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PREFACIO A narrativa oferece ao leitor um retrato ficcional fundado em dados concretos acerca dos acontecimentos que se produziram num momento da construcio das bases para a revolucio contra o regime colonial entio vigente em Angola. Nao se propée, como ¢ evidente, expor a verdade ¢ a tealidade, denunciat os vicios da sociedade, como © desejaram, no seu tempo, prosadores e poetas da Mensagem que, sob a influéncia do neo-tealismo alinhado num materialismo histérico ¢ dialéctico, reivindicaram para a atte tal missio, tendo legado para 0 patiménio imaterial angolano uma producio literiria a considerar como elemento de estudo para a Histéria de Angola. A estratégia discursiva adoptada confere um acentuado valor histético a este texto de ficcHo, autorizando-nos a situé-lo no elenco de ctiagdes artisticas tidas como documentos sociais, vilidos para o entiquecimento da historia literaria ¢ adequados para a compreensio . € estudo dos factos histéricos. O episédio do fazilamento de aldedes por acusagio de conluio destes com os nacionalistas apodados de “terroristas” pela policia politica colonial (PIDE) remete para factos histéricos ocorridos em colo e Bengo, no ano de 1960, na sequéncia da detencio, a 8 de Junho, do médico Anténio Agostinho Neto, um dos intelectuais natural da regio, Nomes de personalidades angolanas, tal como o de Mendes de Carvalho, aludem a uma onda de encarceramentos, um ano antes (1959), de militantes do grupo cultural ELA (Ernesto Guedes, Luzerna Pinto Mendes, Arnaldo Goreva) € de outros como Ilidio Machado (Primeito Presidente do MPLA), José Mateus Vieira da Graca (Luandino Vieira). wu wD, -10- \ existia mais nenhum fio de cabelo preto, Cas governavam-na, Dei- xaram-se estar calados, Anténio também se fez admirado. Seu olhar, preso no rosto da sua esposa, era indagador. Queria mais detalhes, certamente. Maria, lampeira, passava o seu olhar nos trés rostos pasmos. Estava emudecida, A tendéncia desta perspectiva do realismo magico pressupde a preocupacao do escritor em descrever os mistérios da vida humana € esti em consoniincia com a visio de Alejo Carpentier, considera do uma referéncia na construgio do conceito, Embora se refira 20 tealismo maravilhoso, no prélogo esctito pelo proprio prosador a0 romance El Reino de este Mundo, Carpentier admite que a ligacio entre a arte e as crencas é natural e est presente na paisagem. Ao re- conhecer que a magia est alojada nas ctengas, na paisagem € nos ritos das populagdes, Carpentier caucionou, para os estudiosos, o emprego opcional dos conceitos de realismo maravilhoso e realismo mégico. Carmo Neto Escritor NOTA DO AUTOR Quando se nos aflorou a ideia de escrevermos “A Festa dos Pot- cos”, decidimos trazer-lhe varios factos histéricos para que melhor pudéssemos dar suporte a ficgio, que é 0 que mais grassa na obra. Entretanto, porque fora nossa intencao Ihe dar um cunho meramente Iiterario, fizemos uma adaptagio cronoldgica aos factos ota narrados. Assim, para que mio se confundam as pessoas, ou se passe a Jdeia de que nos metemos em Aguas desconhecidas, sentimo-nos no dever de expor o seguinte: o massacre perpetrado pelas autotidades coloniais em Seselu ocorreu na madrugada de 28 de Agosto de 1961. O massacre de Banza Kakulu Kazongu ocorreu em Abril de 1968, Outrossim, a detencao da personagem central deste livro, o céle- bre costureiro Chico dya Nguxi, ocorreu em 1967. Embora o mobil da sua detencio nfo seja o que apresentamos na presente obra, a acusagao que o levara a condenagio de uma pena de cinco anos de cadeia em So Nicolau, onde ficara até 1972, fora a mesma: 0 apoio aos terroristas. Apraz-nos ainda informar que & pesquisa oral que fizemos no seio familiar, para a recolha dos acontecimentos coloniais e dos habi- tos ¢ costumes dos povos de Inicio, juntou-se também a visio geral, sobre a época em natragio, que construimos a partir da leitura dos livros “O Primo Narciso”, de Anténio Fonseca, ¢ “Os Sacrificados de Icolo e Bengo”, de Gaspar Miguel Neto. A guisa de conclusio, dizemos que a narrativa de “A Festa dos Porcos” obedeceu A grafia Bantu. PS: a presente nota foi escrita depois de a obra sagrar-se vence- dora do concurso. Luanda, 20 de Fevereiro de 2019 436 Na sanzala de Inécio, em Ikolu e Bengu, a vida dos aldedes comegava a voltar 4 normalidade, embora o leme dela continuasse nas mios do mesmo algoz que a infernava hi séculos. O pavor € 0 lactimejar nocturnos que amitide aconteciam as escondidas, um pouco por toda a sua extensio, ficavam no passado. As ocultadas lagrimas ja nfo escorriam nos seus rostos softidos, pois, na altura, era-lhes proibido chorar pelos seus mortos, selvaticamente assassinados pelas autoridades coloniais, Em Inicio, apesar de os seus aldedes também padecerem com as sevicias das autoridades coloniais, o pranto, o espitito de revolta € 0 lactimejar oculto foram motivados pelas chacinas ocorridas nas vizinhas sanzalas de Seselu e de Banza Kakulu Kazongu. Era a solidariedade patricia. Na regiio de Ikolu e Bengu, 0 patibulo instalara-se sem o mandado de algum tribunal. “Para ceifar negros nao é necesstrio autorizagio” — era assim que pensava o colono. Os homens destas sanzalas foram impiedosamente assassinados. Qual cies vadios, tiveram morte ingléria. Mortos como seres sem qualquer valor. ee Hi trés anos, naquela fatidica ¢ linda madrugada de lua cheia, quando surdiramas tropas coloniais sanzalade Seselu, completamente armadas, como se fossem guerrear contra um exército muito forte, a sanzala era dormente. Nos tostos, as tropas coloniais traziam toda a raiva que sentiam pelos nativos. Vasculharam a sanzala de uma ponta 315: Hi gh 4 L Peas = Te pe re 2 @& comtmansm gas aera SS Nod sqam SS < seas cde Kienoesen: (icone pensicararn 2 scsena aes Beewoeeea dy Be he bone ORE ere Fie de Kearns. Coram mnt IRAE, CECE wm enorme ceacesarer rs PSNR SIONS, amae am cor ae eer me wo ce Spain come gana Sega os clams os chocados No howve hig MAMPOAD dizeato a Ghia, pees 2p I ST Secines sores ans sanmaiss de Baoile ¢ Benge eve ges pes eet Gmmmsere 2 mgSo Gacams nai ¢ ix. Havin, seotmenrinea, um nos comegmmarnp ao deagn apse Ga et dos aldoies, lagrimas ex tendadcaros campos de do come ores + orien Adaainist Possadios dais Gis apes 2 maumunce coo Benes Kakals Kazonge, — ames dese cues os cacemjos dos galos e comm 0 o&a ainda domado aigum pais peioinen salam ineaiow-se ex Inia A senzala achow-se siiads ae pais Somes coiminis Os bomnens exam aerencados das suas casts, i — colhos ram pamcade News mumit cam grande armaja, coseureiro Chico dra 4 outa arastando para fora das choupanas #0408 0s homens: Depo de confemarem que nenom sestats, comegacim sodos a Vila de Katete, onde se localizava o Posto Administranvo Inclusive, os rapazes com bom porte fisico nio foram poupados 14, foram barbaramen Seus corpos atirados numa valy ‘m linchamento puro- ositadamente, no com pas coloniais ches icaram a mest se deram 20 trabalho de carregar os a maquina, cavaram um enorme nos impiedosamente, diante tério local. aram a sanzala de Banzg assassinados. Ui comum, feita, prop No dia seguinte, a8 tr0 Kakulu Kazongu. Odientos, pra ‘or, Mas, dessa vez, 0 1a de Katete. Com umni a com vida, soterraram- ma accao horrorosa do dia anteri homens 4 Vil buraco e, aind: dos seus familiares. “Tanto numa como aounra sanzala, todos 08 aldedes foram se apanhado a violar tal proibicio, proibidos de chorar. Quem fos vio se jntatia a0 seu finado ente querido, Segundo os colonos os dece terroristas nfo mereciam sex chorados. No houve Obitos, tampouco tos adebes cobrisam os cofpos com lutos. Nechuma vitima das ias nas sanzalas de Tkolu e Bengu teve direito a dbito. las as proibiges impostas, 0 azedume higubre. Era como seas trevas sentimentalmente, um chacinas ocortid: Entretanto, apesar de tod que se apossara da regio dava-lhe um ar domassem a regio durante noite ¢ dia. Havia, luto geral. As pessoas carregavam-no no Amago, apesar disso, era visivel a lonjura, Era grande o vazio que preenchia a vida dos alde6es Aquelas sanzalas estavam transformadas em verdadeiros campos de viuvez e orfandade. Passados dois dias apés a matanca em Banza Kakulu Kazongu, antes de se ouvirem os cacarejos dos galos e com o céu ainda domado pelo breu, a algazarra instalou-se em Inécio. A sanzala achou-se sitiada _ elas forcas coloniais. Os homens eram arrancados das suas casas # pancada, Nessa mani, com grande arrojo, o costureiro Chico dys E162 \ Nguxi e 08 seus amigos Antonio Kesola escapar. Refugiaram-se nas matas, de serem nativos da regio jopou a © Adio Manuel conseguiram As tropas no os viram. O facto favor deles. Conheciam todos 0s atalhos que, rapidamente, davam acesso ao e Com igual destreza, da sanzala, funcionatio da centro do matagal. senhor Mendes, um dos poucos assimilados administragio colonial, também conseguira escapar, mas seguiu outro caminho. Senhor Mendes saiu de sua casa completamente trémulo, Estarrecido, pois assistira 4 matanga dos homens de Seselu em Katete, Assit im, fugindo, recusava-se a tet semelhante fim. Uma morte ingléria, Nessa manhd, depois de carregarem todos os homens da sanzala para Katete, unidas, suas esposas foram requestar ajuda ao comerciante Manuel Fialho, um dos colonos que exercia actividade comercial por li. Ao vé-las pividas, o comerciante achou-se profundamente comiserado. ~ Mulheres, a situacio esti muito petigosa. Se as autoridades Souberem que vocés vieram ter comigo, a minha vida também fica em perigo, Eu voua Katete tentar convencer o chefe do posto de que aqui em Indcio nao existem tetroristas. Vio pata as vossas casas ¢ no falem sobre este assunto com ninguém. Se chegar 20 ouvido de algum cipaio tudo fica estragado. Ainda com os rostos funestos ¢ os olhos embebecidos de lagrimas, o grupo de mulheres retirou-se, Minutos depois, 0 carro do comerciante também abandonou a sanzala. Rumou ao Posto Administrativo. Expectantes, as mulheres ficaram a sua espera. Seguidamente, o siléncio passou a reinar na sanzala. Nem o pio de algum passaro se ouvia. Enquanto isso, nas matas, os trés homens arrojados estavam anichados debaixo de uma arvore frondosa. Nos seus rostos, 08 seis olhos eram perscrutadores. Espiolhavam milimetricamente a Area. SZ | ] Os ouvidos s6 recebiam o siléncio que vinha da sanzala, Prec a os bichos da mata também haviam fugido das tropas colonais Ney a ventania que namorava as folhas das arvotes conseguia Produ, algum som. Siléncio absoluto. Eram 13 horas, quando 0 roncar do carro do Manuel Fig), corren com 0 siléncio que comandava @ sanzala, Sem delongas, a, mulheres, que pela aflicio nto desprenderam o olhar higubre sobre 5 sua casa, acorreram ao seu enicontro. é = Fiquem tranquilas. Os vossos maridos ainda estio vivo, ainda nto me tecebeu, hd muita corretia por Ij O chefe do posto ; Estio sempre em contacto com as autoridades de Luanda. ~ ise g ccomerciante, logo que as mulheres assomarafn. Mas esto a hes batee muito?|—Com uma voz que denuncina | a afgdo que a corroa, perguntou uma das mulheres, Tinka as mios | 2 unidas sobre o peito. — Nao, Estio colocados nas celas. Eu vou fazer de tudo, 0 chefe do posto tem boa relacio comigo. Também, se fosse para os ee matar, a essa hora jé estariam mortos. Vou almogar e regresso li — Logo que terminou de falar, dirigiu-se 4 mesa. O almogo jé esta équ sobre a mesma vame grupo de mulheres retiou-se. Apesar do verbo esperangoso o inte do comerciante, 0 semblante funesto nfo saiu dos rostos das suas seus 0 integrantes, Eta grande a agonia que carregavam. Nio quetiam ver I instalada a vinvez ea otfandade na sua sanzala, como estavam instaladas voltou noutras. Ademais sabiam que a dor de perder o matido sem podet —_— Soltar um tnico grit, chorando, nem o honrar com luto no corpoen | tempo. 1 Pior do que perder a propria vida, Toda a vitva deve exteriorizar asi tt dor, Era como prova de amor, defdelidade so marido. moulhetes O siléncio tomou de novo o seu lugar. Voltou a comandar ae @ sanzala. — Manuel 1 © mesmo $6 voltou a perder 0 comando da sanzal, 1s. | \ quando Manuel Fialho chegara com o rosto fausto. Nessa altura, no firmamento, aquele sol pujante apr ara os seus passos, dirigia-se ao seu leito, que era o mar luandense. O comerciante conseguira um milagre: convenceu o chefe do posto de que em Inicio nao havia terroristas. —Fiquem contentes. Os vossos maridos estio a vir. Foram soltos. ~ Disse-Ihes com um sorriso entre os labios e uma certa pose herdica. —E verdade mesmo, 6 Manuel?!... —Indagou uma das mulheres. Nos seus olhos, de repente, surgiu uma timida luz, — Podem ir esperi-los na estrada. Katete & aqui proximo. Daqui a pouco eles chegam.... - Nio tetminara de falar. As mulheres cobriram-no com um efusivo abraco que quase o fizera cait, Exa-lhes imensuravel a alegtia. As mulheres iam saindo lampeiras, quando 0 cometciante Ihes pregou os pés no cho com uma pergunta: —Digam-me li, eu no vi por lé o Chico, nem o seu amigo Kesola? O mutismo envolven-as de sibito. As mulheres entreolharam- se. Encolheram os ombros. Estavam totalmente alheias. — $6 Manuel, também no sabemos, porque s6 agora mesmo é que estamos a notar que as esposas deles no estio aqui. Mas jé vamos ir saber e voltamos aqui para explicar.— A mesma mulher que © interpelara correu com 0 mutismo da sala. Dessa vez, o brilho dos seus olhos jé nao era timido. Os olhos reluziam de verdade. Passara menos de dez minutos, quando, expedita, a mulher voltou a casa do comerciante, afinal 0 bom homem que salvou a sanzala da motte ¢ da viuvez nio podia ficar 4 espera por muito tempo. Era preciso saber ser bem-agradecida. — Senhor Manuel, eles nio foram levados pelas tropas. As mulheres deles disseram que eles fugiram nas matas. — Fugiram?l Como conseguiram diante de tanta tropa armada?! ~ Manuel Fialho fez-se aténito 20 ouvir a resposta. 319 N ~Também nao sei. O senhor Mendes ¢ © Adio Manuel também, fagiram com cles. Manuel Fialho ficou boquiaberto. Franziu a testa. O rosty eles quatco homens. tinham incrédulo. Nao acreditava que aq‘ tropa armada, Na sua mente, 0; conseguido escapar de tanta N 4 Ppensamentos eram indagativos. “Sera que - sao terroristas?! Um homem qualquer jamais escaparia aquela tropa”. Vala correr chamat as esposas deles. Preciso falar com cla, O semblante do rosto do bom comerciante alterara-se, A potente aborrecimento. om que ocupava a sala era o duzia, Estava chateado, Urgente! ~ ledice fugira dele. Pregara nele um Sentado & mesa, de stbito, 0 s que o seu tamborilar de dedos na mesa pro a Meditabundo, sentia-se traido pelos quatro homens profugos. A palavra que dera 20 chefe do posto se colocaria o beneficio da divide “Hi terroristas ou nfo em Inécio?!”. — Vossos maridos sao terrorist areceram. Seu rosto estava suado. Os tas? — O comerciante rematou | logo que as quatro mulheres api labios trémulos. _ Nada, senhor Manuelll! — Em unissono ripostaram. Estavam apavoradas. — Entao, porqué que fugiram e como conseguiram fugis? — Senhor Manuel, eles nao sfo terroristas. Fugiram porque no queriam ser assassinados como os homens de Seselu e de Banza Kakulu Kazongu. ~ Ripostou a Eva Kapapa, a esposa do costuteiro Chico dya Nguxi. = Oi¢am muito bem... vio as matas buscé-los imediatamente. Antes que 0s cipaios se apercebam de que eles fugitam. Caso contratio, Mei aa iy fazer matar os outros e até a mim ao s de Inacio. — Indicando com o seu brao \ Admiradas, as quatro mulheres levaram as mios a boca. Aquela prosa do comerciante deixara-as mais apavoradas. Sem voltarem a fazer uso do verbo, sairam pressurosas rumo as matas. Nessa altura, todo o siléncio fugira da sanzala, Os homens regressavam incolumes de Katete, que se tornara no centro da morte dos povos de Tkolu ¢ Bengu. Era como um grande milagr:, Alegria imensurével tomou conta de Indcio. Os seus homens tiveram a melhor ventura. Nao foram assassinados como seres sem qualquer valor, Nas matas, as mulheres 6 encontraram os seus consortes quando, no céu, 0 novo inquilino era uma linda lua cheia. Era noite adentro. Os esposos soltaram gargalhadas de orelha a orelha. Os dentes brancos estavam & mostra naquela mata bem iluminada pela lua cheia. Nao cabia neles tanta felic dade. Mesmo o mais crente dos aldedes nfo agourava tal fim, milegroso, Os homens de Inacio regressaram vivos 4 sanzala. De repente, a alegria dos homens desaparecera. A consorte do Senhor Mendes, 0 assimilado de Inacio, fé-la desaparecer ao dizer- -Ihes que 0 mesmo também fugira de manhi cedo. O trio préfago desconhecia o seu patadeiro. © Senhor Mendes no era um homem talhado para aquela situagio. Nunca fora um homem de esfalfamentos. Seu labor sempre fora administrativo. Ao lembrarem-se disso, cambiada que estava a alegtia facial pela estupefaccio, decidiram meter os pés em movimento. Foram procuré-lo mata adentro. Andavam sem temer pelos bichos da mata. A luz do luar permitia-Ihes ver nitidamente. Contudo, era o afi de chegar & sanzala para celebrar com os outros a sorte que tiveram ¢ a necessidade de agradecer 20 senhor Manuel Fialho cue os tornava afoitos. Pelo 4-vontade com que andavam, pareciam donos daquelas matas. Consumidos muitos minutos em largo calcorreio, o costureiro sugeri que comecassem a gtitar pelo nome do assimilado senhor Mendes. ste N leia, Era mé, tendo em Fialho. Ninguém devia Fstes eram, tal como Prontamente, a esposa deste reprovou tal id conta o que lhes falara o com erciante Manuel saber da fuga deles, principalmente os eipaios- 08 brancos, uns verdadeiros carrascos dos aldedes. IG es fas Saas peas comer rena SS Oe © milagre do comerciante Manuel Fialho. ‘Tudo parecia um sonho, Era-lhes dificil acreditar que os homens de Inacio voltaram sao ¢ salvos A sanzala, Lembrando- se do paleio do co 45 erat) terroristas, Ant6: Chico é um terrorista.. militar que tem tido Falou num sotaque merciante, sobre a sua desconfianga de que ele snio Kesola disse: — Pois entio, 0 manc: . conseguiu escapar da tropa colonial gra;as a0 treinamento com os seus companheiros do terrorismo! — aportuguesado. Os demais, surpresos, Com as bocas escancaradas «'e canto a canto. ala de exposicdes. Exam varias as pequenas hada teve tanta forga que até soltaram uma estrondosa gargalhada (© matagal confundiu- ramo de uma drvore. Suicidara-se. As lagrimas jf nfo precisaram de ser chamadas pelas gargalhadas. Vieram yelozes, Inundaram os rostcs de forma inopinada, Nas bocas, 08 choros eram barulhentos. O >ranto tomou conta de todos. Inclusive do trio arrojado. Chorava inconsolavelmente. Este cadaver, por niio ter sido vitima da chacina colonial podia ser chorado, talvez! E rcs Pa i scars a conseguir sair do transe em que 1or Mendes, Limpou as suas ligrimas. Aos 22- \ solugos, pediu um minuto aos demais. A esposa do suicida rebolava no chio. Seu choro estava emudecido, § pela boca. No céu, a lua cheia testemunh: —Irmios, temos de fazer al, jua voz desconseguia de sair ava tudo. lguma coisa. Nao podemos continuar aqui a chorar. — Com a voz titubeante disse Adio Manuel, — O que vamos fazer?! — Chico dya Nguxi indagou, ~ Também nio sei. $6 sei que ni Tambén com uma voz embargada, podemos continuar aqui a chorat. Nao nos esquecamos do que d sse o senhor Manuel. Temos de pensar numa solugio. ~ Vamos ter de ir falar com o senor Manuel. Ble vai nos dizer o que fazer. — Disse o costureiro, — Bem pensado. Mano Kesola, fica aqui com as mulheres, Vamos corter até 4 sanzala para avisar 0 senhor M: nuel.—Finalizou Adio Manuel, Sairam. Nos pés, a pressa era zrande. De tio velozes, no tardaram a desaparecer do olhar dos demais, Ant6nio Kesola no chorava mais. O momento exigia lucide::. Controlava as mulheres, que ainda estavam com os choros nas bocat. Senhor Mendes prefetira 0 suicilio do que morrer nas mios do colono, como um ser sem valor alum, Pelo menos, estava a ter direito a choros. Sua esposa continuav:. a chorar inconsolavelmente. As outras acompanhavam-na. Chegados a sanzala, os dois hcmens encontraram-na presa num siléncio ensurdecedor. Tudo dormia. A alegria do milagre do comerciante era coisa do passado. Nessa noite, para os homens de Inicio, 0 sono que ja nao teriam tinha outro sabor. Era uma sensacio agradavel ter uma noite de sono no dia em que se escapara da morte quase certa. Desaceleraram os passos. Andavar 1 vagarosamente. O momento 7 A :tigo ainda se mantinha. Nao exigia muitas cautelas, A situagéo de perigo -23- anichado, a controlar tudo. Andinds ve adlito alguns cipaios fazerem ronda, “rois homens arrojados sabiam-no, Togo 20 primeizo tOGNE AO orig, estatrecidos. OS cus olhare, a, Voltaram a bater. 0, ura dos dois arrojados, do dono da casa, embriagada pelo la luz que emitia a se sabia quem estava algures. espiolhavam todos os cantos. E nocturnas até as altas horas. Os Na casa do comerciante, 0 latidos dos seus cies deixaram-n0s tenrar ta fapec mma ronda: Nad !se\allera0 jatidos voltaram mais fortes. Contudo, Part Ve a acompanhé-los veio também @ v0? ensonada — Quem é a esta hora?! ~ Sua voz estava sono. Na mio direita trazia uma lantern’, apesar d governante do firmamento na mento, a lua cheia. iquele m _ Somos nds, senhor Mat _ responderam os dois, numa nuel.. voz baixa. go comerciante © que 0s trazia, Depois de entrarem, contaram sempre imbuido de bonomia, pegou Este fez-se siderado. A seguir, na sua carrinba e rumaram a rata. Nem uma questo sequer lhes fez Levavam duas pas ¢ duas picaretas. 'A viagem decotria de forma emudecida. comerciante nfo tocara no assunto da afoita fuga deles, nem na possibilidade de serem aoe tax Nenhuma palavra se ouvia. No interior do cazzo, 0 siléncio era combatido pelo barulho que produzia 0 motor. er forte. Esta tragédia ninguém — Minha senhora, tem de s« de a enfrentar com cabeca fia. queria, mas j4 que aconteceu temos Os choros vao colocar a vida de todos os homens da aldeia em perigo Foi por isso que vim. Para evitar a desgraca. Vamos enterrat aqui mesmo 0 senhor Mendes. Quando saitmos daqui nao podera haver mais choros, nem 6bitos, e nem lutos, — Era o Senhor Manuel Fialho, Jogo que chegaram a mata. Feet , em solidariedade. Estas continuava™ enh \ foo com os rostos banhados de ligrimas, mas as bocas jé estavam emudecidas. Sabiam que era muito perigoso, De seguida, sentaram-se ‘um pequeno tronco. A vitiva estava no meio, Era consolada pelas outras. Os homens lancaram-se logo & faina de cavar o buraco pata enterrar © corpo do Senhor Mendes, o préfugo suicida. Manuel Fialho também colocou as suas mios a obra. Rendiam-se. Finda a cavacio, com muito jeito, retiraram 0 corpo da corda. Estava frio e inerte. Certarente, 0 suicidio acontecera ainda pela manhi. Cobriram-no com os panos do mulherio. Mais choros nasceram. As restantes mulheres no conseguiram manter-se ticitas. Choraram também. Nos rostos dos homens houve banho de légrimas. ‘Manuel Fialho segurou-se até nfio suder mais. Seu rosto banhou- -se também de ligrimas. O natiz nfo escapou, Entrou também na dor. Ranhava como uma ctianga. P4 a pi, comecaram a cobtir 0 corpo do senhor Mendes. Foi enterrado na mata onde se suicidara. Antes de sairem, mais uma vez, 0 comerciante tomou o verbo: — O que aconteceu aqui é o segredo colectivo que vamos levar um dia para a cova, tal como foi hoje o senhot Mendes. Se alguém falar alguma coisa, os homens de Inicio vio ser enterrados vivos como os de Banza Kakulu Kazongu. De acordo?! — Sim, de acordol! — responderam os homens. As mulheres aquiesceram com as cabecas, Balangaran-nas. ~ Por favor, deixem tudo aqui. Os pensamentos os chotos. ~O comerciante fez 0 tiltimo pedido. Tristonhos, num passo mais vagaroso do que ode um camaleio, abandonaram mata. As oito pessoas deviam guardar aquele segredo a sete chaves. Foi o acordo firmado verbalmente. Na cartinha, a vidiva, em companhia da Eva Kapapa, subiu na cabina. Os demais ficaram na carrocatia. O motorista respeitava o momento higubre. Seguia lentamente. Tal com» se estivesse uma caravana fiinebre, Neste caso, regressavam. Na sanzala, logo que se «pe as suas casas. As mulheres, sempre 4 casa da vitiva, que ainda de:conseguia con sibs’ eas oltiog Lagrimava: As’ outets abragavany senhor Mendes era um segreco para serlevad0 acova, iam A cova todos os homens Je Inacio. A impiedade colonial tomaria conta deles, Nenbuum homerr sefia poupado: ‘Aistiog eoine "form de renames, SE" as _autoridades coloniais, depois dos assaltos as cadeias coloniais que aconteceram em Luanda, a 4 de Fevereizo de 1961. "Aqueles massacres trouxeram mais pobreza as populagoes das sanvzalas de Seselu e Banza Kakulu Kazongu. As familias perderam 0s 8 fearam com a dura faina de sustentar @ Prole, cera muito vasta. Os homens de Inicio, como que salvos por wm milagre, O comerciante Manuel Fialho no tiveram o mesmo final zaipora. do posto em Katete para os defender. A tinica des, mas as reiais circunstincias da dominio piblico. As setes chaves 1¢ as conheciam ram do carro, os homens dirigiram-se no mesmo passo VAgAroso, foram ar as quedas de lagrimas a. A morte do caso contritio, ceus sustentadores. As mulheres que em alguns fogos enfrentou o chefe morte foi a do suicida senhor Men sua morte nunca chegaram a ser do que as fechatam nos coragies das oito pessoas qu ‘nunca foram achadas. Entretanto, em Indcio, logo mesm em Luanda, houve o assassixato do aldeio Miguel Fernando, mais conhecido como Capitio, por parte da tropa colonial, Como fora uma morte isolada, nfo a inc'ufam na chacina colectiva que ocorrer# 0 a seguir ao ataque as cadeias nas sanzalas de Ikolu e Bengu. A esposa do suicida sehor Mendes no suportou a _ Paha inica a enfrentar a viuver técita do esposo em toda a s dor de set anzala de 26 - \ — Inicio. Rumou a Kindambiri, a sua terri natal. Lé, ainda conservou 0 segredo que assumiram na mata, naqucla fatidica noite em que a lua cheia fora também uma testemunha, Preferiu leva-l provocar a morte de todos os homens de Inacio, N, chegou com patranha na boca, ~ © Mendes foi apanhado em K itete no dia em que mataram os homens de Seselu ¢ Ihe mataram também, Eu s6 cheguei a saber porque um cipaio falou no irmio dele -ue exa nosso vizinho. Mas jé tinham passado muitos dias, — enquante falava seus olhos marejavam. A 4gua que conservava no corpo era in indavel. Esta patranha, depois de algun. tempo, chegou também a sanzala de Inacio, Causou grande pasm>, Os homens que conheciam a verdade também franziram as testas. O espanto geral também os envolveu. E assim se tornou conhecid: a morte do senhor Mendes. Confundido como um aldeio de Serelu, nfo escapou & chacina colonial. Morto como um ser sem qualuer valor. O tinico de Ind Sem direito a choro, a luto, nem a komb lo & cova do que a sua terra natal, ee ‘Trésanos eram passados desde que iederamessesacontecimentos hediondos. Na sanzala de Inacio, 0 manto de trevas que 0 apossava cera passante, Contudo, nas sanzalas once aconteceram as chacinas, as dificuldades no permitiam que as pes:oas se esquecessem daqueles actos impiedosos. A dor e a raiva, pass do esse tempo, continuavam maculadas no semblante dos aldedes. [As criangas de Seselu ¢ Banza ‘

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