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QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... 1 Fazer defeitos nas memorias: para que servem o ensino e a escrita da historia? Durval Muniz de Albuquerque Junior Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras no era a beleza das frases, mas a doenga delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Pre- ceptor, esse gosto esquisito. Eu pensava que fosse um sujeito escaleno. — Gostar de fazer defeitos na frase 6 muito saudével, 0 Padre me disse. Ele fez um limpamento em meus receios. Padre falou ainda: Manoel, isso néo é doenga, pode muito que vocé carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas... Ese riu. Vocé ndo é de bugre? — ele continuou. Que sim, eu respond. Veja que bugre s6 pega por desvios, néo anda em estradas — Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros. Hé que apenas saber errar bem o seu idioma. Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de gramatica. [Barros, 1997] 1 minuto restantes na amostra 18% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... Quando a histéria surgiu como uma modalidade de conhecimento, como um género narrativo na Grécia antiga, devia atender a duas fungdes: memorizar os feitos humanos, os acontecimentos grandiosos e extraordinarios que pudessem ser realizados pelos homens; servir de exemplo, de guia para as agées futuras. Articulada a uma concepgaio de natureza humana que a considerava universal e imutdvel, esperava-se que, em circunstancias idénticas, os homens tendes- sem a repetir os mesmos erros e acertos, comportando-se do mesmo modo. A histéria evitaria que os homens viessem a cometer os mesmos equivocos por falta de exemplos e modelos a seguir (Hartog, 1999). Como bem expressa 0 tribuno e escritor romano Cicero, a historia seria a mestra da vida, memorizando exemplificando, cumprindo assim tanto uma fungdo politica, j4 que tratava de assuntos relativos as formas de governar, & maneira como chefiar e dirigir os cidad&os em momentos decisivos, como em uma ocasiao de guerra ou de ameacas externas — assunto predominante dos relatos histéricos —, quanto uma fungao moral, j que punha em discussdo os valores, os principios, os com- portamentos, os costumes, as leis, os conceitos, as paixdes e os sentimentos que dirigiam e explicavam as agdes humanas em dados momentos e situagées. A historia realizava nao sé uma avaliagao politica e moral das atitudes tomadas por aqueles considerados dirigentes das cidades, submetendo-os a valoragaéo da justeza de suas agdes, mas também uma avaliagdo da moralidade, da justica e da sabedoria politica das atitudes e das crengas dos cidadaos da propria ci- dade a que pertencia o histor, dos dirigentes e povos das cidades, dos impérios e reinos amigos ou inimigos. A histéria cumpria, assim, o designio de educar as geragées vindouras, de educar moral e politicamente as futuras elites dirigentes, transmitindo experién- cia e sabedoria para os préximos governantes. O histor era alguém que, tendo presenciado acontecimentos significativos, deles dava testemunho, buscando absorver ensinamentos, avaliando criticamente as agées realizadas, procurando extrair dos eventos as verdadeiras motivagées, para que, a partir desses exem- plos, houvesse 0 aperfeigoamento das artes de governar, de fazer a guerra, de aplicar a justiga. A historia ocupava-se dos acontecimentos do presente. Seu recurso ao passado dava-se & medida que esse ajudava a tornar inteligiveis os, 1 minuto restantes na amostra 19% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... eventos extraordinarios que o narrador presenciava e dirigia-se ao futuro & me- dida que se justificava pelas memérias e ensinamentos que transmitia. Feita para educar e moralizar, a historia atingiria melhor seus objetivos se também conseguisse deleitar e seduzir os espiritos, se, por meio da beleza de sua narrativa, do estilo em que era vazado 0 relato, prendesse a atenco da plateia que a escutava ou daquele que se dedicava a sua leitura. O histor deveria ter uma preocupagao estética com a obra, pois seu sucesso, sua capacidade de seduzir ouvidos e almas, dependia da beleza e da arte com que o relato era urdido, da destreza como essa descrigdo era apresentada, do movimento e da vivacidade que o texto exibia, A felicidade na escolha das palavras, das figuras, das imagens, a capacidade de fazer o evento narrado colocar-se a frente do ouvinte ou do leitor, além do potencial de encenar, de por diante dos olhos algo ausente, eram decisivos para que 0 texto histérico conseguisse impregnar no espirito de quem o ouvia ou lia a mensagem que queria transmitir. Como um sinete em uma placa de cera, o relato histérico deveria produzir impressdes profundas no espirito de quem o absorvia, além de ser capaz de marcar esse sujeito com impressdes indeléveis, ensinamentos e exemplos para jamais ser esquecidos. O relato histérico deveria impressionar, deleitar, memorizar, educar e moralizar (Hartog, 2003; Momigliano, 2004). A histéria, que por muito tempo foi considerada um género literdrio, uma arte, embora devesse ter compromisso com a verdade — nas palavras de Tucidides (em Hist6ria da Guerra do Peloponeso) “devesse ter a preocupagao em contar como as coisas se passaram, extraindo delas ligdes” —, vai ser des- ignada uma ciéncia ainda no século XVIII, com os pensadores iluministas. Mas serd no inicio do século XIX que, em grande medida, a pratica historiografica passa a obedecer a regras distintas daquelas que presidiram a escrita da His- téria desde a Antiguidade Classica, com o deslizamento e alteragao de sentido do topos historia magistra vitae. Em 1810, 6 criada na Universidade de Berlim a primeira cdtedra de histéria, entregue a Leopold von Ranke. Assim, inicia- se a profissionalizagéio do ensino e da escrita da histéria, tornando-a um saber universitario, com aspiragées a cientificidade e a servigo de objetivos e fungdes que sero tragados pelo Estado que promove, avalia e fiscaliza a docéncia e produgao na area. Na Prussia, a profissionalizaco do ensino e da escrita da 1 minuto restantes na amostra 20% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... historia faz parte de um processo de modernizagdo administrativa, de reforma do Estado, que se seguiu & derrota para as tropas napoleénicas. A invasdo e 0 triunfo franceses nos campos de batalha levaram as elites prussianas a avaliar a necessidade de reformar n&o apenas o preparo militar de seu exército, como também a defender a necessidade de preparar subjetivamente tanto os sol- dados quanto toda a populagéio — de onde as tropas eram recrutadas —, para que demonstrassem maior disposigdo na hora de lutar e defender o que essas elites definiam como nagéio. Como diz Benedict Anderson (2008), a adog&o do ensino de histéria nao apenas na universidade, mas nas escolas publicas surgidas justamente a partir da Revolugdo Francesa, passa a ser vista como ingrediente indispensdvel para a criag&o dessa nova comunidade imaginada, a nag&o, que deveria vir a substituir as solidariedades e relagdes comunitarias locais, em grande medida destruidas com 0 fim dos vinculos feudais e com a crescente concentragao da populagao nas cidades, devido ao desenvolvimento da economia mercantil e industrial. Constituir cidadaos que amassem a nagéo, que se dispusessem a viver e a morrer pelo que agora se nomeia de patria, torna-se a tarefa a ser cumprida pelo ensino e pela escrita da historia. A histéria continua sendo pensada e praticada, majoritariamente, como histéria politica; neste momento, porém, como a histéria dos Estados nacion- ais, como a histéria daqueles que encarnam e representam o governo das nagées. Tal como na Antiguidade, a histdria tem um carater de exemplaridade, é compreendida com um viés pedagégico, agora acentuado, porque ira integrar curriculos de instituigdes de ensino, tornar-se-a matéria escolar. Ela continua visando educar e moralizar, porém agora visa formar cidadaos que nao habitam nem so representantes ou dirigentes politicos de cidades, mas de nagdes. A historia passa a ser a histéria nacional, a historia dos grandes feitos e grandes fatos que, no decorrer do tempo, manifestaram a nacionalidade — ou o que se chama de espirito ou alma nacional — e teriam contribuido para a emergéncia, legitimidade e gléria de cada nago. Mas, diferentemente do que ocorria na Antiguidade, a histéria fala agora, preferencialmente, do passado, nao do pre- sente. Passado acabado e separado do presente, que serve, no entanto, para explicd-lo e para inspirar as agdes dos responsaveis por dirigir e, portanto, fazer 1 minuto restantes na amostra 22% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... a historia de cada nagao. A histéria visa, assim, construir 0 cidadao patriota, aquele que ama sua nagao, que dela tem orgulho por tudo de grandioso que ela fez e representou no passado, que se inspira na vida e nas agdes daqueles que foram responsdveis por sua constitui¢éo, defesa e governo: os heréis nacion- ais, que compéem o pantedo da patria, em que se devem buscar exemplos de moralidade, coragem, grandeza e sabedoria. A historia passa a ser, desse modo, um instrumento na construgao e reatualizaco das identidades nacionais, na elaboragdo e reprodugdio de narrativas da nacionalidade, das metanarrativas da nagéio, que sustentardo e daréio suporte ao novo dominio burgués que se instaura, Assim como na Antiguidade, a historia continua tendo a fungao de moralizar, de ensinar valores, de fornecer modelos de conduta, de orientar a ag&o, no sentido do aperfeigoamento humano. Além de educar, de formar cidadaos, a hist6ria deve civilizar — conceito ja existente entre os antigos, mas que ganha uma centralidade e uma importancia decisiva num mundo que, desde o sé- culo XVI, se ampliou cada vez mais com o conhecimento de novas terras e novas populagées, que viu emergir novas faces do humano, que nem sempre agradaram ou foram consideradas suficientemente civilizadas. A historia torna- se também o texto que avalia e discute o aperfeigoamento dos costumes hu- manos, tal como propugnada e praticada por Voltaire ainda no século XVIII. A historia torna-se, além de histéria da nagao, historia da civilizagao, narrativa da progressiva melhoria dos costumes humanos, saber que oferece orientagdes de conduta e que oferece exemplos, que sanciona ou elogia as atitudes e os valores daqueles que foram personagens de eventos histéricos. Embora possamos encontrar, na historiografia e nos classicos do século XIX, autores que se destacam pelo estilo da escrita, grandes narradores, a preocupagdo com a cientificidade — com dotar o saber histérico de um método que garantisse sua cientificidade, que levasse esse saber a se tornar rigoroso & metédico — vai se sobrepor as preocupagées estéticas e estilisticas que acom- panhavam a produgdio historiogréfica na Antiguidade ou mesmo a produgao erudita pés-renascentista. O carater retérico da historiografia passa a ser neg- ligenciado, quando nao explicitamente combatido, em nome da cientificidade e da veracidade que deveriam presidir o saber histérico. O historicismo alemao, a 1 minuto restantes na amostra 23% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... escola metédica alema, capitaneada por Leopold von Ranke, preocupou-se em dotar a historia de um método que fosse capaz de garantir que se chegasse a narrar o passado tal como ele efetivamente fora. O método heuristico, apoiado na critica documental, na anélise da documentagdo presente nos arquivos ofici- ais, serviria para estabelecer a versdo correta, veraz, definitiva para cada evento. Os chamados fatos histéricos — fatos Unicos, singulares, nao repetiveis, excep- cionais, grandiosos, quase sempre envolvendo razées de Estado — deveriam ser organizados cronologicamente e dispostos em uma linha do tempo, cujo fio condutor seria o progresso da civilizagao e a hist6ria nacional. A histria passa a ter, assim, a fungdo de dizer a verdade sobre o passado da civilizagaio e da nagao, servindo de inspiragdo para os homens do presente, que, com ela, aprenderiam ligées — como deveriam comportar-se enquanto cidadéios, que ideias, valores e costumes deveriam professar, praticar e cultivar — e, por ela, seriam convencidos das versées para 0 que seriam nagdo e progresso. No século XX, a Escola dos Annales e as varias vertentes do marxismo faro a critica a esse modelo historiografico, definindo-o como positivista, como a pratica de uma historia historicizante, de uma historia événementielle ou de uma historia de tratados e batalhas. Os historiadores interpelados tanto pelas grandes transformagées histéricas, pelas grandes tragédias humanas que pontuaram o século passado, quanto pelas ciéncias sociais emergentes, pelas mutagdes no campo dos saberes com a presenga crescente e marcante da sociologia, da economia, da antropologia, da linguistica e da psicandlise, vao ter que buscar novas formas de atuagdo e legitimagao para a existéncia do saber histérico. Tendo agora de concorrer, no interior da universidade, no campo académico, com novos saberes, sequiosos por espagos de poder, tendo sofrido um enorme abalo em seu prestigio por no ter sido capaz de prever ou diag- nosticar a grave crise econémica, social, politica e moral que se abatera sobre a Europa e, por extensdo, sobre todo o mundo ocidental, culminando com as duas guerras mundiais, a historia nado sé tera de adotar novos pressupostos, alterar suas regras de produgéio, como buscar refazer seu prestigio social abalado, pro- pondo-se a assumir novas fungées, a ter um novo papel na realidade partejada pela | Guerra Mundial. A vitoria da Revolugao Bolchevique na Russia, como uma das consequéncias imediatas deste conflito, e a expanséo do movimento. ‘minuto restantes na amostra 25% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... comunista internacional fazem do materialismo histérico uma possivel resposta a crise de legitimidade da historia, que seria, na verdade, a crise da histori- ografia burguesa, da historiografia positivista, que acompanhava a propria crise de sua classe e do modo de producdo por ela representado. Coincidentemente, no ano da primeira grave crise sistémica do capitalismo, 1929, os historiadores franceses Lucien Febvre e Marc Bloch langaram o primeiro numero da Revue des Annales, em torno da qual desenvolveram-se néo sé um movimento de renovagdo das regras que presidiam a produgao do saber histérico como a ar- ticulagdo de uma defesa publica da disciplina, propondo um novo papel social para a escrita e o ensino da historia. Tanto o marxismo quanto a Escola dos Annales vao procurar afastar a historia da militancia nacionalista em que se vira envolvida no século anterior. Os traumas causados pelas guerras, que tiveram na exacerbagéio do senti- mento nacional um de seus elementos desencadeadores, faréo que tanto os historiadores marxistas, que tém no internacionalismo um de seus pressupos- tos, embora muitos tenham naufragado nas dguas nacionalistas, quanto os historiadores que se articulam em torno da Rewe des Annales, cujas liderangas chegaram a participar, como membros do Exército francés, diretamente dos horrores da | Guerra — vindo Marc Bloch a ser assassinado como integrante da Resisténcia francesa e como judeu pelos nazistas durante a Il Guerra —, afastem-se de uma historiografia que se legitimava como construtora, veicula- dora e promotora do sentimento nacional. Acusada por artistas como o poeta Paul Valéry de ser o mais perigoso produto que a quimica do cérebro humano j produziu, atacada por todos os lados por literatos, politicos e praticantes de outras ciéncias sociais pelo que seria sua conivéncia com a guerra, por, sistematicamente, ter dado destaque e grandeza as batalhas, aos generais, aos tratados que a elas se seguiam, as conquistas territoriais de cardter imperialista, por ter sustentado e legitimado 0 colonialismo europeu, que levou aos choques entre as préprias nagdes da Europa, o que desembocou nos conflitos mundiais, a histéria devera ter seu prestigio social restabelecido por meio de uma reavali- aco de seu valor para a sociedade, para a vida humana. Esse valor havia sido posto em questo ainda no final do século XIX por Nietzsche, que indagava a utilidade e as desvantagens da historia para a vida humana, tal como pensada 1 minuto restantes na amostra 26% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... pelo historicismo e romantismo alemao (ver Nietzsche, 2005). De forma quase premonitéria, o filésofo alemao havia chamado atengéio para os perigos de uma histéria praticada como monumentalizagéo do passado, como antiquariato e como critica de todos os valores, aliada a um nacionalismo agressivo, militante e militarista. Por outro lado, a | Guerra Mundial significa, também, a perda da centralid- ade que a Europa tinha no capitalismo internacional. O surgimento de uma nova poténcia econémica e politica, os Estados Unidos, a emergéncia da América como o novo farol da civilizagdo mundial, leva ao questionamento da histéria eurocéntrica e etnocéntrica escrita até entdo. Oswald Spengler (1991), em livro que se tornou rapidamente um best-seller, ainda nos anos 1920, O declinio do ocidente, falava da necessidade de rever o que se chama 0 modelo ptolomaico da historiografia europeia, que tomava a Europa como centro da histéria univer- sal, considerando todas as outras civilizagdes como satélites de seu processo histérico. A prdpria ideia de histéria universal, uma histdria evolucionista con- tada a partir da Europa, sera profundamente abalada pela emergéncia de novos atores historicos de importancia mundial como a URSS, o Japao e a China, pela descolonizagéo da Asia e da Africa no pés-Il Guerra, que leva ao surgimento de novas nagées, que reivindicam — muitas vezes, seguindo o proprio modelo de comunidades nacionais ensinado pelos colonizadores — a construgao de uma histéria nacional que busca reconectar o presente com temporalidades formagées sociais anteriores & colonizagéo europeia, construindo, assim, uma historia descentrada da Europa. A ideia de histdria universal, de historia das civilizagdes, também serd abalada pelas narrativas sobre a diversidade cultural dos povos feitas pela etnografia, campo de saber que ganha grande destaque, notadamente apés a Il Guerra, com a obra de Lévi-Strauss. Sera dele uma das mais duras criticas nao sé a etnografia evolucionista, que se apoiava na ideia da existéncia de estagios civilizacionais, que hierarquizava ragas e culturas a partir de nogdes como selvageria, barbarie e civilizagdo, mas também a historia universal, que colocava a Europa como centro do processo histérico. O an- tropdlogo chega a considerar a histéria o mito de nosso tempo, ao defender a existéncia de continuidades e estruturas milenares, que seriam as responsaveis pelo ordenamento das sociedades humanas, sistemas atemporais. A histéria 1 minuto restantes na amostra 28% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... trataria da temporalidade do acidental, do consciente, do aparente, enquanto a etnografia daria conta do regular, do inconsciente, do estrutural, do permanente, © que definiria nossa propria humanidade. Essa recusa da historia sera cara- cteristica da geragéio que viveu e foi traumatizada pelas guerras (Lévi-Strauss, 2005). Os historiadores marxistas desenvolverao, nesse contexto, novas maneiras de dar sentido, de justificar a escrita, 0 estudo e o préprio ensino da histéria. N&o podendo abrir mao da historicidade de todas as formagées sociais, de to- dos os acontecimentos humanos, pressuposto nuclear do materialismo his- torico, os marxistas tendem a ver a crise de legitimidade da historiografia como fruto da pratica de uma historiografia ideolégica, de uma historiografia burguesa a servigo da reprodugao da sociedade capitalista e de todas suas injusticas. O primeiro passo para a superagdo dessa crise seria a adogdo, por parte dos his- toriadores, do método correto, que possa romper com o positivismo e com a visdo ideolégica por ele representada, do Unico método cientifico capaz de des- vendar os verdadeiros motores do processo histérico (o modo de produgdo e as. contradigGes de classe que lhe so inerentes): 0 método materialista historico e dialético. A aplicagao desse método implicava deslocar a centralidade do politico, pelo menos do politico compreendido como a agao do Estado e seus agentes, para dar lugar a centralidade das relagdes econémicas e sociais. Essa mudanga também serd defendida pela Escola dos Annales que, j4 em seu lan- gamento, traz como subtitulo “Economia e Sociedade”. A expansdo acelerada do capitalismo, a crise sistémica e as consequéncias sociais desastrosas trazidas pela crise de 1929 e, no caso dos historiadores dos Annales, o trauma acarretado pelos acontecimentos politicos recentes, desde a | Guerra até a in- vaso nazista, fazem com que se recuse 0 politico como o terreno privilegiado dos historiadores. Os historiadores marxistas nao recusarao o politico, mas, ao contrario, daro legitimidade a pratica da historia pelo papel politico que essa pode desempenhar ao ser estudada corretamente, usando o método adequado, ao poder desvendar os mistérios da realidade do presente, ajudando a com- preender como se deu a formago do contemporaneo, apreendendo o sentido do processo histérico, para nele poder atuar com maior efetividade. A histéria, com 0 marxismo, torna-se um saber militante, que tem como papel desvendar a 1 minuto restantes na amostra 29% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... verdade dos fatos passados e construir o futuro, encontrando, quase sempre, 0 modo de produgdo e a luta de classes como o cerne verdadeiro dos aconteci- mentos. A histéria passa a ter a atribuigdo de formar, hegelianamente, conscién- cias, de desalienar, de permitir que os sujeitos historicos adquiram a consciéncia de que forgas inconscientes movem a ordem social e suas proprias agdes. A historia escrita a partir do materialismo histérico romperia com a ideologia bur- guesa que sustentaria as versées da histéria deturpadas por interesses da classe, pondo a nu suas contradigées e inverdades, permitindo que, aparel- hados com o saber histérico, os sujeitos que se constituiam nesse préprio pro- cesso de politizago e desalienago trazido pelo aprendizado da histéria pudes- sem atuar no sentido de mudar a propria historia, de acelerar e precipitar seu movimento na diregao da nova ordem social desejada — uma ordem mais justa, mais humana e mais fraterna, sem exploragao nem miséria. A histéria, para os marxistas, se justifica e se legitima por ajudar no processo de preparagdo das condigées subjetivas para a realizagdo da revolugdo. A pratica da historia reali- zada pelos historiadores marxistas ter grande importancia ao trazer, para esse campo, outros atores e agentes, ao trazer as camadas trabalhadoras para 0 cerne da histéria, A medida que defende que é o trabalho que institui o social & define o préprio humano. As lutas, contlitos e movimentos sociais, inicialmente também representados por suas liderangas e seus partidos, em uma espécie de reduplicagao da légica da historiografia que criticavam, que também centrava a histéria em grandes homens e nas instituigdes, e, mais recentemente, rompendo com essa visdo e trazendo para a narrativa historica todos os personagens rep- resentativos dos chamados de baixo, todos os vencidos, aqueles que con- stituem 0 que seriam as camadas sociais subalternas, tornam-se a tematica privilegiada dessa historiografia e o motivo para sua legitimidade social. Os historiadores dos Annales, embora tenham uma recusa a subordinar a histéria a um papel militante, néo deixam de reconhecer o carater politico da histéria, em que a nagdo permanece sempre como o horizonte de sua produgao. O préprio Fernand Braudel (2009), em suas Ultimas obras, volta a tomar a Franga e a nacionalidade francesa como referéncia. Creio que a forma como compreendemos hoje para que serve a histéria e que fungdo social tem o es- crever, 0 estudar e o ensinar historia advém, em grande medida, das reflexdes ‘minuto restantes na amostra 31% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... feitas pelos historiadores dos Annales, desde os livros pioneiros de Febvre (1989) e Bloch (2002), até aqueles publicados a partir dos anos 1960 — sob impacto dos movimentos de contracultura; das revoltas estudantis, com seu Apice no maio de 1968; do descrédito crescente do marxismo, notadamente em sua visao oficial dos partidos comunistas; das ameagas de exterminio da humanidade pela Guerra Fria e a corrida armamentista; das ultimas guerras de descolonizag&o como as guerras da Argélia e do Vietna; da centralidade das discussdes em torno do papel que a linguagem, a imagem, a comunicagao, as tecnologias audiovisuais tém para a construgao do que chamamos de realidade e para a elaboragao, veiculagaio e guarda das préprias memorias, 4 medida que os meios de comunicagao de massa passaram a ter uma presenga decisiva em todas as sociedades. A esses acontecimentos acrescentaram-se a debacle dos regimes socialistas do Leste europeu, as mudangas estruturais no capitalismo, a chamada globalizacdo, o que David Harvey (1992) chamou de compressiio es- pago temporal, levando a uma circulagéio mais intensa de capitais, informagées, produtos e formas culturais, populagdes, além da emergéncia do que se vem chamando de pés-modernidade, que se constitui, no plano do pensamento, em uma critica aos pressupostos iluministas que estiveram na base de muitas for- mas de pensamento no Ocidente. E a partir dessas e muitas outras mudancas significativas no proprio processo histérico e de transformagées paradigmaticas no campo do conhecimento que devemos refletir sobre para que serve a histéria hoje, que utilidade social podem ter a produgao e o ensino do saber histérico em nossos dias. Aprendemos com os historiadores dos Annales que a historia se faz a partir do e para o presente. Ao contrario do que defendiam os historiadores vinculados as escolas metédicas, o passado ndo faz sentido em si mesmo e nao esta des- conectado do contemporaneo. O passado nao possui uma verdade fechada, mas esta sujeito a permanente reelaboragao de sua inteligibilidade a partir das. questées que Ihe sdo formuladas a partir das preocupagées, das condigées his- toricas do presente em que é interrogado, estudadbo, analisado, ensinado. A his- t6ria produzird vers6es distintas para o passado, tratando-o sob novas perspec- tivas, dando-Ihe novas abordagens, & medida que as préprias transformagées histéricas assim requeiram. O passado, portanto, é elaborado, pensado e minuto restantes na amostra 32% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... tratado na sua relagdo diferencial com o presente; ele existe nessa escavacdo que se faz a partir do contemporaneo buscando a construgao das fronteiras que separam as duas temporalidades. Uma das fungdes sociais da historia é con- struir 0 passado, dotando a sociedade de uma visao do tempo que va além da- quilo que se define e se pensa como presente. A histéria serve para que possa- mos realizar, no plano do conhecimento, do pensamento, do imaginario, da meméria, aquilo que nao podemos fazer no plano da realidade e da empiria: sair do presente, ausentar-nos desta temporalidade que nos cerca, olhar este tempo de fora e ter com ele uma relag&o de distanciamento, de estranhamento, ter, dele, uma visdo perspectiva. A histéria nos permite atravessar 0 rio dos tempos, como dizia Jules Michelet (2004); o historiador tem 0 compromisso de atraves- sar 0 rio da morte, um compromisso com os mortos, de trazé-los novamente a vida para que suas ideias, agdes e gestos continuem repercutindo no presente, instaurando um didlogo tenso e diferencial com 0 tempo e os vivos que somos. A historia tem a importante fungao de desnaturalizar o tempo presente, de fazé- lo diferir em relag&io ao passado e ao futuro, no mesmo momento em que torna perceptivel como essas temporalidades se encontram, como elas s6 existem emaranhadas, articuladas em cada instante que passa, em cada evento que ocorre. A histéria serve para que se perceba o ser do presente como devir, como parte de um processo marcado por rupturas e descontinuidades, mas também por continuidades e permanéncias. A escrita e o ensino da histéria nos con- vidam a fazer uma viagem para fora de nosso tempo, nos propdem a recuar até © passado e de ld olhar para o que pensamos ser nosso presente, podendo, assim, ter uma visdo diferenciada, de fora, que nos permite vé-lo sob novos con- tornos. A histéria possui, assim, essa fungdo |udica de brincarmos de sair do presente, de tentarmos imaginar como viviam, como sentiam, como pensavam os homens e mulheres do passado. A histéria nos permite, pois, a relativizagéo de tudo aquilo que define nosso tempo, o aprendizado de que aquilo que somos 6 apenas uma forma de ser entre muitas, o conhecimento de como chegamos a ser 0 que somos e de que essa forma ou essas formas no sao as tinicas possiveis. A histéria nos possibilita entender o presente como diferenga e o tempo como diferenciador, além de perceber que o ser do tempo se diz na difer- enga. Portanto, uma das tarefas contempordneas da historia é ensinar e permitir minuto restantes na amostra 34% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... a construgao de maneiras de olhar o mundo, de perceber o social, de entender a temporalidade e a vida humana. A histéria nos ensina a desnaturalizar, a ter um olhar perspectivo e a atentar para as diferengas, relativizando nossos valores pontos de vista. A histéria, desde a Antiguidade, desempenhou o papel — comum a todos aqueles saberes que na modernidade foram agrupados sob o nome de cién- cias humanas — de formar subjetividades, de produzir a propria humanidade daqueles que sao definidos como humanos. A histéria, quando se torna matéria escolar, explicita esse papel de formadora de sujeitos, de construtora de formas de ver, de sentir, de pensar, de valorar, de se posicionar no mundo. Embora tenda a ser socialmente desqualificada — porque seria um saber desprovido de uma utilidade imediata, mas no uma tecnologia a servigo da fabricagaio de artefatos —, a historia possui a utilidade de produzir o artefato mais complexo e mais importante da vida social: 0 préprio ser do humano, a subjetividade dos homens. Quando, muitas vezes, somos interpelados com certo ar de desprezo sobre para que serve o que ensinamos ¢ o que escrevemos, devemos responder que a histéria serve para produzir subjetividades humanas, para humanizar, para construir e edificar pessoas, para lapidar e esmerilhar espiritos, para fazer de um animal um erudito, um sabio, um ser néo apenas formado, mas informado, de um ser sensivel fazer um ser sensibilizado. Fabricar pessoas no mundo de hoje, como em tantas outras épocas, no ¢ tarefa das mais féceis. Mas que tipo de pessoas a histéria se propde a formar hoje? Que modelos de subjetividade so veiculados ou devem ser veiculados, de forma majoritaria, pela historiografia e pelo ensino da histéria? A histéria implica 0 aprendizado da alteridade, o aprendizado da possibi- lidade da existéncia de outras formas de sermos humanos, o aprendizado da viabilidade de outras maneiras de se comportar, da existéncia de outros valores, de outras ideias, de outros costumes que ndo aqueles dos homens e mulheres contempordneos. A histéria permite o aprendizado da tolerdncia para com o diferente, com o estranho, com o distinto, com o distante, com o estrangeiro. Para isso, a historiografia contempordnea aprendeu com a antropologia e com a etnografia a recusar a concepgao iluminista de natureza humana: uma natureza universal, tendente a se desenvolver na diregao de um telos predefinido, em que 1 minuto restantes na amostra 35% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... dadas formas de existéncia seriam tomadas como formas inferiores aquela que seria a forma superior e paradigmatica. didlogo da histéria com a antropologia, com a etnografia e com a psi- canilise levou ndo somente a que se desse importancia e destaque a propria diversidade das formas de vida, dos tipos de organizac4o social, dos valores, dos costumes, dos habitos, das praticas e dos simbolos que informaram a vida social das sociedades do passado, notadamente entre as sociedades que pretensamente viviam em uma pré-histéria em relagdo aqueles que viviam na historia, mas também a diversidade constituinte das sociedades e culturas de nosso presente, de nosso tempo. A histéria nos ensina a prestar atengao no outro, a medir nossa distancia e nossa diferenga em relagdo a ele, ndo para recusé-las ou para construir uma hierarquia entre elas, mas para aceitd-las em sua esséncia. Foi preciso que a historiografia rompesse com 0 historicismo sua busca por descobrir sempre o mesmo rosto do humano, em qualquer época e lugar, projetando sobre o passado a definigéo do humano ou o rosto que era dito como humano no presente para, constatada a diferenga, procurar anulé-la, repondo a semelhanga, fazendo do personagem do passado um de nés, ou pelo menos a promessa de ser, no futuro, um de nés ou de defini-lo como um ser ainda em déficit, em insuficiéncia em relagao ao estagio de civilizagdo que o pre- sente, a sociedade e a cultura, da qual falava o historiador, para diagnosticar que os personagens do passado ainda viviam em estado de selvageria, de barbarie, ainda viviam na menoridade, na alienago, na inconsciéncia, eram retardatarios, atrasados, tradicionais, conservadores, anormais, anémicos etc. A histéria nos permite acompanhar a genealogia do humano em sua diver- sidade e nao em sua identidade, nos permite fazer a arqueologia das praticas, das relagdes e dos saberes que produziram diferentes formas de se ver, se dizer e ser humano. A histéria, que durante muito tempo esteve comprometida com © principio da identidade, que se apoiava e apoiava discursos preocupados em tragar uma identidade entre o passado e o presente, entre o ser do passado e um ser do presente — seja ele o ser da cidade, do Estado, da nagdo, do povo ou da raga —, nos dias de hoje, tem o compromisso de identificar, descrever, compreender e explicar a alteridade, ndo para desfazé-la ou anula-la, mas para proclamar o direito de sua existéncia e o necessario respeito que a ela devemos ‘minuto restantes na amostra 37% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... devotar. A historia, como formadora de subjetividades, é um saber e uma pratica inseparavel de discussGes éticas e politicas. O ensino e a escrita da historia implicam sempre a tomada de posigdo politica e a defesa de valores, mesmo quando no se esté atento para esses aspectos. A histéria que se escrevia e ensinava em nome da identidade, da construgao do idéntico, que fazia a difer- enga retornar a semelhanga tal como requerido pelo pensamento platénico e hegeliano, parece ter hoje a fungao social de nos ensinar a conviver com a diver- sidade, a respeitar a alteridade e a diferenga, que 6 a condigdo exata do mundo em que vivemos. Se a historiografia brasileira, de forma bastante peculiar, pensou a identi- dade nacional por meio da constatagao das diferengas internas que dilaceravam a nago, se o discurso da identidade no Brasil fez da mistura, da mestigagem, um principio de identidade que, portanto, j4 nasce, em grande medida, ancor- ado em um paradoxo, j4 que proclamava 0 misturado, 0 mestigo, logo, o nao idéntico a si mesmo como principio de nossa identidade — identidade figurada por um verdadeiro oximoro —, hoje nao é apenas o Brasil ou as sociedades nas- cidas das conquistas coloniais europeias que se constituem como sociedades misturadas, multiplas, diversas. Todos os paises, inclusive os mais refratarios & integragéo com outros povos, sofrem hoje, pelas injungdes do processo de globalizagdo, essa diversificagéio e complexificagao crescentes no sé da constituigao étnica de suas populagdes como também de suas organizagées sociais e dos aspectos culturais. A histéria tem, assim, um importante papel a exercer nesse mundo onde a alteridade, a multiplicidade e a diversidade social e cultural exigem um preparo subjetivo para a convivéncia com o diferente, sem © que temos e teremos crescentes manifestagdes de intolerancia, xenofobia, até mesmo a revivéncia de discursos eugenistas e segregacionistas, além de praticas de agresso, violéncia e exterminio. Saber aceitar e conviver com a diferenga, aceitar a opinido e o ponto de vista diferente como tendo direito a existéncia, representar a formagao de subjetividades mais bem-preparadas para a convivéncia democratica. A histéria serve para formar nao apenas subjetividades, mas para formar cidados, membros da convivéncia ptiblica, membros do espago publico, prep- arados para viver em uma realidade constituida pela agonistica dos interesses 1 minuto restantes na amostra 38% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... e opinides divergentes. A histéria fornece argumentos, informagées, prepara 0 individuo para o aparecer em publico, o ser em piiblico, o ser em sociedade, que ird se defrontar com a divergéncia. A histéria foi, por muito tempo, inquirida acerca do uso que fazia de artificios e recursos retéricos, porque, a semelhanga dos discursos juridico e politico, ela 6 um discurso que constréi enredos, trama fatos, e que, para isso, organiza e expde argumentos que visam convencer o ouvinte ou 0 leitor de dadas leituras da realidade, de dadas verdades sobre 0 tempo e 0 mundo, do acerto e da justeza de dadas posigées politicas e mo- rais. A histéria forma, pois, pessoas preparadas para argumentar, para defender ideias em pUblico, para comparecer ao mundo publico em defesa de teses & conviegées, apandgio das sociedades democraticas contemporaneas. A histéria nos fala dos mortos, nos lembra, portanto, do nosso carater mortal, da finitude que 6 condigéo mesma da nossa existéncia, aquilo que, para Heidegger (2006), definia a prépria condigao do ser humano, um ser para a morte. Mas, ao mesmo tempo, a historia é uma das maneiras encontradas pelos homens de lidar com sua condig&o de mortal, foi uma das maneiras que os homens inventaram de tentar vencer a morte, de continuar vivendo apesar de ter morrido. Entrar para a historia passou a ser uma forma de tornar-se imortal, inesquecivel, de continuar vivendo por meio de feitos, de fatos e de ideias. Phil- ippe Aries (1992) refere-se a luta que cada vez maior numero de grupos sociais empreendeu, no século passado, reivindicando o direito de figurar na historia, de escrever a prépria histéria. Ahistéria como saber surge na sociedade grega, em que a imortalidade era conseguida por meio do renome que se conseguia na vida publica, da fama que ‘se construia em vida e que se deixava apés morrer, de preferéncia por meio de um ato heroico, a servigo da cidade. Fama, renome, ficar na mem6ria era privil- égio dos cidadaos, dos homens livres e gregos, aqueles que efetivamente con- tavam na sociedade. As mulheres, as criangas, aos estrangeiros e aos escravos nao estava reservado um lugar na fama ou na meméria, portanto, também Ihes faltava um lugar na histdria. A histéria labuta entre a meméria e o esquecimento, entre a morte ea vida, entre o que foi e o que 6, em busca do que ser. A histéria nos prepara subjetivamente para aceitar a finitude, & medida que nos fala que 1 minuto restantes na amostra 40% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... tudo um dia se acaba — os maiores e mais poderosos impérios um dia entram em ruina, e sé as ruinas ficam para deles dar testemunho. Temos grande dificuldade em aceitar nossa condigéo mortal e a condigéio temporal de todas as coisas, que 6 0 préprio objeto do saber histérico. Temos a tendéncia, talvez pela formago religiosa que costumamos receber, de buscar a eternidade das coisas. Temos a propensdo a sermos, por isso mesmo, conservadores em relagdo as mudangas e transformagées. Queremos garantir que © futuro ser4 uma continuidade do presente, quando com ele estamos satisfeitos. A histéria nos permite fazer 0 aprendizado da mudanga como con- digéo de nossa existéncia e de todas as coisas. A historia serve para formar subjetividades menos reacionérias as transformagées, as rupturas, as descon- tinuidades, ao cardter finito de todos os entes. A historia nos possibilita fazer © aprendizado da perda, do luto, o aprendizado da nossa propria condigao de ‘seres temporais, o aprendizado da efemeridade das coisas. Nietzsche chamou a atengdo que esse talvez fosse um dos perigos que uma cultura contaminada de historia poderia trazer para a vida, ou seja, a consciéncia da finitude, do cardter passageiro de todos os nossos feitos, poderia levar-nos & inagdo, a desejar 0 nada, transformando-nos em niilistas, paralisados pelo que seria o sem sentido da existéncia, pela ruina prometida para todos os mais sofisticados monumen- tos que os homens viessem erguer. Creio que nada est isento de perigos. Tudo na vida humana 6 perigoso. O préprio Nietzsche disse 0 quao perigoso seria também praticarmos uma histéria que desconhece o devir, que monumentaliza © passado e entulha o presente com seus monumentos. A historia, ao nos prep- arar para conviver com a finitude, pode nos falar da urgéncia do préprio viver, pode nos levar a valorizarmos o tempo que temos. A historia nao deve ser a valorizagéo do passado em detrimento do pre- sente; nao podemos ser hoje aquelas figuras de historiadores tao comuns na literatura europeia do fim do século XIX e inicio do século XX: um ser exilado de seu tempo, um ser solitario por ser incompreendido pelos de seu tempo, incapaz de manter com eles qualquer comunicagao, jA que os vé como pouco merecedores de atengdo, como seres vulgares sem a mesma gloria dos homens. que encontra nas paginas da histéria, um ser apegado a tudo que foi e que se esquece ou da de ombros para aquilo que ocorre em seu presente, um ser fe- ‘minuto restantes na amostra 41% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... chado em sua biblioteca ou que passa dias a chafurdar arquivos, esmerando-se e sentindo enorme prazer ao esmagar tragas e baratas que devoram seus pre- ciosos documentos, um ser mais apaixonado por Napoledio ou por César do que pelo parceiro ou parceira que Ihe aguarda em sua volta da pesquisa. A histéria pode, dependendo da forma como é escrita e ensinada, nos levar a valorizar 0 tempo presente, a vida presente, nos fazer perceber a necesséria intensidade com que temos de viver a vida, como devemos valoriza-la, nao ficando alheios ao que nela se passa, procurando nela intervir, buscando por meio dela con- formar um sentido e um significado para a existéncia, que nao estard dado. A histéria contempordnea nao mais pressupée a existéncia de um sentido imanente, de uma teleologia inscrita no proprio processo histérico. Sabemos hoje que a historia tera os sentidos que nela colocarmos. Se a vivéncia, se a ex- periéncia da historicidade, da temporalidade, so pode ser individual, os sentidos que atuam na histéria também partem dos individuos, mas tornam-se coletivos, transcendem a esfera da individualidade ao se encontrarem, se conflitarem, se articularem, se associarem, coexistirem na vida em sociedade. Mas esses senti- dos nunca estdo dados, eles séo sempre uma construgdo social, porque, quando 0 individuo define seus objetivos, define que sentido quer dar a sua ex- isténcia e 0 faz dentro de condigées sociais e culturais dadas. Os individuos fazem e inventam escolhas, mas sempre a partir de limites e possibilidades es- tabelecidos pela ordem social. A histéria serve, portanto, para que possamos aprender como podemos dar sentidos diversos e distintos daquilo que nos 6 im- posto como nosso destino e destino da humanidade. A historia ensina que os humanos marcham errantes sobre a terra, sem destino prévio tragado, mas, por isso mesmo, podem tragar para si mesmos todos os destinos possiveis. A his- téria, ao focalizar inimeras formas de resisténcia humana a realizar um sentido para suas vidas e para a histéria, ao trazer para cena diferentes personagens — aqueles que se singularizaram, que se destacaram, que se tornaram conheci- dos, que foram registrados, escritos, nomeados, punidos e castigados porque tentaram dar sentido diversos a sua existéncia e ao mundo, que se rebelaram contra Deus, a natureza, 0 destino, a ordem, o sistema, as estruturas e contra todas as instituigdes e categorias que definiram ao longo da histéria o que seria © necessério e 0 irrecorrivel da existéncia dos homens —, nos propicia o 1 minuto restantes na amostra 43% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... aprendizado da liberdade, da necesséria e constante luta pela liberdade que, afinal, é 0 proprio ser de sua existéncia. A historia serve para que possamos for- mar subjetividades mais livres, mais desejosas, preparadas e dispostas a emp- reender a luta permanente e diuturna em busca do ser livre, ser que so existe enquanto pratica permanentemente afirmada e retomada. A histéria que pratica- mos hoje, ao questionar o poder, a exploragdio e a dominagdo, ao denunciar as formas de escravidaio, de repressiio, de vigilancia, de disciplina e controle, que nos constituiram e que constituiram nossa histéria como humanos, nos ensina 0 desejar, 0 pensar e o praticar a liberdade. Liberdade néo como aspiragéo metafisica, como utopia que realiza a si mesma, mas como pratica concreta his- toricamente situada e possivel. Liberdade como luta constante, como conquista que se faz e se perde todo o tempo, jé que a liberdade na vida em sociedade sera sempre relativa — a liberdade de cada um acaba onde comega a do outro; espacos de liberdade sdo conquistados, abertos e situados dentro de uma or- dem que sempre os vem limitar e reduzir. Parafraseando 0 poeta Manoel de Barros (1997), eu diria que a histéria tem hoje a missao de fazer defeitos nas memorias, de fazer as memérias errarem, ja que a histéria tem uma relacao diferencial e conflituosa em relagdo as memérias, notadamente aquelas memérias que se tornam oficiais, monumentalizadas, cristalizadas, motivo de comemoragées e efemérides. A pesquisa historica visa, por meio da critica, afastar-se das verses consagradas do passado, fazendo aparecer seus defeitos, seus pontos de sutura, fazendo aparecer as costuras malfeitas, os nds forgados, os pontos de esgarcamento das tessituras do pas- sado. Os historiadores devem fazer as memédrias errarem, no sentido de que elas devem ter seus sentidos deslocados, devem ter seus lugares de inscrigao. alterados. O historiador tem a tarefa de desfazer os enredos dessas memérias, retrama-las, fazendo o que Paul Veyne (1989) chamou de um “inventdrio das diferengas”. O historiador contemporaneo 6 aquele que penteia as historias oficiais a contrapelo, tal como aconselhava Walter Benjamin (1996). A histéria, nos dias de hoje, tem consciéncia de que seu jogo se faz entre a lembranga 0 esquecimento. A histéria serve para que se produza o esquecimento de dadas versées do passado, de dadas memérias: a historia lembra também para produzir o esquecimento. O historiador de hoje néo se dedica a cultuar ‘minuto restantes na amostra 44% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... as memérias. Sabe que deve ter com elas uma relagéo mediada pela prob- lematizagao, pela interrogagdo, pelo questionamento. O historiador desfaz as memérias e as refaz usando o aparato conceitual aprendido em sua formagao. As memérias so desfeitas para serem refeitas no discurso do historiador, dis- curso conceitual, competente e legitimado socialmente para violar as memérias. e fazé-las falar, muitas vezes, aquilo que nao quiseram dizer, pelo menos, conscientemente. O historiador néo é aquele que se deleita com a beleza das memérias, mas aquele que se fascina quando essas adoecem, quando entram em estado febril e deliram, quando emergem com os sentidos alterados, quando advém como fala outra. A histéria faz as memérias entrarem em crise para que partejem novos sentidos e novos significados. O historiador 6 aquele que in- funde novas vidas aquelas memérias, aquelas narrativas do passado que amea- gam morrer por repetigdo, recorréncia e cristalizagao. A historiografia contemporanea nao tem mais pejo em admitir que uma das fungdes da escrita e do ensino da histéria é nos deleitar, 6 nos dar prazer, é nos divertir, no duplo sentido da palavra, ou seja, nos tirar da rotina, retirar nossos sentidos do entorpecimento trazido pela repeti¢do das mesmas experiéncias no cotidiano, como o de nos levar a mudar a trajetoria de nossas maneiras de ver, de pensar e de agir. Paul Veyne (1998) defende que a pratica da escrita e do ensino de histéria se justifica pelo prazer que ela oferece a quem a realiza ou a quem a Ié ou escuta. A dimensao artistica, retdrica, poética e literaria de nosso oficio volta a ser valorizada, em uma sociedade em que a critica a centralidade do trabalho e a necesséria utilidade instrumental de todas as coisas vem sendo feita. Se néo devemos abrir mao do carater cientifico de nossa disciplina — cientifico no sentido de ser um saber metodizado, que obedece a regras de produgao coletiva e institucionalmente definidas, que implica o aprendizado de um saber fazer —, isso nao pode implicar o desconhecimento de que nosso oficio tem como resultado final a produgao de uma narrativa. As tecnicalidades pedagégicas, por exemplo, ndo podem elidir o fato de que uma boa aula de historia esta assentada na capacidade do professor em urdir uma boa narrativa, em levar os alunos a construirem sentidos e significados para textos e relatos jA tramados. A histéria teria, assim, mais essa fungao social, a de nos fazer apren- der a narrar, a contar historias, a enredar fatos, atividades humanizadoras por 1 minuto restantes na amostra 46% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... exceléncia. Aprender a contar histérias, aprender a reunir palavras em frases e, com elas, criar sentido para um outro 6 um passo decisivo em nosso processo de humanizagao; por isso todas as comunidades humanas contam histérias, narram eventos para suas criangas. O ensino da histéria, nos anos iniciais da formagdo de qualquer pessoa, tem também essa fungdo do aprendizado da arte de contar, da arte de narrar. Além disso, pode-se aprender com a historia a produzir beleza com a narrativa, a criar deleite e prazer estético com 0 uso das. palavras e dos eventos do passado. A pratica da historiografia, assim como a da poesia, requer o andar por desvios, 0 provocar desvios em relagdo a verdades consagradas e solidificadas sobre 0 passado, pois é nos desvios que se encontram as maiores surpresas e, diz 0 poeta, os araticuns mais doces. O historiador hoje é aquele que desvia e desencaminha o sentido j4 consagrado, que profana todos os {dolos, que dessacraliza o que ha de mais sagrado. Espero que este texto, assim como padre Ezequiel fez com Manoel de Barros — “Ele fez um limpamento em meus receios.” (Barros, 1997) —, faga um limpamento nos receios que os aprendizes do oficio de historiador ainda tém em romper com dados condicionamentos, com dadas visées e esquemas prévios de interpretagao da histéria, que fun- cionam sempre como portos seguros, garantias contra a exposigao ao perigo de inventar 0 novo e o passado a partir de novos pressupostos, abordando-os a partir de pontos de vista ainda nao consagrados e nao aceitos plenamente por seus pares. Talvez, e isso pode ser inevitvel para aqueles que praticam um oficio como 0 nosso, vocés possam se sentir profissionais que carregam para © resto da vida, como os poetas, certo gosto por nadas. Pensem muitas vezes que aquilo que fazem pouco interessa para os outros, pouca utilidade tem para © social. Mas, nessas horas em que as incertezas assaltam, basta pensar no enorme prazer subjetivo que essa pratica Ihes da, e estar justificado. Caso ndo sinta esse prazer do e no oficio, vocé esta apenas no lugar errado; néo 6 o oficio que deve mudar, mas vocé que deve mudar de oficio. Nao adianta, nessas horas, colocar defeito no oficio: vocé é que no foi feito para ele ou por ele, ou, quem sabe, foi feito de maneira defeituosa. 1 minuto restantes na amostra 47% QUAL O VALOR DA HISTORIA HOJE? (PORTUGUES... Referéncias bibliograficas ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Sao Paulo: Companhia das Letras: 2008. ARIES, Philippe. O tempo da histéria. Lisboa: Relégio d’Agua, 1992. BARROS, Manoel de. O livro das ignorangas. Rio de Janeiro: Record, 1997. BENJAMIN, Walter. Sobre 0 conceito da histéria. In: Obras escolhidas I: magia, técnica, arte e politica. Sao Paulo: Brasiliense, 1996. p. 222-232. BLOCH, Marc. Apologia da histéria ou 0 oficio do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. 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