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. MULHERES, DIVORCIO E MUDANGA SOCIAL DIVORCIO: TENDENCIAS ACTUAIS ANALIA TORRES* © aumento do divércio, sobretudo nos Gltimos quinze anos, é uma realidade estatisticamente verificével em muitos paises industrializados. In- dependentemente da especificidade dos processos sociais em cada pais, esta subida é geral e traduz, como veremos, mudangas significativas a varios ni- veis da realidade social que se exprimem nas relagdes familiares. divércio, como ¢ sabido, nao é uma figura juridica, nem uma pra- tica social recente. Em Portugal, como noutros paises’, a afirmaglo da Repiblica esteve estritamente ligada a um principio programatico funda- mental — a separagdo da Igreja do Estado —, que se consubstanciava na tentativa da laicizagdo da vida civil. A institui¢do do casamento civil obri gatorio procura impor uma logica — a do casamento como contrato — que se opunha a légica do casamento como sacramento, praticado até ai e de- fendido pela Igreja Catélica. Subjacente a ideia do casamento como contrato‘ estava a possibilidade da sua dissolugao — o divércio. A legisla- ¢40 portuguesa sobre esta matéria era a mais avangada da Europa néssa epoca, j& que consagrava o divércio por mituo consentimento, sem restrigdes*, Defendemos noutro trabalho que o que parecia estar em causa, numa abordagem sociolégica, ndo era tanto a cedéncia & pressao dos separados que pretendessem ver resolvida a sua situac&o legal, se bem que esta pareca existir, mas mais a tentativa de imposi¢ao da racionalidade da lei, contra o arbitrio do destino a que a gest%io dos assuntos civis pela Igreja parecia comdenar os cidadaos. O problema central a regulamentar era o dos filhos dilegitimos» (0s «espirios», cujos dramas Camilo tao bem retratou). Por- tugal tinha das mais altas taxas de ilegitimidade da Europa. Outra questo importante do ponto de vista dos republicanos, 0 da moralizag4o dos cos- tumes, passava pela tentativa de por fim, com o casamento civil obrigatd- rio, As unides de facto («juntar os trapinhos») que eram a regra nas classes populares, sobretudo entre os operarioss. E adiantar este dado serve alias para indicar que 0 acesso ao divorcio era muito diferenciado, restringindo- se na pratica a pequena e a média burguesia urbana. Como Musil’, pode- + Docente do ISCTE e investigadora do CIES, 18, SOCIOLOGIA riamos dizer «todos os burgueses eram iguais perante a lei, mas justamen- te, nem todos eram burgueses... Esta entrada pelo Divorcio na Primeira Republica quando 0 nosso ob- jectivo é falar dos nossos dias no ¢ um mero exercicio. E que a especifici- dade da abordagem sociolégica nao se compadece com leituras répidas ou apressadas de um indicador estatistico qualquer, neste caso o do aumento do divércio. Por si s6, ele nfo nos diz nada. Pode ser utilizado como alar- me num artigo de jornal. ou como sinal hipotético e positivo de tempos li- bertadores. Mas este indicador isoladamente esta longe de servir para per- ceber a realidade social, ou as suas significagdes mais profundas. Tal como para a Primeira Repiblica era preciso entender em que conjuntura ou con- texto social surge a lei, defendida por quem, vivida enquanto pratica por que grupos sociais, ou que lugar ocupava o divércio como possibilidade nos modelos ou nas estratégias matrimoniais; o divércio na Primeira Repi- blica teve os seus opositores, os alarmes de desagregac&o ou desorganiza- go social, que ainda hoje se ouvem, isolados do seu contexto, tém algo de comum com os de entao. Se insistimos nesta ideia € porque durante os iiltimos anos este mesmo indicador (0 aumento do divorcio) surgiu, entre outras coisas, associado & ideia de crise da familia, ou mesmo pressagiando o fim da mesma. Nao se pretende, é claro, dizer que nada mudou na familia. Antes se pretende chamar a atenc&o para o facto de a mudanga social ter de ser pen- sada como processo em que interagem diversas dimensdes da realidade so- ial, € nao ser necessariamente sinonimo de crise, desorganizagao, anomia. Uma visdo geral de outros indicadores estatisticos, e outras informa- gGes teéricas, tornarao mais claro o que afirmamos. Que hé de novo, ent@o, no aumento da divorcialidade nos nossos dias? Em primeiro lugar, sem adiantar aspectos que sero desenvolvidos posteriormente, e numa perspectiva meramente quantitativa, a subida do divércio € acompanhada em muitos paises da descida das taxas de nupciali- dade ¢ de natalidade. Crescem ainda as unides de facto’, os lares monopa- rentais e os de pessoas sos. Se a maioria dos divorciados volta a casar, é também verdade que o niimero dos que permanecem divorciados aumenta®, Ha algumas diferengas de pais para pais, mas estes sto tracos comuns. Ha paises em que os fenémenos se verificam h mais tempo e pa- recem alias ter chegado a uma espécie de patamar a partir do qual se est prestes a atingir uma estabilizagao (€ 0 caso da Suécia). Noutros, tais fend- menos esto ainda em pleno desenvolvimento (Franga, Alemanha, E. U. A). E a leitura conjugada destes varios indicadores que nos deve fazer re- flectir sobre o que ha de novo ainda de forma global. Como tendéncia geral, Thora Nilson" afirma, a proposito da Suécit «Apesar da desagregacdo das familias muitas vezes evocada, a coabitagio —se nela incluirmos os casais nao casados— apresenta uma estabilidade N.°2-1987 119 impressionante no tempo». Eo mesmo se pode dizer do lar médio de duas a quatro pessoas. A familia conjugal —em sentido amplo— parece bas- tante intacta. O fenémeno novo reside mais numa grande «renovagao das familias». Esta «renovacdo» tera assim a ver com o facto da conjugalidade no obedecer agora s6 & norma juridica do casamento, mas incluir um né- mero substancial de coabitagdes""; simultaneamente assiste-se ao ctesci mento e convivencialidade de miltiplas formas de associagao conjugal — coabitacao, casamento, lares monoparentais, pessoas que vivem sozinhas partjlhando de outra forma a sua vida afectiva, etc. Se a Suécia costuma a nivel de legislacdo da familia e mesmo das prati- cas sociais ser pioneira, nem por isso seria legitimo pensar que as evolucdes nos outros paises Ihe seguem linearmente os passos. Deixando este aponta- mento, voltemos agora ao nosso pais. Em Portugal, ¢ ainda em termos meramente quantitativos, verificam- -se, com algumas especificidades, as mesmas tendéncias estatisticas. A taxa de nupcialidade, depois de ter tido um ponto alto em 1975, voltou acelera- damente a baixar para niveis idénticos aos de 1970. A taxa de natalidade também desceu'. A taxa de divorcialidade subiu, depois de ter tido um grande crescimento entre 1976 e 1979, baixou, e depois voltou a subir ainda que esteja muito aquém de outros paises da Europa (nomeadamente a Franga). De salientar ainda que a este repeito ha, de resto, grandes desni veis entre Lisboa e 0 resto do pais. Com efeito embora esta percentagem tenha vindo a baixar, (o que sig- nifica que o divércio aumenta no resto do pais) do nimero de divércios to- tal 60 a 50% so registados no Distrito de Lisboa (ver grafico n.° 9). Alias ja outros indicadores demograficos assumiam valores marcadamente renciados em Lisboa, assinalando de forma idéntica este tipo de desniveis 3. Tendo como referéncia a Primeira Repitblica, e pensando agora numa optica que tenha em conta os diferentes modelos matrimoniais * e grupos ou classes sociais, podemos dizer que o divércio se generaliza mantendo no entanto a sua particular incidéncia nos grupos socioprofissionais com mais expresso no urbano (empregados, quadros médios ¢ quadros supe- riores) que foram também os que mais cresceram nos diltimos anos (ver quadro n.° 1) Em segundo lugar e numa perspectiva mais qualitativa se pretender- ‘mos comecar a explicar esta realidade para perceber 0 que ha de novo, te- remos de recorrer a0 entendimento de um conjunto de transformagdes, ocorridas no nosso pais nos iltimos vinte anos, to decisivas quanto sus- ceptiveis de se reproduzirem nas relagdes familiares. A saber, a tendéncia acentuada para a fixagao das mulheres no mercado de trabalho; a relativa autonomia econdmica que a sua participago na actividade profissional pode implicar face familia; o crescente niimero de tarefas de socializaciio a carga do Estado; as mudangas introduzidas a varios niveis com 0 25 de Abril — as ocorridas nas estratégias de reprodugaio social, de que o recurso 120 SOCIOLOGIA generalizado & contracepgdo € um exemplo, ou um fendmeno aparente- mente to lincar como o aumento da esperanga de vida. Elas terdo certa- mente reflexo na vida conjugal. Do mesmo modo serd de ter em conta todo o tipo de mudangas habi- tualmente associadas ao nivel simbolico. As representacdes diversas sobre a familia, a afectividade e o sentimento amoroso de uma época, os valores, as culturas, as mentalidades que, de alguma forma, com mais ou menos autonomia, exprimem ou recobrem as mudancas na materialidade das con- digdes de existéncia, e que nelas interferem, estao em jogo nas relagdes fa- milliares, no casamento € no divércio. «Como 0 casamento, 0 divorcio mudou. Recentemente ainda sinal de uma instabilidade familiar, de uma crise do individuo e da sociedade, san- ao de uma falta contra 0 outro parceiro, as criangas, a familia e a socie- dade, ele torna-se corrente e banalizado» 's. Sera assim em Portugal? A leitura, mesmo conjugada, dos indicadores estatisticos tem miltiplas significagdes sociolégicas. E obviamente nao se substitui & necessdria andlise das praticas sociais. Antes de enunciar a especificidade do trabalho que elaboramos, serio indicadas brevemente algumas das abordagens que no terreno da sociolu- gia da familia procuram explicar 0 aumento da divorcialidade nos nossos dias. Kellerhals e Trutor', num artigo que tem como um dos objectivos ti- pificar as diversas perspectivas tedricas que procuram explicar 0 divorcio, dao-nos algumas pistas. Para alguns socidlogos da familia, as expectativas em relagiio ao pro- jecto familiar séo desmesuradas. Os socidlogos que apontam para esta perspectiva partem do pressuposto que a ideologia do progresso associada a0 desenvolvimento industrial produziu a consciéncia da felicidade possi- vel, a0 mesmo tempo que agudizou a percepcao dos limites € misérias do presente, © modo de resolver esta contradicao consiste em esperar, do «ou- tro» e da relagdo, a concretizacdo total dessa felicidade. Os individuos nao se divorciam ent&o porque o casamento perdeu a sua importincia mas exactamente ao contrario, porque esperam demasiado deste: s6 0 seu éxito @ aceitavel. A separacdo sera assim mais uma etapa na procura da felicidade”. Para outros autores, os individuos encontram na organizagéo matri- monial ¢ familiar, para além da relagao afectiva, principios de funciona- mento atraentes € vantajosos na producio quotidiana da sua existéncia. Mas associados a estas vantagens ha obstaculos, tensdes, conflitualidades. Eles residem no facto de as «prestagdes» respectivas que os conjuges forne- com & familia serem objecto de discuss4o. Nesta 6ptica, a vontade de igual- dade entre os sexos, produzida entre outras coisas pelo facto de as mulhe- res trabalharem fora de casa, traduziu-se numa certa ambiguidade na for- ma de gerir estas «prestagdes» miituas o que eventualmente da origem a N.° 21987 121 uma maior tensao ou conflitualidade e que pode estar na base do aumento do divorcio. Para outros pesquisadores ainda, é a propria troca matrimonial que é caracterizada por normas do funcionamento contraditorias, (tendéncias para a fusdo, tendéncias para a individualidade). claro que ainda ha muito mais perspectivas tedricas segundo as quais 0 divércio tem vindo a ser avaliado. As que foram explicitadas, abor- dando aspectos miltiplos, concorrem certamente para a compreensdo de uma realidade que os socidlogos da familia nao se cansam de afirmar como extremamente complexa. O trabalho de pesquisa que efectuamos sobre mulheres divorciadas nao tinha como objectivo explicar as causas do divorcio. Situava-se noutra area que nao a da sociologia da familia, o que nos Ievou a escolha de um objecto tedrico € empirico que, se tinha virtualidades para abordar praticas de divorcialidade, fazia-o apenas para um dos polos da relacdo conjugal (a mulher). Obedecia a uma perspectiva balizada a partida pela questdo da mu- danga social. Procuramos, assim, definir uma linha de analise que nos per- mitisse estudar a problematica da mudanga — e optamos por estudar «as mulheres». A escolha do objecto empirico foi determinada com estes para- metros € por isso um estudo de caso sobre praticas ¢ atitudes de mulheres divorciadas de Lisboa parecia-nos adequado. trabalho teve assim como objectivo captar de forma ainda geral as transformagdes mais relevantes ocorridas no periodo dos iiltimos quinze anos, quer em relagdo ao estatuto da mulher quer em relagao a divorciali dade. Fez-se ainda uma incursao nas reas da sociologia da familia porque © divércio esté estreitamente relacionado com o casamento ¢ a familia. Realizamos um levantamento sociografico em relacao ao divorcio, no periodo indicado, e, se exploramos privilegiadamente os indicadores que fossem mais relevantes para a situaco das mulheres, nao deixamos de fi- car com uma perspectiva extensiva mais global. ‘Temos a nogao de ter conseguido um conjunto de informagao teérica eempirica de cardcter geral, ou mais objectivada, quer em relagao as trans- formagées ocorridas quer em relac&o & divorcialidade. O presente artigo tem como objectivo fundamental dar conta desta informagao geral e actual ¢ é simultaneamente o produto da reflexdo tedrica que outros trabalhos, na mesma area € noutros periodos, nos suscitaram. Quanto ao estudo de caso sobre mulheres divorciadas, suas praticas e representacdes, ou seja toda a Area preferencial do vivido ou da subjectivi- dade da divorcialidade, preferiu-se torna-la objecto de um proximo artigo porque este se tornaria demasiado extenso, € 0 assunto merece um trata- mento mais exaustivo. Isto nao implica que ainda nesta parte ndo se fagam referéncias As en- trevistas realizadas sempre que nos pareceu que clarificavam aspectos abordados. 122 SOCIOLOGIA ‘Trabalho feminino, estruturas familiares, mudanga social Procuramos estabelecer uma relagdo entre as mudangas no estatuto das mulheres, preferencialmente a questo da sua situac&o face ao trabalho fora de casa e as relagdes familiares. Esta relag&o no é inovadora em termos tedricos, nem inédita para o senso comum. M. Segalen, entre outros, num extenso trabalho sobre a so- ciologia da familia, sobretudo quando trata dos nossos dias, da relevo ao mesmo tipo de relacdo. Vejamos como se manifesta esta relagao segundo diferentes dpticas. © aumento da taxa de actividade feminina é um dos indicadores das transformagdes ocorridas nos tiltimos vinte anos. Mas 0 facto que parece ser novo, e este € mais recente em alguns paises (nos tiltimos dez anos), é que, nao s6 continua a aumentar a participago das mulheres, como ha uma tendéncia para a sua fixagdo no mercado de trabalho, isto é, as mu- Iheres nao saiem do mercado de trabalho como acontecia antes'® quando tinham o seu segundo filho. Para J. Commaille' isto significa uma mudanga estrutural com im- portantes implicagdes em diversas areas, entre as quais a da familia. «A en- trada das mulheres na actividade profissional e a sua manutengao, qual- quer que seja a idade, @ uma tendéncia, um facto estrutural que se desen- volve apesar da crise... Para além das evolugées, 0 que é relevante & que 0 trabalho das mulheres coloca a questdo importante das relagdes entre a es- fera da produgdo ¢ a da reprodugao». Este facto novo nao nos pode levar a conclusdes apressadas. A activi- dade profissional das mulheres é diferenciada conforme as classes sociais de pertenga, para além de apresentar especificidades face a0 conjunto mas- culino. As mulheres so quase sempre as primeiras candidatas ao desem- prego e quase sempre a maioria dos desempregados (0 que varia com a for- magao social e pode atingir valores elevados, como é 0 caso portugues). Por outro lado, se ha grupos socioprofissionais em que nao se sente 0 ca- racter precario deste trabalho, noutros esta é a regra — trabalho mal pago, com desvios salariais acentuados em relac&o aos homens. E necessario salientar os aspectos novos, mas é igualmente necessario procurar as mediagdes que podem configurar essas mudangas de forma ex- tremamente diferenciada, e relativizar generalizagdes apressadas encobri- doras de dimensdes da realidade social s6 visiveis neste processo simulta- neo de procurar tendéncias ou factos novos, e a sua configuracdo especi- fica. Em Portugal, e ainda no plano geral e da interpretacaio dos dados es- tatisticos, aquilo que é apontado como um facto é aqui apenas uma ten- déncia verificavel para as geragdes mais novas de mulheres), Em 1982, 0 abandono da actividade profissional ¢ menor entre os 25 e os 34 anos do que o era em 1974 ou 1978. Alias & s6 a partir da década de 60 que a par ipagao das mulheres no N.° 21987 123 mercado de trabalho se acentua. Jodo Ferrio” dé algumas indicagdes so- bre as tendéncias verificadas na recomposiedo social entre 1970 ¢ 1981 € uma das tendéncias verificadas na recomposicao social entre 1970 e 1981 ¢ uma das tendéncias gerais € a «da marginalizagdo relativa das actividades produtivas e correlative avango das categorias residuais (reformados, pen- sionistas, estudantes, pessoas vivendo dos rendimentos, etc.). A iinica cate- goria que nao obedece a esta tendéncia geral é justamente a das domésticas — que declina de forma acentuada. Da mesma forma, enquanto a taxa de actividade global (H, M) baixou, a taxa de actividade feminina pelo con- trario aumentou (feminizagdo, terciarizagéo da mao-de-obra)*. Mas se es- ta € a tendéncia quanto a actividade feminina «declarada» ou «formal» quando 0 mesmo autor indica uma outra, a do crescimento do trabalho «oculto»4 (nao declarado) e «auténomo» (ocupagao da parte do agregado familiar, em actividades antes realizadas no sector «formal»), nao sera cer~ tamente abusivo pensar que silo actividades em que havera um conjunto substancial de mulheres. Se este é ainda um sinal da crise, ou do desempre- g0 feminino crescente, é também uma indicagao, como ja se referiu, da es- pecificidade de certas ocupagdes femininas. Sintetizando agora, em termos gerais, a participagao das mulheres na actividade profissional, em Portugal cada vez maior e como indica Maria do Carmo Nunes «como fenémeno mais marcante dos tltimos anos que as novas geracdes de mulheres nao so aderem de forma crescente a vida activa como se fixam nela de forma mais continua» ®. Destes tragos gerais foram evidenciados os que se tornam particular- mente revelantes em meio urbano, e especificamente em Lisboa, zona do pais que se seleccionou como objecto de analise. Que relacdo estabelecer entre estes dados sobre a actividade profissio- nal feminina e a tendéncia para a fixagao das mulheres no mercado do tra- balho e as estruturas familiares ou, mais especificamente, as praticas de di vorcialidade? Vejamos primeiro esta relacdo no plano tedrico. Ha autores que partem da perspectiva de articulacao necessaria entre «sistemas produtivos e estruturas familiares», afirmando que as estruturas familiares e as estruturas produtivas «nao sao fixas ¢ que se estruturam e desestruturam permanentemente e se influenciam mutuamente»’. A con- clusao desta légica é a formulagao de que ao longo do tempo, no sistema capitalista, se foram forjando articulagdes diferentes entre as estruturas produtivas e as relagdes familiares: «até 1945 a mulher trabalhava na fami lia e 0 modelo correspondente era a familia-patriarcal; de 1945 a 1975, com © desenvolvimento da industrializagao ¢ o assalariamento da industrializa- gio e 0 assalariamento macigo, a mulher trabalha no exterior em troca de um salério complementar, ¢ 0 modelo familiar correspondente era a fami- lia conjugal; de 1975 em diante todas as mulheres trabalham, e 0 modelo familiar correspondent é a familia de dupla carreira® porque mudou a re- lagao salarial. Tendo como conceito fundamental o de «regulacao», esta andlise as- 124 SOCIOLOGIA senta no pressuposto de que as evolugdes no trabalho engendram regula- ges ao nivel da familia ¢, reciprocamente, as novas estruturas familiares induzem em parte novos modos de gestao da mao-de-obra, apoiando-se esta regra geral nas formas familiares existentes. Quanto’ situagao actual nesta abordagem 0 conceito de familia «de dupla carreira» corresponde & igualdade de direitos entre homens ¢ mulheres consagrada na lei e vivida enquanto tal na familia em que se partilham ou tendem a partilhar as tare- fas, Os casais mais novos sao aqui tomados como exemplo de uma tendén- cia que se acentuard e generalizar no futuro. Neste sentido, a banalizagéo do divércio explicou-se exactamente porque nao ha agora constrangimen- tos ou dependéncias especificas face & familia assim constituida. Esta perspectiva, embora tenha o mérito de salientar a possibilidade da generalizaco de um modelo nas sociedades urbanas (0 da familia de dupla carreira), tem o grande demérito de ocultar profundas diferengas. A familia de dupla-carreira s6 pode servir como indicagdo muito geral, e nun- ca como conceito para ser operacionalizado numa pesquisa. Familias em que os dois membros do casal trabalham fora de casa sio susceptiveis de revelar significativas diferencas entre si, dependendo do lu- gar de classe que cada um ocupa ou do tipo de recursos (em capital econd- mico, social e cultural) disponiveis e que cada um «traz para casa» ®. Este tipo de modelo ou este conceito de familia de dupla carreira pa- rece assentar num equivoco: € que uma tendéncia ou a previsdo de uma fu- tura regularidade (como é o caso do crescimento da taxa de actividade fe- minina, ou a probabilidade de mais mutheres se fixarem no trabalho exte- rior) n&o indica que passem a ser iguais aos homens, ou as familias iguais entre si, ou mesmo as mulheres entre si. Por outro lado, dizer-se que a igualdade na lei, por exemplo, produz efeitos generalizadores, néo é dizer que cla é inteiramente efectiva na pratica social. Os mecanismos da dife- renciagao social mantém-se activos na vida social. Nem por isso se pode deixar de ter em conta, contudo, as transformagdes no estatuto das mulhe res, particularmente aceleradas nos iltimos anos; é inadequado, com efei to, adoptar uma perspectiva de analise que se limita a por em foco a subor- dinagao das mulheres considerando irrelevantes as diferengas em relagao ao passado. O problema é o de saber o que mudou, de que maneira, para que grupos sociais, como é vivida a mudanga pelos diferentes grupos e clas- ses, como ela se integra nas estratégias de reproducao ¢ como estas se transformam. E isto s6 pode ser avaliado numa analise das praticas dos ac~ tores sociais que tenha varias destas dimensdes envolvidas. Como veremos, 0 discurso oficial sobre a igualdade dos direitos das mulheres produz, além de efeitos simbélicos globais® mudanga de representagdes ¢ de praticas, quer por parte das mulheres, quer em relagaio a estas. Mas sao transforma- Ges relativas, ou relativizdveis. M. Segalen chama a atengdo exactamente para a necessidade de pensar esta dupla situagao de permanéncia e mudan- ¢a ao referir as diferencas entre o que se pensa ¢ 0 que se pratica. Ao falar no casal contemporaneo em Franca, a autora assinala que sempre que se N° 2-1987 125 trata de inquéritos ou sondagens & opiniao acerca de legitimidade do traba- Iho feminino ou da partilha das tarefas domésticas, parece haver mudangas substanciais de atitudes por referéncia ao passado. Quando se trata de i quéritos ou sondagens sobre a pratica efectiva, por exemplo as horas dis pendidas em trabalho profissional e trabalho doméstico para os homens € para as mulheres as diferencas continuam entéo extremamente acen- tuadas*!. Vejamos agora de forma mais directa ¢ apoiada em estudos empiricos a relacdo que se pode estabelecer entre a actividade profissional das mulhe- Tes € 0 divorcio. Em Franca, so as mulheres activas que mais frequentemente pedem 0 divorcio. Em 1968 no conjunto das mulheres casadas 68,3% das que es- tavam em proceso de divércio tinham actividade profissional, contra 34,2% que nao tinham. Num estudo mais recente elaborado em Genebra® os autores defe dem que o trabalho profissional além de ser uma fonte de autonomia para as mulheres por produzir, entre outros efeitos, aumento de recursos para a familia, facilita também ao homem o acesso ao divorcio. E isto nao apenas porque a actividade profissional seja cada vez mais frequente ou porque permita as mulheres uma maior capacidade de acco na justica, mas fun- damentalmente porque «o trabalho é objectivo hoje de uma avaliagao dife- rente para os membros do casal: admite-se com efeito que uma mulher viva do rendimento do seu trabatho, e desta maneira faca valer a sua autonomia mesmo virtual tanto no casamento como no momento do divércio» *. Este recurso beneficia igualmente o homem, isto quer a mulher te- nha ou nao uma actividade profissional, porque ela pode, ou supée-se que pode, ser independente economicamente tomando ou retomando uma acti- vidade econdmica. Da mesma forma que para Franga, o texto de das autoras suicas que ‘em Genebra as mulheres com actividade profissional se divorciam mais que as que a nao tém: 83,7% das mulheres, da amostra feita com base nos jul- gamentos de divércio em 1980, exerciam uma tal actividade, Pode ainda estabelecer-se uma relagdo entre a iniciativa do divércio € a actividade profissional das mulheres. Sao também as mulheres com acti- vidade que tomam a iniciativa do divércio mais frequentemente, embora aqui seja necessario fornecer algumas indicagdes complementares. Com efeito, os trabalhos que temos vindo a referir indicam que a iniciativa do divorcio é sempre maioritariamente feminina, qualquer que seja a situago face ao mercado do trabalho (em Franga, em 1970, 60,9% dos divércios fo- ram pedidos por mulheres)’. W. Goode propde uma explicagfo em ter- mos de «estratégia do divércio», indicando que nos casos estudados em 1960 nos Estados Unidos era frequente ser 0 marido a desejar 0 divércio embora conduzisse o seu comportamento de forma a ser a mulher a tomar a iniciativa. Hoje sera provavelmente diferente, como teremos ocasiéo de ver, ¢ exactamente porque as novas condigSes permitem as mulheres a to- 126 SOCIOLOGIA mada de iniciativa. Este reparo serve, aliés, para mostrar como a leitura dos dados sem interpretagao analitica conjugada das praticas sociais pode conduzir a erros de observagdo. A leitura sem qualificagdes dos elementos estatisticos, levaria na verdade a conclusio de que as mulheres sempre to- maram a iniciativa do divércio, e hoje mais que nunca, sem distinguir as miltiplas estratégias que se encobrem nas quantificagdes ou categorias ju- ridicas. Em Portugal, os dados de recenseamento da populacao de 1981 permi- tem concluir que as mulheres divorciadas se encontram maioritariamente nos grupos de condieao socioeconémica activa e minoritariamente naque- les que ndo incluem actividade profissional como as inactivas, ou «a cargo da familiay (ver Quadro 2)". No nosso estudo de caso foi também possivel observar, como vere- mos, que as mulheres divorciadas com actividades profissional tomam mais facilmente a iniciativa do divorcio. Alias, de entre as mulheres sem actividade profissional entrevistadas, apenas uma tinha tomado tal inicia- tiva®, Mas, se é verdade que se pode estabelecer uma relagao pertinente entre aumento da participagdo da mulher na actividade profissional e 0 divor- cio, isto nao quer dizer de forma nenhuma que ela seja uma relagéo meca- nica de causa-efeito. Dito de outra maneira, ndo é a actividade profissional das mulheres que € «responsavel» pelo aumento do divércio, € muito me- nos a libertagao das mulheres ou a sua autonomia, a causa do divércio. Quisemos apenas, em tracos gerais, caracterizar alguns dos factores de mudanga na situagdo das mulheres que podem contribuir para novas confi- guragdes das relagdes familiares e que neste sentido permitem praticas ¢ atitudes face & conjugalidade que tornam possivel 0 divorcio, o seu cresci- mento ou a sua banalizagao. ‘Assim, podemos apenas concluir que a actividade profissional e a ten- déncia para a fixacao das mulheres no mercado de trabalho permitiram a avaliacao diferente dos papéis nas relaces conjugais, diminutram os cons- trangimentos econdmicos em relagao as mulheres e sido um recurso que possibilita também aos homens uma menor responsabilizagao face @ fa- milia. Deve ter-se em conta o facto, que se deixou assinalado, da actividade profissional das mulheres ser caracterizado pelo menos para uma larga franja pelo trabalho precirio, mal pago e em condigdes de acesso ou de oportunidade diferenciadas em rela¢do aos homens. Esta situac&o, para ja nao falar de outros fendmenos de conjuntura ou de contexto, como o de- semprego ou a crise, condiciona a forma como é vivida a propria activi- dade profissional das mulheres (0 salario pode ser um mero contributo pa- ra as familias e nao uma fonte de autonomia), ¢ neste sentido a possibilida- de efectiva de usufruir dessa autonomia, ou a possibilidade do divorcio, pode ser extremamente distante. Por isso se falou de autonomia «virtual». Actividade profissional ndo significa linearmente nem independéncia eco- N.° 2-1987 127 némica, nem auséncia de constrangimento a este nivel, e serd apenas uma das condicdes que podera potenciar ou tornar posstvel essa independéncia ou essa auséncia de constrangimento. E este problema da actividade profissional e de independéncia econd- mica, é ainda susceptivel de outra abordagem. O divércio é menos frequen- te quer nas chamadas classes populares quer nas classes altas com grandes recursos de capital econdmico™. O que indica que ha outros factores para além do maior ou menor constrangimento econdmico que esto em jogo nas estratégias matrimoniais. Com efeito, nos grupos sociais com maiores rendimentos 0 casamento pode significar um importante investimento de alargamento e conservacio do capital, e neste sentido o divarcio pode apa- recer como uma perda na sua manutencdo e reprodugao. Isto nao quer di- zer que 0 divorcio no exista nestes grupos, mas apenas que é por estas ra- zées que ocorre com menor frequéncia. A autonomia das mulheres est aqui de certa maneira condicionada ou limitada por este factor objectivo que se expressa ao nivel simbélico (e € vivido certamente de forma incons- ciente) desde a escolha do cénjuge até ao decorrer da vida conjugal, nas di- versas opgdes que esta implic: [Nos grupos sociais em que por outro lado o problema do constrangi- mento econdmico se poe com maior acuidade (nas classes populares por exemplo) 0 casamento pode significar um importante meio de manter ni- veis de vida acima dos limites de sobrevivéncia, ¢ 0 divércio constituira também uma perda substancial ou a condenagao a um empobrecimento que s6 a vida em conjunto impede. Neste caso a autonomia que a activida- de profissional implicaria esta condicionada pela estratégia matrimonial implicita na situagio de conjugalidade deste tipo. Dir-se-A ent&o que a actividade profissional se bem que seja susceptt- vel de produzir uma autonomia relativa das mulheres no casamento € no divorcio tem menos peso que as estratégias de reproducao social ou as dife- rentes estratégias matrimoniais. No nosso pais, uma andlise dos indicadores da divorcialidade por gru- pos socio-profissionais conduz-nos exactamente ao mesmo tipo de conch sdes, Com efeito, as mulheres divorciadas pertencem maioritariamente a grupos socioprofissionais como quadros superiores, profissdes liberais, quadros médios ¢ empregadas (ver Quadro n.° 1), exactamente como em outros paises — naqueles em que as questdes da manutengao ¢ reprodugdo do capital econdmico parecem nao pesar tao decisivamente. Como se sabe estes grupos so ainda os que mais crescem em meio urbano. Retirar destes dados gerais outras significagdes implica entrar na pro- blematica dos diferentes modelos e estratégias matrimoniais e na sua espe- cificidade em Portugal. Qual o «peso» de cada uma das determinagées (de classe, cultural, religiosa, etc.) ¢ como se configuram depois numa relagtio dindmica como é a relacdo conjugal, sujeita a reformulagées, a efeitos de trajectoria e de contexto social? O estudo de caso sobre mulheres divorciadas de Lisboa que temos vin- 128, SOCIOLOGIA do a referir permitiu-nos retirar conclusdes sobre as atitudes destas quanto & actividade, que passaremos a indicar. Serao ainda enunciadas brevemen- te diferenciagdes que se tinham estabelecido como hipdteses de partida (classe ¢ idade) e se confirmaram como pertinentes. Como é sabido o tra- batho empirico revela sempre um conjunto de facetas das praticas sociais € das atitudes que permitem uma reavaliagao das hipoteses e 0 surgimento de novas questdes. Mas estes serdo aspectos a desenvolver num préximo artigo. A atitude das divorciadas face A questao da autonomia profissional parecia ser idéntica ou unanime — uma avaliacdo, mesmo para as que no trabalhavam fora de casa, da importancia decisiva da actividade profissio- nal como fonte de maior independéncia, ou para algumas mesmo como im- Pportante conquista das mulheres. Trata-se de uma atitude de mulheres com uma situagdo especifica, para quem a questo da autonomia financeira, ou a sua auséncia, era sus- ceptivel de se revelar como particularmente importante no divércio. E no entanto de reter como atitude clara e geral, a sua convicgao acerca da importancia do trabalho profissional como meio ou mesmo garantia de in- dependéncia. Dito por outras palavras, o discurso sobre a igualdade de di- reitos das mulheres divorciadas integra as representagdes das mulheres ur- banas, e mesmo daquelas que pela sia idade ou condigo social esto na pratica mais distanciadas da vivéncia dessa igualdade. Em relacdo a outros aspectos pareceu-nos importante estabelecer dife- renciagdes entre as entrevistadas. E curioso constatar que o 25 de Abril surge apenas explicitamente como acontecimento importante para «abrir os olhos», «participar em no- vas actividades», «conhecer outras pessoas», nas mulheres divorciadas provenientes das classes populares (operarias ou empregadas com baixos rendimentos). Isto ndo quer dizer que as outras nfo o pudessem pensar como factor importante, mas apenas que ¢ significativo 0 facto de, nas pri- meiras, ele surgir no discurso a propésito do seu divorcio® e por vezes evo- cado como facto de distanciamento ou conflito com 0 ex-cénjuge, ou sus- ceptivel de ser vivido por este como ameaga. Era como se para as outras o 25 de Abril pudesse ter tido uma impor- tancia mais mediatizada («andava cada um por seu lado»), mas nao tinha sido novidade decisiva, ou susceptivel de introduzir novos dados na relagéo conjugal, como era o caso das divorciadas das classes populares. Por outro lado e de certa maneira relacionado com esta primeira referéncia, a atitude das divorciadas face ao divércio ¢ & situagdo pos-divorcio, parece ser dife- renciado quer pela idade variavel, quer pela classe. Quanto & forma como 0 divércio foi vivido (mais ou menos dramati- camente, independentemente de quem teve a iniciativa), foi claro para nos que a distingo a estabelecer fazia-se fundamentalmente entre as mais ve- Ihas e as mais novas (dos 15 aos 35/40 anos). Para as iiltimas a experiéncia era traumatizante, raras vezes pensavam em voltar a casar ou viver com al- N.° 2.1987 129 guém («calgas ca em casa, outra vez? Deus me dé juizo!»); ou esperavam ainda o regresso do ex-cOnjuge. Para as mais novas a experiéncia parecia no ser t4o traumatizante, tinham feito o que havia a fazer, a separacao impunha-se pela vontade de ambos, ou de um s6, era penoso mas nao era dramatico. ‘Mas nas mais novas eram diferentes as atitudes quanto a situagao pés- -divorcio. As operarias, sobretudo, nao s6 se referiam a questdes de con- trolo ou pressdo social (dois pais ou dos colegas de trabalho) quer no di- vorcio, quer na situagao pés-divércio (a familia ou os colegas «nao véem com bons olhos outra ligagdo») como, ¢ fundamentalmente, pareciam ver com mais apreensao 0 futuro; era mais légica a hipdtese de nao se voltarem a casar (ainda que explicitamente no negassem essa possibilidade) e pare- cia mais dificil o relacionamento afectivo com outras pessoas. Era como se © espectro da soliddio as ameacasse mais, ou como se fossem escassas as possibilidades de um outro relacionamento em que investissem afectiva- mente; ou mesmo era-Ihes dificil encarar outra fonte de investimento afec- tivo de compensago (por exemplo profissional). Para as mulheres quadros médios, superiores, ou mesmo para as em- pregadas, ainda que com nuances, o divércio tinha sido vivido de diferen- tes formas (do discurso da propria libertagdo, até a recomposicao afectiva mais ou menos serena quando a iniciativa nao tinha partido delas), mas a situag&o pés-divorcio parecia ser vivida com menos apreensdo. A perspec tiva de voltar a casar, ou viver com alguém, recompor de outra forma as relagdes afectivas e/ou investir afectivamente noutras areas (reconversao profissional, voltar a estudar) surgia claramente nos seus discursos. Enunciamos a questo da actividade profissional e a necessidade de mediago como classe, ou a idade, para explicar as diferencas referidas, porque elas desempenham um papel importante nos diferentes modelos ou estratégias matrimoniais. Nao sto as (inicas variéveis a evocar, ¢ uma ana- lise mais pormenorizada poder comprové-lo. Tudo indica que ha um con- junto de recursos, ndo s6 de capital econémico mas também de capital so- cial, cultural, que actua e tem importancia decisiva nas relagdes afectivas ¢ esti implicado por isso na forma como se vive a conjugalidade ¢ o divor- cio. Também estes aspectos serao mais desenvolvidos posteriormente. ‘Vejamos agora, no campo das transformagdes mais globais, a questao da mudanga legal. livércio Mudanea legal, mudanea social, As evolugdes que referimos quanto @ actividade profissional das mu- Iheres e divorcialidade foram acompanhadas ou tém a sua expresso a0 nivel simbélico, num conjunto de transformagées legislativas no plano dos direitos da mulher, da familia, e mais especificamente no do divorcio. Elas 130 SOCIOLOGIA surgem em Portugal, como é sabido, na sequéncia da ruptura institucional do 25 de Abril, mais abrupta ¢ tardiamente, por isso, que noutros paises. Em todos 0s paises industrializados que nos tém servido como referén- cia, nos iltimos vinte anos foram grandes as alteragdes nesta area. Para usar uma expresso de Jacques Commaille*! quanto ao divércio «a lei se- guiu» as mudancas nas praticas sociais — 0 aumento dos divércios ou das separagdes de facto precedeu sempre a mudanga do articulado legal. interesse num trabalho deste tipo de transformagao divide-se basica- mente em dois niveis. Em primeiro lugar a andilise da lei e da sua funda- mentagdo fornece pistas interessantes quanto ao tipo de representagdes colectivas que nela estdo implicitas. Percebe-se por exemplo 0 que deixou de ser considerado desvio e passa agora a ser integrado como norma. Isto nao significa que se considera que os actores sociais sejam meros espectadores ou receptores que obedecem mecanicamente ao que esti estipulado ou pau- tem 0 seu comportamento pelo que esté estabelecido na norma. A interio- ago por parte dos actores sociais, como diz Bourdieu da exterioridade (da lei, da norma, do constrangimento, das condigdes de existéncia...), & um processo subtil com multiplas condicionantes em que se estrutura ¢ res- trutura o sistema de disposicdes — 0 habitus® —, ele proprio gerador de ‘comportamentos ¢ priticas. Ou seja uma andlise de contetido da lei e da sua fundamentacao nao substitui a analise das praticas sociais, mas é indis- cutivelmente reveladora de um tipo de representacdes colectivas dominan- tes. Em segundo lugar, e pensando agora mais especificamente na socicda- de portuguesa, era inegdvel o interesse em perceber como se processou, 0 que esta subjacente, e as consequéncias desta mudanca legal brusca. No concreto tentar-se-ia responder as seguintes questdes: se as praticas sociais parecem anteceder as mudangas na lei, haveria j4 indicios antes do 25 de Abril de evolucdes a este nivel ou teria a lei surgido a «seco»? Ou de outra maneira: o facto das mudangas legislativas terem sido consequéncia de uma ruptura brusca significaria que de certo modo elas se adiantariam, ou excederiam as expectativas e as pressdes dds actores sociais? Um outro trabalho sobre 0 movimento pré-divorcio em 1974/1975, em Portugal, tinha possibilitado pistas de reflexao e algumas conclusdes interessantes®. O mesmo tipo de raciocinio, alias, podia ser aplicado ao que se passou quanto aos direitos da mulher. Como se viu, se as transformacdes no cam- po da actividade profissional se foram desenrolando lentamente antes do 25 de Abril é um facto que a legislacdo continha figuras arcaicas e patriar- cas j& longe do que se passava na mesma altura noutros paises O discurso oficial sobre a igualdade plena das mulheres, que surgiu com 0 25 de Abril, que significado teria ¢ como teria influenciado as prati- cas € representagdes dos actores sociais? Vejamos, para ja, o significado do surgimento de certas categorias ju- ridicas. Ter-se acrescentado a possibilidade do divorcio por matuo consen- N° 2-1987 131 timento ao divorcio litigioso, 0 tinico permitido durante muito tempo, pressupde ao nivel simbélico a verdadeira consagracao de dissolubilidade do casamento. Com efeito, passa-se da consideracao segundo a qual o di- vorcio € indesejavel ou andmalo, ¢ quando é inevitdvel acontece porque al- gum dos cdnjuges ¢ culpado (o divércio-sancao) “ ¢ nao cumpriu com as obrigagdes ou deveres conjugais, para a concepeao que admite ¢ consagra a possibilidade efectiva da dissolucdo (por acordo mituo). Este significa apenas que houve uma falha (divércio-falha) em rela¢o ao projecto inicial daquele casamento. Nao se trata aqui de encontrar um culpado, mas de re- conhecer aos dois cdnjuges o direito de em conjunto renunciarem a conti- nuidade da sua unido. Na maior parte dos paises da Europa é entre 1960 e 1981 que aparece legislado 0 divércio por mituo consentimento. Ele surge invariavelmente na sequéncia do aumento do nimero de divércios, como se 0 aparelho juri- dico procurasse novas formulagdes que se adequassem as praticas de divor- cialidade, cuja tendéncia crescente se reconhecia. O sistema juridico esta menos preocupado em procurar «prevenir» 0 divorcio (através do estigma de culpa), reconhece a ruptura como possibi dade ¢ passa a «intervir» apenas na gesto das consequéncias dessa rup- tura‘’, O surgimento do divorcio por mituo consentimento nao anula eviden- temente outros tipos de divéreio*. Na maior parte dos paises 0 divorcio li- tigioso continua a ser consagrado, tendo apenas havido mudanca ao nivel dos fundamentos a partir dos quais pode ser requerido. A Suécia € 0 inico pais em que surge outra figura juridica nova — 0 divorcio por decisao uni- lateral de um dos cénjuges. Comparando esta logica com a da liberdade contratual de cada uma das partes, poder-se-ia dizer que esta versao (de: sto unilateral) leva-a as dltimas consequéncias, pois s6 se mantém um con- trato com a vontade de ambos. Este é ainda o dinico caso de divércio em que no necessaria a intervengdo do juiz, o que indica uma maior autono- mia dos cidadaos perante 0 aparelho juridico ou, se se quiser, 0 que Ihe confere menor interferéncia na vida privada. Em Portugal foi no pés-25 de Abril que se fizeram alteragdes substan- ciais no terreno do Direito da Familia. O divércio que era interdito aos ca- sados catolicamente devido a assinatura da Concordata com a Santa Sé, em 1940, passa a ser permitido pela lei de 17 de Maio de 1975. Restabelece- -se ainda o divércio por mituo consentimento que figurava, como vimos, no inicio da legislacao da Primeira Republica. Em 1977 as alteragdes ao Codigo Civil foram mais profundas, pois tinham como objective adequar esta a Constituigo de 1976 — desaparecem da lei as figuras juridicas mais discriminatorias em relago a mulher como, a titulo de exemplo, a do chefe da familia. Estabelece-se que todas as decisdes respeitantes a familia pas- sem pelo acordo de ambos os cénjuges. A génese desta mudanga legislativa tem alguns aspectos particulares que merecem a nossa atenc&o. Tinha sido constituido antes do 25 de Abril 132 SOCIOLOGIA © movimento pré-divorcio, que tinha como objectivo sensibilizar os caté- licos para a necessidade de exigir a revogacao da Concordata ¢ restabelecer 0 direito ao divorcio. Em Junho de 1974, este movimento promove um comicio no Pavilhao dos Desportos em Lisboa onde é exigida a «libertagao dos presos da Concordata» *". Seguem-se a este comicio numerosas accdes reivindicativas que conseguem por fim os seus objectivos. O Governo por tugués envia uma delegacao a Santa Sé em 1975, que renegoceia a Concor- data ¢ anula a cléusula que impedia 0 divorcio para os catélicos. E devido a este movimento que a lei de 1975, que permite 0 divércio para os catdlicos consagra o miituo consentimento, surge antes de qual- “quer outra alteracao no terreno do Direito da Familia. Saliente-se alias que esta movimentagdo de pleno direito ao divércio parecia corresponder a uma mudanga das atitudes da maioria dos catéli- cos. Jé em 1971, 60% dos que se consideram catélicos responderam a um inquérito de opiniao realizado pelo IFOPE, afirmando que admitiam 0 divorcio®. A andlise interpretativa do discurso relatado a imprensa dos protago- nistas do movimento pré-divércio, das suas realizagdes e dos acontecimen- tos posteriores, permitiu retirar algumas conclusdes. Toda a argumentacéo do movimento é feita explicitamente nos parametros da fé catélica, assumindo-Se os seus protagonistas como catdlicos ®. O divorcio é defendi- do essencialmente como meio de regularizar situac6es de ilegitimidad «Nunca se pretendeu, nem ninguém deste movimento pretende, desagregar a familia. Bem pelo contrario, pretende-se sim, que com a reconquista des- se direito os milhares de familias, vivendo em concubinato, possam vir a le- galizar as suas unides...» declarou o primeiro orador do movimento no discurso de abertura do comicio. O prosseguimento das suas acedes indicam-nos por outro lado que, sendo a sua preocupagao fundamental a legalizagao das situagdes dos separados ¢ a revogacao da Concordata, todo outro tipo de exigencias que saissem deste quadro apareciam como suscep- tiveis de ameagar a rapidez do processo. A legislacao saida em 1975 acaba assim por exceder as expectativas dos actores sociais que mais se tinham empenhado pelo divorcio para os catdlicos 0 que aliés aconteceu com outras leis do periodo de 1974-1975. Figuras juridicas como 0 mittuo consentimento e a unido de facto, apare- cem sem terem sido explicitamente defendidas pelo movimento no seu con- junto e so regulamentadas neste decreto. Respondendo as questdes colocadas inicialmente, concluimos que no s6 antes do 25 de Abril um conjunto substancial de actores sociais tinham rompido com a norma do casamento indissolivel e assumiam situagdes de ilegitimidade; que estas constituem formas de estigmatizagdo que deseja- vam ver terminadas e é neste sentido que forcam a mudanca legal; e ainda que a propria lei acaba por exceder as suas expectativas. E vai produzir efeitos simbélicos de generalizagao. Explicitando melhor: se as reformas le- gislativas so um sintoma de outras mudangas, 0 peso da normatividade N° 2-1987 133 estipulada na lei tem, por sua vez, efeitos nas priticas dos actores sociais: «O prestigio que ainda tem o aparetho legal vai jogar como garante da nor- malidade, do que antes, num passado recente, era considerado como ‘des- vio’ *!. E um efeito que leva os actores sociais a «reavaliarem» as suas re- presentacdes. Num pais como Portugal, ¢ naquele periodo, a lei surge como a possibilidade de viver um conjunto de liberdades até ai, para um con- junto de cidadaos, ainda desconhecidas. Por outro lado ha ainda um efeito de «reestruturacdo cognitivan: 0 que de forma colectiva é vivido como rea- valiagao, de forma individual ¢ vivido como um processo de reestruturacao da visto do mundo.» *, Da mesma forma e em relac&o aos direitos da mulher se poder dizer que a mudanga do discurso oficial (com o peso ou em nome da lei) se mo- dificou substancialmente e teve também os seus efeitos. Apesar de algumas particularidades* que nao deixam de se fazer sentir pode dizer-se que os efeitos generalizadores deste tipo de discurso manifestaram-se em particu- lar nas reas urbanas. Outro trabalho, realizado sobre o discurso de duas revistas femininas, permitiu detectar o aparecimento de novas imagens da mulher (a mulher profissional ¢ simultaneamente dona de casa) que, tal como as nossas entrevistadas, nos indicavam mudancas significativas por referéncia ao passado. Para o estudo de caso esta linha de analise no ambito da Sociologia do Direito foi também reveladora. Por um lado 0 crescimento siibito do ni- mero de divorcios de 1975 a 1978 explicava-se em grande parte pela legali- zagio das situagdes anteriores, como a analise do movimento pr6-divércio nos tinha feito prever. Por outro lado, e ja agora quanto as praticas e at tudes das mulheres divorciadas, podia perceber-se a existéncia de varias formas de viver 0 seu proprio divércio ¢ de se posicionarem face a ele, de forma geral. Para umas ele era ainda vivido como divorcio-sangao € neste sentido ou eram elas, ou mais frequentemente os ex-cOnjuges que tinham deixado de cumprir os deveres conjugais ou simplesmente as abandona- ram. Nestes casos, alias, a varidvel idade parecia explicar esta atitude — surgia da parte de mulheres mais velhas. Para outras era claramente divorcio-falha, € neste sentido, indepen- dentemente de ter sido um ou outro a ter a iniciativa, era um projecto ini- cial que por varias circunstancias nao fora concretizado com éxito. E estas eram as mais novas (dos 25 aos 35 anos). Havera ainda, como vimos, outras mediagdes a fazer, ¢ foram detectadas outras formas de viver © divorcio. Mas estas eram para ja distingdes possiveis ¢ que de certa ma- neira representavam uma das dicotomizagées a estabelecer entre as mulhe- res entrevistadas. Para finalizar esta abordagem a propésito da mudanga legal, serdo colocadas algumas questdes, a titulo de hipdteses exploratérias ou de me- ras pistas de reflexdo. A legislacao da Primeira Repablica, como é sabido, surgiu como a do 25 de Abril, num periodo pés-ruptura institucional e tinha subjacente a 134 SOCIOLOGIA afirmacdo dos direitos individuais, laicos. Se na Primeira Republica as condigdes sociais de usufruto pleno desses direitos eram restritas a alguns grupos sociais, no 25 de Abril foram sem divida mais alargadas. Por outro lado, a leitura da Concordata e dos pressupostos que a defendiam indicam- -nos que era «contra esta afirmagao excessiva da individualidade, e pela de- fesa do casamento como instituigao da familia» como organismo social ¢ requisito indispensavel para que nela possa assentar o aperfeicoamento moral da sociedade «que o Estado Corporativo pugnava.» * O divorcio era considerado dissolvente da familia, condenado tal como «a viciosa ideolo- gia individualista dos séculos XVII € XIX...» Nao sera abusivo concluir que sempre que os direitos individuais de forma global se afirmam ou reafirmam, se traduzem ao nivel formal numa legislagao da familia, e especificamente do casamento, mais liberal, que prevé a maior autonomia das partes interessadas (neste caso dos cénjuges). Ao nivel das praticas sociais, e nao importa agora sobre se € a lei que pre- cede a pratica ou o contrario, ha um crescimento acentuado das praticas mais individualizantes; e o divorcio pode ser exactamente a expressao desta afirmagao da autonomia perante 0 outro ou de uma maior conflitualidade ou contradi¢4o que a afirmacao da individualidade numa relaco sempre pressupoe. Estabelecendo agora uma analogia: se o Welfare State conduziu a as- sungaio da contradigao de interesses entre assalariato e patronato, e refor- mulou a necessidade de consensualidade através da institucionalizagao dos conflitos, poder-se-& dizer que ao nivel da familia, a afirmacao da indivi- dualidade pode conduzir a um maior nivel de conflitualidade e por isso mesmo a uma maior necessidade de estabelecer 0 consenso. O divorcio pode aparecer exactamente porque os consensos, ja de si dificeis de estabe- lecer, se complexificam pela dificil rede de sociabilidades ¢ afectividade que a relacao conjugal envolve. Sabemos evidentemente que falamos em estabelecer consenso quando as partes envolvidas por vezes apenas formalmente s&o iguais; mas como referéncia ou hipotese de reflexdo, julgamos que ¢ de alguma utilidade pen- sar nesta linha, sem esquecer depois as necessdrias mediagées. Se se considerar ainda o Welfare State um progresso, no sentido em que o estabelecimento ou reconhecimento de contradi¢ao entre as partes envolvidas, ou a assungao da sua igualdade, teve efeitos generalizadores, 0 divércio nesta dptica ndo sera mais que o sinal desta aprendizagem dificil do consenso. Uma deixa a que se voltara mais tarde. Amores ¢ desamores — relagdes sociais, relagdes afectivas A visdo geral apresentada até aqui da evolugao da divorcialidade, na tha de analise que se adoptou procurando alguns dos factores que contri- buiram para mudancas nas relagdes familiares, nao deixa de ser isso mes- N.° 2-1987 135 mo — uma visao geral, mais objectivada, que, s¢ recorre pontualmente a especificidade das praticas sociais, néio tem como objectivo fundamental, por agora, desenvolver esta andlise. A riqueza do material empirico reco- Ihido € © recurso a perspectivas tedricas susceptiveis de conduzir a explica- ges pertinentes merecem um tratamento mais exaustivo e profundo que se desenvolvera posteriormente. Nao deixaremos, no entanto, de definir sinteticamente parametros de problematicas que se irdo abordar. ‘A mudanga social neste plano das relagdes familiares é um processo complexo: ¢ se esta banalidade pode ser elucidativa é-o apenas na medida em que se explicita © conjunto de factores de diversa ordem com que se li- da. Ha permanéncias na mudanga — desigualdades sociais que se mantém € que se traduzem em formas diferentes de viver direitos formalmente ao alcance de todos, regularidades estruturadas e estruturantes no plano sim- bolico (cultura, religido), € que configurando também de forma diferencia- da as praticas sociais constituem a identidade colectiva e individual. Mas estas diferengas que permanecem so atravessadas por mudancas efectivas — as que foram referidas nos iltimos vinte anos, no plano da si- tuago das mulheres e da familia, levam-nos a concluir que evoluiram rea- lidades, discursos ¢ imagens. Os efeitos da generalizacdo de que se falou alargaram direitos ¢ reestruturaram universos cognitivos — mesmo o da- queles que mais dificilmente tinham acesso a tais direitos. De forma ainda inicialmente difusa os objectivos iniciais de pesquisa eram exactamente ten- tar captar esta realidade contraditoria do que mudou e do que permanece, essencialmente no plano das relagdes afectivas. Existia a intuigdo de que de alguma forma o aumento do divércio podia funcionar como um indicador de transformagdes no plano das vivéncias afectivas; ou, de outra maneira, pressentia-se que as mudangas referidas se exprimiam na forma de viver a velha ceriménia a que se pode chamar 0 Amor. ‘A escolha do objecto de anallise «divércion traduzia-se assim, igual- mente, numa estratégia para uma primeira aproximacao a um terreno ted- rico-empirico ainda por desbravar em Portugal. Poder-se-ia sintetizar esse objectivo inicial nas seguintes perguntas: que influéncia tera a independéncia econdmica das mulheres na relagao conjugal, na vivéncia da afectividade e na relacdo com 0 homem? Que sig- nificado tem 0 aumento do divércio no plano das relagdes afectivas? Se ele se generaliza ou banaliza em certos grupos sociais, poder-se-4 dizer que nestes se pasar claramente de um modelo de casamento para a vida intei- ra, genericamente praticado por geragdes anteriores, para um modelo de monogamias sucessivas? E de que forma se configura este processo em Portugal, onde a taxa de divorcialidade apresenta tendéncias globais proxi- mas das de outros paises, mas é, apesar de tudo, mais baixa? Os autores que foram referidos contribuirdo de alguma forma para es- tas respostas. Mas as suas problematicas ou a constituigdo dos seus objec- tos tebricos e empiricos so por vezes diferentes, ¢ a forma de construir ¢s- 136 SOCIOLOGIA ses objectos condiciona as respostas encontradas. E no plano das relagées afectivas como dimensao especifica das relagdes sociais que nos interessa a abordagem do divércio. Vejamos como e porqué. Ha autores*”, no Ambito da sociologia da familia, que apresentam grandes linhas gerais sobre a sua evolugo. Uma delas ¢ a de que a familia moderna, dos nossos dias, se opde 4 familia tradicional por ter deixado de cumprir tarefas directamente ligadas 4 produgao econdmica, processo este que estaria ligado a industrializacdo. Nesta perspectiva, o surgimento da familia moderna, liberta de fungdes econdmicas e produtivas, estaria ainda associado ao fim do casamento — inclinacdo mutua como motivo tinico das unides conjugais. O divércio era assim a possibilidade de rectificar um ‘engano plausivel (os sentimentos sAo voliveis) ou de terminar uma relacao para encontrar outra. Esta visao foi contestada por varios autores que assi- nalam @ maior complexidade deste processo de transicao da familia tradi- cional para a familia moderna. Colocando agora de parte o facto de ser inadequado falar de «familia moderna» — ha varias formas ou tipos de familia para diferentes grupos ou classes sociais € ainda de acordo com as sociedades de que se esté a falar—, retenham-se apenas algumas das insuficiéncias que a meu ver es- ta visdo contém. No casamento joga-se um conjunto de relagdes complexas imbricadas de mais para que faca sentido falar do amor como a tinica dimens&o perti- nente. Os individuos projectam numa relagdo um conjunto mais vasto de expectativas, que ultrapassam a mera vivéncia da inclinag&o sentimental miitua. O facto ainda de terem deixado de existir certos tipos de tarefas na familia ndo quer dizer que nao tenham surgido outras (a que se tem cha- mado «prestagdes») € que elas nao se imponham objectivamente, exigindo disponibilidades e energias que ultrapassam o reino do sentimento. Por ou- tro lado, 0s constrangimentos econdmicos, sociais ¢ culturais que determi nam 0s individuos ao longo da sua existéncia ou trajectoria fazem sentir-se na relagdo conjugal. A propria escolha do cdnjuge, como Alain Girard demonstra, é socialmente determinada ¢ a homogamia (escolha de um par- ceiro do mesmo grupo social) é uma regularidade presente nas unides ac- tuais. A inclinagdo ou os pensamentos geram-se ¢ alimentam-se mais faci mente na partilha dos cédigos sociais que contra estes*. Neste sentido 0 proprio conceito de vida privada pode ter uma leitura equivoca. A «privatizagdo» nao significa que as determinagdes sociais pa- rem a porta do casal, ou da familia; elas est4o também presentes nas repre- sentagdes que os individuos fazem da sua propria relagdo conjugal ou das suas expectativas face a ela. O conceito de habitus de Bourdieu permite ainda dar conta da forma como globalmente os individuos interiorizam as suas condigdes de existéncia sem se aperceberem de que elas comandam as suas escolhas em terrenos onde a margem de liberdade individual parece total, como 0 gosto ou 0 amor. Mas o que ¢ importante é que esta repre- sentacdo de que o amor é area privilegiada de liberdade plena, onde param ° 2-1987 137 todas as regras e convencdes, onde se podem subverter 0s contragimentos do quotidiano, sem ser inteiramente adequada, nao deixa, em todo o caso, de reflectir certas dimens6es reais. Basta lembrar que embora haja homo- gamia dentro de cada grupo escolhe-se A ¢ nao B. E ha, além disso, sufi- ciente ndimero de casos de heterogamia para mostrar que, sendo uma regu- laridade, a homogamia nao & uma condenacdo. Ou seja, sendo as escolhas ou as vivéncias amorosas socialmente condicionadas, elas existem como es- colhas e vivéncias, so dotadas de uma autonomia efectiva, alias com im- portantes efeitos em miltiplos planos da vida social. Neste terreno das relagdes afectivas da chamada vida privada 0 que, a ‘meu ver, interessa sobretudo é procurar conjugar uma viséo global das re- presentacées, valores e sentimentos de uma época — proposta por alguns fi- Josofos € até socidlogos— com uma analise contextualizada das praticas sociais. De facto, abordagens como a de D. Rougemont ®, visando captar 98 mitos sobre a paixao € o amor na sociedade ocidental tém inegével inte- resse. Este autor partiu, aliés, numa das suas obras, da preocupacao de dar resposta A inquietagdo que o aumento do divércio parecia introduzir nas sociedades dos anos 40/50 do nosso século. Nao cabendo aqui dar conta dos resultados a que chegou, direi apenas que interessa sobretudo saber como os diferentes grupos vivem, racionalizam e exprimem hoje mitos ¢ aquilo a que se chama a paix4o ¢ o amor. A. Alberoni, pelo seu lado“, procura também captar como nos dias de hoje se vive o processo de enamoramento. Nao deixando de considerar que se trata de um contributo inestimavel, julgo necessario resistir & tenta- go de homogeneizar as vivéncias do enamoramento, do casamento, do amor e do divércio. E conforme 0 conjunto de recursos disponiveis (cultu- rais, afectivos, econémicos) que se vive a conjugalidade. A contradigdio en- tre a defesa da individualidade e a necessidade do outro parece mais aguda exactamente quando essa individualidade tem maiores condigdes para se afirmar. Também a solugo da contradi¢ao, por outro lado, pode estar mais ao alcance dos que possuem mais recursos. Quando atras se falava em termos mais gerais, sobre a tendéncia nas nossas sociedades para o assumir das contradi¢ées, a institucionalizacao dos conflitos ¢ a tendéncia para as solugdes consensuais, procurava dar-se conta deste aparente excesso de tensdo que toda a afirmacao de individualidade comporta e que, mesmo nuanceando, se pode exprimir nas relagdes afectivas — exactamente pelo aumento do divércio. ‘As relagdes afectivas so uma dimensdo das relagdes sociais ¢ por isso mesmo as diferencas sociais ou de acesso a recursos definem a maior ou menor possibilidade de afirmar de forma efectiva a individualidade e con- dicionam a forma de viver a experigncia amorosa. O amor da nossa neces- sidade & sempre uma construco cujos alicerces assentam nos codigos so- ciais que mesmo sem a nossa conivéncia nos foram inscritos, que nos re- construimos, reelaboramos ¢ por vezes até subvertemos. ° 2-1987 137 todas as regras e convencdes, onde se podem subverter 0s contragimentos do quotidiano, sem ser inteiramente adequada, nao deixa, em todo o caso, de reflectir certas dimens6es reais. Basta lembrar que embora haja homo- gamia dentro de cada grupo escolhe-se A ¢ nao B. E ha, além disso, sufi- ciente ndimero de casos de heterogamia para mostrar que, sendo uma regu- laridade, a homogamia nao & uma condenacdo. Ou seja, sendo as escolhas ou as vivéncias amorosas socialmente condicionadas, elas existem como es- colhas e vivéncias, so dotadas de uma autonomia efectiva, alias com im- portantes efeitos em miltiplos planos da vida social. Neste terreno das relagdes afectivas da chamada vida privada 0 que, a ‘meu ver, interessa sobretudo é procurar conjugar uma viséo global das re- presentacées, valores e sentimentos de uma época — proposta por alguns fi- Josofos € até socidlogos— com uma analise contextualizada das praticas sociais. De facto, abordagens como a de D. Rougemont ®, visando captar 98 mitos sobre a paixao € o amor na sociedade ocidental tém inegével inte- resse. Este autor partiu, aliés, numa das suas obras, da preocupacao de dar resposta A inquietagdo que o aumento do divércio parecia introduzir nas sociedades dos anos 40/50 do nosso século. Nao cabendo aqui dar conta dos resultados a que chegou, direi apenas que interessa sobretudo saber como os diferentes grupos vivem, racionalizam e exprimem hoje mitos ¢ aquilo a que se chama a paix4o ¢ o amor. A. Alberoni, pelo seu lado“, procura também captar como nos dias de hoje se vive o processo de enamoramento. Nao deixando de considerar que se trata de um contributo inestimavel, julgo necessario resistir & tenta- go de homogeneizar as vivéncias do enamoramento, do casamento, do amor e do divércio. E conforme 0 conjunto de recursos disponiveis (cultu- rais, afectivos, econémicos) que se vive a conjugalidade. A contradigdio en- tre a defesa da individualidade e a necessidade do outro parece mais aguda exactamente quando essa individualidade tem maiores condigdes para se afirmar. Também a solugo da contradi¢ao, por outro lado, pode estar mais ao alcance dos que possuem mais recursos. Quando atras se falava em termos mais gerais, sobre a tendéncia nas nossas sociedades para o assumir das contradi¢ées, a institucionalizacao dos conflitos ¢ a tendéncia para as solugdes consensuais, procurava dar-se conta deste aparente excesso de tensdo que toda a afirmacao de individualidade comporta e que, mesmo nuanceando, se pode exprimir nas relagdes afectivas — exactamente pelo aumento do divércio. ‘As relagdes afectivas so uma dimensdo das relagdes sociais ¢ por isso mesmo as diferencas sociais ou de acesso a recursos definem a maior ou menor possibilidade de afirmar de forma efectiva a individualidade e con- dicionam a forma de viver a experigncia amorosa. O amor da nossa neces- sidade & sempre uma construco cujos alicerces assentam nos codigos so- ciais que mesmo sem a nossa conivéncia nos foram inscritos, que nos re- construimos, reelaboramos ¢ por vezes até subvertemos. N° 2-1987 139 Manuel Nazareth, «Conjuntura demogratfica portuguesa no periodo 70/80; aspectos globais in Andiise Social, n.° 81-82, Terceira Strie, vol. xx, 1984 — 2.° € 3.°. 13 Em 1970 a nupcialidade apresenta valores mais altos em Lisboa (10,0 contra 8,5 no Porto, e 7,9 em Braga), a taxa de ilegitimidade também (12,4 contra 5,3 no Porto ou 2,6 em Braga). Quanto ao nimero médio de filhos, & significativamente mais baixo também em Lis- boa (1,26, contra 2,14 no Porto, ¢ 2,64 em Braga). A percentagem de casamentos no catoli- cos assume a maior diferensa entre Lisboa, Setibal ¢ o resto do Pais (46,1 em Lisboa $8,3 em Setibal, 9,3 no Porto ¢ 1,5 em Braga). Ver Ana Nunes de Almeida, Comportamentos demo- grificos e estratégias familiares, Estudos ¢ Documentos ICS, n.° 10, Lisboa, Instituto de Cincias Sociais 1984. Ha alguma ambiguidade em mais de um autor, acerca do conceito de modelos matri- moniais. Queremos deixar claro que 0 nosso entendimento de modelos matrimoniais & o de due estes so diversas praticas institucionalizadas de conjugalidade; ou modelos no sentido de ‘orientagdo a seguir ou a ter em conta, 1S Extabelecendo uma comparacio com o passado, ¢ baseando-se em trabalhos de Jac- ‘ques Commaille referidos no presente artigo, & frente, Martine Segalen indica que a propor- ‘0 de casais que acabava em divarcio em 1900 € de 1 para 20, enquanto aetualmente 1 casa- mento em 6 termina em divércio. Ver M. Segalen, ob. cit, 16 Jean Kellehals e Pierre-Ives Troutot, «Divorce et modéles matrimoniaux — Quel- ‘ques figures por une analyse des régles d'échanges» in Revue Franeaise de Sociologie, XXII, 1982, Ver ainda Kellarhals, J. F. Perrin, G. Steinam-Cresson, L. Voreche G. Wirth, Ma- riage au Quotidien. Inegalités Sociales, tensions culturelies et organisation familiale, Lausan- ne, Editions Pierre-Marcel Favre, 1982. 1® sabido que esta fixago sempre existiu no caso das operérias. Mas ndo podemos es- quecer que actualmente, e nfo 36 em Portugal, dentro das mulheres com actividade profissio- nal as operdrias nao sao de modo nenhum @ maioria, 1 J. Commaille, Avant Propos, in Sociologie du Travail n.* 3-84, nimero especial- mente dedicado a actividade profissional das mulhres e suas implicagdes. 20 Ver para o caso portugués, Manuela Silva, O emprego das mulheres em Portugal — ‘a mao invisivel na discriminagdo sexual no emprego, Porto, Afrontamento, 1983. 21 Ver Maria do Carmo Nunes, «A mulher entre a familia € 0 trabalho», Revista Eco- nomia e Socialismo, Nova Série, n.° 63 Out/Dez 4. 2 Jodo Serrdo, «A recomposicio Social ¢ Estruturas Regionais de Classe (1970-1981), Analise Social, 3." Série, vol. xx1, n.° 87-88-89, 1985. 23 Como ji indicamos a terciarizagao, que € uma das tendéncias salientadas por Joao Ferrlo, esté ligada & feminizagio, ja que nos empregos do tercirio estdo envolvidos muitos Postos de trabalho ocupados por mutheres. 2 Hla uma forte representasdo das mulheres em categorias mal definidas, ou ambiguas, nos recenseamentos 70/81 da populagdo; o que pode traduzir exactamente parte deste traba- Iho «oculto». 25 Maria do Carmo Nunes, art. cit, 25 As tendéncias apontadas por Jodo Ferrio, feminizagao e terciarizacto, tem maior re- levo em Lisboa, ob. cit Maria Agnés Barrére Maurisson, «Du Travail des Femmes au Partage du Travail — une approche des régulations familiales face aux evolutions du travail: le cas de la France de- puis 1945» in Sociologie du Travail, n.° 3-84. 28 Este conceito & a tradugo do inglés de «double-careerm ou do francés «deux apporteursy 2 Ver uma critica a esta perspectiva da familia de dupla carrera, em Harold Beneson, «Women's occupational and family achievement in the U.S. class system: a critique of dual- career family analysis» The British Journal of Sociology, vol. xxxv, n.° 1 Margo/1984, 20 Efeito simbolico € um conceito de P. Bourdieu, a «capacidade de agir sobre 0 real do sobre a representasao do real» in «Les rites comme Actes Initiation», Actes de la re- cherche en Sciences Sociales, n.° 43, Junho de 1982. 140 SOCIOLOGIA 31 M. Segalen, ob eit. p. 221 a 237 % Ver Annie Boigeo! ¢ Jacques Commaille, «Divorce, milicu social ¢ situation de Ja Fermen, in Economie et Statistique, n.° 1974, ¥ Benoit Bastard et Laura Cardia-Venéche «L'activite professionelle des femmes: une ressource, mais pour qui? Une réflexion sur 'accés au divorce in Saciologie du Travail, n.° 3.1984. % Benoit Bastard € Laura-Venéche, art. cit 55 Annie Boigeol e Jacques Comallle, art. cit, 3 William Goode, Women in Divorce, Nova lorque, The Free Press, 1985. 57 Nas estatisticas demograficas portuguesas no so publicados dados referentes ao di- vorcio ano a ano por grupo socioprofissional dos requerentes, nem o sexo do cBnjuge. Re- ‘corremos por isso aos recenseamentos que no nos dao o acontecimento divércio ano a ano, ‘mas o estado civil da populagao num determinado momento, por condigdo socioecondmica. 34 O que se poderia expticar neste caso por outra variavel como o rendimento ou lugar de classe do marido. 3 Ver Alain Desrossitres, «Marché matrimonial et classes sociales», Actes de la recher- ‘he en Sciences Sociales, Marco-Abril, 1978. 4 Nao havia no guido das entrevistas semi-directivas nenhuma pergunta directa sobre 0 25 de Abril. Dai que nos tena parecido relevante o facto de ele ter surgido no discurso de al- gumas mulheres a propésito do seu divarcio. 41 Jacques Commaile, «Divorce: la loi suit», Autrement, finie la famille?, a.° 3, Au- tomne 1975 © Pierre Bourdieu, Esquisse d’une théorie de la pratique, 1. ed. Genebra, Librairie Droz, 1972. “© Anélia Torres, Margarida Timoteo, Cristina Lobo, «Do movimento pré-divéreio as mudancas legislativas de 1977». Trabalho efectuado no Ambito da Sociologia do Direito. (actilografado). 4 Jacques Commaille, Patrick Festy, Pierre Guibentif e outros, Le Divorce en Europe ‘occidentale — la ioi et le nombre, Institut National d'Etudes Démographiques, 1970. + Jean-Frangois Perrin, «Tendences des changemente législatifs en matiére de divorce en Europe Occidentale» in ob. cit. 46 O que pressupde alias a convivencialidade de diversas légicas do divorcio e que os ac- ‘ores sociais 0 vivem de forma também diferenciada (como culpa, sancao, como fatha, ou ou tras), 17 Esta era uma das varias palavras de ordem que figurava nas faixas e cartazes que se viam no comicio, e noutras realizagoes do movimiento. 4 Ver Jono Ferreira de Almeida, «Réligiosité Paysanne au Portugal», Sociologia Rura- fis, vol. XXVI, n.° 1, 1986, pp. 70 ¢ sess. 8 Um dos pontas altos do comicio referido € exactamente 0 discurso de um cénego, ‘muito aplaudido, que a dado passo afirma: «os deveres de consciéncia nao se impem por via de lei [.-.). «fe. 0 divércio nao € em si um mal, mas 0 remédio para um mal que dissolveu. lum casamento [...].» «As pessoas tém o direito de refazer a sua vida quando um casamento falhar. Pois nao foi Cristo que disse: “Levanta-te e nao tornes a cair?".» E também referido no comicio por outros oradores o facto de a propria igreja se encontrar nesta altura num pro- ‘eesso de renovasio ¢ abertura. Ver Didrio de Noticias, 14 de Junho de 1974. 50 Apenas um advogado do movimento exige uma legislagao mais completa que a sim- ples revogagto da Concordata. Parte das suas propostas serdo aliés contempladas no decreto- slei de Maio de 1975, 41 Jean-Frangois Perrin, art cit, 52 Idem, art. cit. 53 As particularidacles dizem respeito ao facto de, no mesmo periodo (1974/1975), algu- ‘mas iniciativas de mulheres terem sido mal recebidas pela opiniao pablica, independentemen- te agora de se analisar o seu conteiido. Enquanto em Franca, por exemplo, e na mesina altu- ra, a mudanga legal sobre o divércio nao produziu grande agitacdo piblica na altura em que foi discutida, a que se referia a interrupedo voluntaria da gravidez foi associada a grandes 2.1987 141 ‘movimentagdes de mulheres. Foi este exactamente o periodo em que, no nosso pais, se desen- cadearam as manifestagdes pelo divorcio. ‘4 Um trabalho realizado sobre o discurso das revistas Maria e Crénica Ferminina, Se- agredos e Virtudes das revistas femininas, realizado por Anilia Torres, Cristina Lobo e Marga rida Timoteo (apresentado numa comunicagdo as Jornadas de Comunicario Social no ISC- ‘TE), permitiu-nos concluir que a Maria transmite uma imagem, se quisermos, «moderna» da mulher. Aparece-nos uma imagem profissionalmente sucedida (ainda que nos tradicionais cempregos da mulher, secretaria por exemplo) ¢ simultaneamente executiva e pragmética nas suas responsabilidades familiares e amorosas. 5 Da concordata de 1940, E ainda se pode ler o seguinte: «se se afirma o principio da indissolubilidade do casamento, ele & proclamado, no como um atributo do casamento sa- ramento, ou como um principio religioso para com o qual a lei e a governacdo se mostram mais tolerantes, mas antes como uma afirmacio no campo da mais pura sociologia, reconhecendo-se essa indissolubilidade como condico primaria de existéncia e conservagao dda familia...» 56 Idem. 57 Ver sobretudo E. Shorter, La naissance de la famille moderne, Patis, Seuil, 1977. 38 Nomeadamente Martine Segalen refere que a familia nuclear (associou também a es- ta a ideia de familia moderna) existiu muitos antes da industrializacdo, e que esta nao signifi- ca o fim da familia alargada como os autores referidos pretendem. Ver M. Segalen 0b. cit. 3 Nao excluo de forma alguma que a «especificidaden cultural ¢ religiosa, que distin- {gue as sociedades do Norte da Europa das do Sul, nao configurem a vivencia da conjugalida- de. Se esta referéncia ainda ndo surgiu deve-se apenas ao facto de fazermos uma abordagem. inicial e mais objectivada Alain Girard Le choix du conjoint — une enquéte psycho-sociologique en France, Paris, Institut National d'Etudes Démographiques, 1981, 3.* ed. ‘1 Kellerhals e outros, Le Mariage au quotidien, ob. cit. ® In Bourdieu, ob. cit. ® Denis Rougemont, O Amor e 0 Ocidente, Lisboa, Moraes Editores, 1962, 2.* ed. ¢ ainda, do mesmo autor, Les Mythes de Pamour, Paris, Gallimard, 1961. © Alberto Alberani, Enamoramento ¢ Amor, Lisboa, Bertrand, 1983. 142 SOCIOLOGIA ANEXOS DADOS GERAIS SOBRE 0 DIVORCIO EM PORTUGAL Considerou-se para a analise dos dados estatisticos o periodo entre 1970 e 1983 quer por limitac&o dos dados disponiveis quer por questdes de exiquibilidade. Recorremos a duas fontes. As estatisticas demograficas davam-nos 0 acontecimento divércio ou casamento, ano a ano, € eram uma fonte fundamental para a construgao de taxas ¢ indices. Mas n&o séo publicados dados referentes as condigdes sociecondmicas (que permitis- sem a associacao por grupo socioprofissional) dos requerentes do divor- cio. Recorremos por isso aos recenseamentos da populacdo de 1970 ¢ 1981 que nos davam o estado civil da populacao por condicao socieconomica, nas datas indicadas. Também aqui as limitagdes foram varias, sendo a mais premente 0 facto de nao serem publicados para 1970 dados referentes a Lisboa sobre o estado civil da populacao por condi¢ao sociecondmica. S6 podemos fazer a comparacao entre 1970 ¢ 1981 neste Ambito para 0 to- tal do pais. Com os dados disponiveis das estatisticas demograficas construiram-se taxas de divorcialidade, (bruta ¢ global)'. ‘Da anilise efectuada sintetizamos as seguintes caracteristicas gerais da divorcialidade em Portugal no periodo entre 1970 ¢ 1983. 1) O divorcio aumenta. A evolucao de taxa de divorcialidade (ver grafico n.° 1) indica-nos que a partir de 1974 ha um aumento consideravel do namero de divércios, com um ponto maximo em 1977, que reflecte, como jé foi referido, a legalizagao das situacdes ante- riores a legislagao de 1975. O decréscimo em 1979, parece fa- zer parte da estabilizagao deste processo voltando a subir a di- vorcialidade lenta e gradualmente até 1983. Uma analise ‘comparativa da distribuic&o dos separados mais divorciados? por categorias socioprofissionais? (de 0,3 para 0,6 nos homens, e de 0,6 para 1,2 das mulheres), (ver quadro n.° Le n.° 2) entre 1970 e 1981, indica-nos da mesma forma que a proporgao de divorciadas em relagao ao total au- mentou substancialmente. De referir ainda uma particularida- de com implicagdes na analise sociolégica — ha muito mais mulheres divorciadas que homens (quer em 1970, quer em 1981). Este dado pode ter miltiplas significagdes captaveis apenas numa analise mais pormenorizada. Adiante-se, no en- tanto, para ja, que é provavel que os homens divorciados vol- N.° 2-1987 2) 3 143 tem a casar mais rapidamente que as mulheres‘. Deve entrar-se ainda em linha de conta com o facto de o «mercado matrimo- nial» ser mais favoravel aos homens que as mulheres — na al- tura de voltar a casar ha um conjunto numérico superior de mulheres disponiveis — solteiras, divorciadas. Podem ainda jogar-se aqui efeitos de estigmatizacao em relagao as mulheres divorciadas, em alguns grupos socioprofissionais a que j4 foi feita referéncia. Divércio sobe, casamento desce. Enquanto que o divorcio segue a evolugao indicada, 0 ca- samento depois de um salto acentuado de 1974 a 1976 (ver gr: fico n.° 3) sofre um decréscimo mais acelerado até 1983, che- gando a valores inferiores aos observados em 1970. Relativa- mente ao total, os casamentos catélicos apresentam até 1981 valores gradualmente mais baixos, verificando-se uma ligeira recuperacdo e subida entre 1981 ¢ 1983. Quanto as separagdes verifica-se que em relaco ao divércio hé um movimento con- trario. Antes de 1974 e 1975 eram em maior nimero as separa- g6es judiciais em relacdo ao divércio, mas até 1983 esta ten- déncia segue uma evolucdo oposta; este facto tem certamente a ver com a interdico do divorcio para os catélicos, ja que 0 nico dispositivo legal que podia ser accionado naquelas con- digdes era exactamente o da separagdo judicial de pessoas ¢ bens. Com a revogacdo da clausula da Concordata no so muitas separacdes judiciais se reconvertem de imediato em di- vorcio (0 que também faz aumentar 0 numero de divorcios em 1975) como deixa de ser necessario recorrer a figura da separa- ¢4o judicial que nao permite, ao contrario do divérci casamento. O divércio é mais frequente para as mulheres no grupo etério dos 25 aos 34 anos. Com a analise do grafico n.° 4 verifica-se que a partir de 1978 é no grupo etario dos 25 aos 29 anos numa fase que ha um maior numero de divércios (com um maximo em 1981 de 23,6%, depois de uma evolucao acentuada entre 1977 e 1981). A partir de 1981, no entanto, 0 grupo dos 29 aos 34 anos, que até ai se mantinha estavel, apresenta agora um crescimento mais acentuado do nimero de divorcios. Como ja se indicou so também estes 0s grupos etarios em que a taxa de activida- de feminina tem valores mais elevados. Elucidativo ¢ ainda o facto de o grupo etario dos 40 aos 44 anos, apresentar no periodo de 1975 a 1977 valores signifi cativos. Este facto confirma, de outra maneira, que foi entdo 144, SOCIOLOGIA 4) 5) 6 que se verificaram as legalizagées de situagdes anteriores a lei. Como diria M. Segalen, trata-se certamente de «velhos divér- cios», correspondentes a casamentos muito anteriores a legis- lagdo ou de separagdes de facto que se transformaram mais tarde em divércios. O divércio ocorre com maior frequéncia entre 0 quinto e o dé- cimo ano de casamento. Actualmente os divércios s4o mais frequentes nos casa- mentos que duram de 5 a 9 anos (31%). Registe-se alias uma grande diferenca entre este grupo ¢ 0 seguinte (de 10 a 14 anos — 19,7% do total dos divércios). A curva de duragao dos ca- samentos (de 10 a 14 anos — 19,79% do total dos divorcios). A curva de duragao dos casamentos de 20 e mais anos regista um pico acentuado em 1976 (40,5% dos divércios totais), seguida de uma descida acentuada até 1983, 0 que é outro indicador da especificidade do periodo (76 a 79) de regularizacdo de situa- Ges antigas. O divércio é mais frequente em determinadas categorias socio- profissionais. A leitura dos grificos n.* 2, 7 € 8 € dos quadros n.° 1, 2¢ 3 permite concluir que as mulheres divorciadas pertencem so- bretudo as categorias socioprofissionais onde se pressupde a existéncia de actividade profissional. E nos quadros superiores que se regista uma proporcao maior de divorciadas (6,3) face ao total de mulheres em 1981 é também nesta categoria que se regista o maior aumento em relacao a 1970 (1,4). Logo em seguida a categoria mais frequentada é a das profissdes libe- rais, (5,6) em 1981; s6 depois surgem as empregadas (3,8) ¢ os quadros médios (3,0). Registe-se ainda que em 1970, era nas profissdes liberais que a divorcialidade era maior. Quanto aos homens € nas profissdes liberais (2,2 em 1981) logo seguido dos quadros superiores (1,9 em 1981) que a propor¢ao de di- vorcialidade quer em 1970 quer em 1981 € superior. O miituo consentimento 6 actualmente a modalidade de div6r- cio @ que mais se recorre. Até 1975 0 divércio (permitido apenas para os casados ci- vilmente) s6 existia na modalidade litigiosa. S6 as separagdes judiciais podiam ser litigiosas ou por mittuo consentimento. A figura juridica do divorcio por mituo consentimento aparece nos registos estatisticos apenas em 1976. A partir desta data decresce substancialmente o divércio litigioso ¢ aumenta o di- vorcio por mittuo consentimento (ver grafico n.° 6).

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