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193 OS PARTIDOS POLITICOS EA CONCEPCAO DEMOCRATICA DA ORDEM JURIDICA CONSTITUCIONAL ANA PAULA LIMA MELO Advogada Incumbe-nos, no ambito deste trabalho, enfatizar a matéria dos partidos politicos, correlacionando-a com a natureza democritica da Federagao Brasileira, realgando, assim, 0s institutos da filiago e disciplina partidérias. Abordaremos, primeiramente, a concepgio e 0 estudo do Estado Democritico de Direito, explicitando seus principios basilares, estes jé inseridos no bojo da nossa Constituicdo Federal. ; Em seguida, passaremos & andlise, propriamente dita, das instituigdes politico- Partidérias, envoltas no principio democratico e, a,posteriori, procederemos a uma compatibilizagao dos princfpios da democracia'comi as atividades politicas, realizadas na ambiéncia interna dos partidos. Empés, trataremos, especificamente, da filiagio e da disciplina na esfera dos partidos politicos, enfocando o prinefpio da fidelidade partidéria e ainda, conjugando- 98 aos princfpios da democracia. Neste interim, é também examinada a proposta das Prévias eleitorais como viabilizadoras da democratizago dos partidos interna corporis. Por fim, no objetiva esta pesquisa esgotar a andlise da insergo dos partidos politicos na atual ordem juridica constitucional; ao contrério, almejamos disseminar, ainda mais, 0 ideal democrético nas instituigées partidérias, para que sejam estas verdadeiros canais de propagagao e de defesa das opinises e interesses piiblicos. Themis, Fortale: n. 2, p. 193 - 209, 1999 ~ 194 1 - O ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO Oatual status politico brasileiro esté alicergado em princfpios basilares que se encontram enraizados na propria natureza da concepgdo evolutiva da democracia igualitéria e presentes nas sociedades democraticas ocidentais. Democracia €, no entender de Robert Dahl, “o sistema politico em que a oportunidade de participacao e de decisio € amplamente partilhada por todos os cidadaos.”* No Estado Democratico de Direito, convivem, simultaneamente, elementos essenciais & sua propria configuragao, quais sejam: o fator politico, sendo dinamico, mutdvel, respons4vel pelo modo de exercicio do poder; de outro lado, o fator juridico, este de carter estavel, elemento estabilizador, competente para o disciplinamento da ordem, para a delimitagao das competéncias delegadas as autoridades. A Carta Constitucional de 1988 demonstra 0 arcabougo e expde a moldura do Estado Democratico de Direito vigente no Brasil, logo nos seus delineamentos iniciais, quando enumera os principios atinentes & nossa construgao estatal, que sio a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo politico, constantes do Art. 1°, O respaldo democrético, constitucional é de tio grande monta que, ainda, expressa, de forma inequivoca, a fonte de onde promana o poder estatal e a forma de seu exercicio, ou seja, se exercido por representantes sufragados, ou mesmo, diretamente pelo seu detentor originério (Art. 1°., pardgrafo tinico, CF/88). Dentre os princfpios mencionados, é de bom alvitré tecermos consideragdes acerca dos que mais proximamente esto a vicejar o estudo dos partidos politicos, sobretudo, no que pertine &filiagao e disciplina partis, nfo se olvidando, contudo, a sistematizagao inerente a todos esses vetores; em ‘qualquer organizago, dentro de um Estado Democratico de Direito. A cidadania encerraa idéia de participagao, atividade esta a ser incorporada pela sociedade, devendo ser calcada nos ideais de justica, liberdade e solidariedade, 0 que viabiliza, sobremaneira, o processo democratico. A cidadania tem inicio com o nascituro, devendo este ser cercado de toda a assisténcia social, necess4ria ao desenvolvimento da sua condigo de cidadao — sujeito de direitos e deveres que é. Sao considetadas manifestagdes proprias da cidadania: 0 exercicio do sufragio universal, verificado quando dos processos eleitorais, mas também constante nos 1 DAHL, Robert. Moderna andlise politica. Rio de Janeiro: Lidador, 1966, p. 22 Apud BRANDI ALEIXO, José Carlos, in Democracia Representativa (Conferéncia na Universidade de Brasilia). Themis, Fortaleza, v 2, n. 2, p. 193 - 209, 1999 195 instrumentos de deliberacdo (plebiscito e referendo), denotando, em titima andlise, a expressividade da soberania popular, pertencente esta a toda a coletividade; a opiniao publica, expressa pela interago social, sendo volivel, alternavel, pois, oriunda de correlagées sociais comunicativas, aptas a interagir nas relagdes suscitadas; a filiagdo polftico-partidaria, forma de ativacio da cidadania, desenvolvida dentro de uma organizacAo politica, com desempenho de atividades permanentes, atribuidas ao sujeito por delegaco ou promovidas diretamente pelo mesmo; a expansio daatividade critica, afirmando o pluralismo de idéias, benéfico a participagdo do sujeito no regime democratico, nao se limitando somente a concordéncia passiva, ao conformismo, com a opinido piiblica; e, sem exaurir a possibilidade de outros meios de participagao politica, a vigilancia civica, possibilitada por instruments diversos de representagdo de que dispdem os cidadios para frenar exorbitdncias no exercicio de delegacao do poder pelos titulares de mandatos eletivos. O pluralismo politico est4 consubstanciado na amplitude e na liberdade de participaco popular nas questées politicas do pais, sendo assegurada livre convicgo filos6fica e politica. A sociedade é composta de pluralidades de categorias, de classes € grupos sociais, econémicos, culturais e também ideolégicos. Na sociedade pluralista, ha interesses antag6nicos que se equilibram, conciliando a sociabilidade e 0 particularismo. O pluralismo politico constitui um resguardo, um antidoto, contra 0 totalitarismo. Podemos visualizar o aspecto pluralista da sociedade, na diversidade de opini6es dos individuos, na liberdade de reuniio, na economia (livre iniciativa e livre concorréncia), na cultura e nas diversas reas de incidéncia desse principio fundamental a democracia, O professor Pablo Lucas Verdti anota, no geu livro, Introdugao a Ciéncia Politica, valores essenciais a Democracia: a pafticipacao, a discrepancia e a lealdade, concebidos como elementos propulsores do aperfeicoamento democrético. A participacao denota a viabilizagao da democracia, uma contribuigao ao Proceso democratico, mediante habilitagio dos cidadaos a uma funcionalidade democratica, ao exercicio plenamente ativado da cidadania, como ocorre no poder de sufrdgio, unido a manifestagao da opiniio publica. A participagao, quando exercitada excessivamente, é desvirtuada e acaba acarretando situagdes de privilégio; se, por outro lado, tem seu alcance reduzido, vislumbra-se a marginalizagio do individuo e, até mesmo, um aspecto psicolégico-cultural de alienagao, de empobrecimento mental. Sobre a opiniio publica colhemos valiosa ligao do professor Paulo Bonavides, no seu Ciéncia Politica: Themis, Fortaleza, v 2, n. 2, p. 193 - 209, 1999 -_ —-_ —~-——-~——ese=;=s-,_<~-_-_,_-__,_ _ _,, , § _,,, E__ ;,,_ , , |_| TJ “196 “Retomando um poder livre de controle, nos sistemas onde a democracia é autenticamente a expressdo formal do consentimento dos governados, a opiniao piiblica estaria assim, em iiltima andlise, corroborando essa verdade, segundo a qual, 0 homem, com a sua persona- lidade, ainda possui — indestrutivel tecido de sua consciéncia! — uma dimensdo que nenhum despotismo, nenhuma lavagem cerebral, nenhuma opresséo maliciosamente meiga ou brutalmente ostensiva logrard nunca suprimir. Sobre esse homem néo tem jurisdigéo 0 poder imenso e sufocante das técnicas mais refinadas de interdigao do pensamento e da liberdade de opiniao.”” i | H Para acrescentar, nio deve incidir sobre esse homem, o fenémeno da psicagogia, tao propagado pelos meios de comunicacio, isto é, “a sedugdo dolosa das mentes”, que recolhe e inibe o instinto gregério do homem, induzindo-o subliminarmente. © valor da discrepancia coaduna-se com o pluralismo de idéias, que proporciona abertura as opiniées criticas, auxiliares da construgéo democrética, dissociando-se assim, de um pensamento universal hermético e conformista. A uniformizacao nao estimula o pensamento critico essencial 4 sociedade democratica; ao contrério, este, quando uniforme, permanece enclausurado. A lealdade, por sua vez, fundamenta-se na coeréncia da convivéncia social, na solidariedade, no comprometimento social, na reciprocidade social. Quando verificada em excesso, desemboca na subserviéncia, desaparecendo a cidadania e configurando uma situacio de submissio, de-servidio. A lealdade deve ser valor dirigido a instituigao e nao, a pessoa investida em fungao publica. Podemos, certamente, transplantar os valores dos princfpios determinantes da ordem juridica democratica para a ambiéncia do direito eleitoral, sobretudo, no que conceme aos organismos politico-partidérios; alids, percebemos, de antemio, a imanente e continua vinculagao do sistema eleitoral com a democracia atualmente instaurada em nosso pais, sem que possam estar desencadeados, como se fossem elos de uma mesma corrente. 2 BONAVIDES, Paulo, in Ciéncia Politica, p. 582. Themis, Fortaleza, v 2, n. 2, p. 193 - 209, 1999 197, I - A DEMOCRACIA NAS INSTITUIGOES POL{TICO-PARTIDARIAS II. 1 - A Forma Associativa de Criacao Partidéria Consoante autoriza a Constituigo Federal, em seu Art. 17, € livre a criagio, fuso, incorporacdo e extingdo de partidos politicos, resguardados a soberania nacional, oregime democratico, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana, observados ainda outros preceitos elencados na Constituigao. A génese dos partidos politicos ocorre pela via associativa, com uma dinamica ascendente, partindo das veias populares e recrutando aqueles do povo; a associagao caracteriza-se como seu nticleo existencial que provém, com exclusividade, da vontade deliberada dos cidadaos em se consorciarem para realizar atividades politicas, de cunho coletivo. ‘Num primeiro momento, assume o partido politico cardter de entidade privada auténoma — pessoa juridica de direito privado — devendo formalizar referida situagao junto ao cartério de registro civil, bem como, proceder, ao registro do seu programa e estatuto perante o Tribunal Superior Eleitoral, numa segunda fase, quando adquire faceta essencialmente publica, pois é disciplinado constitucionalmente (Art. 17, § 3°), ficando qualificado politicamente para tratar de interesses publicos. ‘Aos partidos politicos cumpre difundir seus programas e objetivos para, assim, possibilitar maior captagdo de filiados e, conseqiientemente, o fortalecimento institucional e a disseminagio de seus ideais politicos, dentro de uma amplitude territorial mais expressiva, no que tange ao alcance do caréter nacional e, ainda, 4 aritmética eleitoral. ‘Na organizagao e funcionamento dos partidos politicos deve ficar assegurada a participago paritéria de todos os seus membros, objetivando a consecucdo dos ideais e objetivos politicos partilhados. Quanto maior a receptividade e aceitaco social dos partidos, maior seré seu espectro de atuagio e a consolidacdo do seu caréter nacional; além disto, expressiva serd também a arregimentaco de filiados, nos mais diversos rincées eleitorais. perfil democratico dos partidos toma-se evidente desde a sua criago, quando proporciona aos seus membros participaco politica ativa e igualitéria, além de favorecer o aprimoramento das relagdes entre seus consorciados, vislumbrando- se, ai, a presenca de valores como a solidariedade, a dignidade e 0 respeito midtuo. O partido politico deve ter, como escopo principal, agregar seus adeptos simpatizantes em prol da persecucdo e conquista das idéias e opini6es, internamente Themis, Fortaleza, v2, n. 2, p. 193 - 209, 1999 198 propagadas, para assim, alcangar ampla aceitagdo social e, finalmente, submeter-se aos intermitentes processos eleitorais, assegurando sua manutencdo no cenério politico. Segundo a definig&io de Max Weber, “o partido politico é uma associagao que visa a um fim deliberado, seja ele ‘objetivo’ como a realizagao de um plano com intuitos materiais ou ideais, seja ‘pessoal’, isto €, destinado a obter beneficios, poder e, conseqiientemente, gléria para os chefes e sequazes, ou entio voltado para todos esses objetivos conjuntamente.”? Tomara prevalega, nos partidos politicos, o espirito democratico a ser verificado desde logo, na sua criagdo associativa, promovendo a participacio de qualquer representante do povo, sem disting&o de credo, raga, origem, sexo, cor, idade ‘ou qualquer outro tipo de discriminagio! Il. 2 - O pluralismo politico nos partidos O principio do pluralismo politico manifesta-se nas instituigdes partidérias, sobretudo, no tocante & organizagdo politica e a representatividade. Mediante os partidos politicos, fica expressa a diversidade de idéias, de ‘opiniGes imanentes a uma sociedade de tamanho sincretismo como a nossa, por isto, a necessidade de um sistema partidério também pluralista. Os partidos politicos devem zelar pela organizaco politica estatal e, em especial, pela autenticidade do sistema representativo, pois assim procedendo, estario, em tiltima andlise, cuidando também de interesses seus. Incumbe ainda, aos partidos politicos, a defesa dos direitos fundamentais albergados na Constituigao. Dispdem os partidos politicos de instrumentos de controle aptos a viabilizar a fiscalizagdo de uma representatividade escorreita e ajdefesa dos interesses coletivos, quais sejam 0 Mandado de Seguranga Coletivo-e’a Acdo Direta Declaratéria de Inconstitucionalidade, a serem propostos em matérias condizentes & defesa da atividade politico-partidéria, possuindo, para tanto, legitimidade atribuida constitucionalmente. No Ambito interno partidario, observa-se, mais uma vez, a necesséria presenga democratica, quando se sobreleva e respeita a opinido das minorias. Tanto € assim que, se houver deliberacdes acerca da dissolugao do partido, sendo esta aceita pela maioria dos membros, ainda assim, nao se consumard, persistindo o partido politico com a minoria que deseja sua continuidade. 3 InDicioxdnio ve rotirica, p. 898. Themis, Fortaleza, v 2, n. 2, p. 193 - 209, 1999 ee © ”-.-= - == ss sr rrr : 199 O pluralismo politico possibilita, por meio dos partidos, o florescimento das mais diversas e divergentes idéias e opinides; sendo assim, constituem-se os partidos verdadeiras artérias propagadoras dos anseios e interesses da coletividade e em Pprotagonistas atuantes das lutas sociais, o que contribui, sobremaneira, para o desenrolar dinamico do processo eleitoral. Encontra-se, af, o valor da discrepancia, a que alude o professor Pablo Lucas Verdi, uma vez que o manancial diversificado de idéias (pluralismo genérico, antagonismo) é verificado, de modo especial, na seiva partidaria. Denota o reconhecimento do caréter nacional dos partidos a represen- tatividade que detém por votagao junto a Camara dos Deputados, acrescida ainda, e, com plena ressonancia constitucional, a margem obtida na investidura senatorial, ou mesmo, dentre outras, desde que provindas legitimamente da via do sufrdgio universal. Cumpre-nos, agora, salientar a sutil diferenciago verificada entre o principio do pluralismo politico e o valor do pluripartidarismo, insculpido no Art. 17 daConstituigao Federal, embora estejam ambos em continua relagiio de complementariedade. Entende-se por pluripartidarismo a necessidade da existéncia plirima de canais de divulgagdo e luta pelos interesses populares, que nem sempre sio coincidentes; deste modo, incide esse valor na configuragao de um sistema partidério com varias unidades e ampla consonfncia com a idéia do pluralismo politico, sendo mesmo, conseqiiéncia imediata deste principio. Assim se manifesta o professor Favila Ribeiro sobre o entendimento de Pablo Lucas Verdi, quanto a existéncia de variados grupos sociais: “,..as vantagens da estrutura social baseada na existéncia de grupos diferenciados, admitidos nas democracias ocidentais;‘primeiramente, porque os individuos se desenvolvem melhor nos grupos sociais por eles mesmos escolhidos, do que em estruturas artificiais impostas pelo Estado e, em segundo lugar, porque a multiplicidade grupal haveré de contribuir para suavizar as contraposicées classistas, uma vez que os seus membros, avaliando as suas préprias forgas, reconhecem a necessidade de coexisténcia com outros diversos grupos, abrindo margem a didlogos que permitem a celebracao de compromissos, citando a democracia sueca “como exemplo caracteristico da Themis, Fortaleza, v 2, n. 2, p. 193 - 209, 1999 On SSSS——————™™—™—“—“‘—‘i‘i™enmnanmsrsésOSCOCOC=C™=C=ws*s«éNNRR “200 sociedade pluralista conformada aos principios do Estado Social de Direito.™ O sistema partidério brasileiro classificado como pluripartidério ou multipartidério, aquele “baseado na existéncia de pelo menos trés partidos com efetiva capacidade de representaco politica.”> O pluralismo dentro do sistema partidério revela-nos que a expansio do partido fica condicionada, sobretudo, a receptividade popular e, além disto, as circunsténcias varidveis da época, estabelecidas pela expresso da vontade coletiva, mediante o sufrégio universal. Conforme preconiza o professor Favila Ribeiro: “Deve haver espontanea flutuacHo no némero de partidos e na capacidade de sobrevivéncia de cada um, sempre em razio das reiteradas provas de apoio que recebem do eleitorado, que devem variar na razio direta das atitudes politicas que assumirem ao agrado ou ao arrepio dos interesses do povo. E necessario que esse carater pluralista tenha as suas nascentes na prépria sociedade, dela se disseminando por todos os diferentes grupos sociais, em sincronizados médulos receptivos & participagio de seus membros, no se restringindo aos cenérios oficiais com 0s procedimentos tipicamente piiblicos. A compreens&o do,pluralismo politico aparece como fator que se contrapée ao enclausuramento do universo social em uma tnica dimensio por onde se infiltram os tentéculos totalitdrios, com debilitagao da liberdade do homem, colocada em compulsiva perspectiva unidimensional.”* Desta maneira, ndo se pode conceber o sistema pluripartidério sem a indispensavel presenga interna do pluralismo politico, consagrado na diversidade de 4 RIBEIRO, Fila, i Constsunt ePartieipagto Popular, p. 70 ———. in Direito Eleitoral, p. 302 é Idem, ibidem, p. 297. Themis, Fortaleza, v 2, n. 2, p. 193 - 209, 1999

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