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“4 ya José Cardoso Pires DINOSSAURO EXCELENTISSIMO ilustrado por Joao Abel Manta ii i [A presente edigéo ¢ publicada ao abrigo do acordo estabelecido com Moraes Edltores, §.A.R.L., a quem pertence 2 oxclusi dade de publicagio em Iingue portuguesa das obras do autor. © Jose Cardoso Pires, 1973 Esta reinagdo do Imperador vai dedicada com todos os ésses e (déJerres @ Ana Cardoso Pires e também a Rita «Hoje em dia pode-se roubar tudo a um homem — até a morte. Rouba-se-Jhe a morte com a mesma facilidade com que se lhe rouba a vida, a face ou a palavra, que séo coisas mais que tudo inestimaveisy — disse o contador de estorias a sua filha Ritinha. e facto, néo hd muito tempo existiu no Reino do Mexilhao um imperador que na 4nsia de purificar as palavras acabou por ficar entrevado com a paralisia da mentira. Ainda 14 esté, dizem. E nao é homem nem estétua porque a ele, sim, roubaram-lhe a morte. Nao faz parte deste nosso mundo nem daquele para onde costumam ir os cadaveres, embora cheire terrivelmente. Quando muito, 6 isso, um cheiro. Um fio de peste a alas- trar por todas as vilas do império. cNasceu algures uma choupand.. Parte Primeira O Homem Que Veio do Nada upde-se, estd vagamente escrito, que esse im- S perador veio realmente do nada. Que nasceu algures numa choupana, filho de gente-nada ou pouca-coisa, camponeses ao desabrigo. Que muito possivelmente estudou por cartilhas de aldeia; por catecismos, também. Mais: a acreditar nos com- péndios das escolas, teria vindo ao mundo ilumi- nado por Deus—e tanto assim que, ainda muito mocinho, fez ciéncia entre os doutores. Nessa altura chamava-se Francisco ou Vitorino; Adolfo, talvez Adolfo Hirto; ou Benito Marcolino, 26 Fulgéncio, Sebastiao Desejado—nao interessa. que interessa 6 que quando deram por ele ja tinha outro nome: Imperador. Dinosaurus Um, Impera- dor ¢ Mestre. Palmas. «VIVA O MESTRE IMPERADOR!» «IVOOO...» W DINOSSAURO EXCELENTISSIMO Teria tido infancia? Mistério: neste ponto os cronistas tropegam no aparo e saltam uns anos. Limitam-se a afirmar que j4 em crianga tinha a marca inconfundivel dos chefes, como mais tarde se havia de provar quando o Reino apareceu assi- nado de ponta a ponta com o nome dele: Avenida Dinossauro Primeiro Casino Dinossauro Banco do Reino/moeda-ouro/Dinosaurus Imp. Aeroporto do Imperador Real Academia Dinossaura Dinossauro Futebol Clube Edificio Dinossauro Bacalhau a Mestre Imperador Correios do Reino/selo comemorativo/Dinos- sauro Primeiro, Pai da Patria Fado Imperador, consumo obrigatério «inossauro hé s6 um» (provérbio corrente). Saber & Autoridade era o seu lema; sua arma 0 Siléncio. E sendo assim, téo orientado, ¢ de admi- rar que tenha atingido o poder que atingiu? Nao estaria destinado por natureza a escapar as leis da morte, uma vez que, sabe-se agora, toda a sua vida tinha sido feita a margem das leis dos vivos? RESPEITO, CIDADAOS IGNORANTES! Dinossauro, criatura marcada desde o bergo, estava escrito que iria subir muiiiitissimo na asa 12 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO da compostura, por cima dos casebres da aldeia e do palacio dos ricos, e que teria de tirar um curso que Ihe desse para governar toda a gente. Leis, decidiu o padre local, «ESTA CRIANGA VAI PARA LEIS.» O regedor, muito dado as fardas e as marchas, disse que na espada é que estava o mando e a jus- tiga, e nessa conformidade o militar valia por 2 (dois): pelo guerreiro e pelo doutor de leis. A es- pada cortava a direito, como jé naquele tempo se sabia, e nao precisava da balanga da rectidao nem da venda nos olhos para coisissima nenhuma; en- quanto que a lei sem a espada, ora adeus, néo valia a ponta de um chavelho, permita-se a expressao. No modo de ver do regedor, o pequeno daria um valente general de sete estrelas— ou mais. Estavam nisto quando, pezinhos mansos, tec- -tec, apareceu a Dona Madrinha da crianga, que era rica e muito solteira. Ouviu falar em espa- das, em guerreiros, e nem esperou por mais nada; abriu os bracgos de contentamento pronunciando estas palavras & boca do berco: «QUE PERFEITO MISSIONARIO' Os pais, camponeses esparvoados, nao sabiam que pensar e recolheram-se a sua ignorancia. Puse- ram-se a adorar 0 menino, que haviam eles de fa- zer? Viam-no crescer, muito sé, silencioso, e pres- sentiam que cada dia se aproximava mais de um 13 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO destino muito grande e luminoso—talvez mesmo confidencial, s6 Deus sabia. Por adivinhar mistério naquele pequenino ser 6 que o regedor insistia em Ihe futurar um oficio que servisse ao divino e ao profano. Cruz e ban- deira sempre marcharam juntas ao longo da His- toria, mas foram os audazes capitaes que abriram o caminho para que a fé de Cristo chegasse onde chegou (indias, selvas e mais para 14) e ficasse. Nesta conformidade, e estudando a crianga com os olhos da alma, o regedor n&éo via melhor esco- Tha: destino de guerreiro. Depois sorria, embeve- cido. Mas a madrinha, muito solteira e mais que dona, nao consentia. Agarrava-se aos bentinhos que Ihe aqueciam os seios e punha-se a bater o pé: missionario, missiondério e missiondrio. Protestava que os padres das misses eram os mais perfeitos guerreiros porque usavam unicamente as armas de Cristo e por conseguinte o pequeno havia de ir para os pretos, que pagava ela os estudos. Cartas do destino, partidas e dadas, e que mu- dam de trunfo conforme quem as sabe baralhar. E 0 prior, que também era gente, nao se deixava ficar por fora dos palpites. Assim que podia metia a sua bisca pelo meio, lembrando aos presentes que: Ele, pastor ha nfo sabia quantos anos daquele rebanho de desorientados, tinha um certo pacto 14 DINOSSAURO EXCELENTISsIMO com Deus, quanto mais néo fosse por razdes da sua Profisséo. Entendido? Bem, posto o assunto neste pé, sabia melhor do que ninguém —repetia: me- Thor do que ninguém— o que convinha a Santa Madre Igreja e ao mundo Pecatorum Orbi. Nem padre nem guerreiro. A crianga estava destinada as leis por muitas e muitfssimas razées, quod erat demonstrandum. «AMEN», respondia a madrinha muito solteira, atraida pelo latim. Mas emendava logo, voltava a dela: mis- sdes. Acima de tudo a fé. «AMEN, respondia igualmente o regedor amigo das fardas, que continuava longe, em ponto morto, absoluta- mente nas tintas para as ofertas dos parceiros. Sonhava: general, general de sete estrelas, Pelo menos. @ARTIDA NULA», declarava o padre, compreendendo que até mesmo para as bruxas de unha revirada devia ser compli- cadissimo acertar nas cartas do destino. 0 que va- lia era que a sua paciéncia nao tinha limites (por causa das sagradas escrituras) e voltava a bara- Jhar, a partir e a fazer o seu jogo bem intencio- nado, explicando a beleza dos doutores de leis. | Esse seria 0 destino, a missdo, pelas variadissimas razdes que muito bem sabia e também por certa 15 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO tendéncia para a meditagéo do pequenc campo- nés. Anos mais tarde, acrescentou: por tudo e em especial pelo vicio de coleccionar palavras dificeis que’ ultimamente se notava na criancinha. \Caramba, aqui os outros engoliram em seco. Palavras dificeis... otorrinolaringologia.... abaca- dabrante... répcio... E dai? Dai, como as leis e os decretos se fazem de palavras, o prior nao tinha a menor diivida de que estava ali um futuro juiz todo dado ao recolhi- mento e as frases de algapao. Virando-se para a madrinha, disse: As leis justas séo 0 apostolado mais dificil aos olhos de Deus; fique-se com esta. Virando-se para o regedor, lembrou-lhe que as leis esto acima de tudo: & com leis que se chamam homens a tropa e é com leis que se nomeiam generais; tenho dito. Em face disto, os pais do mocinho silencioso venderam o burro e a horta e com o dinheiro apurado levaram-no para uma umiversidade que ficava do outro lado da montapha, Sofreram muito para fazer a viagem, pobres deles, Primeiro, porque o regedor, considerando-se desautorizado, armou uma campanha contra o padre acusando-o de mau confessor e inimigo das fardas: «MAGONICO! REFRACTARIO! HOSTIA DE SALI» Depois porque a madrinha rica sentiuse mais do que nunca solteirissima e deserdou o afilhado; nao 16 ea camioneta da carreira,.» DINOSSAURU EXCELENTISSIMO contente em mandar cartas ao bispo, fez logo ali © testamento a favor dos frades crizios ou outros de nome ainda mais esquisito. Por ultimo, os habi- tantes da aldeia, levados pela inveja e pela intriga, tinham-se posto a insultar os pais sacrificados, que, na opiniao deles, nao passavam de uns perdu- larios a corer atras do sonho de um filho doutor. «LOUCOS! GANANCIOSOS!» «RENEGADOS! «MAOS ROTAS!» ‘Trabalhos. Desgragas que acontecem a quem se vé obrigado a suportar a injustiga do semelhante para cumprir um destino sublime. Mas, como diz 0 outro, o amor dos pais tudo vence E UM BELO DIA... os dois camponeses, apanhando a aldeia a dormir a sesta, piraram-se com o filho na camioneta da carreira. Conta-se, nao ha provas, conta-se apenas, que © rapazito que amanha viria a ser imperador nao se mostrou satisfeito com a viagem, embora a ti- vesse tragada no signo. Na sua infancia sabedora conhecia todos os passos que lhe estavam reser- vados, mas havia qualquer coisa que o contrariava. O que era, 0 que nao era, s6 mais adiante se veio a descobrir: antes queria ter vindo de burro, quei- xou-se ele—e s6 uma vez. DE BURRO? QUE IDEIAW pane 17 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO Seria por catisa dos solavancos da camioneta, tao ruidosa e téo cogada? Possivel, é uma hipé- tese. Seria por se ver misturado com passageiros folgazdes que a cada paragem corriam para as tabernas e desatavam aos abragos uns aos outros? Ou seriam saudades do jumento que tinha tro- cado pelo curso de imperador? Enigmas, coisas da Historia, que tem destes passos sem rastro para despistar os curiosos. 0 pequeno queria ir de burro porque sim. E mais nao disse. A mée, como é natural, enterneceu-se muito com um desejo tio humilde. Segundo a lenda, teria sorrido tristemente, aconchegando a crianga contra o peito e pensando se calhar em como era fragil o seu filho. (SOSSEGA, MENINO. ESTAMOS A CHEGAR» De apeadeiro em apeadeiro apareciam rapazi- tos descalgos e de arco na mao a festejar a camio- neta. Alguns penduravam-se na escada da reta- guarda que dava para o tejadilho; outros riscavam bonecos no pé que cobria os guardatamas; outros, ainda, espreitay 1 1a para dentro, para os passa- geiros, e fugiam a rir, envergonhados; ¢ havia sem- pre um que punha a mao no radiador para o sentir a trepidar de calor e de cansaco. Era isso a velha carripana: uma aventura tentadora. Um mundo em viagem, com 0 motor a ofegar, 0 cheiro embria- gador da gasolina e a novidade dos rostos que se alinhavam as janelas. 18 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO Por essa razio, quando ela arrancava estrada fora, PUF... PUF.. : os rapazitos, aqueles diabos, corriam &* acompa- nhé-la, rindo e acenando com os bragos como se a camioneta, 1 no intimo, tivesse passado ali sé para os desafiar para uma reinagao qualquer atra- vés dos montes ¢ dos povoados e por esses mun- dos além. Acabavam, bem entendido, por ficar para trés, suspensos numa nuvem de poeira, en- quanto o calhambeque ia galgando covas e pene- dos, a assoprar, a assoprar. NUVENS DE JUMENTOS AMEAGAM OS FUGITIVOS Volta, néo volta, a mae estremecida debrugava- -se a janela, receosa de ver despontar no horizonte um enxame de camponeses cavalgando burros poei- rentos. Esperava-os a todo o instante, disparados pelos montes abaixo, catapum, catapum, de punho no ar como os indios, e aos uivos: Avante, avante contra a familia desertora! Mas nao devia passar de um pesadelo, essa vi- sio da mae estremecida. Felizmente que, mesmo ferrugenta, uma camioneta sempre ¢ uma camio- neta e corre mais do que o mais ladino dos jumen- tos. E oxala. Que Deus Ihe desse muito félego e vo- Jante seguro para levar a viagem a bom termo, era o que aquela mae Ihe desejava. ‘SAO CRISTOVAO VIAJANTE, PADRE-NOSSO, AVE-MARIA...» 19 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO A carripana parece que a ouvia. Tinha supor- tado muitas invernias, a infeliz. Muita carga des- mesurada para a sua idade e muitos caprichos de passageiros. Ainda por cima estava ruca, que desgraca, ruga e cheia de feridas, isto é, sem cor e coberta de amolgadelas. Nos cascos era 0 que se via: mal calgada (como dizem nao sé os ferradores mas também os chauffeurs sempre que se referem a pneus gastos, nas lonas), e dava de si porque as molas, cheias de ferrugem, de reumatismo ou ld 0 que fosse, prendiam-Ihé os movimentos. Para cémulo, nem sequer dispunha de uma boa buzina com que se fizesse respeitar. © que Ihe valia era que, ao cabo de tantas via- gens entre a aldeia e a cidade dos doutores, apren- dera o caminho de cor e a bem dizer quase nao precisava de mao que a conduzisse. Apertar com ela nao resultava. Emperrava. Mofa, moia, e nado passava dali, Podia até amuar e recusar-se a ir para diante, cheia de personalidade. Como os jumentos, afinal. Quando tal acontecia, nada feito, TUDO PARA A RUA e s6 com os passageiros a empurrar e muita habi- lidade do condutor, a camioneta acabava por se convencer, Recomegava entéo a caminhada, um tanto hesitante, arrastada, mas vencida pelo fata- lismo e pela resignagao. «VOU DE BURRO, VOU DE BURRO», 20 «Catapum, catapum..» DINOSSAURO EXCELENTISSIMO diria com ele o futuro imperador enquanto a mae espreitava 14 para trés, receosa da perseguigao dos jumentos vingadores. (Seria realmente de burro que os historiadores descreveriam mais tarde a viagem para o templo dos doutores. 0 pequeno e a mae em cima da albarda; 0 pai ao lado, abrindo caminho com um ramo de esteva em flor.) Cada terra d4 0 que tem, a mais nfo € obrigada. Desftalda-se o Alentejo em cortiga da melhor, 0 Algarve em sol e praias. Diamantes vém de Angola, parece; da América ouro e guerras. Terras hé que dao o vinho; outras, pedras e emigrantes. A cidade para onde se dirigiam os trés camponeses produzia doutores—e isto n&o consta da Geografia. Toma nota, Ritinha, P* mae e filho acharam-se no meio de muitas Tuas apertadas e antigas. Havia arcos de pedra e brasées a certas portas. Oratérios também: mui- tos. E padres. Padres, padres e mais padres, o que ali ia de padres sé visto. Levantava-se uma pedra saltava um, acendia-se a luz voava outro. Pareciam gatos a espirrar da sombra. Mulheres 6 que poucas, muito raras. A falta delas a cidade procurava animar-se com rapazes aos bandos que brincavam a coragem do vinho tinto e contavam anedotas em voz alta. Vestiam 2i DINOSSAURO EXCELENTISSIMO capas de luto e batinas iguais as dos padres, em- bora fossem estudantes. O mais curioso é que, tal- vez por néo terem mulheres ou por andarem cheios de medo dos professores, se vingavam constante- mente uns nos outros, rasgando capas a tesourada, rapando o cabelo aos mais fracos, fazendo trinta por uma linha. Nessas ocasiées soltavam gritos de guerra: CEPE-ERRE-A... FRA «EFE-ERRE-E... FRE!» WEFE-ERRE-I... FRI procurando assim decorar 0 abecedario. Longe, nos quintais, os que néo andavam de tesoura em punho cantavam para chamar mulher. E, Jesus, era de arrepiar. Ouvia-se a guitarra: gemia tremidos, miudinha; ouvia-se a voz: tinha trinados de ave capada, toda mel e lua cheia. Estava-se, es- cusado seré dizer, NA CIDADE DOS DOUTORES Das esquinas e dos portais, os trés forasteiros eram assaltados por comerciantes da mais variada espécie: «PST, DOUTORES!» chamavam eles, e nem percebiam que estavam a dirigir-se a uma trindade de camponeses em fuga, pai, mae e filho secreto. Queriam 14 saber. Assim, o alfarrabista anunciava nestes termos: Sebentas em estado novo, doutorzinho. Caveiras & pegas anatémicas. 22 Padres, padres © mais padres.» DINOSSAURO EXCELENTISSIMO Batinas, gritava um alfaiate de fita métrica ao pescogo. Um estalajadeiro apontava a ardésia dos pre- gos: C4 estd a Pensdo da Malvada, seus doutores. Sempre a aviar, sempre a aviar—enquanto gue a lavadeira, subindo a calgada, de trouxa de roupa a cabeca, lancava um prego arrastado, de estre- mecer as casas: Ovwuu-Jalaou... doutores, venham a boa barrela. Estes brados cresciam pela cidade, endoide- cendo os habitantes vestidos de luto. Levado na onda de padres e aprendizes, sau- dado pelo comércio, envolvido pelo cheiro do azeite que ardia nos lampaddrios, 0 pequeno camponés atravessou becos e quelhas, penetrou no antepas- sado, no luto. A prépria $6 estava terrivel e som- bria, carregada de séculos. Benzeu-se e seguiu jor- nada. Depois andou, andou, até que foi dar a um largozinho solitério onde o esperava um enorme crucifixe. Ai, pausa: primeira estagéo. Ajoelhou, como era seu dever, pedindo imediatamente mui- tos triunfos para os estudos, meméria e disciplina. Pediu bem e em boa hora porque aquela era a imagem do Cristo Doutor. Reconhecia-se pelo letreiro ao alto da cruz — Universitas Sapientia Omnium— e pela coroa de espinhos que ali eram em ntimero certo: tantos quantas as figuras da Re- torica. Na m&o direita tinha um cravo de ouro representando a Escoldstica; na esquerda um de 23 DINOSSAUNO EXGELENTIssiMU prata, a Praxe. Havia ainda a inconfundivel capa negra pendurada num dos bragos da cruz e que, constava, era voz geral, oferecia as melhores pro- tecgbes a todo aquele que a beijasse, desde que fosse estudante ou bacharel—e sé a esse, Foi exactamente o que o pequeno fez, beijou-a. A seguir, entre pai e me, comegou a escalada para © ponto mais alto da cidade, mas numa travessa mais apertada cairam-lhe em cima os ladravazes da tesoura rancorosa. Fez sinal aos pais para que néo se assustassem e humildemente baixou a ca- bega. Raparam-tha, Segunda estacdo. «EFFERRE-A... FRA (EFFERRE-E... FREI» Recomegou a marcha, que agora era mais difi- cil, quase a pique e por passagens estreitissimas e cheias de gente embugada. E neste andar dew de caras com um grande mosteiro ou coisa seme- Yhante— mosteiro, digo bem, visto que tinha sino na torre e claustros de pedra antiga. Siléncio e ponto final; estava-se na Universidade, deduziu © nosso rapaz. Empoleirados em altos cadeirdes OS MESTRES RECEBERAM-NO COM DUREZA «QUEM E ESTE% pareciam perguntar. Somente, ndo se Thes ouviu a minima palavra e nem era de esperar que se ouvisse porque aqueles mestres néo diziam sendo 24 Quem 6 este? DINOSSAURO EXCELENTISSIMO 0 que estava dito nos livros antigos e nunca se dig- navam nomear pessoas ou factos que nao tivessem sido nomeados pelos mestres defuntos, e com o devido respeito. Vestiam paramentos negros e usavam estolas como as dos sumos sacerdotes, mais ou menos. Rostos rapados, cinzentos, olhos frios, raposées, olhos de muita vigilia, ali estavam eles, bem alto, num friso de catedral como cardeais da sabedoria. Cada qual empunhava seu bastio de igreja (mas sem a volta dourada dos béculos) e a maneira de mitra tinha sobre os joelhos um chapéu conhecido por capelo que s6 cabe na cabega dos muito sabe- dores e nio na de qualquer dos estudantes que circulavam ca em baixo, decorando a sebenta: «PATITI.., PATITA... NOVES FORA, NADA. PATITI... PATITA... NOVES FORA, NADA.» Diga-se ainda que naquela casa havia muito latim pelas portas, patiti, e pelas paredes, patita, e que se falava constantemente a pensar nos mortos, no selutar exemplo dos mortos, nossos maiores, «AD GLORIAM DEL» sempre com 0 devido respeito. Sem perder tempo, 0 pequeno aldedo atirou-se aos livros para aprender a tal maneira de pensar e de fazer frases que o havia de tornar célebre entre os doutores. Seria uma lingua dificil a dele, mas muito util porque sé a entenderiam os mes- 25 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO tres e os defuntos—o quanto basta. Estudou, queimou as pestanas, amareleceu. Ora, isto de ele se dedicar as palavras e aos raciocinios em antepassado fez com que muito boa gente pensasse que trazia alguma novidade nova. Traria? Os doutores, do alto da sua gravidade, ace- navam que sim: tratava-se de um falar muito pré- ximo dos alfarrabios por onde tinham estudado — logo, o mais perfeito. Juizes e escrivdes, idem. Habituados a pentear pardgrafos e alineas, gosta- vam daquela maneira de discorrer tao encarrei- rada a aparo burocrdtico. Os préprios frades, por via de regra gente recolhida, nao resistiam a erguer os olhos, embevecidos: frases de longo ornato, como as das iluminuras, quem as podia ignorar? Por fim os guerreiros-chefes, percebendo 0 conten- tamento geral: Talvez, talvez... Era muito provavel que andasse ali génio de primeirissima. De modo que foi chamado para imperador. 26 Parte Segunda O Reino O Reino naquela época tremia de frio e de difi- culdades, Tinha-se deslocado para a beira- “mar, nao se sabe bem porqué mas supde-se: fome. A fome vinha do interior e varria tudo para © oceano. Nesta leva desgarrada, escapavam os campo- neses, que tinham a barriga curtida, eram cardos, © que se cravavam na terra como uns danados, 4 dentada. Acocoravam-se nas tocas e nas dobras das montanhas para deixar passar a ventania, pare- ciam calhaus, seres empedernidos; depois volta- vam ao trabalho, a semente que se enterra e ao fruto que se arranca. Habituaram-se as tempesta- des; fome para eles era o pao de cada dia. Os restantes, os que nao tinham conseguido enganar a firia dos vendavais, fugiram de roldio pelo pais fora, atravessando aldeias e planicies, vinhas e repartigdes, hoje fazendo familia neste Ponto, amanha mais naquele, até se verem diante do mar, acossados. Uma vez ali, ou entregavam o 27 DINOSSAURO EXGELENTISSIMO corpo aos caranguejos ou faziam como o mexilhéo: pé na rocha e forca contra a maré. Daf, o nome de Reino do Mexilhdo que Ihe pés a geografia em homenagem {homenagem?} a esse marisco mais que todos humilde, sé tripa e casa. «QUANDO 0 MAR BATE NA ROCHA QUEM SE LIXA E 0 MEXILHAO» Criatura (porque o 6), criatura 4 margem, mir- rada, coisa pequena; bicho que se alimenta de agua e sal, do sumo da pedra, ou de milagres, quem sabe —o mexilhdo, oh vida, tem a ciéncia certa dos and- nimos: pensa e no fala, vai por si. Se virou cos- tas a terra, foi por culpa dos doutores do interior (dé-erres, assim chamados) e da conversa em ha- charel com que o atzcavam; unicamente por can- sago, desinteresse. Na sua condigéo de habitante do litoral era com o oceano que desabafava, levava os dias a medir o infinito e a resmoer o seu ditado preferido: Quando o mar bate na rocha quem se lixa € o mexilhdo. Um estrangeiro, mesmo o mais turista dos estrangeiros, nao podia deixar de concordar que havia muita verdade no provérbio. Logo que nos outros reinos se declaravam guerras ou pregos la vinha o vento a alastrar ¢ quem pagava cram os mexilhées, apesar de nao terem culpa nenhuma; se os serranos se deixavam arrastar das suas tocas, sabiam que era contra eles que vinham chocar e 28 w@areciam calhaus, fome para eles era 0 pio... DivassauRa RXCELENTISSIMO viam-se obrigados a fazer parede para nfo irem cair ao mar. Oh, vida. Ao cabo de largos anos de experiéncia estes camponeses pendurados nas falésias, mexilhdes no legitimo sentido, tinham criado pé, raizes de limo, obstinados em olhar as nuvens, 0 quer que fosse. A falta de comida mastigavam os beigos e os pensamentos que Jhes trazia a brisa maritima («Quando o mar bate na rocha, etc») ¢ isso e as rugas de tanto fitarem o além faziam-nos velhos antes do tempo. Nasciam jé velhos, parece impos- sivel. Eles a mirar as nuvens, a esirela da India ou a onda prometedora, e eis senfo quando DECLARA-SE A INVASAO DOS Df-ERRES «AO ATAAAQUE! Eram os guerreiros do interior, filhos de monta- nheses, que avangavam, friamente treinados pelos mestres da cidade dos doutores. Tinham cercado primeiro a capital, mascarados de juizes, mangas- -de-alpaca, meninos de coro e curadores dos po- bres; infiltraram-se nas secretarias; ocupavam pon- tos estratégicos—e as duas por trés, a eles, a eles, que é uma pressa, cairam em cima dos mexilhdes,, brandindo os seus canudos de bacharéi «IN HOC SIGNO VINCES!» IN HOC SIGNO VINCES!» 29 DINOSSAURO EXCELENTIssINO Apanhados de costas, os da beira-mar rende- ram-se sem discussao, tanto mais que néo com- precndiam a lingua dos invasores, Ficaram de boca as moscas e bracos pendurados enquanto os dé- -eryes triunfantes, repetindo a sebenta dos treina- dores, Ihes davam o golpe de misericérdia com ra- jadas de discursos. Discursos e contradiscursos, discursos por uma pa velha como s6 os dé-erres sabem fazer: com exceléncia para a esquerda e ex- celéncia para a direita, e ndo sei se me fago com- preender. E assim é que se enxofra. «TENHO DITO» Os mexilhées, nem uma nem duas. Era conversa de dé-erres, dialecto de codicum magistratum em paragrafos 4 meia volta para atordoar. Ouviam ca- lados e saiam mudos. Entretanto o Reino foi embandeirando em de- cretos, requerimentos, assinaturas; frases dificeis a esvoacar; papéis de amanuenses, alegria das re- partigdes; artigos de fundo; oratérias. Nao tardou muito chamavam-lhe Comarca dos Doutores por gratidéo aos ocupantes que se passeavam, rua abaixo, rua acima, nos cafés e até em casa, com os canudos de bacharel selados a DR. Respeite-se a sabedoria, queriam eles avisar com isso. Bem, por causa da sabedoria estes cidadaos apresentavam um aspecto de fria gravidade. (Como se disse, exceléncia para a esquerda e exceléncia 30 sho ataaaquels DINOSsAtRO EXcELENTESSIMO para a direita.) Tinham obrigado os mexilhdes a vestir de escuro porque a vida nao estava para gra- gas e decretaram que de futuro o riso seria a més- cara do desdém, o falar a capa dos ignorantes ¢ a alegria o fumo da inconsciéncia. Que se passasse aviso e se cumprisse, remataram eles, com um DR na ponta da decisao. Pouco a pouco, as feiras e romarias, jé de si tao remetidas ao calendédrio, téo na espinha, foram-se transformando em descampados entregues as mos- cas mais desiludidas que se conhecem, Os sinos das igrejas multiplicaram-se, foi o milagre. Os si- nos, flores de purpura e latim, reproduziram-se como sementes levadas pelo vento BADALAO... BADALAO... ao correr de montes e vales e cobrindo os povoa- dos. Ca em terra, pés no chao, soldados ¢ procis- sées, um-dois, esquerda-direita, oremus, patrulha- vam as estradas. Na Comarca dos Doutores, onde se via pobreza devia ler-se modéstia —outra regra que era neces- sério registar, proclamavam os dé-erres, Estava-se entre gente modesta, gente de poucas posses, sem divida, mas, ponto importante, possivel de enri- quecer. A questao dependia tnica e exclusivamente da Providéncia justiceira porque naquela terra a fortuna, quando aparecia uma vez por outra e olha 14, nao vinha pelo processo do suor do rosto. Che- 31 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO gava de mio beijada por deciséo do Destino supe- rior aos homens. Desta forma: Dizia a lei que qualquer mexilhao, independen- temente de sexo e de convicgdes, podia subir a classe de rico desde que jogasse na lotaria. Jogava, Gomo era de esperar. Jogava este o que nao tinha, © outro o que se Ike acabava; jogava 0 coxo € 0 enforcado, e até 0 cego apalpando os nimeros. Me- tade da nagdo vendia lotaria 4 outra metade. Em conclusdo: era um reino a vender o abstracto, a negociar o talvez. Esta forma de provocar fortunas evitava as guerras que ha sempre por trds do vil dinheiro, era a mais sabia. Nao olhes o semelhante com des- prezo porque pode ir ali uma sorte grande, devia pensar cada cidadéo; e a isso chama-se cultivar a dignidade, o tao apreciado respeitinho. Assim se explica (em parte, so em parte) porque é que os mexilhées de a-ver-o-mar, os do interior e os de caneta lenta, sentindo a felicidade a espreitd-los, faziam tanta questéo de se cumprimentar em GALVE-O DEUS, PRIMO ZE VOSSA EXCELENCIA» tirando 0 chapéu ao movimento geral que era no ritmo de esquerda-direita, oremus, um-dois, esquerda-direita. Alto!, ordenaram os dé-erres quando lhes pare- ceu conveniente. Ficou tudo suspenso. Entéo, apro- veitando a surpresa, uma embaixada de casaca e risca ao meio foi num instantinho as montanhas 32 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO e trouxe de 14 um imperador. Tratava-se, nem mais nem menos, do camponés nosso conhecido, 0 pré- prio. Vinha magro e iluminado de tanto estudar, mas vestido de mestre. Porque o era. MAS NA PARADA DOS DOUTORES APARECEM OS PEDINTES-VOADORES Sua Alteza, o camponés mestre doutor, foi rece- bido na cidade com mil milhares de bandeirinhas e fff-foguetes a assoprar. Fez o seu discurso, para muitos talvez o mais famoso, 0 mais lembrado, pelo menos. Comegou por citar a conhecida his- toria da «Camisa do Homem Feliz, que é aquela que descreve a alegria do ser-se pobre ¢ a dificil e infeliz vida dos ricos. A seguir, coisa e tal, nave- gou em pensamentos de onda larga e a grande pro- fundidade, fez duas abordagens na metéfora, avan- gou pelos horizontes do amanha— enfim, falou, disse coisas. E tal. Para terminar, levantou os bra- gos & divina Providéncia: «DEUS CONCEDEU-NOS A GRAGA DE NOS QUERER POBRES:» Apoiado! pelos dé-erres, deixou a tribuna num rastro de mtsica e de aplausos. HP, HP, HURRAH ‘SALVE 0 IMPERADOR!» «VIVA A FELICIDADE DOS POBRES!» Durante largos dias o Reino ficou sobrevoado de florinhas de pdlvora e de canas de foguetes ris- 33 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO cando as nuvens. As cartilhas de escola salpicaram- “se de histérias de muito exemplo acerca da honra da pobreza e das desgracas que acontecem fatal- mente: aos ricos, no outro mundo. Entdo os mexilhées, muito bem calados, pensa- ram: pobrezinhos, sim, mas honrados ¢ que nao — 2 a partir dai comecaram a correr certos ditados de ocasifio, s6 para governo dos mexilhées, natu- ralmente, e que nao faziam o menor sentido a nao ser para eles. A cada instante nascia um mais maluco que o outro (a primeira vista, pelo menos); alguns tao desvairados que ficaram célebres, como aconteceu com aquele do «mais vale um rico na mio do que dois pobres a voary que nao tardaria a ser proibido. Também, era o que faltava que nao fosse. Os pobres no voam, tinha respondido o Impe- rador quando Ihe vieram contar a estupidez do pro- vérbio. Ou se voam é porque tém dinbeiro para viajar de avido e sao falsos pobres. Logo, trata- va-se de uma calinia sem ponta por onde se lhe pegasse, e ainda por cima gravissima porque ofen- dia a classe dos humildes, j4 de si tao sacrificada. Ele proprio, logo na primeira hora de impera- dor, tinha provado que nao se esquecera da sua infancia de aldedo. Em vez de palacios ¢ grande- zas, escolhera para morar uma torre muito sim- ples e florida que Ihe fazia lembrar a casa da ma- drinha, 14 na provincia. Também no quis familia 34 1 $fP-foguetes a assoprat..» DINOSSAURO EXCELENTISSImMO nem amigos; festas e multidées de-tes-ta-val Em qualquer parte, e muito particularmente naquele Reino, Deus nao podia ver com bons olhos luxos de espécie nenhuma—era a explicagio que ele dava. Tendo sido doutor entre os doutores, a sua especialidade eram as palavras. Dormia com elas desde crianga e agora que estava sentado a gover- nar comegou a magicar um plano para pér o Reino a falar numa lingua limpa e severa em que todos se entendessem. Ou seja, a dos dé-erres. Dito e feito. Maos ao trabalho, ei-lo a limpar decretos e alineas, jornais, compéndios—o que calhava. Palavras correntes, mais vivas ou menos proprias, fogueira com elas porque pingavam de certeza veneno nas entrelinhas. Outras, quase es- quecidas nas rugas dos pergaminhos, essas é que sim: convinha ir buscé-las, tirar o pé e langa- las em circulagdo, quanto mais depressa melhor. E aqui para nés, havia muitas, muitissimas. Pala- vras de puro sangue latim e grego, que além dos atestados de nobreza tinham cheiro santificado, esséncia de rendas velhas. Em suma, j4 que o Reino era pobre o Impera- dor iria enriquecé-lo com palavras das melhores procedéncias ¢ criar uma linguagem geral que unisse 0 jovem ao velho, o rico ao necessitado, o mexilhao ao dé-erre. E boa sorte, desejava-lhe a Historia. 35 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO Mas no meio do trabalho vinham constante- mente pedir-lhe conselhos os homens mais pode- rosos da Comarca dos Doutores. Isso desgostava-o, como se depreende, nao sO porque era um atraso para o rendimento da nagdo mas também porque, na maioria dos casos, tudo Ihe fazia crer que as pessoas ainda estavam longe de compreender o valor das palavras na construcéo da ordem e do bom senso. Por exemplo, uma vez apareceu-lhe o Patriarca do Alto Comércio e, senkores, o que ali ia, o que ali ia. © homem mostrava-se desnorteado: «NAO POSSO MAIS, EXCELENCIA. OS EXCELEN- ‘TISSIMOS MENDIGOS TIRAM-ME 0 SONO COM ‘PEDIDOS.» O Imperador encolheu os ombros. Trocou sim- plesmente a palavra: Mendigos? Quais mendi- digos? — E deu o problema por resolvido: Inadapta- dos é que o cavalheiro do alto comércio queria di- zer. Inadaptados. «E, POR AMOR DE DEUS, INADAPTADOS SEMPRE EXISTIRAM E CONTINUARAO A EXISTIR ATE NOS REINOS MAIS PROSPEROS. DURMA EM PAZ.» Atrés deste miliondrio estremunhado surgiu, suponhamos, o Guerreirc-Mor. Como de costume, despejava 0 recado em posigao de sentido e duma s6 penada: «SENHOR MESTRE EXCELENTISSIMO PERDEMOS MAIS UMA BATALHA CONTRA OS INFIEIS NAO CONHECEMOS AS SUAS LEIS DE GUERRA NEM 36 DINOSSAURO EXCELENTissIMO © CAMPO QUE ESCOLHERAM. POSSO-ME RETI- RAR? «MOMENTO, SENHOR GUERREIRO-EXCELENCIA», cortou o Imperador muito calmo. Depois, de dedo espetado, explicou que batalha era luta entre exér- citos devidamente registados, com patentes, hino proprio, estandartes e tratados de honra. Ora, tanto quanto era do conhecimento do Mestre, nao acontecia assim com os infiéis, que nfo passa- vam de uma tropa fandanga, sem bandeira. nem uniforme. Conclusao: nao tinha havido batalha nenhuma, Militarmente, pelo menos. «O OUTRO QUE SE SEGUE» O que se seguia era o Tesoureiro das Arcas, as voltas com o eterno problema dos impostos. «IMPOSTOS OU DONATIVOS?» perguntou o Imperador, insistindo na diferenca. (Distinguo, disse até para ‘ser mais claro.) O das Arcas encolheu-se, mas Sua Alteza nao perdeu tempo com ele: mais impostos era-lhe im- possivel autorizar; no entanto donativos achava bem. Nao via inconveniente em que fossem decre- tados donativos que sé os individuos de maus sentimentos ou os inimigos da patria se recusa- riam a pagar. E com gente dessa nada de con-! templagées: *CORTAM-SELHE AS ASAS.» DINOSSAURO EXCELENTISSIMO Deus criou o som, 0 homem fez a palavra. Depois, tal como a fez, aprendeu a destruila ou a corrom- pé-la. E sendo vejamos: Temos esta fita gravada, repara, Agora, cortando um pedago escolhido — assim— e colando-o nou- tro ponto — acola— podemos, é relativamente fé- " cil, transformar a verdade da voz que aqui esta. Apagar, desdizer a voz, até. Confundi-la. Montagem, chama-se a esta operagio que, como vés, facilima. Mas hd processos menos simples e muito mais eficazes, Ritinha. Se ha. Quanto tempo gastou o Imperador a estudar a maneira de se ver livre das palavras que o incomo- davam? Meses? Anos? O melhor da vida, ha quem diga. Bandos de espiées batiam as ruas com o en- cargo de denunciar a lingua, confrarias de douto- res mergulhavam nos compéndios, outros na letra de forma, no diz que diz. A fala dos mexilhées era passada a crivo, havia orelhas de morcego a cagé-la nas dobras da sombra, imagine-se. © Mestre é que nao se dava por satisfeito. Queria melhor, cismava num remédio infalivel que ndo podia dizer. Reunido no gabinete com alguns mégicos sem passaporte, ligou lampadas e mega- lampadas, instalou labirintos, olhos electrénicos, cabelos de platina, deu instrucies secretas a com- putadores de inconcebivel crueldade—e, ao ver a maquina a funcionar, esfregou as maos: agora sim, a mtisica ia ser outra. Seguidamente pagou 38 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO aos magicos os salérios prometidos ¢ empurrou-os para o «OLHO DA RUA» {ou mandou-os matar, na opiniéo de alguns histo- riadores). 7 Aquilo que até ali nfo passava de um modesto gabinete sem nada de especial iria ser conhe- cido por A CAMARA DE TORTURAR PALAVRAS onde verbos e substantivos, cedilhas e restante populacio dos diciondrios sofreriam tratamentos em wltimo grav. Seguindo 0 esquema (que talvez ainda possa descobrir-se algures, nos arquivos ou nalgum mi- crofilme em cédigo-espia), a maquina infernal de- via resumir-se a a) Um grupo de registos de leitura — compu- tagdo inicial—, que seguramente figurava nas dnstrugdes Gerais» como Conjunto de Admiss&o por ser através dele que as pala- vras entravam no circuito para imediata- mente se dirigirem ao b) Sistema de Selecgées Progressivas, também designado no, esquema pelas iniciais SP, onde eram combinadas com outros vocé- 39 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO bulos que actuavam como catalisadores ou «reagentes significantes». Por esta opera- g&o obtinham-se os sinénimos e as inten- goes mais ocultas de cada palavra. c) Grupo Complementar que, complementar- mente, informava sobre as raizes arabes, gregas, latinas ou de antepassados mais que duvidosos. @) Camaras Alfa, Beta e Beta Um. Devidamente desdobradas nas suas origens e significados, as palavras eram transpor- tadas por vma rede de canais progressiva- mente selectivos até um conjunto de trés c&maras onde se submetiam a movimentos de compress4o e sintese. O produto obtido, a reminiscéncia, a silaba, ia sendo anotado numa e) Fita de registo continuo e simultaneamente enviado para o fl Complexo de Recuperagdo (lavagem e fil tros) que, depois de purificar a palavra, a recompunha e transmitia aos 9) Ficheiros autométicos. Isto numa ideia muito geral. Penetrar no gabinete era impossivel. Os tnicos que tinham licenga de chegar mais perto —os pares do Reino e um ou outro notavel em vi- 40 ‘A cémara de torturer palavras DINOSSAURO EXCELENTISSIMO sita— ficavam na sala ao lado, onde reunia 0 con- selho dos excelentissimos, e esperavam pelo Im- perador. Mas em boa verdade ele ja {4 estava ba muito, presente para a eternidade, Ao fundo, e a cabeceira da mesa. De pé. Numa estétua em tama- nho natural. A ESTATUA QUE FALA Vestidos de luto e todos de éculos inteligentes, os corteséos esperavam de chapéu na mao diante da estatua. Aquele Imperador de bronze recor- dava-lhes o jovem doutor camponés, Modéstia e Autoridade, que viera do nada para assombrar os mestres. Olhava para longe, erecto como um pro- montério. . Alguns visitantes tocavam-lhe em profundo recolhimento, e compreende-se: tinham a frente deles o Chefe! na expressdo mais pesada e solen 0 irmao-irmao, o gémeo; o que ficaria para os sé- culos como um vasto eco 7» pantedo a meia luz. Isto, admitindo que alguma vez um Imperador e Mestre poderia ter irmo ou figura que se Ihe asse- melhasse, QUE HERESIA! Os conselheiros e 0s corteséos, se estavam sozi- nhos na sala, aproveitavam para ensaiar os seus discursos na presenga da estatua. Eles, com salti- 41 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO tinhos de corvo, e o Imperador, em firme bronze, enfrentavam-se ambos nesse primeiro encontro, no prefacio as resoluges que iriam seguir-se, EXCELENTISSIMA ESTATUAD, perdao: Excelentissimo Mestre, comegava 0 Gover- nador da Wha das Duas Casas, falando na sala deserta. E vinha com a conversa habitual: pedia uma nova emissio de moeda-osso visto que os nativos, por altura da iltima seca, tinham rofdo uma boa parte dos vinténs que andavam em cir- culag&o; e porque torna e porque deixa, seguia-se que era urgente reforgar 0 mercado, concluia o cornetas do Governador. O Imperador verde pare- cia que nem se dignava clh4-lo, de tal modo era distante, tao de bronze. Com 0 Juiz das Gausas Combinadas dava-se o mesmo. Atirava-se ao discurso com aberturas de largos cumprimentos mas, no momento de entrar propriamente na matéria, gaguejava e retirava-se as arrecuas, com muitas vé-vénias. Sala em paz, pensava ele. E como estes, muitos. Até o Missionario Alta- -Cruz, que padecia de cataratas e era um campedo em mistérios, até esse, palavra, punha diividas se a estatua nao tinha vida. Teria sido benzida secre- tamente?, perguntava. Firmava melhor o olhar, insistia, e com a vista a arder de esforgo quase “que descobria respostas de génio em certas expres- 42 «Erecto como um promontério..» DINOSSAURO EXCELENTISSIMO sdes do rosto de bronze. Dizia: estatuas com vida nao seria esta a primeira. Que se lembrasse ja vinha na Biblia o milagre da estatua de sal. Ou era confusao dele? Bem certo que o missionério da vista delirante tinha a mania de se aventurar por episédios sagra- dos, mas escusava de ir tao longe. Bastava-lhe, se quisesse, apoiar-se em factos recentes, como 0 caso daquele guerreiro dé-erre que, andando a preparar uma conspiragao, ao ver-se diante da imagem de bronze teve um baque! de consciéncia e, catra- puz, correu a-contar tudo ao Imperador. Pasmai, oh armas e varées endurecidos, que o arrependi- mento fez-se ali mesmo e naquelas quatro pare- des. E isto foi um facto recente. Que Ihe teria dito a estétua? Assim se passavam as longas esperas na sala que dava para a camara das palavras. Do quarto ao lado escorriam agonias de sons, restos apaga- dos, através das paredes reforgadas. Os cortesaos sentiam o gabinete a crepitar e ferviam de curio- sidade—mas tinham maneiras, dominavam-se. Eram servidores fiéis e discretos e, principal- mente, preocupados com o discurso. Sua Alteza aparecia 14 para as tantas. Sentava” -se na presidéncia, com o irmao de bronze a guar- da-lo pelas costas, e abria a sess&o: SABER E AUTORIDADE! SENHORES, VAMOS A ORDEM DO DIA.» 43 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO DR... RRRRI £ frequente estabelecerem-se confusdes sobre os dé-erres que naquela época habitavam o Reino da Comarca. H4 quem os considere uma raga hibrida «apurada em movimentos migratérios en- tre a sebenta e o catecismo» (frei Pantaledo das Bulas) e quem os reduza a uma variante dos des- cendentes bastardos do Rei ElLavrador que po- voou o século XIII-ou-Mais com filhos de milhen- tas barrigas. Outros especialistas no estéo com meias medidas: atribuem aos d@-erres caracteris- ticas de subespécie, alargando a sua definigéo aos mexilhées do litoral e do interior que, no contacto com as leis e a administrac4o, adquiriram vicios tipicos e porte bem definido. © que parece desde j4 indiscutfvel é que o dé- -erre, D-R, DR, Dr. D Herr, Herr D, Senhor D ou Senhor Dom —o dé-erre, tal como aparece na Comarca dos Doutores— tem a sua origem no campo. Distingue-se facilmente dos restantes me- xilhées pelo porte do contentinho consigo pré- prio, pelos tons escuros com que reveste o corpo e pelo cantar inconfundivel, que 6 esdrixulo e en- tremeado de gargarejos. DR... DRervrr... Como no Reino sé havia 1-Unico Mestre, que tudo podia e tudo lo mandava, cada dé-erre pre- “4 «814 quem os considere uma raga hibrida..» a if Aes ‘e DINOSSAURO EXCELENTISSIMO tendia enganar os outros fingindo que era o mais importante logo a seguir ao Chefe. Dai o conhe- cido estribilho «0 EXCELENTISSIMO NAO SABE COM QUEM. ESTA A FALAR» que se ouvia constantemente nas cenas de rua da Comarca dos Doutores. Filhos e netos de camponeses que enriquece- ram, enriqueforam e que em ricos serao sempre camponeses por mais que disfarcem, estes exem- plares caracterizavam-se por possuirem hébitos sedentarios, preferindo as areas das secretdrias e outras de clima acentuadamente burocrdtico onde a vida decorre na ordem dos ciclos naturais das chuvas e dos impostcs. Deslocavam-se com solenidade difusa, a custa dos seus canudos ce bacharéis, que utilizavam como membrana extensora do aparelho bucal e do abdomen ou como apéndice perfurador para abrir caminhos subterraneos no planeta dos decretos. Hoje esta historicamente provado que os dé- -erres eram dotados de grande instinto gregario. Se bem que de uma voracidade rancorosa, davam provas de apreciavel sentido colectivo na luta con- tra as maiorias dos mexilhes, dominando-as pelo cantar gargarejado com manobras de ponto e vir- gula. Assinavam com DR. Sempre com DR.., fizesse sol ou tempestade. Transformaram essa marca no 45 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO entre-parénteses do seu nome e ndo podiam dispen- sé-la ao telefone, no tom da voz, no barbeiro e na familia, e nas iniciais do pijama. Quando os mexi- Ides da celebrada seita dos Pedintes Voadores os baptizaram de homens-entre-parénteses referiam- -se evidentemente a esse habito caracteristico dos dé-erres, Neste ponto parece que nao hé dtividas. NUM GOLPE DE GENIO 0 IMPERADOR SALVA UMA ILHA NAUFRAGADA Mas 0 vicio da ordem era também a fraqueza dos dé-erres. Mal um vendaval mais forte cafa em cima deles, pronto, desorganizavam-se. Talvez tenha sido justamente 0 que se det quando os bar- baros das quatro direcgées ocuparam determinada ilha dos confins do mapa, que por acaso até era a mais caprichada da Coroa. Pelo menos, nao falta quem 0 afirme. Foi assim: Enfeitigados pela mal- vada cobi¢a, os ditos barbaros desembarcaram’na ilha com zagaias pegonhentas, urros e dentadas e nao deixaram pedra sobre pedra. Conquistaram-na 4 bruta, sem mais aquelas. Um horror. Apanhados de surpresa, os dé-erres pularam como mil diabos, mas os invasores, insensiveis por natureza, insta- laram-se com armas, bagagens e religido (?) e Deus te salve, bela ilha, que te escapaste para nunca mais, Houve désgosto geral, suores; cortesios a 46 sConquistaram-na & bruta..» DINOSSAURO EXCELENTISSIMO tremeluzirem de indignagéo miudinha; missas de dominus vobiscum para aliviar; discursos de pedir VINGANGA! quando, no meio da confusdo, sou a voz do Im- perador lancada pelos altifalantes da Praga dos Acontecimentos: QUE £ ISSO, CRIATURAS DE RAZAO TURVADA® Os dé-erres recuaram, envergonhados; curiosos ao mesmo tempo. E a voz anunciou: 4A ILHA NAO SE PERDEU, CONTINUA NOSSAD Curiosidade dobrada. «ESTA MAIS PERTO DE NOS DO QUE NUNCA!» Aqui estalaram as palmas, os parabéns, dos milhares de cidadaos reunidos na praga. Mas, muito no intimo, punha-se-lhes a pergunta: mais perto onde? Mais perto do coracio, seria? Entéo o Imperador apontou do alto da tribuna para duas casas no outro extremo da cidade: Acold. Tinha mudado para ali o governador humilhado, © capitao vencido mas nao convencido, o padre, o juiz e umas dezenas, digamos, de indigenas de pé mais leve e olho repentino. Estava ali a Ilha. «QUE TODOS TOMEM NOTAs, acrescentou. Depois deu meia volta e foi para o forte, para as palavras. 47 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO Todos tomaram nota, e a ilha passou a ser na cidade e nao onde queria a geografia. Limites: a norte o largo do chafariz, a sul e a nascente o jar- dim zoolégico com a variedade da sua fauna carac- teristica, a ocidente um campo de futebol, e mais para diante mar. O extenso, o prédigo, o venerd- vel mar. Agora, atengéo escolas, atencio compéndios, havia que corrigir @ populagéo, que era de oitenta e trés nativos, 0 clima, menos hiimido que antigamente, e a divisdéo administrativa em dois distritos auté- nomos com as resvectivas comarcas distribuidas pelos diversos andares dos prédios. Existia ainda uma zona independente —a de maior densidade florestal— ocupando a garagem e os terrenos bal- dios das traseiras (ainda por demarcar) e um en- clave de dois pisos onde funcionavam os servigos missionérios, a comissio protectora da caca grossa e as brigadas contra a doenga do sono. Por aqui ja podemos avaliar o exemplo de civi- lizagéo que era a Wha das Duas Casas, rodeada de cidade por todos os lados. Pérola serena, ban- deirinha na imensidao, eis o que ela lembrava. Mas para que tudo ficasse como dantes, ou seja, como quando a Ilha era rodeada de mar, o Imperador ordenou que as salas fossem forradas com enor- mes fotografias da paisagem de cada distrito, de modo a que os indigenas nao estranhassem a 48 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO mudanga. Pés também palhotas: duas em cada quarto; nos corredores plantou capim e palmeiras de plastico, transformando-os em caminhos de ser- téo. Que mais faltava? Ah, os pdssaros—esses mensageiros francisca- nos que alegram a natureza despertam a ino- céncia, onde estavam eles, 0s passaros? Resposta: no lugar que lhes competia—entre a folhagem. Havia-os de porcelana, em pedestal de museu e em plumagem de nylon e, j4 agora, puseram-se também macacos embalsamados para animar a ramaria, Nas paredes insectos fluorescentes de lu- zir A noitinha; pelos cantos serpentes enroladas. Em matéria de som a realidade era de deitar por terra um explorador de cem carabinas—vinha todo do naturel, gravado em fita magnética: choro de hienas, roncos de leo altaneiro, macacadas barulhentas; 0 tritrinar das aves e o cascalhar dos riachos; tambores ao longe. O essencial. Cada habitante tinha por dever andar de tanga dentro dos prédios e falar 0 dialecto da respectiva regido. Assim ajustava-se melhor a paisagem e aos climas que continuavam a respeitar os hordrios do outro hemisfério, com mongdes e tudo. Ver- dade, as mongdes eram essenciais. Para esse efeito utilizavam-se uns engenheiros desvairados que, na altura prépria, inundavam os prédios a jacto de mangueira, derrubando algumas palhotas para exemplificar. 49 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO «AMANHA HA MONGAO», anunciava o porteiro, e era infalivel porque ja tinha descoberto os engenheiros da mangueira a rondarem o bairro. Este porteiro, além de porteiro propriamente dito, fazia de Alfandega e de Policia das Fronteiras. Uma vez que a Ilha das Duas Casas continuava a usar a moeda local —os vinténs de osso, conhe- cidos por «vinténs selvagens» —, tinba de se impe- dir que se misturassem.com o dinheiro do Reino, que era de vinténs, sim, mas dos civilizados. Fugas de divisas sé trariam prejuizos a ambas as partes e por isso os indigenas tinham de ser revistados quando safam para ir as compras ou ao cinema PASSAPORTE EM 7 CHAVES A teia das palavras zumbia de manha 4 noite. Estendia-se de canto a canto do gabinete em fios sensiveis de transaltissima tensdo; devorava pala- vras, sugava-as até a ultima silaba, até A letra, ao acento—e bem na ponta, bem no n6, estava o Mestre. A espreita atras da secretaria. Sobrevoado por electrées errantes, © seu mundo era aquele: pzzz... pzzz... canais, sons de alarme, computadores a maquinar pzzz, pezz, e que ninguém o interrompesse. Luz do dia ignorava. Gente, a menos possivel. Na melhor das hipéteses vinha a sala da estétua tomar félego e, 50 DINOSSAURO EXCELENTISSIMO ala, para o gabinete. 0 povo lembrava-se dele pelos retratos oficiais, pelos bustos de jardim ou, mais dificilmente, pelas notas de banco que traziam a cena histérica do «Imperador entre os Doutores Saber & Autoridade, moeda-ouro». Mais nada. Poucos, rarissimos cidadaos podiam entrar na torrezinha modesta onde ele se tinha fechado a sete chaves, todas de segredo e cada qual com o seu nome — a saber: Chave da Forga, a mais pesada. Chave das Béngéos ou dos Santos Oleos, trabalhada a ouro e a incenso. Chave do Comércio, modelo universal. Chave dos Espiées ou Gazua da Inconfi- déncia. Quinta Chave, também chamada das Alian- as, para uso dos estrangeiros de boa von- tade. Chave do Suborno, a de mais voltas. Chave dos Caprichos e Acasos, pessoal ¢ intransmissivel. Conforme a pessoa, assim se escolhia a chave que lhe dava entrada na torre. Parece que com o andar dos tempos os conse- Iheiros arranjaram também as suas chaves para receber os cavalheiros abaixo deles. Estes fizeram mesmo em relagao aos mais abaixo, que, por sua vez, inventaram logo outras chaves para os ainda 51

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