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Tercio Sampaio Ferraz Junior ote Introdugao ao Estudo do Direito Técnica, Deciséo, Dominacéio 4* Edicado Revista e ampliada SAO PAULO EDITORA ATLAS S.A. - 2003 © 1987 by EDITORA ATLAS S.A. 1. ed. 1988; 2. ed. 1994; 3. ed. 2001; 4. ed. 2003; 2* tiragem Foto da capa: Agéncia Keystone Composigio: Lino-Jato Editoragao Grdfica Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ferraz Junior, Tercio Sampaio, Introdugiio ao estudo do direito : técnica, deciséo, dominagao / Ter- cio Sampaio Ferraz Junior. - 4. ed. - Sao Paulo : Atlas, 2003. Bibliografia, ISBN 85-224-3484-0 1. Direito 2. Direito - Estudo e ensino I. Titulo. 93-3637 CDU-340,11 indice para catdlogo sistematico: 1. Direito : Introdugao 340.11 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS - E proibida a reprodugao total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violago dos direitos de autor (Lei n* 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Cédigo Penal. Depésito legal na Biblioteca Nacional conforme Decreto n* 1.825, de 20 de dezembro de 1907. Impresso no Brasil/Printed in Brazil OBRAS DO AUTOR Die Zweidimensionalitaet des Rechts. Meinsenheim/Glan : Anton Hain, 1970. Direito, retdrica e comunicagdo. Sao Paulo : Saraiva, 1973. Conceito de sistema no direito. Sao Paulo : Revista dos Tribunais, 1976. A ciéncia do direito. Sao Paulo : Atlas, 2. ed. 1980. Teoria da norma juridica. Rio de Janeiro : Forense, 2. ed. 1986. Fungdo social da dogmédtica juridica. So Paulo : Revista dos Tribunais, 1978. Constituinte: assembléia, processo, poder. S4o Paulo : Revista dos Tribunais, 2. ed. 1986. Constituicdo de 1988: legitimidade, vigéncia e eficdcia, supremacia. Em colabo- ragao. Sao Paulo : Atlas, 1989. Interpretagdo e estudos da Constituigao de 1988. Sdo Paulo : Atlas, 1990. Estudos de filosofia do direito. S40 Paulo : Atlas, 2002. Sumario Agradecimentos, 13 Prefiicio, 15 Introdugdo, 21 1 A UNIVERSALIDADE DO FENOMENO JURIDICO, 31 11 1.2 Direito: origem, significados e fungées, 31 Busca de uma compreensio universal: concepcées de lingua e de- finigdo de direito, 34 Problema dos diferentes enfoques tedricos: zetético e dogmatico, 39 Zetética juridica, 44 Dogmatica juridica, 47 2 ODIREITO COMO OBJETO DE CONHECIMENTO: PERFIL HISTORICO, 52 2.1 2.2 2.3 2.4 25 Direito e conhecimento do direito: origens, 52 Jurisprudéncia romana: o direito como diretivo para a agdo, 55 Dogmaticidade na Idade Média: o direito como dogma, 61 Teoria juridica na Era Moderna: o direito como ordenac&o racio- nal, 65 Positivago do direito a partir do século XIX: 0 direito como norma posta, 72 8 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO 2.6 Ciéncia dogmatica do direito na atualidade: o direito como instru- mento decisério, 81 3 CIENCIA DOGMATICA DO DIREITO E SEU ESTATUTO TEORICO, 83 Dogmitica e tecnologia, 83 3.2 Decidibilidade de conflitos como problema central da ciéncia dog- matica do direito, 88 3.3 Modelos da ciéncia dogmatica do direito, 91 3.1 4 DOGMATICA ANALITICA OU A CIENCIA DO DIREITO COMO TEORIA DA NORMA, 93 Identificacdo do direito como norma, 93 41 4.2 4.1.1 4.1.2 4.1.3 4.14 Conceito de norma: uma abordagem preliminar, 98 Concepedio dos fenémenos sociais como situagées norma- das, expectativas cognitivas e normativas, 102 Cardter juridico das normas: instituigdes e nticleos signifi- cativos, 105 Norma juridica: um fenémeno complexo, 113 Teoria dos contetidos normativos ou dogmatica das relagées juri- dicas, 116 4.2.6 Conceito dogmatico de norma juridica, 116 Tipos de normas juridicas, 123 Sistema estdtico das normas: as grandes dicotomias, 132 Direito ptiblico e direito privado: origens, 133 4.2.4.1 Concepcio dogmatica de direito ptiblico e de di- reito privado: princfpios tedricos, 137 4.2.4.2 Ramos dogmaticos, 140 Direito objetivo e direito subjetivo: origens da dicotomia, 145 4.2.5.1 Concepgao dogmatica de direito objetivo e subje- tivo: fundamentos, 147 4.2.5.2 Uso dogmatico da expressio direito subjetivo: si- tuagées tfpicas e at{picas, direitos reais e pessoais, estrutura do direito subjetivo e outras classifica- ces, 149 4.2.5.3. Sujeito de direito, pessoa fisica e pessoa juridica, 154 4.2.5.4 Capacidade e competéncia, 157 4.2.5.5 Dever e responsabilidade, 160 4.2.5.6 Relagées juridicas, 164 Direito positivo e natural: uma dicotomia enfraquecida, 170 SUMARIO 4.3 Teoria do ordenamento ou dogmatica das fontes de direito, 174 4.3.1 Norma e ordenamento, 175 4.3.2 4.3.4 4.3.1.1 4.3.1.2 4.3.1.3 4.3.1.4 Ordenamento como sistema dindmico, 177 Idéia de sistema normativo e aparecimento do Estado moderno, 179 Teorias zetéticas da validade, 181 Norma fundamental ou norma origem, unidade ‘ou coeséo do ordenamento, 187 Conceptualizagéo dogmatica do ordenamento: validade, vigéncia, eficdcia e forca, 197 4.3.2.1 4.3.2.2 4.3.2.3 Dinamica do sistema: norma de revogagio, cadu- cidade, costume negativo e desuso, 203 Consisténcia do sistema, 206 4.3.2.2.1 Antinomia juridica, 206 4.3,2.2.2 Nulidade, anulabilidade e inexisténcia de normas, 215 Completude do sistema: lacunas, 218 Fontes do direito: uma teoria a servigo da racionalizagaéo do estado liberal, 223 4.3.3.1 4.3.3.2 4.3.3.3 4.3.3.4 Legislacio, 228 4,3.3.1.1 Constituigéo, 229 Leis, 232 Hierarquia das fontes legais: leis, de- cretos, regulamentos, portarias, 235 Cédigos, consolidagdes e compilagées, 238 4.3.3.1.5 Tratados e convengées internacionais, 239 Costume e jurisprudéncia, 241 Fontes negociais, razdo juridica (doutrina, princf- pios gerais de direito, eqitidade), 246 Estrutura e repertério do sistema e teoria das fon- tes, 249 Doutrina da irretroatividade das leis: direito adquirido, ato juridico perfeito, coisa julgada, 249 4.4 Dogmiatica analitica e sua fungio social, 253 DOGMATICA HERMENEUTICA OU A CIENCIA DO DIREITO COMO TEORIA DA INTERPRETAGAO, 255 5.1 Problema da interpretacao: uma investigacao zetética, 255 5.1.1 Fungo simbdlica da lingua, 257 10 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO 5.2 5.3 5.4 5.1.2 Desafio kelseniano: interpretacéo auténtica e doutrinaria, 261 5.1.3 Voluntas legis ou voluntas legislatoris?, 264 5.1.4 Interpretagdo e traducio: uma analogia esclarecedora, 268 5.1.5 Interpretagdo juridica e poder de violéncia simbélica, 272 5.1.5.1 Nog&o de uso competente da lingua, 274 5.1.5.2 Lingua hermenéutica e legislador racional, 278 5.1.5.3 Interpretacao e pardfrase, 281 5.1.5.4 Interpretacéio verdadeira e interpretagao diver- gente: cédigos fortes e cédigos fracos, 283 5.1.6 Fungio racionalizadora da hermenéutica, 284 Métodos e tipos dogmaticos de interpretagio, 286 5.2.1 Métodos hermenéuticos, 286 5.2.1.1 _Interpretacdio gramatical, légica e sistematica, 286 5.2.1.2 Interpretaciio histérica, sociolégica e evolutiva, 289 5.2.1.3 Interpretacdo teleoldégica e axiolégica, 292 5.2.2 Tipos de interpretagdo, 294 5.2.2.1 Interpretagdo especificadora, 294 5.2.2.2 Interpretacao restritiva, 296 5.2.2.3 Interpretacao extensiva, 297 Interpretagdo e integracdo do direito, 298 5.3.1 Modos de integracdo do direito, 299 5.3.1.1 Instrumentos quase-légicos: analogia, inducéo amplificadora, interpretagdo extensiva, 301 5.3.1.2 Instrumentos institucionais: costumes, princ{pios gerais de direito, eqiiidade, 304 5.3.2 Limites A integracdo, 305 Fungdo social da hermenéutica, 308 6 DOGMATICA DA DECISAO OU TEORIA DOGMATICA DA ARGUMENTA- GAO JURIDICA, 310 61 6.2 Teoria da decisdo juridica como sistema de controle do comporta- mento, 310 6.1.1 Decisdo e processo de aprendizagem, 311 6.1.2 Deciso juridica e conflito, 313 6.1.3 Decisdo e poder de controle, 314 Teoria dogmatica da aplicagao do direito, 316 6.2.1 Aplicaciio e subsunciio, 316 6.2.2 Prova juridica, 319 suménio 11 6.2.3 Programacdo da decisdo e responsabilidade do decididor, 321 6.3 Teoria da argumentagao, 322 6.3.4.1 6.3.4.2 6.3.4.3 6.3.4.4 6.3.4.5 6.3.4.6 6.3.4.7 6.3.4.8 6.3.4.9 Demonstragdo e argumentacao, 323 Argumentagao e tépica, 327 Procedimento argumentativo dogmatico, 331 Argumentos juridicos, 335 Argumento ab absurdo ou reductio ad absurdum, 336 Argumento ab auctoritate, 337 Argumento a contrario sensu, 338 Argumento ad hominem, 340 Argumento ad rem, 340 Argumento a fortiori, 341 Argumento a maiori ad minus, 341 Argumento a minori ad maius, 342 Argumento a pari ou a simile, 342 6.3.4.10 Argumento a posteriori, 342 6.3.4.11 Argumento a priori, 343 6.3.4.12 Argumento silogistico ou entimema, 343 6.3.4.13 Argumento exemplar ou exempla, 344 6.4 Funcdo social da dogmética da decisao: direito, poder e violéncia, 344 7 AMORALIDADE DO DIREITO, 348 7.1 Direito e fundamento, 348 7.2 Direito e justica, 351 7.3. Direito e moral, 356 Bibliografia, 361 Agradecimentos Este livro veio sendo pensado desde 1980. Sua redago, porém, sé se consumou gracas 4 oportunidade que me foi oferecida pela Faculdade de Di- reito da Universidade de Lisboa, de nela lecionar Filosofia do Direito no se- mestre de inverno de 1986/1987. Na quietude e na paz de minha mesa de trabalho, pude entdo redigi-lo. Ficam aqui registrados meus agradecimentos a essa Universidade, aos professores e assistentes, aos alunos, permitindo-me a mencio especial ao Prof. José de Oliveira Ascencdo, que, por seu empenho, propiciou-me o referido convite. N§o posso, no entanto, esquecer-me dos colegas, meus assistentes da Faculdade de Direito da USP e da PUC de Sao Paulo, bem como das geracées de estudantes que acompanham meus cursos, estimulando-me e obrigan- do-me ao estudo. Permito-me, no entanto, também registrar a lembranga de amigos diletos que em todo momento me assistiram com sua lealdade e ami- zade, especialmente este amigo fraterno que é Celso Lafer. Mas foi sem dtivida na melhor tradic&o da Faculdade de Direito do Largo So Francisco que aprendi a estudar e amar o Direito. Foi Goffredo Sil- va Telles Jr. meu primeiro mestre, aquele que me formou e se constituiu no meu grande estimulo que depois encontrou em Miguel Reale uma seqiiéncia notdvel. A ambos agradeco pelo que sou hoje. Por fim, uma palavra sobre minha famflia: sem seu apoio, a meu lado ou a distancia, nenhuma obra seria produzida. E aqui também fica o registro do amor, capaz de nos mover e comover a realizagao de coisas sem nos dei- xar dominar por elas: 4 Sonia, minha mulher, agradeco por tudo. Tercio Sampaio Ferraz Junior Prefacio Introdugdo ao estudo do direito : técnica, deciséo, dominagao é um livro de maturidade. Nele Tercio Sampaio Ferraz Jr. retoma, aprofundando e inte- grando, os grandes temas identificadores de sua trajetéria intelectual, inicia- da com a sua tese de doutorado sobre o jusfilésofo Emil Lask, defendida na Universidade de Mainz, na Alemanha, e publicada naquele pais em 1970. O estudo do Direito, como um fendmeno decisério, vinculado ao po- der e a ciéncia jurfdica como uma tecnologia, caracteriza a abordagem deste livro de Tercio Sampaio Ferraz Jr., que nesta empreitada analitica vale-se da dicotomia dogmatica x zetética, concebida por Theodor Viehweg, seu mestre na Universidade de Mainz. ‘A dogmatica — do grego dokéin, ensinar, doutrinar — cumpre uma fun- cao informativa combinada com uma funcio diretiva, ao acentuar o aspecto resposta de uma investigacao. A zetética - do grego zetéin, procurar, inquirir — cumpre uma funcdo informativo-especulativa ao acentuar o aspecto pergun- ta de uma investigagao mantendo, dessa maneira, abertos a dtivida as pre- missas e os principios que ensejam respostas. Essa dicotomia, neste livro, é empregada obedecendo a uma dialética de implicacao e polaridade, como diria Miguel Reale - 0 mestre do Autor na Faculdade de Direito da USP -, gracas a qual se estabelece uma tensio conti- nua entre as respostas do ensinar e as especulagdes do perguntar. E por obra 16 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO do emprego dialético da dicotomia de Viehweg que o Autor consegue algo raro na bibliografia juridica: associa uma informacao operacionalmente util a uma investigacio critica. Neste sentido, esta Introdugdo é modelar porque lida simultaneamen- te com 0 Direito, tanto pelo seu Angulo interno — que é o da praxis juridica — quanto pelo seu Angulo externo - que é o das modalidades por meio das quais 0 Direito se insere na vida social, politica e econémica. Fornece, dessa manei- ra, ao seu leitor ideal - o aluno do primeiro ano do curso juridico -, seja 0 sentido da direcao que Ihe permitiré preparar-se para a vida profissional, seja a informagao especulativa, necessdria para situar-se criticamente diante do seu futuro fazer. Il 0 livro se abre com uma discussdo, no Capitulo 1, sobre a universali- dade do fenémeno juridico, seguido de um estudo sobre as suas transforma- ces histéricas. Neste estudo, o Autor retoma o seu interesse pelo perfil histé- rico do Direito como objeto de conhecimento, num arco que vai do Direito Primitivo ao Positivismo Juridico, passando pela Jurisprudéncia Romana, os glosadores medievais e o Jusnaturalismo. Esta sucinta arqueologia do saber juridico, j4 esbocada em outros trabalhos do Autor (cf. Conceito de sistema no direito. S40 Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, cap. I; A ciéncia do direito. Sao Paulo: Atlas, 1977, cap. Il; Fungdo social da dogmdtica juridica. Sao Pau- lo: Revista dos Tribunais, 1980, cap. I), desemboca no capitulo 3. Ai, o Autor estabelece o seu ponto de partida: é a decidibilidade dos conflitos o proble- ma central da ciéncia do Direito contemporaneo, enquanto uma ciéncia pré- tica. Esta ciéncia pratica é dogmatica porque se baseia no principio da acei- taco sem discussdo dos pontos de partida. A proibicio da negacao dos pon- tos de partida (o dogma) obedece a uma razao técnica: a de permitir a deci- sdo com base no Direito, que nao pode ser posto em questo sob pena de nao se alcancar, numa sociedade, a decidibilidade juridica dos conflitos. E por esse motivo que no ensino do Direito é de fundamental importancia o estudo da dogmdtica juridica, cuja fungao o Autor examinou na grande tese com a qual alcangou a titularidade na Faculdade de Direito da USP, cujos pontos principais so aqui retomados. A ciéncia dogmatica do Direito, embora dependa do principio da ine- gabilidade dos pontos de partida — 0 Direito Positivo posto e positivado pelo poder -, nao se reduz a este principio, pois néo trabalha com certezas, mas sim com as incertezas dos conflitos na vida social. E para lidar com estas in- certezas que, no Ambito da ciéncia do Direito, enquanto ciéncia pratica, fo- ram elaborados trés grandes tipos de dogmatica: a dogmdtica analitica, a dog- PREFACIO mdtica hermenéutica, a dogmdtica da decisdo. Estas trés dogmaticas, 0 Autor j4 havia indicativamente caracterizado em A fungdo social da dogmdtica juri- dica (cap. III), e muito especialmente em A ciéncia do direito (caps. IV, Ve VD, mas a elas da, neste livro, um tratamento exaustivo e original. E, na ver- dade, ao estudo operacional e critico dessas trés dogmaticas que Tercio Sam- paio Ferraz Jr. dedica a maior parte desta Introdugdo. Til A dogmatica analitica tem como tarefa basica a imprescindfvel identi- ficaco do que é Direito face A continua mudanga das normas nos sistemas juridicos contempordneos. De fato é esta identificagio que estabelece o ponto de partida para a decidibilidade dos conflitos por meio da técnica do Direito. A dogmatica analitica encarna a ciéncia do Direito vista na perspectiva da norma e de sua insercdo no ordenamento, tendo na validade a sua grande ca- tegoria. © Autor examina a dogmatica analitica com muito rigor, valendo-se da teoria da linguagem - em cujo emprego no estudo do Direito é ele, entre nés, um dos mais destacados expoentes. E assim que estuda com muita origi- nalidade os diversos tipos de normas juridicas e a sua sistematizagao, numa perspectiva estatica, pela dogmatica analitica estrutural, iluminando 0 alcan- ce e os limites de grandes dicotomias da epistemologia juridica, como Direito Objetivo/Direito Subjetivo; Direito Publico/Direito Privado; Direitos Pes- soais/Direitos Reais. A seguir, o Autor examina o Direito como um sistema dinamico, em permanente mudanga nas sociedades contempordneas, tratando dos proble- mas da insercéio das normas dentro do ordenamento. E dessa maneira que cuida da revogacao, da caducidade das normas, da consisténcia das normas num ordenamento (antinomias, nulidade, anulabilidade), da inteireza do or- denamento (lacunas), das fontes do Direito e de sua hierarquia (Constitui- Go, leis, regulamentos, cédigos, tratados, costumes, jurisprudéncia, negécio juridico). A identificagao do que é Direito, e como este se diferencia do nao-Di- reito, pela dogmatica analitica, que neste processo isola o juridico num siste- ma fechado, deixa em aberto o problema de como 0 Direito identificado sera entendido. E por essa razdo que na seqiiéncia dessa Introdugao o Autor se de- dica ao estudo da dogmdtica hermenéutica. Esta tem como objeto a tarefa de entender o Direito identificado, para assim poder decidir, cumprindo o prin- cfpio da proibigao do non liquet, isto é, o cardter compulsério da decisio que a dogmatica jur{dica impée ao juiz. A dogmatica hermenéutica é a ciéncia do Direito encarada na perspectiva da teoria da interpretacao. 17 18 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO A interpretacao pede a decodificagao e esta requer o conhecimento das regras sintdticas, que controlam as combinatérias possiveis das normas entre si; das regras semdnticas de conotagao e denotaciio das normas em rela- co ao objeto normado e das regras pragmdticas das normas em relagdo as suas funcGes. E, portanto, também com base na teoria da linguagem que o Autor retoma um dos grandes problemas da interpretagao do Direito, que é 0 de buscar o entendimento do Direito ou no subjetivismo da vontade do legis- lador (como proposto pela “jurisprudéncia dos conceitos” na Alemanha ou na Escola da Exegese na Franca) ou no objetivismo da vontade da lei (como pro- posto pela “jurisprudéncia dos interesses”). Nao existe um critério unfvoco da boa e correta interpretacdo, assim como nAo existe um critério univoco da boa e correta tradugéo, como mostra o Autor ao estabelecer uma brilhante analogia entre a interpretagao e a tra- duco. O critério da boa e correta interpretagao, assim como o da boa e cor- reta tradugdo, repousa na aceitacdo do enfoque do intérprete ou do tradutor. No caso do Direito, a uniformizacio do sentido do juridico, pela interpreta- cdo, tem a ver com o poder da violéncia simbélica, que, se apoiando na auto- ridade, na lideranca e na reputacio, privilegia um enfoque, entre muitos en- foques possiveis, que passa a ser 0 uso competentemente consagrado de uma escolha socialmente prevalecente. A interpretagao juridica pode ser especificadora, restritiva e extensiva. A elas se chega através dos métodos hermenéuticos da interpretagdo grama- tical, légica e sistemética; da histérica, socioldgica e evolutiva; e da teleoldgi- ca e axiolégica. Estes consagrados métodos da dogmatica hermenéutica cons- tituem um repertério de regras técnicas para encaminhar os problemas de ordem sintdtica, semantica e pragmatica da interpretagao das normas. A pre- valéncia de um enfoque e o alcance maior ou menor da interpretacdo repre- sentam uma escolha que visa encaminhar a decisao, “domesticando” as nor- mas. Daf, como observa o Autor, a astticia da razao dogmatica, que nao elimina as contradicdes da vida social, mas torna os conflitos delas resultan- tes passiveis de deciséo em termos jurfdicos. A identificagao do Direito pela dogmatica analitica e os modos pelos quais 0 Direito identificado pode vir a ser entendido, por obra da dogmatica hermenéutica, criam as condicées para a decisao. Ambas, no entanto, nao tém como objeto privilegiado a prépria decisio — uma tarefa importante, pois, diante das sempre possiveis interpretac6es divergentes da norma identi- ficada como juridica, é preciso investigar como se obtém a decisao prevale- cente. Dai, na seqiiéncia desta Introdugdo, 0 estudo pelo Autor da dogmdtica da deciséo ou teoria dogmatica da argumentagao juridica. saber juridico explicitamente articulado é mais rico em matéria de dogmatica analitica e dogmdtica hermenéutica do que em matéria de dogma- tica da deciséo. Esta tem merecido, no entanto, nos tiltimos anos, atengao PREFACIO te6rica. E 0 caso da reflexao de Viehweg, de Perelman e, no campo do Direi- to Internacional Puiblico, da de Myres McDougal. A ela Tercio Sampaio Fer- raz Jr. dedicou a sua pioneira tese de livre-docéncia: Direito, retérica e comu- nicagdo, S40 Paulo: Saraiva, 1973, e o seu instigante livro: Teoria da norma juridica, Rio de Janeiro: Forense, 1978. A decisao estd ligada aos processos deliberativos que levam a aplica- cdo do Direito. A aplicagao exige o poder para decidir um conflito, isto é, a capacidade de lhes por um fim, nao no sentido de elimind-los, mas no de im- pedir a sua continuagao. Este poder, na acepgao de dominacio, no estudo do Direito, vé-se “domesticado” pela justificagdo da decisio, por meio da argu- mentacio jurfdica. Dela cuida o Autor, privilegiando a dimensao pragmatica do discurso juridico, que é o que tem como objeto a preocupa¢ao com o com- portamento e convencimento dos destinatdrios do discurso juridico, uma vez que a regra suprema do discurso decisdrio juridico, no Direito contempora- neo, é a de responder por aquilo que se fala ou afirma. IV Hannah Arendt, cuja reflexio também permeia esta Introdugdo, subli- nha a importancia epistemoldgica da distingo kantiana entre o “pensar da razao” (Vernunft) e o “conhecer do intelecto” (Verstand). Este edifica o siste- ma dos conhecimentos que, por meio da técnica, transforma a sociedade e cria o meio no qual o homem vive. Aquele critica e abrange o saber do co- nhecer, pensando o global e buscando o seu significado. Esta Introdugdo — cuja estrutura e linhas principais foram sucintamen- te sumariadas — é uma importante contribuicao, tanto operacional quanto critica, do conhecimento juridico. Cumpre, assim, 0 seu objetivo explicito, que é 0 do exame da ciéncia juridica como uma tecnologia. Ao escrevé-la, no entanto, o Autor sentiu a necessidade de pensar o significado deste conheci- mento e das conclusées a que chegou. E por esse motivo que arremata o seu livro tratando da moralidade do Direito e apontando — kantianamente, diga-se de passagem — que a justica é 0 principio regulativo do Direito. Também pelo mesmo motivo, inseriu como pértico de seu trabalho uma importante introdugio, que é um esforgo de pensar o seu conhecer. Nela, inspirado pela ligéo e pelo chamamento de Goffredo Silva Telles Jr. - seu outro mestre na Faculdade de Direito da USP, a quem teve a honra de suceder na condicao de professor titular de Introdu- Gao ao Estudo do Direito -, indaga sobre o mistério do Direito enquanto prin- cfpio e fim da sociabilidade humana. A Introdugdo de Tercio Sampaio Ferraz Jr. ao seu livro Introdugdo ao estudo do direito esboga, na linha das categorias arendtianas, a conversao do 19 20 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO Direito no mundo contemporaneo em objeto de consumo, enquanto um re- sultado do labor que se desgasta no metabolismo da vida. Deixa inquieto ao nosso Autor a instrumentalizagao crescente do Di- reito, que assegura ao juridico, enquanto objeto de consumo, uma enorme disponibilidade de contetidos. De fato, a contrapartida desta plasticidade operacional, que ele examina com superior criatividade no corpo de seu tra- balho, é a caréncia tanto da clara virtude do justo, imanente a agdo, quanto da durabilidade da construgao, que caracteriza o trabalho do homo faber. Ora, Tercio Sampaio Ferraz Jr. sabe que, sem um interesse profundo pelo dominio técnico do Direito, a reflex4o juridica se perde numa fantasia inconseqiiente. Por isso, nos brindou com este grande livro, que é, como dis- se, uma obra de maturidade. Mas ele também tem a nftida consciéncia de que sem a paix4o e o amor pelo Direito — como ensina Goffredo Telles Jr. — 0 seu estudo perde o sentido legitimador de uma pratica virtuosa. Dizia Guimaraes Rosa que “Vivendo, se aprende; mas 0 que se apren- de, mais, é s6 a fazer outras maiores perguntas”. Creio assim que este livro, pela sua introducdo e pelo seu ultimo capitulo, representa igualmente na tra- jetoria do Autor o inicio de uma nova etapa: a etapa das “maiores perguntas” que a sua prépria maturidade intelectual est4-lhe colocando. Seja-me permitido concluir com uma nota pessoal. A amizade, como ensina Aristételes, 6 uma relacdo privilegiada entre duas pessoas, baseada na confianca e na igualdade de estima reciproca. A amizade que me liga a Ter- cio Sampaio Ferraz Jr. teve inicio quando nos conhecemos, em 1960, no pri- meiro ano da Faculdade de Direito do Largo Sao Francisco. Desde aquela época, o mistério do Direito foi um dos temas bdsicos do nosso ininterrupto didlogo. E, portanto, com especial prazer que dou neste prefacio, como seu amigo e interlocutor de tantos anos, o testemunho publico da importancia, da originalidade e da relevancia de sua Introdugdo ao estudo do direito. Sao Paulo, dezembro de 1987. Celso Lafer Introducao O direito é um dos fenémenos mais notaveis na vida humana. Com- preendé-lo é compreender uma parte de nés mesmos. E saber em parte por que obedecemos, por que mandamos, por que nos indignamos, por que aspi- ramos a mudar em nome de ideais, por que em nome de ideais conservamos as coisas como esto. Ser livre ¢ estar no direito e, no entanto, o direito tam- bém nos oprime e tira-nos a liberdade. Por isso, compreender o direito nao é um empreendimento que se reduz facilmente a conceituacées ldgicas e racio- nalmente sistematizadas. O encontro com o direito é diversificado, as vezes conflitivo e incoerente, As vezes linear e conseqiiente. Estudar o direito é, as- sim, uma atividade dificil, que exige no s6 acuidade, inteligéncia, preparo, mas também encantamento, intuicao, espontaneidade. Para compreendé-lo, é preciso, pois, saber e amar. S6 0 homem que sabe pode ter-lhe o dominio. Mas sé quem o ama é capaz de dominé-lo, rendendo-se a ele. Por tudo isso, 0 direito é um mistério, 0 mistério do princfpio e do fim da sociabilidade humana. Suas raizes est4o enterradas nesta forga oculta que nos move a sentir remorso quando agimos indignamente e que se apodera de nés quando vemos alguém sofrer uma injustica. Introduzir-se no estudo do direito 6, pois, entronizar-se num mundo fantdstico de piedade e impiedade, de sublimacao e de perversao, pois o direito pode ser sentido como uma pra- tica virtuosa que serve ao bom julgamento, mas também usado como instru- mento para propésitos ocultos ou inconfessdveis. Estudd-lo sem paixdo é como sorver um vinho precioso apenas para saciar a sede. Mas estudd4-lo sem interesse por seu dominio técnico, seus conceitos, seus principios é inebriar-se 22 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO numa fantasia inconseqiiente. Isto exige, pois, preciso e rigor cientifico, mas também abertura para o humano, para a histéria, para o social, numa forma combinada que a sabedoria ocidental, desde os romanos, vem esculpindo como uma obra sempre por acabar. Pode-se perceber, destarte, que um livro de Introdugio ao Estudo do Direito é uma obra complexa, que exige, ao mesmo tempo, o conhecimento técnico do instrumental conceitual do direito, a experiéncia da vida juridica, a intuigdo de suas raizes psiquicas, sociais, econdmicas, culturais, religiosas, a meméria de seus eventos histéricos, tudo trazido numa forma concertante, didaticamente acessivel e pedagogicamente formativa. Corre-se, por isso, sempre, o risco da superficialidade e da incompreensao, pois é preciso ensi- nar a estudar 0 direito, transmitindo um saber obviamente ainda desconheci- do sobre um objeto ainda informe. Ou seja, ha de se ir dizendo as coisas do direito sem poder pressupor que elas j4 sejam conhecidas. Simultaneamente, porém, é impossivel falar sobre 0 direito sem usar os termos que, tecnica- mente, 0 constituem. O estudante deve, assim, ter paciéncia, nao pretender encontrar num livro sé tudo o que necessita. Lembrar-se de que uma Intro- dugéo é apenas uma abertura, que deve levar-nos a ampliar nosso universo e nunca a reduzi-lo a esquemas simplificados. Um livro de Introdugio é, pois, somente um roteiro, nunca uma obra acabada. Como o direito é um fenédmeno multifario, os livros de Introdugao costumam apresentar alguma peculiaridade: embora os temas que neles séo tratados sejam mais ou menos constantes, as formas de abordagem sao dife- rentes. H4 quem enfatize alguns aspectos filos6ficos, insistindo sobre a inser- cdo do direito no universo da justica. H4 quem cuide mais das premissas téc- nicas, dos conceitos bdsicos, das divisées e classificagdes fundamentais da ciéncia juridica. Nosso trabalho procurou enfocar o estudo do direito com base na se- guinte premissa: destinando-se este livro a estudantes de Direito, pareceu- nos oportuno explicar o que ele e como 0 conhece o profissional juridico. Por outro lado, sem perder suas mitiltiplas dimensées histéricas, procuramos focalizar o direto tal como ele se manifesta hoje, no mundo burocratizado das sociedades ocidentais. A percepgdo dessa circunstancia histérica - 0 di- reito nem sempre est4 numa mesma circunstdncia — fez-nos escolher uma forma de abordagem capaz de mostrar uma peculiaridade de nossa época e de fazer-lhe a devida critica: 0 direito como um fenémeno decisério, um ins- trumento de poder, e a ciéncia jurfdica como uma tecnologia. Embora este tema venha a ser abordado diversas vezes em nossa ex- posicao, talvez seja importante, desde j4, esclarecer como o direito adquiriu culturalmente, em nossa civilizagdo, essa caracteristica. Para explicar isso, valemo-nos de algumas consideragées de Hannah Arendt, cuja obra A condi- INTRODUGAO 0 humana, embora nao tenha por tema o direito, permite-nos fecundas in- curs6es sobre a questao. A Antigiiidade distinguia entre a polis e a oikia. Dizia-se que, enquan- to a oikia ou a casa reconhecia o governo de um sé, a polis era composta de muitos governantes. Por isso, Aristételes dizia que todo cidadao pertence a duas ordens de existéncia, pois a polis dé a cada individuo, além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, sua bios-politicds. Era a distingao en- tre a esfera privada e a esfera publica. Essa distingdo sofreu durante os sécu- los modificagées importantes. Sua separacdo que caracteriza a cultura na Antigiiidade fazia com que a esfera privada se referisse ao reino da necessi- dade e a uma atividade cujo objetivo era atender as exigéncias da condicao animal do homem: alimentar-se, repousar, procriar etc. A necessidade, di- zia-se, coagia o homem e obrigava-o a exercer um tipo de atividade para so- breviver; essa atividade, para usar a terminologia de Hannah Arendt cuja obra estamos expondo e interpretando numa forma livre, chamava-se labor ou labuta. O labor distinguia-se do trabalho. O labor tinha relagao com o pro- cesso ininterrupto de producao de bens de consumo, o alimento, por exem- plo, isto é, aqueles bens que eram integrados no corpo apés sua produgao e que nao tinham permanéncia no mundo. Eram bens que pereciam. A produ- Gio desses bens exigia instrumentos que se confundiam com o préprio corpo: os bracos, as méos ou suas extensées, a faca, o cutelo, o arado. Nesse senti- do, o homem que labuta, o operdrio, podia ser chamado de animal laborans. O lugar do labor era a casa (oikia ou domus) e a disciplina que lhe correspon- dia era a economia (de oiko nomos). A casa era a sede da familia e as rela- des familiares eram baseadas na diferenga: relagéo de comando e de obe- diéncia, donde a idéia do pater familias, do pai, senhor de sua mulher, seus filhos e seus escravos. Isto constitufa a esfera privada. A palavra privado ti- nha aqui o sentido de privus, de ser privado de, daquele ambito em que o ho- mem, submetido as necessidades da natureza, buscava sua utilidade no senti- do de meios de sobrevivéncia. Nesse espago, nao havia liberdade, da qual se estava privado, em termos de participacéo num autogoverno comum, pois to- dos, inclusive o senhor, estavam sob a coacao da necessidade. Liberar-se des- sa condigao era privilégio de alguns, os cidadaos ou cives. O cidad&o exercia sua atividade prépria em outro 4mbito, a polis ou civitas, que constitufa a esfera publica. Ai ele encontrava-se entre seus iguais, e era livre sua atividade. Esta se chamava acao. A acao compartilhava de uma das caracterfsticas do labor, sua fugacidade e futilidade, posto que era um continuo sem finalidade preconcebida. Todavia, a diferenca do labor, a ago significava a dignificagdo do homem. Igual entre iguais, 0 homem ao agir exercitava sua atividade em conjunto com os outros homens, igualmente cidaddos. Seu terreno era o do encontro dos homens livres que se governam. Daf a idéia de aco politica, dominada pela palavra, pelo discurso, pela busca 23 24 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO dos critérios do bem governar. O homem que age é 0 politikon zoon, o animal politico. A acio caracterizava-se em primeiro lugar por sua ilimitaco. Como se tratava de atividade espontanea, como toda aco era concebida como cria- cdo de um fluxo de relagées politicas, nfo havia como prever a ago. Agir, di- zia-se, é iniciar continuamente relagées. Por isso, além da ilimitag&o, a acao era imprevisivel, nao podendo suas conseqiiéncias ser determinadas logica- mente de antemio. Isto explicava a inerente instabilidade dos negécios hu- manos, das coisas da politica de modo geral, cuja tinica estabilidade possivel era aquela que decorria da propria agao, de uma espécie de virtude, como, por exemplo, o equilibrio e a moderacdo prépria da prudéncia. Dai a necessi- dade da ars e da techné, Para que essa estabilidade pudesse ser alcangada, porém, eram necessérias certas condi¢ées: as fronteiras territoriais para a ci- dade, as leis para 0 comportamento, a cerca para a propriedade, que eram consideradas limites a acéio, embora sua estabilidade nao decorresse desses limites. Em outras palavras, a polis ndo era propriamente um limite fisico e normativo, mas um conjunto fugaz de acdes. Contudo, para que a polis, en- quanto teia de relacdes, surgisse, era nao sé necessdria a delimitacdo fisica da cidade, que era trabalho do arquiteto, mas também a legislagao, que era trabalho do legislador, considerado uma espécie de construtor da estrutura da cidade. Ora, o trabalho, ao contrdrio do labor e da acio, era uma ativida- de humana considerada como nfo futil, sendo dominada pela relagéo meio/fim. O trabalho era uma atividade com termo previsivel: 0 produto ou o bem de uso. O produto, ao contrdrio do resultado do labor, 0 objeto de consumo, nao se confunde com o produtor, pois dele se destaca, adquirindo permanéncia no mundo. O trabalho tem em si, portanto, a nota da violéncia, pois é uma atividade que transforma a natureza, ao domind-la: da drvore que se corta faz-se a mesa. Assim, na Antigiiidade, pode-se dizer: a legislacio enquanto trabalho do legislador nao se confundia com o direito enquanto resultado da acao. Em outras palavras, havia diferenga entre lex e jus na proporc’o da diferenga en- tre trabalho e agdo. Desse modo, o que condicionava o jus era a lex, mas 0 que conferia estabilidade ao jus era algo imanente a aco: a virtude do justo, a justica. A partir da Era Moderna, assistimos A ocorréncia de progressiva per- da do sentido antigo de agio, que cada vez mais se confunde com o de traba- Iho; ou seja, a velha noc4o de acdo vinculada a virtude passa a identificar-se com a moderna nogdo de acao como atividade finalista, portanto préxima ao que a Antigiiidade chamava de trabalho. Desse modo, a acdo tornada um fa- zer, portanto entendida como um processo que parte de meios para atingir fins, assistiré a uma correspondente redugao progressiva do jus a lex, do di- reito 4 norma. O fabricar dos antigos, isto é, o trabalho, era, porém, um do- minio sobre coisas, nao sobre homens. Transportado o fabricar para o mundo INTRODUGAO_ politico, o trabalho far do agir humano uma atividade produtora de bens de uso e o direito reduzido a norma, isto 6, o jus como igual a lex, serd entao en- carado como comando, como relagao impositiva de uma vontade sobre outra vontade, um meio para atingir certos fins: a paz, a seguranca, o bem-estar etc. Nesse quadro, a legitimidade do direito-comando passa a depender dos fins a que ele serve. Essa passagem do homem compreendido como animal politico, para a concepcao do homem como ser que trabalha, coloca o direito dentro da chamada filosofia do homo faber. A supremacia do homo faber na concepgao do homem e do mundo faz, inicialmente, com que as coisas per- cam seu significado, ou melhor, a presenca avassaladora do homo faber a partir da Era Moderna faz com que o significado das coisas se instrumentali- ze. O significado que deveria ser dado pela agao, pelo pensar, pela politica, pelo agir conjunto, passa a ser dado por uma relacdo funcional de meios e fins. O homo faber de certo modo degrada o mundo, porque transforma o significado de todas as coisas numa relagdo meio/fim, portanto numa relacao pragmética. Com isso, torna-se impossfvel para ele descobrir que as coisas possam ser valiosas por elas mesmas e nao simplesmente enquanto instru- mentos, enquanto meios. A tragédia dessa posic¢ao esté em que a tinica possi- bilidade de se resolver o problema do significado das coisas é encontrar uma nocdo que em si é paradoxal, ou seja, a idéia de um fim em si mesmo. A idéia de um fim em si mesmo, ou seja, a idéia de um fim que nao é mais meio para outro fim, é um paradoxo, porque todo fim nessa concepciio deveria ser meio para um fim subseqiiente. A idéia de um fim em si mesmo foi formulada por Kant, que tentou resolver o dilema dessa tragédia. Kant colocou-nos diante da idéia de que o homem nessa concepgao utilitaria é afinal aquele que é um fim em si mesmo. Daf sua famosa concepgdo de que o homem nunca deve ser objeto para outro homem. A proposta de Kant, contudo, nao resolve o proble- ma, mesmo porque, no momento em que colocamos o homem como centro do mundo, como o tinico fim por si, portanto como a tinica coisa valiosa por si, todo o restante torna-se algo banal, nao valioso, salvo quando tem um sentido para o homem, salvo quando é instrumento para o homem. Em ou- tras palavras, alguma coisa sé tera sentido se contiver trabalho humano, pois se instrumentaliza. No mundo do homo faber, a esfera publica, que na Anti- giiidade era a esfera do homem politico, passa a ser a esfera do mercador. A concepgao de que o homem é um construtor, um fabricante de coisas, con- duz a concluséo de que o homem sé consegue relacionar-se devidamente com outras pessoas, trocando produtos com elas. Na sociedade dominada pela concepgiio do homo faber, a troca de produtos transforma-se na principal atividade politica. Nela os homens come- cam a ser julgados no como pessoas, como seres que agem, que falam, que julgam, mas como produtores e segundo a utilidade de seus produtos. Aos 25 26 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO olhos do homo faber, a forga do trabalho é apenas um meio de produzir um objeto de uso ou um objeto de troca. Nessa sociedade, na sociedade domina- da pela idéia da troca, o direito passa a ser considerado como um bem que se produz. E a identificagéo do jus com a lex. O bem produzido por meio da edi- cao de normas constitui entéo um objeto de uso, algo que se tem, que se pro- tege, que se adquire, que pode ser cedido, enfim, que tem valor de troca. Ora, como no mercado de trocas os homens nao entram em contato direta- mente uns com os outros, mas com os produtos produzidos, o espago da co- municacéo do homo faber é um espaco alienante, porque de certa maneira exclui o proprio homem. O homem nesse espago mostra-se por meio de seus produtos. Esses produtos sao as coisas que ele fabrica ou as mascaras que ele usa. Em conseqiiéncia disso, no mundo do homo faber o direito, transforma- do em produto, também se despersonaliza, tornando-se mero objeto. O direi- to considerado objeto de uso é o direito encarado como conjunto abstrato de normas, conjunto abstrato de correspondentes direitos subjetivos, enfim, 0 direito objeto de uso é um sistema de normas e direitos subjetivos constitui- dos independentemente das situagées reais ou pelo menos considerados in- dependentemente dessas situagdes reais, mero instrumento de atuacdo do homem sobre outro homem. Est af a base de uma concepcao que vé no di- reito e no saber juridico um sistema neutro que atua sobre a realidade de for- ma a obter fins uiteis e desejaveis. Contudo, no correr da Era Moderna, repercutindo intensamente no mundo contempordneo, outra assimilagdo semantica ocorrerd: a progressiva absorgao da idéia de trabalho pela idéia de labor. Com isso, vamos ter uma nova concep¢ao antropolégica, portanto uma concepcao do mundo domina- do agora pela idéia do animal laborans. Conseqiientemente, o direito, que na Antigiiidade era ac&o, que na Era Moderna passa a ser trabalho produtor de normas, isto 6, objetos de uso, no mundo contempordneo torna-se produto de labor, isto é, objeto de consumo ou bem de consumo. Que significa isso? Em primeiro lugar, devemos observar que 0 labor, ao contrério do trabalho, nao tem produtividade, ou seja, o trabalho pode ser visto por seus resultados e seus produtos, que permanecem. O labor nao produz propria- mente alguma coisa, no sentido de que os bens de consumo sao bens que es- to para o homem a medida que sao consumidos pelo homem, isto é, que sao readquiridos pelo corpo que os produz. Nao obstante isso, o labor tem uma forma de produtividade que nao est4 em produtos, mas na prépria forca hu- mana que produz. Essa forga humana nao se esgota com a produco dos meios de sobrevivéncia e subsisténcia, e é capaz de ter um excedente, que ja nao é necessdrio A reprodugio de cada um e constitui o que o labor produz. Em outras palavras, o que o labor produz é fora de trabalho; portanto, con- dicées de subsisténcia. INTRODUGAO Ora, enquanto na sociedade do homo faber o centro dos cuidados hu- manos era a propriedade e o mundo dividia-se em propriedades, j4 numa so- ciedade dominada pela idéia do animal laborans, ou seja, na sociedade de operdrios ou sociedade de consumo, o centro ja néo é o mundo, construido pelo homem, mas a mera necessidade da vida, a pura sobrevivéncia. Como 0 animal laborans, 0 homem que labora, ou, lato sensu, o operario, esté no mundo, mas é indiferente ao mundo, mesmo porque o labor, por assim dizer, em certa medida, nao precisa do mundo construfdo pelo homem, a atividade do laborar é uma atividade extremamente isolada. Em termos de labor, com- partilhamos todos de um mesmo destino, mas nao compartilhamos coisa ne- nhuma, porque a sobrevivéncia acossa a cada qual individualmente e isola- nos uns dos outros. O homem movido pela necessidade n&o conhece outro valor, nem conhece outra necessidade, sendo sua propria sobrevivéncia. Na sociedade de operdrios, somos todos equalizados pela necessidade e voltados para nds mesmos. Somos todos forca de trabalho e, nesse sentido, um produ- to eminentemente fungtvel. No mundo do animal laborans, tudo se torna ab- solutamente descartavel. Nada tem sentido, senao para a sobrevivéncia de cada qual, ou seja, numa sociedade de consumo, os homens passam a ser jul- gados, todos, segundo as fungées que exercem no processo de trabalho e de producio social. ‘Assim, se antes, no mundo do homo faber, a forca de trabalho era ain- da apenas um meio de produzir objetos de uso, na sociedade de consumo confere-se a forca de trabalho o mesmo valor que se atribui 4s mdquinas, aos instrumentos de producdo. Com isso, instaura-se uma nova mentalidade, a mentalidade da maquina eficaz, que primeiro uniformiza coisas e seres hu- manos para, depois, desvalorizar tudo, transformando coisas e homens em bens de consumo, isto é, bens nao destinados a permanecer, mas a serem consumidos e confundidos com o préprio sobreviver, numa escalada em velo- cidade, que bem se vé na rapidez com que tudo se supera, na chamada civili- zagio da técnica. O que estd em jogo aqui é a generalizagao da experiéncia da produco, na qual a utilidade para a sobrevivéncia é estabelecida como critério Ultimo, para a vida e para o mundo dos homens. Ora, a instrumenta- lizagdo de tudo, por exemplo, a crianca que de manhi escova os dentes, usa a escova, a pasta e a Agua e com isso contribui para o produto interno bruto da nac&o, conduz a idéia de que tudo afinal é meio, todo produto é meio para um novo produto, de tal modo que a sociedade concentra-se em produ- zir objetos de consumo. Consumo este, de novo, meio para o aumento da producdo, e assim por diante. Na légica da sociedade de consumo, tudo 0 que nao serve ao processo vital é destitufdo de significado. Até 0 pensamento torna-se mero ato de prever conseqiiéncias e sé nessa medida é valorizado. Entende-se assim a valorizagéo dos saberes técnicos, sobretudo quando se percebe que os instrumentos eletrénicos exercem a fungao calculadora muito melhor do que 0 cérebro. E no direito essa légica da sociedade de consumo 27 28 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO torna-o mero instrumento de atuac4o, de controle, de planejamento, tornan- do-se a ciéncia juridica um verdadeiro saber tecnolégico. O ultimo estdgio de uma sociedade de operdrios, de uma sociedade de consumo, que é a sociedade de detentores de empregos, requer de seus membros um funcionamento puramente automatico, como se a vida indivi- dual realmente houvesse sido afogada no processo vital da espécie e a tnica deciséo ativa exigida do individuo fosse, por assim dizer, deixar-se levar, abandonar sua individualidade, as dores e as penas de viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e tranqiiilizante. Para o mundo juridico, o advento da sociedade do homo labo- rans significa, assim, a contingéncia de todo e qualquer direito, que nao ape- nas é posto por decisio, mas também vale em virtude de decis6es, nao im- porta quais, isto é, na concep¢ao do animal laborans, criou-se a possibilidade de uma manipulagao de estruturas contraditérias, sem que a contradicao afe- tasse a fungSo normativa. Por exemplo, a rescisio imotivada de um contrato de locacao é permitida, amanha passa a ser proibida, depois volta a ser per- mitida, e tudo é permanentemente reconhecido como direito, nao incomo- dando a esse reconhecimento sua mutabilidade. A filosofia do animal labo- rans, desse modo, assegura ao direito, enquanto objeto de consumo, enor- me disponibilidade de contetidos. Tudo é passivel de ser normado e para enorme disponibilidade de enderegados, pois o direito j4 nao depende do sta- tus, do saber, do sentir de cada um, das diferencgas de cada um, da personali- dade de cada um. Ao mesmo tempo, continua sendo aceito por todos e cada um em termos de uma terrfvel uniformidade. Em suma, com o advento da sociedade do animal laborans, ocorre radical reestruturagao do direito, pois sua congruéncia interna deixa de assentar-se sobre a natureza, sobre o costu- me, sobre a razdo, sobre a moral e passa reconhecidamente a basear-se na uniformidade da prépria vida social, da vida social moderna, com sua imensa capacidade para a indiferenga. Indiferenga quanto ao que valia e passa a va- ler, isto é, aceita-se tranqiiilamente qualquer mudanga. Indiferenca quanto a incompatibilidade de contetidos, isto é, aceita-se tranqiiilamente a inconsis- téncia e convive-se com ela. Indiferenga quanto as divergéncias de opiniao, isto é, aceita-se uma falsa idéia de tolerancia, como a maior de todas as vir- tudes. Este é afinal o mundo juridico do homem que labora, para o qual o di- reito é apenas e tao-somente um bem de consumo. reconhecimento dessa situagao, porém, nao deve significar que es- tamos sucumbindo a fatalidade e que as coisas sfo como sao, nao importa 0 que se faca. Se o direito se tornou hoje um objeto de consumo, alids como ocorre também com a ciéncia e a arte — afinal, quanta gente hoje nao estuda somente para ter maiores ou melhores chances de sobrevivéncia no mercado de trabalho e quanta gente nado adquire uma obra de arte porque nela vé principalmente um investimento -, isto nao faz dele (como ndo faz da ciéncia INTRODUGAO e da arte) um objeto de permanente alienagao humana. As sociedades estéo em transformacao e a complexidade do mundo esta exigindo novas formas de manifestacio do fenémeno juridico. E possivel que, nao tao distantemente no futuro, essa forma compacta do direito instrumentalizado, uniformizado e generalizado sob a forma estatal de organizacao venha a implodir, recupe- rando-se, em manifestacdes espontaneas e localizadas, um direito de muitas faces, peculiar aos grupos e as pessoas que os compéem. Por isso, a conscién- cia de nossa circunstancia nao deve ser entendida como um momento final, mas como um ponto de partida. Afinal, a ciéncia nao nos libera porque nos torna mais sdébios, mas é porque nos tornamos mais sabios que a ciéncia nos libera. Adquirir a sabedoria nao é ato nem resultado da ciéncia e do conheci- mento, mas é experiéncia e reflexdo, exercicio do pensar. E é para isso, por fim, que convidamos 0 leitor: pensar o direito, refletir sobre suas formas ho- diernas de atuaco, encontrar-lhe um sentido, para entdo vivé-lo com pru- déncia, esta marca virtuosa do jurista, que os romanos nos legaram e que nao desapareceu de todo na face da Terra. 29 A Universalidade do Fenémeno Juridico 1.1 DIREITO: ORIGEM, SIGNIFICADOS E FUNGOES Aquilo que, reverencialmente, 0 homem comum denomina direito, observa um autor contemporaneo (Arnold, 1971:47), “corresponde a uma certa atitude, uma forma de pensar, uma manei- ra de referir-se as instituicées humanas em termos ideais. Trata-se de uma exigéncia do senso comum, profundamente arraigada, no senti- do de que aquelas instituicées de governo dos homens e de suas rela- des simbolizem um sonho, uma projecao ideal, dentro de cujos li tes funciona certos princfpios, com independéncia dos individuos”. Em parte, o que chamamos vulgarmente de direito atua, pois, como um reconhecimento de ideais que muitas vezes representam 0 oposto da con- duta social real. O direito aparece, porém, para o vulgo, como um complica- do mundo de contradicées e coeréncias, pois, em seu nome tanto se véem respaldadas as crencas em uma sociedade ordenada, quanto se agitam a re- volucio e a desordem. O direito contém, ao mesmo tempo, as filosofias da obediéncia e da revolta, servindo para expressar e produzir a aceitagéo do status quo, da situagao existente, mas aparecendo também como sustentacao moral da indignacao e da rebeliao. 0 direito, assim, de um lado, protege-nos do poder arbitrdrio, exerci- do a margem de toda regulamentagiio, salva-nos da maioria cadtica e do tira- 32 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO no ditatorial, dd a todos oportunidades iguais e, ao mesmo tempo, ampara os desfavorecidos. Por outro lado, é também um instrumento manipulavel que frustra as aspiragées dos menos privilegiados e permite 0 uso de técnicas de controle e dominagao que, por sua complexidade, é acessivel apenas a uns poucos especialistas. Por tudo isso podemos perceber que direito é muito dificil de ser de- finido com rigor. De uma parte, consiste em grande ntimero de simbolos e ideais reciprocamente incompativeis, o que o homem comum percebe quan- do se vé envolvido num processo judicial: por mais que ele esteja seguro de seus direitos, a presenga do outro, contestando-o, cria-Ihe certa angustia que desorganiza sua tranqiiilidade. De outra parte, nao deixa de ser um dos mais importantes fatores de estabilidade social, posto que admite um cenério co- mum em que as mais diversas aspiragdes podem encontrar uma aprovagdo e uma ordem. Ora, para uma tentativa nao de definigao estrita, mas de mera aproxi- macdo do fenémeno juridico, uma pista adequada parece encontrar-se na propria origem da palavra direito em nossa cultura. Valemo-nos, para tanto, da excelente monografia de Sebastiéo Cruz (1971) sobre o assunto. O pro- blema de que parte o autor é o seguinte: por que, ao lado da palavra do la- tim clAssico jus e significando também direito, apareceu a palavra derectum (Gnicialmente, talvez, somente rectum e, mais tarde, também a forma direc- tum) e nao alguma outra? Da palavra rectum - ou da indoeuropéia rek-to’— derivou Rechts, right etc. e, da palavra derectum, direito, derecho, diritto, droit etc. Qual seria, entdo, a convergéncia semantica entre jus e derectum? Enfrentando a questo, o autor observa que ao direito vincula-se uma série de simbolos, alguns mais elogiientes, outros menos, e que antecederam a propria palavra. De qualquer modo, o direito sempre teve um grande sim- bolo, bastante simples, que se materializava, desde h4 muito, em uma balan- ¢a com dois pratos colocados no mesmo nivel, com o fiel no meio ~ quando este existia - em posicdo perfeitamente vertical. Havia, ainda, outra materia- lizagdo simbélica, que varia de povo para povo e de época para época. Assim, os gregos colocavam essa balanga, com os dois pratos, mas sem o fiel no meio, na mao esquerda da deusa Diké, filha de Zeus e Themis, em cuja mao direita estava uma espada e que, estando em pé e tendo os olhos bem aber- tos, dizia (declarava solenemente) existir o justo quando os pratos estavam em equilibrio (ison, donde a palavra isonomia). Dai, para a Iingua vulgar dos gregos, 0 justo (0 direito) significar o que era visto como igual (igualdade). JA 0 simbolo romano, entre as varias representacdes, correspondia, em geral, A deusa Justitia, a qual distribufa a justiga por meio da balanca (com os dois pratos e o fiel bem no meio) que ela segurava com as duas mos. Ela ficava de pé e tinha os olhos vendados e dizia (declarava) o direito A UNIVERSALIDADE DO FENOMENO JURIDICO (jus) quando o fiel estava completamente vertical: direito (rectum) = perfei- tamente reto, reto de cima a baixo (de + rectum). As pequenas diferengas (mas, em termos de simbolo, significativas) entre os dois povos mostram-nos que os gregos aliavam a deusa algumas pa- lavras, das quais as mais representativas eram dikaion, significando algo dito solenemente pela deusa Diké, e ison, mais popular, significando que os dois pratos estavam iguais. JA em Roma, as palavras mais importantes eram jus, correspondendo ao grego dikaion e significando também o que a deusa diz (quod Tustitia dicit), e derectum, correspondendo ao grego ison, mas com li- geiras diferengas. Notamos, ademais, que a deusa grega tinha os olhos abertos. Ora, os dois sentidos mais intelectuais para os antigos eram a visio e a audicao. Aquela para indicar ou simbolizar a especulagao, o saber puro, a sapientia; esta para mostrar o valorativo, as coisas praticas, o saber agir, a prudéncia, o apelo a ordem etc. Portanto, a deusa grega, estando de olhos abertos, aponta para uma concepco mais abstrata, especulativa e generalizadora que prece- dia, em importancia, o saber prdtico. J4 os romanos, com a lustitia de olhos vendados, mostram que sua concepgio do direito era antes referida a um sa- ber-agir, uma prudentia, um equilibrio entre a abstracdo e o concreto. Alias, coincidentemente, os juristas romanos de modo preponderante nao elaboram teorias abstratas sobre o justo em geral (como os gregos) mas construgées operacionais, dando extrema importancia 4 oralidade, a palavra falada, don- de a proveniéncia de lex do verbo legere (ler, em voz alta). Além disso, o fato de que a deusa grega tinha uma espada e a romana nao mostra que os gre- gos aliavam o conhecer o direito a forca para executd-lo (iudicare), donde a necessidade da espada, enquanto aos romanos interessava, sobretudo quan- do havia direito, o jus-dicere, atividade precipua do jurista que, para exer- cé-la, precisava de uma atitude firme (segurar a balanca com as duas maos, sem necessidade da espada); tanto que a atividade do executor, do iudicare, era para eles menos significativa, sendo o iudex (0 juiz) um particular, geral- mente e a principio, no versado em direito. No correr dos séculos, porém, a expressiio jus foi, pouco a pouco, sen- do substituida por derectum. Nos textos juridicos latinos, esta tiltima, tendo cardter mais popular e vinculada ao equilfbrio da balanca, nao aparecia, sen- do encontrada apenas nas fontes nao juridicas, destinadas ao povo. Foi a partir do século IV d.C. que ela comecou a ser usada também pelos juristas. Guardou, porém, desde suas origens, um sentido moral e principalmente reli- gioso, por sua proximidade com a deificag4o da justiga. Nos séculos VI ao IX, as formulas derectum e directum passam a sobrepor-se ao uso de jus. Depois do século IX, finalmente, derectum é a palavra consagrada, sendo usada para indicar 0 ordenamento jurfdico ou uma norma juridica em geral. 33 34 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO A palavra direito, em portugués (e as correspondentes nas linguas ro- manicas), guardou, porém, tanto o sentido do jus como aquilo que é consa- grado pela Justica (em termos de virtude moral), quanto o de derectum como um exame da retidao da balanca, por meio do ato da Justiga (em termos do aparelho judicial). Isso pode ser observado pelo fato de que hoje se utiliza o termo tanto para significar 0 ordenamento vigente — “o direito brasileiro, o direito civil brasileiro” -, como também a possibilidade concedida pelo orde- namento de agir e fazer valer uma situacao — “direito de alguém” -, nao po- dendo-se esquecer ainda 0 uso moral da expressdo, quando se diz “eu tinha direito 4 defesa, mas a lei nfo mo concedeu” (Cruz, 1971:58). Essas observacées iniciais j4 nos dao conta de que compreender o que seja o direito nao é tarefa facil. Nao sé é um fenémeno de grande amplitude e muitas facetas, mas também a propria expressdo direito (e seus correlatos) possui diferencas significativas que nao podem ser desprezadas. Isso coloca o tedrico diante de um problema cujas raizes tém de ser elucidadas antes que um ensaio de solucdo possa ser proposto. 1.2 BUSCA DE UMA COMPREENSAO UNIVERSAL; CONCEPGOES DE LiNGUA E DEFINIGAO DE DIREITO Os juristas sempre cuidam de compreender o direito como um fené- meno universal. Nesse sentido, sao intimeras as definicées que postulam esse alcance. Nao é 0 caso de reproduzir-se numa série, certamente inacabada, os textos que ensaiam esse objetivo. Nao s6 juristas, mas também fildsofos e cien- tistas sociais mostram ou mostraram preocupagées semelhantes. Ha algo de humano, mas sobretudo de cultural nessa busca. A possi- bilidade de se fornecer a esséncia do fendmeno confere seguranga ao estudo e 4 acdo. Uma complexidade nao reduzida a aspectos uniformes e nucleares gera angistia, parece subtrair-nos 0 dom{nio sobre o objeto. Quem nao sabe por onde comecar sente-se impotente e, ou nado comega, ou comega sem con- vicgdo. Na tradic&o cultural do Ocidente, h4 um elemento importante que permitirA visualizar o problema de um dos modos como ele pode ser enfren- tado. Referimo-nos a concepgao da lingua em seu relacionamento com a rea- lidade. Abstragao feita dos diferentes matizes que de cada concepgao da lin- gua pudesse ser apresentada, notamos, sobretudo entre os juristas, uma concepcdo correspondente a chamada teoria essencialista. Trata-se da crenga de que a lingua é um instrumento que designa a realidade, donde a possibili- dade de os conceitos lingiiisticos refletirem uma presumida esséncia das coi- A UNIVERSALIDADE DO FENOMENO JURIDICO sas. Nesse sentido, as palavras so veiculos desses conceitos. Quem diz “mesa refere-se a uma coisa que, em suas variagGes possiveis, possui um nticleo in- varidvel que possibilita um “conceito de mesa” e a identificagao das diversas mesas. Essa concepcao sustenta, em geral, que deve haver, em principio, uma s6 definigéo valida para uma palavra, obtida por meio de processos inte- lectuais, como, por exemplo, a abstragdo das diferengas e determinagdo do nticleo: “mesa”, abstragdo feita do material (madeira, ferro, vidro), do modo (redonda, quadrada, de quatro pés) leva-nos a esséncia (por exemplo: objeto plano, a certa altura do cho, que serve para sustentar coisas). Esse realismo verbal, contudo, sofre muitas objegées. Afinal, é 6bvio que “mesa” nao é ape- nas este objeto em cima do qual coloco meus papéis, um cinzeiro, algumas frutas, mas é também mesa diretora dos trabalhos, a mesa que a empregada ainda ndo pés, a mesa prédiga de sicrano, da qual muitos desfrutam etc. Como, entio, falar da “esséncia” designada? Essas objegdes nao so novas. Desde a Antigiiidade, elas constituem a pauta de muitas disputas. Em nome da concepgao essencialista, porém, flo- resceram diferentes escolas, umas afirmando, outras negando, total ou par- cialmente, a possibilidade de se atingirem as esséncias. Donde, por exemplo, a afirmacio do relativismo, em seus diversos matizes, quanto A possibilidade de o homem conhecer as coisas, os objetos que 0 cercam ou, a0 menos, co- nhecé-los verdadeiramente. Os autores juridicos, em sua maioria, tém uma visdo conservadora da teoria da lingua, sustentando, em geral, no que se refere aos objetos juridi- cos, a possibilidade de definicées reais, isto é, a idéia de que a definicdo de um termo deve refletir, por palavras, a coisa referida. Por isso, embora nao neguem o cardter vago do termo direito, que ora designa o objeto de estudo, ora é o nome da ciéncia (por exemplo: a “Ciéncia do Direito” estuda o “direi- to”), ora o conjunto de normas, ou das instituicées (por exemplo: o direito brasileiro prescreve pena para o crime de morte, o direito nao deve mais ad- mitir a pena de banimento) - direito objetivo -, ora é direito no sentido dito subjetivo (meu direito foi violado), todos eles nao se furtam 4 tentativa de descobrir o que é “o direito em geral”. E af entram numa polémica de séculos, cujas raizes, obviamente, estdo, entre outros motivos, em sua concep¢ado de lingua (Nino, 1980:12). Em geral, o que se observa é que grande parte das definigdes (reais) do direito, isto é, do fenémeno juridico em sua “esséncia”, ou sao demasiado genéricas e abstratas e, embora aparentemente universais, imprestdveis para tracar-lhe os limites, ou sao muito circunstanciadas, o que faz que percam sua pretendida universalidade. Exemplo do primeiro caso é a afirmacao de que o direito é a intengdo firme e constante de dar a cada um 0 que é seu, nAo lesar os outros, realizar a justica. No segundo, temos afirmacées do tipo: 36 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIRETO direito é 0 conjunto das regras dotadas de coatividade e emanadas do poder constituido. ‘Ao enfoque essencialista da lingua opde-se uma concep¢do conven- cionalista, em geral defendida hoje pela chamada filosofia analitica (cf. Ayer, 1978). A lingua é vista como um sistema de signos, cuja relac4o com a reali- dade é estabelecida arbitrariamente pelos homens. Dado esse arbitrio, o que deve ser levado em conta é 0 uso (social ou técnico) dos conceitos, que po- dem variar de comunidade para comunidade. Desse modo, a caracterizacao de um conceito desloca-se da pretensao de se buscar a natureza ou esséncia de alguma coisa (que é a mesa?) para a investigagao sobre os critérios vigen- tes no uso comum para usar uma palavra (como se emprega “mesa”?). Se nos atemos ao uso, toda e qualquer definicdo é nominal (e nao real), isto é, definir um conceito nao é a mesma coisa que descrever uma realidade, pois a descricdo da realidade depende de como definimos o conceito e nao 0 con- trdrio, Ou seja, a descrigdo da realidade varia conforme os usos conceituais. Se, no uso corrente da lingua portuguesa, definimos “mesa” como um objeto feito de material sdlido, a certa altura do cho, que serve para pér coisas em cima (a mesa de madeira, de quatro pernas), a descrigdo da realidade sera uma. Se definimos como um objeto abstrato, referente 4 qualidade da comi- da que se serve (a boa mesa satisfez os convidados), entdo a descrigao serd outra. Isso nao implica um relativismo, que é uma posi¢ao que pressupde a concepgao essencialista para depois negé-la. Pois nao se afirma que a essén- cia é inatingfvel, mas que a questo da esséncia nao tem sentido. A “essén- cia” de “mesa” ndo esta nem nas coisas nem na propria palavra. Na verdade, “esséncia” é apenas, ela propria, uma palavra que ganha sentido num contex- to lingiifstico: depende de seu uso. Para os convencionalistas sé hé um dado irrecusdvel: os homens comunicam-se, quer queiram quer nao (é impossivel nao se comunicar, pois nao se comunicar é comunicar que nao se comunica). Essa comunicagao admite varias linguagens (falada, por gestos, pictérica, musical etc.). Em conseqiiéncia, a descri¢do da realidade depende da lingua- gem usada, e em casos como o da musica pode-se até dizer que a linguagem (musical) e a realidade (musical) se confundem. Circunscrevendo-nos a linguagem falada, base de todas as demais for- mas de comunicagéo humana, pode-se dizer que o convencionalismo se pro- pée, entio, a investigar os usos lingiifsticos. Se a definigdo de uma palavra se reporta a um uso comum, tradicional e constante, falamos de uma definicao lexical. Essa definigdo sera verdadeira se corresponde aquele uso. Por exem- plo, se definimos “mesa” como um objeto redondo que serve para sentar-se, a definigao é falsa. A palavra ndo se usa assim em portugués. Definicdes lexi- cais admitem, pois, os valores verdadeiro/falso. Nem sempre, porém, uma palavra se presta A definicao desse tipo. Ou porque o uso comum é muito im- A UNIVERSALIDADE DO FENOMENO JURIDICO preciso, ou porque é imprestavel, por exemplo, para uma investigacdo mais técnica. Nesses casos, podemos definir de forma estipulativa, isto é, propo- mos um uso novo para 0 vocdbulo, fixando-lhe arbitrariamente o conceito. E 0 caso da palavra lei que, admitindo muitos usos (lei fisica, lei social, leis da natureza, a Lei de Deus), exige uma estipulacio (por exemplo, enunciado prescritivo geral, emanado pelo Parlamento, conforme os ditames constitu- cionais), devendo-se lembrar que, obviamente, 0 que é uso novo hoje pode tornar-se amanha uso comum. Quando essa estipulag4o, em vez de inovar totalmente (por exemplo, ‘ego”, “superego”, na psicandlise), escolhe um dos usos comuns, aperfeigoan- do-o (norma como prescri¢éo de um comportamento, dotada de sango), en- tao falamos em redefinigéo (Lantella, 1979:33). As estipulacdes e as redefini- g6es ndo podem ser julgadas pelo critério da verdade, mas por sua funcionalidade, 0 que depende, obviamente, dos objetivos de quem define. ‘Assim, uma redefinicio ou estipulacao do que se entenda por “justica” serd funcional ou nao, conforme o objetivo do definidor seja atendido. Ela podera ser clara e precisa, mas no funcional, se o objetivo, por exemplo, é persuadir um eleitorado heterogéneo a votar certas medidas (quando, entio, 0 uso de- veria ser difuso e obscuro, para cooptar o maximo apoio). Uma posic¢ao convencionalista exige ademais que se considerem os di- ferentes ngulos de uma anilise lingiiistica. Quando definimos 0 conceito de direito é, pois, importante saber se estamos preocupados em saber se se trata de um substantivo ou de um adjetivo, ou de um advérbio, tendo em vista seu relacionamento formal (gramatical) numa proposic&io. Ou se estamos preo- cupados em saber aquilo que queremos comunicar com seu uso, ou seja, se queremos saber se direito se refere a um conjunto de normas ou a uma facul- dade ou a uma forma de controle social. Ou ainda se nos preocupa a reper- cussiio desse uso para aqueles que se valem da expresso quando, por exem- plo, alguém proclama: “o direito é uma realidade imperecivel!” No primeiro caso, a anilise é sintdtica, isto é, estamos preocupados em definir o uso do termo tendo em vista a relagdo formal dele com outros vocdbulos (por exem- plo, direito é uma palavra que qualifica (adjetivo) um substantivo, digamos 0 comportamento humano, ou direito modifica um modo de agir — agir direito: advérbio). No segundo caso, a andlise é semdntica, isto é, queremos definir 0 uso do termo tendo em vista a relacdo entre ele e o objeto que comunica (por exemplo: direito designa um comportamento interativo ao qual se pres- creve uma norma). No terceiro, definimos 0 uso do termo tendo em vista a relagdo do termo por quem e para quem o usa e, nesse caso, a andlise é prag- mdtica (por exemplo: a palavra direito serve para provocar atitudes de res- peito, temor). Ora, 0 termo direito, em seu uso comum, é€ sintaticamente impreciso, pois pode ser conectado com verbos (meus direitos néo valem), com substan- 37 38 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO tivos (0 direito é uma ciéncia), com adjetivos (este direito é injusto), poden- do ele préprio ser usado como substantivo (0 direito brasileiro prevé...), como advérbio (fulano nao agiu direito), como adjetivo (nao se trata de um homem direito), JA do ponto de vista semantico, se reconhecemos que um signo lingiifstico tem uma denotagao (relagdo a um conjunto de objetos que constitui sua extensdo - por exemplo, a palavra planeta denota os nove as- tros que giram em torno do Sol) e uma conotagao (conjunto de propriedades que predicamos a um objeto e que constituem sua intensdo — com s, em cor- relac4o com extens4o -; por exemplo, a palavra homem conota 0 ser racional, dotado da capacidade de pensar e falar), entao é preciso dizer que direito é, certamente, um termo denotativa e conotativamente impreciso. Falamos, as- sim, em ambigiiidade e vagueza semanticas. Ele é denotativamente vago por- que tem muitos significados (extensiio). Veja a frase: “direito é uma ciéncia (1) que estuda o direito (2) quer no sentido de direito objetivo (3) - conjunto das normas -, quer no de direito subjetivo (4) - faculdades”. Ele é conotati- vamente ambiguo, porque, no uso comum, é impossivel enunciar uniforme- mente as propriedades que devem estar presentes em todos os casos em que a palavra se usa. Por exemplo, se definirmos direito como um conjunto de normas, isto ndo cabe para direito como ciéncia. Ou seja, é impossivel uma Uinica definicdio que abarque os dois sentidos. Por fim, pragmaticamente, di- reito é uma palavra que tem grande carga emotiva. Como as palavras nao apenas designam objetos e suas propriedades, mas também manifestam emo- c6es (injustica! tradicionalista! liberaléide!), é preciso ter-se em conta isto para defini-las. A dificuldade que daf decorre esté em que, ao definir direito, podemos melindrar o leitor, se propomos, por exemplo, uma definicgao pre- tensamente neutra como: direito é um conjunto de prescrigées validas, nao importa se justas ou injustas. Dadas essas caracteristicas do uso da palavra direito, é evidente que, do ponto de vista da concepgao convencionalista da lingua, uma definigao meramente lexical do conceito é muito dificil. Restar-nos-ia, pois, ou o cami- nho da redefinic¢ao ou, entao, de uma pura estipulacao. Esta ultima tera o de- feito, num compéndio de Introdugao, de criar certa distancia para com os usos habituais, gerando uma incompreensdo por parte do estudante, quando topasse com os usos tradicionais. Por isso, optariamos pela redefinicao. Con- tudo, tendo em vista a carga emotiva da palavra, é preciso saber que, qual- quer definigdo que se dé de direito, sempre estaremos diante de uma defini- ¢ao persuasiva (Stevenson, 1958:9). Isso porque é muito dificil, sendo impossivel, no plano da pratica doutrinéria juridica, uma definigao neutra, em que a carga emotiva tivesse sido totalmente eliminada. Como a lingua é um fenédmeno comunicativo, mesmo que tentdssemos uma tal definicéo (como a procurou Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito), a discussao tedrica acabaria por restabelecer aquela carga em que pese a intengio de seu propo- nente. Assim, 0 maximo que obteremos € redefinir o significado do termo di- reito, procurando manter intacto seu valor emotivo. Tentaremos isso, primei- A UNIVERSALIDADE DO FENOMENO JURIDICO ro, néo escondendo aquela carga, segundo, salientando que, em face da proposta, ha também outras alternativas, e, terceiro, explicitando o melhor possivel nossa prépria opcéio em termos valorativos, o que nos conduzird a quest4o da ideologia, como veremos posteriormente. 1.3. PROBLEMA DOS DIFERENTES ENFOQUES TEORICOS: ZETETICO E DOGMATICO Uma redefinigao do termo direito envolve algumas dificuldades ini- ciais. Redefinir é um problema de natureza tedrica, mas também pratica. A proposta de um conceito envolve seu conhecimento, mas este conhecimento tem sempre repercussdo na propria vida jurfdica. Nesse sentido, j4 houve quem dissesse (Ascarelli) que a “ciéncia do direito” evolui de modo diferente das demais ciéncias, pois nao h4 uma histéria da ciéncia juridica separada da historia do proprio direito. Enquanto, por exemplo, as teorias fisicas sobre 0 movimento, dos gregos a nossos dias, vao-se ultrapassando, 4 medida que o fenémeno vai conhecendo novas explicagdes que o organizam (lingitistica- mente) de modo diferente, as teorias juridicas sobre a posse “se ultrapassam” apenas num sentido figurado. Isso porque, enquanto para as demais ciéncias © objeto de estudo é um dado que o cientista pressupde como uma unidade, o objeto de estudo do jurista é, por assim dizer, um resultado que sé existe e se realiza numa pratica interpretativa. Assim, a teoria juridica da posse evolui e transforma-se 4 medida que atua, positiva ou negativamente, sobre a prdépria posse, no convivio social. Em termos de uma concep¢io convencionalista da lingua, dirfamos, entdo, que tanto o fisico quanto o jurista tm suas definigdes guiadas por cri- térios de utilidade tedrica e de conveniéncia para a comunicacao. Enquanto, porém, para o fisico essa comunicacio tem um sentido estritamente informa- tivo, para o jurista ela combina um sentido informativo com um diretivo. Uma comunicagao tem sentido informativo quando utiliza a linguagem para descrever certo estado das coisas. Por exemplo, “esta mesa esta quebrada”. Tem sentido diretivo quando a lingua é utilizada para dirigir 0 comportamento de alguém, induzindo-o a adotar uma ago. Por exemplo, “conserte a mesa”. Ora, quando um fisico define o movimento, prepondera a fungao informativa. Suas definicées tedricas superam-se A medida que o estado de coisas referido muda, ou porque se descobrem novos aspectos relevantes, ou porque os as- pectos antes tidos por relevantes nao o séo mais. JA quando o jurista define a Posse, mesclam-se as duas funcées. Ele nao informa apenas sobre como se en- tende a posse, mas também como ela deve ser entendida. Assim, suas defini- g6es teéricas superam-se A medida que deixam de ser guia para a acao. No 39 40 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO caso do fisico, a definicio é superada porque se tornou falsa. No caso do ju- rista, porque deixou de ser atuante, Ou seja, as definigGes da fisica, em geral, so lexicais, as do jurista séo redefinicées, Nesse sentido, se diz também que a ciéncia jurfdica no apenas informa, mas também conforma o fenémeno que estuda, faz parte dele. A posse é nao apenas o que é socialmente, mas também como é interpretada pela doutrina juridica. Posto isto, é importante que se fixe, numa introdugao ao estudo do direito, qual o enfoque teérico a ser adotado. Isso porque o direito pode ser objeto de teorias bdsicas e intencionalmente informativas, mas também de teorias ostensivamente diretivas. Definamos (estipulacio) uma teoria como uma explicacéio sobre fenémenos, a qual se manifesta como um sistema de proposigdes. Essas proposicdes podem ter funcéo informativa, ou combinar informativo com diretivo. Ora, depende do enfoque adotado 0 uso que se fard da lingua. Assim, o direito, como objeto, pode ser estudado de diferentes Angulos. Para esclarecé-los, vamos distinguir, genericamente, entre um enfo- que zetético e um dogmdtico (Viehweg, 1969). Para entender isso, vamos admitir que toda investigacao cientifica es- teja sempre as voltas com perguntas e respostas, problemas que pedem solu- ges, solugdes j4 dadas que se aplicam a elucidagdo de problemas. Apenas a titulo de esclarecimento, tomemos como exemplo a seguinte anedota “histé- rica”. Sécrates estava sentado a porta de sua casa. Nesse momento, passa um. homem correndo e atrds dele vem um grupo de soldados. Um dos soldados entao grita: agarre esse sujeito, ele é um ladrao! Ao que responde Sécrates: que vocé entende por “ladro”? Notam-se aqui dois enfoques: 0 do soldado que parte da premissa de que o significado de ladrao é uma questao j4 defini- da, uma “solucao” j4 dada, sendo seu problema agarré-lo; e o de Sécrates, para quem a premissa é duvidosa e merece um questionamento prévio. Os dois enfoques estdo relacionados, mas as conseqiiéncias sao diferentes. Um, ao partir de uma solugao j4 dada e pressuposta, est4 preocupado com um problema de a¢do, de como agir. Outro, ao partir de uma interrogacao, esta preocupado com um problema especulativo, de questionamento global e pro- gressivamente infinito das premissas. Temos, portanto, duas possibilidades de proceder A investigacao de um problema: ou acentuando o aspecto pergunta, ou acentuando o aspecto resposta. Se o aspecto pergunta é acentuado, os conceitos basicos, as premis- sas, os princfpios ficam abertos a dtivida. Isto é, aqueles elementos que cons- tituem a base para a organizacaéo de um sistema de enunciados que, como teoria, explica um fendmeno, conservam seu cardater hipotético e problemati- co, nao perdem sua qualidade de tentativa, permanecendo abertos 4 critica. Esses elementos servem, pois, de um lado, para delimitar o horizonte dos problemas a serem tematizados, mas, ao mesmo tempo, ampliam esse hori- zonte, ao trazerem esta problematicidade para dentro deles mesmos. No se- A UNIVERSALIDADE DO FENOMENO JURIDICO gundo aspecto, ao contrario, determinados elementos sao, de antem4o, sub- traidos a duvida, predominando o lado resposta. Isto 6, postos fora de questionamento, mantidos como solugées nao atacaveis, eles so, pelo menos temporariamente, assumidos como insubstitufveis, como postos de modo ab- soluto. Eles dominam, assim, as demais respostas, de tal modo que estas, mesmo quando postas em diivida em relagao aos problemas, nao pdem em perigo as premissas de que partem; ao contrdrio, devem ser ajeitadas a elas de maneira aceitavel. No primeiro caso, usando uma terminologia de Viehweg, temos um enfoque zetético, no segundo, um enfoque dogmdtico. Zetética vem de zetein, que significa perquirir, dogmdtica vem de dokein, que significa ensinar, dou- trinar. Embora entre ambas nao haja uma linha diviséria radical (toda inves- tigac&o acentua mais um enfoque que o outro, mas sempre tem os dois), sua diferenca é importante. O enfoque dogmatico releva o ato de opinar e ressal- va algumas das opiniGes. O zetético, ao contrario, desintegra, dissolve as opi- nides, pondo-as em dtivida. Questées zetéticas tm uma funco especulativa explicita e sao infinitas. Questdes dogmaticas tém uma funcio diretiva expli- cita e so finitas. Nas primeiras, o problema tematizado é configurado como um ser (que é algo?). Nas segundas, a situagdo nelas captada configura-se como um dever-ser (como deve-ser algo?). Por isso, o enfoque zetético visa saber o que é uma coisa. J4 o enfoque dogmatico preocupa-se em possibilitar uma decis4o e orientar a agao. A titulo de exemplo, podemos tomar o problema de Deus na Filosofia e na Teologia. A primeira, num enfoque zetético, pode pér em dtvida sua existéncia, pode questionar até mesmo as premissas da investigagdo, pergun- tando-se inclusive se a questdo sobre Deus tem algum sentido. Nesses ter- mos, seu questionamento é infinito, pois até admite uma questao sobre a propria questo. JA a segunda, num enfoque dogmitico, parte da existéncia de Deus como uma premissa inatacdvel. E se for uma teologia crista, parte da Biblia como fonte que nao pode ser desprezada. Seu questionamento 6, pois, finito. Assim, enquanto a Filosofia se revela como um saber especulativo, sem compromissos imediatos com a agdo, o mesmo nAo acontece com a Teo- logia, que tem de estar voltada para a orientagao da aco nos problemas hu- manos em relacao a Deus. Parece-nos claro que no enfoque zetético predomina a fungio infor- mativa da linguagem. JA no enfoque dogmatico, a fungao informativa com- bina-se com a diretiva e esta cresce ali em importancia. A zetética é mais aberta, porque suas premissas sao dispensdveis, isto é, podem ser substituf- das, se os resultados nao sao bons, as questdes que ela propée podem até fi- car sem resposta até que as condigdes de conhecimento sejam favordveis. A dogmatica é mais fechada, pois esta presa a conceitos fixados, obrigando-se a interpretagdes capazes de conformar os problemas as premissas e ndo, como 41

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