa autoridade, critério que utilizam imediatamente: negam autoridade ao ensinamento dos escribas. Os escribas, no plural de categoria, sio os representantes autorizados da instituicdo judaica para propor a doutrina oficial. Ao negar autoridade ao ensinamento dos escribas, o ptiblico da sinagoga nega a propria instituigdo. Ao experimentar a autoridade de Jesus viram claramente que a instituigdo, como transmissora da doutrina, nao representa Deus nem tem o aval dele. Resumindo: Jesus nao impée a seus ouvintes uma ideologia ou doutrina; recebem a experiéncia direta e pessoal de uma realidade presentenele, que aureola ocontetido de seu ensinamento. De fato, n&o apela para a autoridade divina para dar aval a uma doutrina prépria; faz perceber diretamente a presenca do Espirito nele. Nao aduz credenciais, mas as pessoas intuem sua verdade. Os owvintes concluem que a doutrina tradicionalmente proposta pelos escribas émeramente humana ¢ que Deus nada tem a ver com ela. O juizo 109 negativo sobre os escribas nao é expresso por Jesus; seus ouvintes o emitem espontaneamente. Despertou-se espfrito critico e abre- seo horizonte da liberdade e da autonomia, isto é,oda maturidade humana. Como se vé também nesta passagem, 0 critério para discernir entre a verdade de Jesus e a falsidade da-instituigio se encontra no interior do homem, n&éo em argumentos, provas ou testému~ nhos, nem na autoridade divina. ff 0 proprio homem que, diante da pessoa de Jesus, discerne sua verdade. O leproso curado (Me 1,39-45) O leproso 6 em Marcos 0 protétipo do marginalizado. Mas é 0 marginalizado que cré estar sua marginalizacio justificada, pois pensa que as normas estabelecidas pela Leijudaica sao justas. Sua angtistia nasce de sentir-se exclufdo do reinado de Deus proclama- do por Jesus. Ao tocé-lo, violando a Lei, Jesus lhe mostra a invalidez das normas legais; com ela, a falta de fundamento para a margina- lizag&o. A cura que segue, contraria 4s previsédes da Lei, confirma que Deus nao discrimina entre os homens. Existe, pois, demons- tragao da invalidez da Lei (correg&o de erro) e infus&o de vida (a cura), que é a prova do erro. Com anova realidade que experimenta,oleprosoniio podeconter sua alegria e proclama ele préprio a mensagem contida na acdo de Jesus: Deus nao aceita a marginalizag&o dos homens diante do seu Reino. Foi também a experiéncia de vida que o levou a discernir a verdade de Jesus, contraria a falsa verdade proposta pela Lei. O obsidculo: néo estar com 0 homem (Me 3,1-7a) Como se viu ao tratar do evangelho de Joao, a condig&o para deixar-se convencer pelas obras de Jesus 6 a idéia de Deus como Pai, que ama o homem e deseja comunicar-lhe vida. Esta concep- g&o de Deus tem por conseqtiéncia a prépria atitude em favor do 110 homem. Quem n&o tem esta atitude nao aceitaré como critério de verdade as obras de Jesus. Um exemplo evidente de falta de amor ao homem encon tra-se em Mc3,1-7a, segundo episddio em uma sinagoga, ondeJesus cura o homem que tinha um brago atrofiado. Também este invalido é um protétipo. De fato, nesta sinagoga nao ha ptblico algum; as tinicas personagens mencionadas sao Jesus, o invélido e os fariseus; ndo hé tampouco reag&o de puiblico presente & ago de Jesus. Isto significa que o invalido representa 0 publico, os fidis da sinagoga, aqueles que pela interpretagao da Lei nela proposta (compendiada na observancia do sébado) e propugnada pelos fariseus, perdeu sua criatividade e sua possibi- lidade de agiio. A m&o/brago é simbolo da atividade. Jesus se propée tirar o povo do lastimoso estado em que se encontra, devolvendo-lhe sua capacidade de ago. Para isto ele tenta fazer os fariseus raciocinarem, propondo-lhes uma pergunta que tem evidentemente uma s6 resposta: “Que é permitido no sdbado: fazer o bem ou fazer o mal, salvar uma vida ou matar”? Foi Deus mesmo quem estabeleceu a observancia do sébado, como dia de liberdade e de descanso, como penhor da futura e total liberta- gao do homem. % Deus, portanto, quem estabelece o licito ou 0 ilfcite no sdbado. Jesus pergunta se Deus 6 a favor da vida ou da morte do homem. Para todo aquele que tenha a idéia do Deus criador ou.doador de-vida, a resposta é evidente. Mas os fariseus tém outra idéia de Deus,:a-do legislador autoritario e exigente, preocupado com sua prépria honra e com preservar a ordem que ele impés, ‘n&o com: ‘o-bem ouo mal do homem. . A resposta a Jesus é 0 siléncio, que nasce da obstinagéio. N&o estando interessados pelo bem do hoinem. nfio podem aceitar a atividade libertadora de Jesus, Mateus: o critério das obras (6,14-16) iim Mt 5,16 enuncia-se o critério das obras: os homens descobriraio Deus como Pai ao perceberem as obras que os diseipu- Jos realizam: “Comece, assim, a brilhar vossa luz diante dos Li hhom@nsique'vejam vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai do s-wAcluz a que faz referéncia esta passagem é a gléria ou resplendor do préprio Deus que, segundo Is 60,1-3, havia de brilhar sobre Jerusalém. A presenga radiante e perceptfvel de Deus ha de manifestar-se mais adiante nos seguidorés ded Ora, a luz dos discfpulos em que Deus resplandece sao as obras em favor dos homens, descritas pouco antes na 54, 64e 78 bem-aventurangas: prestar ajuda, agir com sinceridade etranspa- réncia e trabalhar pela paz, isto 6, pela felicidade do homem, que inclui a justiga. Estas obras tornardo realidade o prometido na 24, 84 e 42 bem-aventurancas aos oprimidos deste mundo: os que sofrem encontrar&o o consolo, os submissos herdaréo a terra (obterfio sua independéncia e liberdade), os que anseiam pela justiga ver-se-do saciados. Nestas obras se manifestaraé o verdadei- ro rosto de Deus; este é chamado Pai dos discfpulos, porque as obras que fazem em favor dos homens séo reflexo das de Deus. Diante do conceito de Deus legislador e legalista proposto pela instituig&o judaica, sAo as obras o eritério que permite conhecer onde se encontra 0 verdadeiro Deus e as que dao crédito, portanto, a mensagem de Jesus. E de notar que segundo Mateus, esta classe de obras é propria da comunidade crist& e de cada um dos seus membros. De fato, quando Jesus confia a missio universal aos discipulos, toda a tarefa destes junto aos prosélitos de todas as nagdes n&o é a transmissio de uma doutrina, mas a educagéo em uma praxe: “ensinai-lhes a guardar tudo o que eu vos mandei”, com referéncia as bem-aventurangas.” Perigo de subjetivismo? (1Jo 8,18-14) Quanto ao discernimento da verdade, falamos até agora de um critério subjetivo, a experiéncia de vida, e de um critério 7. Assim o demonstra o uso de entolds em 6,19, tniea vez em Mateus em que “mandamento” nio se refere aos do A'T (ef. 16,8; 19,17; 2286.98.40), 112 objetivo, as obras libertadoras do homem. Condigioprévia‘paiaia! aficdcia do primeiro 6 a aspirac&o a plenitude de vida;-para ado. segundo, a concepgiio de Deus como libertador do homeme.doador de vida (Pai). Ambos os critérios coincidem em um ponto: trata-se em ambos os casos da plenitude de vida humana. Falar de um critério subjetivo de verdade, no terreno da experiéncia interior, é algo que sera chocante para muitos, teme- rosos da arbitrariedade a que 0 subjetivo pode conduzir. Por isso, teré que encontrar outro critério, de certa maneira objetivo e comprovavel, que garanta a autenticidade na experiéncia e que evite o perigo de ilusées. Este critério se encontra na primeira carta de Joao (3,18s). Joao constata o édio do “mundo”, isto 6, da sociedade, organizada de fato sobre bases injustas, contra a comunidade crista. Diante de oposic&o maciga, os crist&os poderiam perguntar-se sobre a auten- ticidade de sua experiéncia: se n&o so vitimas de ilusdo e se sua dissidéncia esta justificada. Afinal de contas, tera razio “o mun- do”? O autor da carta tranqtiliza a comunidade: “Nés sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmaos”. Esta frase contém o verbo “saber”, verbo objetivo, em vez de “crer”, que indicaria persuasto subjetiva. Como se sabe, na primeira carta de Jodo, oamor aos outros deve traduzir-se em obras, queseresumem em “entregar a vida” (3,16: “conhecemos o que é 0 amor porque ele entregou sua vida por nés; agora, nés também devemos entregar a vida por nossos irméos”). Além do mais, tal é 0 significado do verbo agapad, que indica antes de tudo a entrega aos outros, incluindo ou nao a afetividade (cf. Mt 5,44: “amai vossos inimi- gos”). Parao autor da carta, portanto, a experiéneia interior, “haver passado da morte para a vida”, que pode formular-se também como acerteza de estar salvos, possui uma pedra de toque ao alcance de todos: a realidade do amor aos irmaos. Pode-se dizer, por conseguinte, que no fundo sao sempre as obras 0 critério da verdade. As obras proprias, quando se pretende haver tido uma experiéncia interior de salvagéo/vida; esta experi- éncia, se 6 auténtica, traduzir-se-4 necessariamente no desejoena 8.A utonte de seous 113 praticatdecomunicar vida. E as obras realizadas por outros sao 0 eritério:para julgar a autenticidade de sua missdo ou mensagem. Em:um e outro casos sao obras de amor, que promovem 0 cresci- mento do homem.® II. O CARISMA DE ENSINAR Nasegunda parte da exposigo, trataremos em primeiro lugar do uso do termo diddskalos (“mestre”) e didéské (“ensinar”) nos evangelhos; mais adiante nos ocuparemos do texto da primeira carta de Jo&o onde se trata do Espirito como mestre; finalmente, a propésito das cartas de Paulo, explicaremos 0 que se entende por “carisma” e examinaremos as passagens paulinas onde se fala do carisma do ensino (ou magistério). “Diddskalos” e “diddsk6” nos evangelhos No grego dos evangelhos, o termo usado para “mestre” é diddskalos. No evangelho de Marcos aparece 12 vezes, sempre referindo-se a Jesus. Delas, sete na boca de personagens que pertencem a cultura judaica, mas que nao sao do efrculo; quatro vezes na boca de disefpulos (4,38; 9,38; 10,35; 13,1) e uma vez nos labios de Jesus para designar a si mesmo de maneira exclusiva (14,14: ho diddskalos). Na cultura judaica, diddskalos era aquele que, baseando-se na Tora, mostrava 0 caminho de Deus; no caso de Jesus, a mensagem do Reino. O termo “rabi”, que se usava primitivamente como tratamen- to para os chefes ou para os que gozavam de posig&o elevada, 8. O mesmo critério das obras se encontra jé no prélogo de Jofio. A comunidade afirma sua experiéncia do amor de Jesus: “contemplamosa sua gléria” (1,14), ¢ a provacmseguida pelo amor que nola existe: “E a prova éque de sua plenitude todos nds recebemos: amor que corresponde a seu amor” (1,16). 114 comega a empregar-se para os mestres até o ano 110 a.C. Designa o mestre que comenta a Lei de Moisés permanecendo no Ambito da tradigao.® Nos sinéticos, aplicado a Jesus, o termo “rabi” aparece em uma passagem de Mateus (25,29), na boca de Judas (14,45), Nestes evangelhos, o termo é claramente pejorativo. No evangelho de Mateus, diddskalos aparece também doze vezes, e Jesus 0 aplica a si mesmo com carater exclusivo (26,28). Nao sé isto, reivindica ser 0 tinico mestre na comunidade crist& (28,8: “vés, ao contrério, néo vos deixeis chamar ‘rabi’, porque vosso mestre é um 86 e vés todos sois irm&os”). Em Lueas aparece 17 vezes. Como em Mateus e em Marcos, Jesus 0 aplica a si mesmo com sentido exclusivo (22,11). B sabido que em Lucas os discipulos néo usam este tratamento com Jesus, mas 0 de epistdiés (5,5; 8,24.45; 9,833.49; cf. 17,18), que se pode traduzir por “chefe”. Em Joao, didéskalos aparece sete vezes; “rabi”, oito; mas neste evangelho eles sio equivalentes, como o faz notar o préprio Jo&o, ao dar a tradugio de “rabi” em 1,38, aplicado a Jesus pelos dois discfpulos de Joao Batista. Jesus, entretanto, nao aplica a si mesmo o titulo de “rabi”, 86 o de diddskalos (18,18). Quanto & atividade do ensinamento, Jesus, no evangelho de Marcos, ensina somente a auditérios compostos de judeus ou a seus discfpulos (termo que neste evangelho designa os seguidores procedentes do judaismo),!° quando estes ndo entendem pelo contato com ele e com sua atividade (8,31; 9,31). Explica-se que Jesus ensine somente a judeus por causa do significado de “ensi- nar”: expor a mensagem com base no AT’. Marcos, que rejeita a idéia de impor a cultura judaica aos gentios, distingue cuidadosa- mente até o modo de falar de Jesus conforme o ptiblico a quem se dirige." Assim se entende perfeitamente que Jesus nunca dé aos disefpulos o encargo de “ensinar” e que, quando estes de fato ensinam, estejam traindo a missio universal que Jesus lhes confiou. A missio dos seguidores de Jesus 6 “proclamar” (13,10; 9. Cf. J, Mateos, Los Doce y otros seguiciores de Jestis en el Evangelio de Marcos, Cristiandad, Madri, 1982, pp. 2289. 10. Cf ibidem, pp. 1298s. 11. Veja-se ibidem, pp. 1948s: Hl doble vocabulario. 115

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