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Cuico BUARQUE i ‘ ; | Estorvo de EDITORA RECORD ; RIO DE JANEIRO + SAO PAULO | | 1991 by Chico Buarque Revi Ana Maria Barbora, Maria Eugénia Regis Reatizagi Ediciones Sinagma, 8.1 Dirsitos exclusivos de publicago em lingua portuguesa para © Brasil uqotidos pela DITORA SCHWARCZ, LTDA. | Roa Bandera Paulista, 702) 72 (01332.002-Si0 Paulo - SP ; ax: (O11) 866 0814 | Para esta edict DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVICOS DE IMPRENSA. 5.4. Ris Argentina T71- 20921 ~ 380 Rio de Janeiro - RI Tel 585 20 0 ‘Namros atrasados | altora Record mantém as suas pubicagoes em estogue por um period de se 6 eves aps 0 seu revolhinento das baness, desde que 0 produto no se can eres fi recahidas sao veritas pelo prego da ltima edo colocada 7p ‘Sn bancas, Para alas proceda da seguinte forma, 1 TLNas bancas 1 ‘Atrvés do joralero oy do distibuidor da sua cidade | 2 Eemando Chima Distbuidors ; Dirigindo-e on escrevendo para os suites enderesos ‘Atendimento nacional jo de Janeiro: Rua Tesoro da Silva, 821 ~ Graja. 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Deve ser coisa importante, pois ouvi a campai- nha tocar varias vezes, uma a caminho da porta e pelo menos trés dentro do sonho. Vou regulando a vista, ¢ comeco a achar que conheco aquele rosto de um tem- po distante e confuso. Ou sendo cheguei dormindo ao ‘otho magico, ¢ conhego aquele rosto de quando ele ain da pertencia 20 sonho. Tem a barba. Pode ser que cu ji tenha visto aquele rosto sem barba, mas a barba é tio s6lida e rigorosa que parece anterior a0 rosto. O terno ea gravata também me incomodam, Bu ndo co- nheco muita gente de temo e gravata, muito menos com 08 cabelos escorridos até os ombros. Pessoas de terno e gravata que eu conhego, conheco atris de me sa, guiché, nao so pessoas que vém bater & minha por- tu. Procuro imaginar aquele homem escanhoado ¢ em mmisa, desconto a deformaco do olho ma gico, ¢ € sempre alguém conhecido mas muito dificil de reconhecer. E 0 rosto do sujeito assim frontal ¢ es ico embaralha a bem um rosto, é mais a identidade de um rosto, que difere do rosto verdadeiro quanto mais vocé conhe mangas de inda mais o meu julgamento. Nao € u cea pessoa. Aquela imobilidade € o seu melhor disfar- ce, para mim: Recuo cautelosamente, andando no apartamento co- mo dentro d’agua. Escorregarei de volta para a cama, ¢ qreio que 0 sujcito acabard desistindo, convencido de que nio ha ninguém em casa, Mas nem bem ultrapasso adivisGria imaginaria do meu quarto-e-sala, ¢ a campai- nha toca outra vez. Nao posso dormir com aimagem da. quele homem fixo na minha porta. Volto 20 olho magi co. Hei de surpreender uma imprudéncia dele, uma im. pacigncia que o denuncie, que me permita ligar 0 gesto 2 pessoa. Mas enquanto estou ali ele nZo toca a campai- nha, nao olha o rel6gio, nao acende um cigarro, no ti 1a olho do olho magico. Agora me parece claro que dle esti me vendo 0 tempo todo. Através do olho magt- co ao contratio, me vé como se eu fosse um homem c6n- cavo. Assim ele me viu chegar, grudar 0 olho no buraco ¢tentar decifré-lo, me viu fugit em camera lenta, 0s mo- ‘vimentos largos, me viu voltar com a fisionomia con: trafdae ver que ele me vé e me conhece melhor do que ‘eva le. Porque eu sei apenas que ele no é 0 que pre- tende aparentar, um vendedor, um administrador, um distraido. E ele me conhece 0 suficiente para saber que eu poderia até receber um estranho, mas nunca abriria 2 porta para alguém que de fato quisesse entrar ‘Agora ele jd percebeu que € instil, que nao me en- gana mais, que eu nao abro mesmo, que sou capaz de ‘morrer ali em silencio, posso virar um esqueleto em pé diante do esqueleto dele, entéo abana a cabeca e sai do meu campo de visio. E € ness dltimo vislumbre que o identifico com toda a evidéncia, yoltando a esquece- Jo imediatamente. S6 sei que era alguém que ha muito tempo esteve comigo, mas que cu nao deveria ter vis- to, que eu nio precisava rever, porque foi alguém que um dia abanou a cabega € saiu do meu campo de vi sfo, hd muito tempo. 2 ‘0 sono esta perdido. Da janela do meu sexto andar posso espreitar a calgada do edificio. © homem logo parece, para no meio-fio € nao leyanta os olhos para a pinha janela, como cu faria se fosse ele. Com tanto tempo de espera no meu corredor, ele teria de arriscar mais uma olhadela. Qualquer um olhatia para 0 sexto ‘andar, mesmo sabendo que € intiti olharia para con- firmar que nao hé uma luz acesa, que nao hd uma toa- tha estendida no parapeito, olharia automaticamente, por um cacoete da esperanca, S6 no olharia se sou- pesse que esti sendo olhado. Ble sabe que o vejo ace- par para um téxi, embarcar no banco da frente ¢ man dar pegara primeira direita. Enfio uma roupa as pres- ‘sas, calculando que neste momento ele esteja parado no sinal vermelho da outra esquina, Calculando que eu cesieja enfiando uma roupa as pressas, ele dird 20 mo- torista para avancar o sinal ¢ viraf & direita novamente enovamente ¢ novamente. Completaré a volta do quat- tcirio prevendo que eu esteja no elevador, ainda de ca misa aberta. Mas eu me abot6o na janela, vendo 0 téxi completar a volta do quarteirao. Ele estar4 saltando do téxi quando bato com forga edefinitivamente a porta do apartamento, 0 motorista ‘mandando ele 3 merda por causa da corrida idiota. Fi- cari desapontado por no topar comigo na portaria. Perguntard ao porteiro por mim, que estou entre o quin- to € © quarto andar, descendo a escada devagar por- que as Himpadas queimaram, O porteiro ouvindo radio vai responder que nao sabe da vida de ninguém no pré- dio. Chego ao segundo andar ¢ ele entrara no cleva- dor, depois de atochar 0 botdo quarenta vezes. Perto do térreo cruzo com a luz da rua, que estd subindo a escada pelas frontes dos degraus, ditas espelhos. No tl- timo lance dessa escada retorcida piso em falso; piso 1B na luz.¢ atravesso desabalado a portaria, ele no meu cor: redor. Jé nao tocard a campainha; desintegrard a fecha- dura, eu na calgada oposta ‘Nao preciso olhar © sexto andar para saber que cle me vigia da minha jancla. Vera que aperto 0 passo & sumo correndo na primeira 4 esquerda. E chamaré o elevadior, € chamar§ o t4 torista a me perseguir na contramao. Tentaré uma pa ralela, mas eu emboco no ttinel, alcanco outro bairro, respiro novos ares. Empacara encostas, as prateleiras da floresta, as ladeiras invisiveis com mans0es invisiveis de onde se avista a cidade in- teira mas nao convencerd o mo: no trnsito € eu subo as (© vigia na guarita fortificada € novo no servigo, ¢ tem a obrigacdo de me barrar no condominio. Pergun: tamcu nome € destino, observando os meus sapatos, Interfona para a casa 16 € diz que ha um cidadio di zendo que € irmao da dona da casa, A casa 16 respon de alguma coisa que 0 vigia nao gosta ¢ faz “hum”. O porto de grades de ferro verde e argolées dourados abre-se 20s pequenos trancos, como que relutando em me dar passagem. O vigia me vé subindo a ladeira, re para nas minhas solas, ¢ acredita que eu seja o primei- 10 pedestre autorizado a transpor aquele portio. A ca sa 16, no final do condominio, tem outro interfone, ou- tro portéo eletrOnico € dois segurancas armados. Os cies ladram em coro € param de ladrar de estalo. Um rapaz de flanela na mao abre a portinhola lateral ¢ me faz entrar no jardim com um gesto da flancla ‘A-casa da minha irma € uma pirdmide de vidro, sem o vértice, Uma estrutura de ago sustenta as quatro fa- ces, que s¢ compdem de pegas de blindex em forma de trapézio, ora pecas fixas, ora portas, ora janelas bas culantes. As poucas paredes interiores de alvenaria fo- 4 ram projetadas de modo que quem entrasse no jardim poderia ver 0 occano ¢ 2s ilhas ao fundo, através da ‘casa. Para refrescar os ambientes, porém, mais tarde penduraram por toda parte cortinas brancas, pretas, fmuis, vermelhas € amarclas, substituindo © horizonte por enorme painel abstrato, Também originalmente, 0 patio circular no bojo da casa abrigava um ficus, cuja copa emergia no alto da pirimide frustrada. Sucedeu que a casa, quando ficou pronta, comegou @ abafar 0 ficus que, cm contrapartid, solapava os alicerces com suas raizes. O arquiteto © o paisagista foram convoca: dos, trocaram acusacOes, ¢ ficou patente que casa € fi- cus nao conviveriam mais Eu sempre achei que aquela arquitetura premiada preferia habitar outro espaco. A casa livrou-se do ficus, mas nem assim parece satisfeita com o terreno que lhe cabe, 0 jardim que a envolve toda, o limo que pega nas sapatas de Concreto, a hera que experimenta aderir aos vidros, Nessa disputa o jardineiro tomou as dores da casa, € passa 0S dias arrancando a hera, polindo 0 con- creto, podando o que vé pela frente. Um dia, tomado de c6lera, saiu revirando os canteitos, eliminou as hor tensias, € teria reduzido 0 jardim aum campo de golfe, se minha irma nao interviesse. Tendo feito um estagi no jardim botanico, minha irma gosta de andar pelo ar voredo ao largo da casa, podendo distinguir ipé do carvalho, da oiticica, do jequitiba ou da magaranduba. ‘Também zela pelas palmeiras, que esto alinhadas & par- te, pois aprendeu que palmeiras s’0 de uma estirpe al- tiva de arvores, que as arvores sétias por sua vez des- denham. E quando tem tempo, minha irma chega aos confins do terreno, onde 0 jardim toca o muro do horto florestal; s6 volta na hora do lusco-fusco, parando pa- ra ver € ouvir 0 jogo das folhagens, por atalhos que o jardinciro ignora. Mas hoje, com 0 sola pino ¢ sem uma brisa sequer, minha irma esta para dentro e as folha- 15 | ara ‘gens nio jogam; cada folha é um exemplo de folha, com, seu verde-escuro a luz seu contraverde-claro a som: bra. Hoje € como s¢ 0 jatdim estivesse aprendendo ar- quitetura © empregado no sabe que porta da casa eu me. reco, pois nao vim fazer entrega nem tenho aspecto de visita. Para, torce a flanela para escoar a david: ¢ decide-se pela porta da garagem, que nao é aqui nem 14, Obedecendo a sinais convulsos da flancla, contor- no os automéveis na garagem transparente, subo por uma escada em caracol, € dou numa espécie de sala de estar com pé-direito descomunal, piso de granito, parede inclinada.de vidro, outras paredes brancas nuas, muito eco, uma sala de estar onde nunca vi nin. guém sentado. A esquerda dessa sala corre a grande es. cada que vem do segundo andar. E a0 pé da gran. de escada hé uma salinha que eles chamam de jardim de inverno, anexa a0 pitio interno onde vivia 0 ficus, minha irma de peignoir, tomando 0 café da ma. nha numa mesa oval Ela me acena com as sobrancelhas ¢ volta a abaixar a cabega, 0s cabelos cobrindo-Ihe © rosto, entretida com umas fotos que folheia ¢ organiza em pequenas pilhas. Prepararam meu lugar de frente para cla, um pouco distante, ¢ nas fotos que ela me passa sem me olhar nao ha pessoas, somente parques, ruas, alguma neve, paisagens repetidas que despacho em meio mi- nuto. Devem ser fotos do inicio da viagem, quando ela estava sozinha € emocionalmente abalada; embora te nha curso de fotografia, seus enquadramentos esto ir regulares, a luz insuficiente ou estourada, como se ela qquisesse liquidar depressa o filme. Nas fotos que empi- tha fora do meu alcance, imagino que j4 aparega com a pele fresca, talvez abrindo os bracos numa ponte, ten- do ensinado um desconhecido a manejar a maquina E nas fotos mais recentes, que coloca de pé atrés do 16 F ule de leite, acho que entram os amigos que cla sem- pre vai fazendo, € 08 amigos dos amigos, ¢ 0s artistas, (as autoridades, ¢ as luzes do barco no jantar de des: pedida © copeiro entra com uma bandeja, sem que eu te- ha ouvido minha irma chamar, ¢ recolhe as fotos dis- riminando as pillas. Eu ia pedir para ver a série com- pleta, mas minha irma ergue 0 rosto e pergunta se nao tenho visitado mamac. Diz que mamae tem andado tao sozinha, nem empregado ela quer, s6 tem uma diarista que 3s tercas ¢ quintas vai li, mas diarista mami acha que nao € companhia. O ideal seria contratar uma enfermei- ta, mas enfermeira mame acha que cria logo muita in- timidade, e qualquer hora mamie pode levar um tom: o, porque anda enxergando cada vez. pior. A medida {que fala, minha irma espalha uma pelicula de geléia gre nd na torrada, como que esmaltando a torrada, depois analisa, desiste do grend e arremata com geléia cor de laranja; vai morder, muda de idéia, toma um gole de hie se admira de como uma pessoa pode envelhecet a noite para o dia, pois quando papai morreu a gente pensou que mame fosse baquear, qual nada, continuou a mil, ia 20 teatro, jantava fora, andava a cavalo no sf tio, como ela adorava o sitio, tomava seu uisquinho, jogava tenis, puxa, pensar que até o ano passado ma- mie ainda jogava ténis. ‘A garota surge correndo pelas minhas costas € atira se no pescoco da mic. Usi uniforme escolar, lancheira amarrada nos ombros € trangas de maria-chiquinha, Mi: nha irma dé-Ihe um beliscio nas bochechas, senta-a nos joelhos e faz cavalo maluco, faz.cosquinhas nos sova- €0s, beija beijo de indio e vira a marciana dum olho 56. Flas colam perfil contra perfil ¢ quedam horas as sim, uma querendo set a cara da outra. A menina diz “agora chega”, pula para o chlo, avanga no cream crac- ker © por acaso nota a minha presenca, Minha irma 7 que eu sou um pobre Fatura negligente, junto COM 0 SOTFiso que NAO, POSso— transforma as maos em duas pistolas, avanca contra, cer, quer dizer que aquele dinheiro nao Ihe fard fata mim ¢ quase me fura os olhos. Depois solta uma garg. fuido rispido do cheque destacado de um so golpe Ihada seca, gutural, anormal numa crkanga; comega a Bice querer dizer que esta é Gltima vez, Maso mane tremer inteira ¢ forca a gargalhada até perder 0 folego, 1a de encobrir € pousar 0 cheque ao lado do meu pi (que recupera num arquejo asmitico, ¢ arranca nova gar- fes, como quem passa uma carta boa, ¢ de retirar a pal gathada, arqueja e engasga, treme e gargalha e val fan | mma acariciandoa toa, como quem apagaalguma coisa fo azul. Vem a babi e carrega a garota para fora aliz “esquece”, significa que poderei contar com ela sriaa bmn cruza os talheresUmpos sobre 0 rats ilmmemere De PCO. ceninntne dings com a tortada, ¢ sei que a essa hora cla costuma se acru- sada, di “fica 8 vontade’” ma — ne mar para sair, Presumio que 0 chofer j@ esteja 2 postos pe coe ager Sa com tum mapa na mao para levi‘ aonde cla mandat, oy tinha irma andando sealiza um movimento claro cada diacla deve mandar seguir para um lugar diferen- completo, Parece que 0 corpo nao reliza nada, 0 cr: te. Hoje talvez anuncic © nome de um bairro do outro © deixa de existir, € por balxo do peignoit de sed ago cis cheno "ano cic ca 08 Pr apenas movimento. Um movimento que realiza as ‘naproxima’’, ou "j4passou”, deixando evidente que formas de um corpo, por baixo do peignoir de seda mais uma vez estara improvisando um endereco. Pode Eeume eens quando cla sobe 4 excuse 120 ser que mande 0 chofer esperar diante de uma pensio um compo assim dissimulado que as maos tém maior amarela,¢ passe quatro horas lé dentro, saindo mais com. desejo de tocar, ndo para encontrar a carne, mas so posta do que entrou e aflita para chegar em casa, na ho- thando apalpas o proprio movimento, Algumas muthe- rado rush, Pode ser que chegue a0 mesmo tempo que res tém muita consciéncia dessas coisas. Mas tém cons ‘0 matido, 0s dois choferes se emparelhando na ladcira cigncia o tempo inteiro? A qualquer hora do dia? Em do condominio, Talvez suba com o marido para o quar- qualquer situagio? Diante de qualquer um? E de repente to, € tirando a roupa diga que passou quatro horas nu- minha ima dé meia-volta no topo da escada, tao de re ‘ma pensio amarela de uma cidade-dormit6rio, mas nao ppente como se fosse para me surpreender, como se fos- ‘sei se o marido vai acreditar ou prestar atengo. Nao sei se se para saber se a estive olhando ¢ como. Minha irma co marido vai se sentar na cama € affouxar 0 cinto, € pe- rodopia na escada s6 para me dizer de novo ‘nao es- dir para ela parar ali do jeito que estd, com as mos nos, cabelos, Também ndo sei se o marido sabe que de vez, ‘em quando cla me dé dinheiro. Sem que eu tenha per- cebido minha irma fazer qualquer sinal, o copeiro traz_ ‘uma bandeja com oralao de cheques ea cancta de prata, Ela preenche o cheque, ¢ seus cabelos castanhos no ime permitem ver se est4 mesmo sorrindo, nem se esse pergunta s¢ ela nao vai cumprimentar o tio. Ela me es: © sorriso quer dizer tende os bracos como que pedindo colo, mas sti quece de mama Fico desequilibrado, sozinho naquela mesa oval, olhando o mel, o queijo de cabra, 0 chi de rosas, pen- sando na minha mae. O copeiro traz uma bandeja com 0 telefone scm fio; € um aparelho de teclas minéscu- las, que dedilho rapido e sem olhar direito, um pouco querendo esbarrar noutros niimeros. Ouco tocar uma 19 18 duas, cinco vezes, telefone de casa de velho. Mamie atende mas nfo fala nada, nunca fala nada quando aten- de ao tclefone, porque acha vulgar mulher dizer ald, Eu digo “mamac’’, ¢ posso senti-la colar 0 fone na ore- tha, para travar o tremor da mao esquerda. O copeiro entra com um carrinho, pergunta “terminou?"' ¢ retira 0s pratos sem sobrepé-los. Eu repito “mamie", mas também nao tenho muito assunto, € 0 copciro amassa, o guardanapo que eu deixara intato a minha frente, em forma de canoa. Mamac nao deve ter entendido que era eu, ¢ pouco depois cai a linha. O copeiro passa um tipo de espatula na toalha azul-celeste, catando as mi: galhas de cream ctacker, enquanto eu invento umas pa: lavras no boca. hego a rodovidria com uma bolada em cada polso da calga, quatro tijolos de notas mitidas, {que 0 caixa do banco encasquetou de me tro- caro cheque assim. A calca € justa ¢ as protuberincias {ao na vista. Consigo uma vaga no banheiro e separo fo dinheiro da passagem. O homem do guiché examina ‘cada nota, frente ¢ verso, embora elas no sejam mu to velhas nem novas demais. Com o bilhete na mao, ‘ando de plataforma em plataforma a fim de nao ficar tao exposto. Ando no meio do povo em linha reta, mas parece que cruzo sempre com as mesmas pessoas. E €s- sas pessoas também parecem se admirar, me vendo pas- sat tio repetido. Volto ao banheiro, € trancado espero. a hora do nibus. "Nese dnibus convém nao cochilar. A meu lado sen- tou-se um sujeito magro, de camisa quadriculada, que uf havia visto encostado numa coluna. Estamos om- roa ombro no mesmo banco, ¢ nio posso ver direito sua cara. Posso ver suas maos, mas so maos de ho- mem iguais a todas as maos sujas e cruzadas. Com 0 pormenor que de quando em quando ele abre os de- | dos da mio direita, um de cada vez, dando a impres so de calcular alguma coisa, e fecha-os todos a0 mes- mo tempo. Ato continuo abre a mao inteica para fechar "9 dedos um a um, refazendo os calculos de tris para diante. Calga chinelos de tiras, ¢ esfrega 0 ded3o na fas Gomera a nascer li embaixo, no fundo do vale. Ainda lange vizinha, como quem contasse dinheiro com 9g ‘soi no alto das montanhas, ¢ a noite vem subindo pés. Nao leva mala, nem sacola, nem pasta, nem jor. vias vertentes como umn 6leo, Sento-me na peda re- nal, nem historia em quadrinhos, ndo tem atitude de ‘fonda onde cu me sentava quando era pequeno, quan. vViajante; mas também nao chega a ser viagem, essa ho. " do pensava que a noite primeiro enchia o vale, depois rae quinze de curvase aclives até 0 Posto Brialuz, que, | __ que transbordava para a terra ¢ 0 céu. € onde vou saltar, Pego licenga, ¢ ele tem de se levan- ‘Quando a noite se consuma, perfeita, sem Iva nem tar para me dar passagem. Falo “Posto Brialuz” para o = estrelas, sem encantos, sem nada, salto da peda € vou motorista, e com a freada do dnibus 0 sujeito quadri descendo a estradinha de terra batida sitio adentro. & culado vem degriagolando pelo corredor, quase me fstradinha segue reta até encostar no riacho ¢ se en- atropelando. Desco do dnibus, cle atrés. Dou quatro ila yolver com ele. Mas ndo escuto o riacho. Na verdade, Passos na relva ¢ giro 0 corpo de repente, um pouco J jg nfo sei se estou pisando a terra batida ou algum ca- como vi minha itma fazer. Mas 0 sujeito 4 atravessou fninho vegetal. Mais provavel do que cu me extraviar a estrada, ¢ Sobe a ribanceira que dé noutras bandas, © ho sitio, seria o matagal ter invadido a estrada, ¢ 0 ria- ‘cho evaporado, Mas ali ha uma misica que me desnor- {eia 0 tempo inteiro. Demoro a admitir, pois nunca how Encontrar aberta a cancela do sitio me perturba, ye milsica no sitio; mas h4 misicas, muitas mtisicas ocu Penso nos portdes dos condominios, € por um instan "pando todos 08 espagos, com a substancia que a mtis teaquela cancela escancarada € mais impenetravel, Sin ga no escuro tem. f quase resvalando nelas que chego to que, 20 cruzar a cancela, nao estarei entrando em Aponte de tibuas sobre o riacho. algum lugar, mas saindo de todos 0s outros. Dali avis- ‘Atravesso a ponte, € da outra margem ouve se ape: to todo o vale ¢ seus limites, mas ainda assim € como fas 0 riacho, a gua absorvendo as miisicas. Ha uma se 0 vale cercasse 0 mundo € eu agora entrasse num Juzinha intermitente na casa principal do sitio, mas nao lado de fora. Ap6s a besta hesitagio, percebo que ées preciso dela para chegar 20 olho do vale, onde eu pen- se mesmo 0 meu desejo. Piso 0 chao do sitio € caio fo- saya que nascia 2 noite. E nao ando longe do meu des ra, Piso 0 chlo do sitio, e para me garantir decido fe- tino quando escuto o primeiro rosnado. No ermo em char 2 cancela atras de mim. $6 que ela est agarrada , “gue estou, 86 posso fugir em diregio a casa, ¢ 0 volu- ro chio, incrustada e integrada ao barro seco, Quan- ‘me crescente dos latidos d-me a impressio de estar do deixci o sitio pela titima vez, hi cinco anos, devo correndo 20 encontro dos cies. E por fugit a0 contré- ter largado a cancela aberta € munca mais ninguém a rio, sinto-me duas vezes mais veloz; imagino romper veio fechar. 4 amatilha como dois trens que se cruzam. Atiro-me con- Abandonet ¢ esqueci isto aqui durante cinco anos. ira'a porta da frente, que est travada por dentro com Talvez a inércia do sitio na minha mente, mais do que} —_eravelho. Contorno a varanda, ¢ os cies emudecem as- a longa estiagem, explique agora essa claridade dura, _ sim que invado a cozinha. a paisagem chapada. Vencida a cancela, nfo sei mais © velho sentado no tamborete faz um grande es- por onde passar. Minha brecha pode ser a noite, que 94 forgo para erguer a cabega, ¢ € 0 tempo que cu neces: 24 25 sa onde antigamente os empregados comiam. O ve- crescer 0s cabelos que, a parte as rafzes brancas, pare {ho adivinha quc pretendo passar uns tempos.no sitio, cem ter merguihado num balde de asfalto. A pele do emociona-se novamentc, Cai sentado na cadeira a0 seu rosto resultou mais palida e murcha do que ja cra, Sido, «seus olbos voltam a sc encharcar, desta vez.com ¢ ele me fita com um ar interrogativo que no consigo) grimas azedas. Conta o velho que a mulher morrew interpretar;talvez se pergunte quem Sou eu, talvez mel | ha dois anos, que cle mesmo est@ multo doemte, que pergunte se a tintura Ihe cai bem. Penso em Ihe dar um ” © os filhos sumiram no mundo, ‘Tapa uma narina para as- tapa nas costas € dizer “*h4 quantos anos, meu tio”, mas oar a outra, e conta que com ele 6 restaram as crian- a intimidade soaria falsa. Meu pai entraria soltando uma | _ gas. Que 08 outros, 0s de fora, foram chegando ¢ do- gargalhada na cara do velho, passaria a mo naquele ca fninando tudo, o celeiro, a casa de caseiro, a casa de belo gorduroso, talvez.chutasse o tamborete e dissesse __héspedes, ¢ contrataram gente estranha, ¢ derrubaram ‘evanta dai, sacanal”’. Meu pai tinha talento para gri. |) estrebaria e comeram os cavalos, E que os outros, os tar com os empregados; xingava, botava na rua, cha: 7 Ge fora, s6 esto esperando ele morrer para tomar pos- mava de volta, despedia de novo, € no seu enterro es. gg _ ge da casa, por isso que ele dorme ali na despensa, € tavam todos 14, Eu, se disser “ha quantos anos, mey ™ _asnetos espalhados na sala ¢ pelos quartos, Conta que tio”, pode ser que ofenda, porque € outro idioma fs patrdes nunca aparecem, mas quando aparecerem Sem aviso o velho dé um pulo de sapo e vai parar “ao ter um bom dum aborrecimento. no centro da cozinha, apontando para mim. Usa 0 cal © Deposito um maco de notas sobre a mesa para o ve- do amarrado com barbante abaixo da cintura, e suas ho fazer a proviso, mas antes que eu me explique cle pernas cinzentas ainda slo musculosas, as canelas finas; apanha uma mochila debaixo da mesa, joga 0 dinheiro € como se ele fosse de uma raga mista que no enve- dentro e diz “pra que isso, seu mogo"”. Desce a mochi- Ihecesse por igual. Aproxima-se com molejo de jog Ja, sobe uma garrafa de underberg, diz. “da licenca”, dor, mas com 0 t6rax cavado € os bragos cafdos, par ira um gole e oferece a garrafa, que ficou com umas peira, a boca de labios grossos aberta com trés dentes, * polhas de saliva no gargalo, Da novo salto ¢ diz “eu 6s olhos azuis j4 encharcados. E abraga-me, beija-me, jfivou arrumar 0 quarto do senhor”. Atravessa a cas: recua um passo, fica me olhando como um cego olha,, Korrendo ¢ vai direto ao quarto que scmpre foi meu. nao nos olhos, mas em torno do meu rosto, como que procurando a minha aura, “Deus Ihe abengoe, Deus lhe abengoe”’, diz. Depois pergunta “que é de Osbénio?, Bu devia ter deixado 0 velho enxotar as criangas. que € de Clauiz?”, e entendo que ele esperava outra pei Quando entro no quarto, 0 menino € a menina esto soa, algum parente, quem sabe. bem despertos, acocoradas na esteira diante do apare- Um cacho de bananas verdes no chao da cozinha Iho de tclevisio. © menino, de uns sete anos € cabeca Jembra-me que passei o dia a cha ¢ bolacha. Na gela raspada, avista-me sem me ver ¢ retoma o comando do deira, que € um mével atarracado de abrir por cima, 4§ —_ Wideogame. A menina, de uns oto ou nove, cabeleira encontro um jatro d'4gva, uma pancia com artoz.e uma SF€8P2, densa e transversal, sri € continua sorrindo tigela de goiaba em calda. Instalo-me com a tigela a ‘Pata mim. Arranco a roupa, que parece engomada de 26 27 criangas, 0 velho trouxe um colchonete listeado que era da espreguicadeica da piscina Nao me importei com as criangas porque pensci que fosse deitar e dormir, mas as minhas pestanas tremelic cam com 0 reflexo do videogame. Pulsa na tela uma figura semethante a um intestino, em cujos tubos cor. rem animaizinhos verdes. Por algum motivo, esses tu- bos as vezes se obstruem, obrigando 0 moleque da ca- beca raspada a se contorcer com 0 comando nas mos, Em consequiéncia, 0s animaizinhos chocam-se uns con. tra os outros, impelindo-se como bolas de bilhar e emi- tindo bips."Também acontece de eles se entalarem nas paredes dos tubos, numa reagdo em cadeia que provo- ca a explosao do intestino, acompanhada de um alar- me ¢ um clara, Os animaizinhos boiam na tela branca 0 jogo recomeca inmeras vezes, mas a certa altura amenina da cabeleira, que incentivava o irmao, dé um bocejo profundo e se levanta. Entrevejo sua trajet6ria da televisio ao colchonete rodeando a cama, me ro- deando, parando, yoltando para apanhar um elistico, contra a luz é uma adolescente que oscila nas minhas pestanas. Fla me encara, ¢ seu rosto teri no maximo dez anof, pelos dols denies da frente ainda arralgadggill na gengiva, pelos cabelos impossivcis de pentear, pelo_ nariz escorrendo, Mas é de mulher feita © pequeno cor po que caminha, que escolhe cada paso com um cri tério de corpo, € que portanto caminha mais com or gulho que com diregio, a camiseta até os joelhos & a inscrigao "'S6 Jesus Salva" ‘A comichao da palha na minha pele, a presenga da goiaba doce no meu estémago, os incomodos do cor- ‘po so apenas tum despiste da insOnia, A insOnia verda- deira principia quando 0 corpo esté dormente. Semi- lesado, 0 eérebro nao tem boas idéias, ¢ € incapaz de | umofici istir 2 chegada do homem do olho migico, por mplo, que pode ser um amigo que perdi de vista, {que vicia falar de assuntos vencidos, ¢ que no su ortaria a minha indiferenga, € que, sc fosse um sonho, yancaria exasperado 2 propria barba c nao teria quei- xo, convertendo-Se no proprietirio do imdvel que vem - fobrar 0 aluguel. Mas ainda nio é sonho € nada devo © go proprictécio, pois minha irma é avalista,adiantou seis Sqpeses a titulo de fianca, € quando mamae morrer, meu jo na heranca nao paga o que devo a mana, por so cla pode ter dado meu endereco a um advogado, ial de justia, um tabelizo barbudo no olho ma- "gico.Estou para ingressar no sonho quando lembro que {quem tem meu endereco é minha ex-mulher; deixei re- " eado na casa dela, uma mensagem formal, alids um co- ie municado ironico, aliés um aviso dspero, ¢ minha ex- “futher nem iria anotar meu enderego na agenda, para " qué?, para dar 20 homem do olho magico que pode ser 9 scu namorado, ¢ imagino aquele homem de terno ¢ ~ gravata e barba na cama da minha ex-mulher. Um na- - morado dela, o que viria cobrar de mim, conselhos?, " pensio?, confidencias?, satisfagdes? Um clumento re- _ froativo? Um amante argentino da minha itm, de ca “pelos escortidos, terno marrom e gravata, girando no topo da escada com minha ex-mulher? Aos poucos, os " pensamentos amontoados na cabega vio se acomodan- do, bem ou mal sc encaixam uns nos outros, € € um " consolo quando cessa 0 atrito dos pensamentos, ¢ vai "se fechando a cabeca, apertando'se nela mesma, a.ca- ega restando como que oca por fora. O sono chega ‘como um barco pelas costas, ¢ para partir € necessario "estar desatento, pois se voce olhar 0 barco, perde a via- _ gem, cai em seco, tomba onde vocé ja est. F 0 mole- | quc da cabega raspada continua fungando jogando "Videogame. a menina da cabeleira continua me enca- “rando, sorrindo. E ainda ndo amanheceu. ‘Agora a menina se levanta do colchonete, vem an- dando em péndulo, aproxima-se devagarinho, essa crianga vai querer deitar comigo, ajoctha-se, chega 0 rosto ao meu, vai me beijar, pensa que estou dormin- do, destiza seu halito sobre meu corpo inteiro, desce a0 pé da cama, apanha minha calca € esvazia 0s bolsos. Quero reagir € no posso, meu corpo est4 dormente, meu cérebro, minha boca nao consegue pronunciar “ei’". A menina da cabeleira cutuca 0 irmio € os dois escapam. A janela do meu quarto d4 para a varanda, ¢ tenho a sensago de que adormeci num autédromo. Chego veneziana, € conto umas vinte criangas pulando ¢ gri tando debaixo da janela, Uma moto vermelha irrompe por trds da casa, corta 0 patio e sobe o talude lé adian- te, onde faz uma longa curva com a maquina na hori zontal, Desce 0 talude num mergulho e, no instante em ‘que some pela borda esquerda da casa, jé teaparece pela direita, Solta faguthas no cimento do patio, sobe 0 ta lude, faz.a curva inclinada, mergulha, ¢ desta vez. vem tao acelerada que jé desponta por um lado antes mes- mo de se esvair por outro, Para encerrar 0 circuito, co- risca no cimento, assalta o talude € segue em frente, che- gando a voar quando atinge o platd. E ressurge ime- diatamente por tras da casa, ultrapassa 0 talude com &s rodas no ar, € encosta na moto que aguardava no pla 16, porque as motos vermelhas sio duas Agora € 0 caseiro velho quem irrompe no patio com ‘um copo de underberg na mao, ¢ assobia para as mo: tos com dois dedos na boca. As criangas riem, aplau: dem, atiram limes no velho. Uma das motos aponta para ele e vem tomando impulso no talude. Ele levan: tao copo, cobre o rosto com a outra mao, ¢ verga-se de tal forma que 2 moto parece atravessé-lo sem o der- 30 rubar, nem a0 copo. A asa do vento faz seu corpo girar noventa graus, e parar de frente para a segunda moto, que contornou a piscina e desce embalada na diago- nal. O velho cambaleia, ¢ o cambaleio éa sua salvacio, pois a moto imprimira tal velocidade que j4 nao admi- tia guinada ou freio. A criangada faz “Olé”, € corre 20 patio para festejar o velho, que bebe o underberg de pernas cruzadas, Nao sci o que me leva a pular a janela e ir atrés das criangas. Quando me vejo de cuecas no patio, j4 no posso recuar com naturalidade. Tenho pelo menos de apertar a mao do velho, mas ele me evita, me desco- nhece ¢ sai de lado, olhando para o fundo do copo va- zio, As criancas dispersam-se, € as duas motos vigiam- me do plat6. Miram na minha diregdo, ¢ vou me reti rando sem olhar para tras. Ougo 0 ronco dos motores, e tenho pressa em alcangara varanda, Quando pulo para dentro do quarto, vejo que clas vem descendo em pon- to morto, serpenteando no talude. Embicam na varan- da, de frente para a minha janela, enquanto acabo de me vestir. Uma terceira moto, que até entao eu nao ha- via visto, desce do campo de vélei com 0 motor desli- gado, ¢ coloca-se entre as duas. N40 posso ver seus ros- tos, pois eles usam capacetes, mas logo percebo que 0 terceiro piloto é mais que os outros, em cilindradas eautoridade, Sua moto € muito mais vermelha, ¢ larga como um cavalo, com cravos de bronze, espelhos, dis- tintivos € aderecos, além de uma antena espiralada que deve chegar a quatro metros. Ele traz anéis em todos 08 dedos e, rebatendo o sol da manha, seus punhos pa- recem dois fardis sobressalentes. Apcia da moto, no que € imitado pelos dois coadjuvantes. Sobe a varanda, sem- pre seguido pelos dois, ¢ para a trés passos da minha janela, Com uma voz até delicada, pergunta quem sou eu € 0 que faco naquela propriedade. Varias cotsas pas- sam pela minha cabeca, mas nfo encontro uma boa 31 que sou ¢ que porra eu fago quela propriedade, Vez | cho. Otho para 0 chido, ¢ estou descalgo, nao tive tem: po de me vestir direito. Os dois comparsas comecam, a esfregar suas botas nas t4buas da varanda, como se apagassem charutos, ¢ com isso produzem um chiado, desagradavel, O chefe enfia a mio no forro do casaco, de couro, vai sacar alguma coi relégio antigo tipo cebola nutos para sumir do mapa. ali de dentro. Saca um € diz. que tenho cinco mi: jo as criangas enfileiradas no alto do sitio, perto do tia 01 0 velho caseiro quem me deu um dinheiro amassado para voltar 4 cidade. Do orelho da ro- doviiria, ligo para minha mae € desligo em se guida. Nao quero ir para a casa dela de jeito nenhum. ‘Mas 40 mesmo tempo quero encostar num canto, te- nho de tomar um banho, preciso lavar a cabega. Tor- no a ligar, e mamae deve estar sentada na bergere, fo Iheando uma revista de modas que n3o sio mais para la, ¢ talvez por isso se irrite com o telefone. Acho que 86 se levanta no terceiro toque, ¢ arrasta-se até 0 apa. relho que tem fio curto ¢ fica no corredor. Entre o quin to € o sexto toque ela deve parar para tossir, pois gen te velha nao sabe tossir andando. $6 no oitavo toque e poe a mo no fone, mas algum impulso me faz, desligar um segundo antes. Dou tempo para ela se ins- talar de volta na bergére, ¢ ligo de novo. Desta vez dei. xo a campainha soar dez, doze vezes, poderia soar du. zentas que cla nunca mais vai me atender, E desde 2 descida da serra algum impulso me dizia que hoje eu iria acabar ligando para minha ex-mulher A secretaria eletronica diz. que ela est na Alfande- 2, telefone tal, e que apés o sinal € para deixar o reca do. Ligo para a Alfandega, responde um homem com voz grossa, pergunto por cla, Ela atende com “oi” ¢ eu digo “oi, sou eu”, querendo corter o risco de ouvir ma 35 “eu quem?”, Mas ela diz um “que € que voce quer?’ que nao deixa diivida, sabe muito bem que eu sou eu. 86 quero um pequeno favor ¢ ela.diz “sei”. Preciso fa lar ja com ela e ela diz “aqui nao A Alfandega € uma butique cara num shopping mo- vimentado no quatteirao mais nobre da zona sul. Ven- de roupas importadas, acho, nunca entrei. Entro ago- ra pela primeira vez, ¢ nao causo boa impressao, Uma mulher que jf foi linda, ¢ que deve ser a dona, em vez de me atender fica me especulando, consideran. do 0s meus sapatos. O balconista de costo pilido vira 6 rosto, € minha ex-mulher atris do balcdo faz uma boca que parece estar prendendo © riso. Chego mais perto € reparo que no, que € um alfinete que ela prende nos libios, ¢ cospe na concha da mao discre: tamente para dizer “espera li fora’. Saio com dligni- dade, passando 0 dedo nas roupas, Essas roupas ¢s- Ho jogadas pela butique com relativa desleixo, nao para fingir que so baratas, mas para avisar que nem | esto muito @ venda. Minha ex-mulher passa por mim em velocidade, ¢ fala qualquer coisa de pizza na sobreloja. Eu preferia ‘comer Ii fora, mas cla sempre foi de andar 2 minha fren te, € agora ja esta na escada rolante, que ela sobe an. dando. Usa um bermudio folgado, mas posso adivinhar que continua com 0 mesmo corpo, Senta-se num ban- quinho da lanchonete, € vejo seus seios de relance. Tem ‘0 ombros nus, € a pele no ponto certo de quem vai 4 praia € no toma sol. Se eu the dissesse tudo 0 que estou pensando neste instante, ela ia gostar de ouvir; mas no instante seguinte quase the pergunto se nao da varizes, isso de passar 0 dia em pé numa butique. Por que levamos seis meses sem nos falar, ou porque antes disso j4 nos falamos tudo, ou porque nesses seis meses tudo © que falamos antes virou barulho, fica dificil re- tomar a conversa 36 Ela diz. “que € que vocé quer?” com aquele mesmo tom do telefonema. Como segura um menu, nao sei se escolho 0 lanche ou se comeco 4 contar 0 meu proble- ma. Minha ex-mulher nao olha para mim nem para 0 menu; olha fixo para lugar nenhum, como quem fala a0 teletone, E repete “que € que voce quer?”, com a pros6dia exacerbada de uma ligacdo ruim. Digo que es- tou metido numa encrenca séria, ¢ ela diz “sei’”. Digo que tem gente me seguindo, ¢ cla diz ‘sim’. Digo que podem me matar, e consigo desperti-la. Mas em vez de apreensio ou panico, ela faz cara de desgosto, como se morrer fosse sujo. E diz. “voce desceu mais baixo do que eu pensava” Peco pizza de mozarela, mesmo achando que nés dois no combinamos mais com pizza, com essa lan- chonete, com esse shopping, Invejo um pouco as ca- becas que despontam no vio, que sobem curiosas uma atrds da outra na escada rolante, cabegas que esticam (© pescogo, € va criando corpo, € criam pés que sal- tam na sobreloja, ¢ viram pessoas que agitam cabecas que falam, piscam, riem e mastigam tridingulos de piz. za por ali Finalmente minha ex-mulher estala a lingua e diz. que sente muito, mas nao vé por onde me ajudar. O “'sinto muito” vem com prontincia do coragao, e € um cora- do instivel, o dela. Agora esta quase pedindo para me ajudar. O que eu Ihe dissesse, amarraria a cara mas fa ria, Pedisst dinheiro, demoraria um pouco mas daria Seria capaz de me acolher de volta em casa até 0 peri go passar. E no duvido que logo estivesse me falando como antigamente, com 0 mesmo timbre que usava sempre para dizer “te amo mais que tudo” quando nos conhecemos, cinco anos atrés, Dizia “te amo mais que tudo” no meio do almoco, dizia no cinema, no super- mercado, na frente dos outros; eu achava estranho ela dizer isso a toda hora, mas acabei por me acostumar. 37 Coracio instével. Um dia ela voltou do médico, puxou me pela mio até o quarto, estava muito corada e disse que havia dado positivo, estava esperando um filho, Nao compreendi. Eu nem sabia que ela fora a0 médi- co. F ter um filho, no meu cérebro, era noticia que en- trava, mexia 14 dentro, ¢ nao conseguia formar uma idéia. Nao imagino qual tenha sido a minha rcacao na- quele momento, nem lembro se falei alguma coisa. S6 lembro que 0 rosto dela empalideceu com uma rapi dez que nunca vi nada igual, como se todo o sangue tivesse caido por um buraco. Bla perguntou sc eu era ‘um monstro sem sentimentos. Mas com 0s dias, 2 também me acostumando a idéia do filho; melhor ain- da uma filha, que dizem que é mais ligada ao pai. Che- ‘guei mesmo a pensar em dar 4 menina o nome da mi nha irm3. Até que num fim de tarde minha ex-mulher yoltou do médico com uma cara horrivel, bateu a por. ta do quarto ¢ disse que tinha tirado 0 filho. Jogou-se nna cama aos solucos € ficou repetindo "td satisfeito? 1 satisfeito?”’. Acho que foi daf que ela deixou de me amar mais que do, Minha ex-mulher otha o rel6gio a cada vinte segun: dos, € calculo que esteja preocupada com a dona da butique. O garcom me entrega a conta ¢ cla se anteci- pa, puxa umas notas da carteira, ¢ na pressa deixa cait res cartes de crédito, Acompanho-a de volta, € ela ja se despede desde a escada rolante. Di tchau andando, datilografando 0 ar com a mio esquerda, ¢ eu Ihe digo para esquecer meu endereco antigo, pois pretenco me instalar num apart-hotel. Bla diz “boa sorte”, mas per- to da butique Iembro que tenho umas roupas em sua casa, Ela diz que € coisa pouca, que ja enfiou tudo nu ma mala, € que o boy da butique depois entrega a mala no apart hotel. Vern chegando uma scnhora com cara de jogadora de bridge, cumprimenta minha ex-mulher ¢ pergunta pela tiinica, Bla vai entrar com a freguesa bei 38 l na Joja, mas eu toco seu ombro € explico que nao pos so me registrar sem bagagem num apart-hotel, com a roupa toda lambuzada € a barba por fazer, uma pinta {de marginal que concierge nenhum vai deixar subir. Ela pede para cu falar baixo, mas a dona da Alfindega jf apareccu na porta, o balconista palido atras, ¢ 2 joga dora de bridge nao sabe se vai ou se fica, Minha ex mulher abre a bolsa, tira um chaveiro que € um cora- clo de acrilico, ¢ diz “pega logo a tua mala ¢ me traz de volta as chaves”, consegue dizer tais palavras pra camente sem mover 08 labios. Quatro anos € meio vivi com essa mulher. Mas vivi de me trancar com cla, de café na cama, de telefone fora do gancho, de nao dar as caras na rua. Um sorvete ina esquina, no maximo uma sessao da tarde, umas com- pras para o jantar, e casa. Entrei nuns empregos que cla me arrumou, na segunda semana eu caia doente, € casa. No tiltimo ano foi ela quem comegou a trabalhar fora. Argumentei que cla tinha diploma universitério, que podia aguardar melhores oportunidades, ¢ disse “ndio vai se adaptar”, Mas se adaptou, levava jeito, 10- ‘mou gosto, virou gerente de vendas ¢ nunca pegou nem um resfriado. Eu esperava por ela em casa, Habituei- me sem cla em casa, andava nu, cantava, Mudava a ar rumagio da sala, planejava empapelar as paredes. J4 gos- tava mais da casa sem minha mulher. Sozinho em casa eu tinha mais espaco para pensar na minha mulher, ¢ era nela fora de casa que eu mais pensava. As vezes ela chegava tarde da noite ¢ ia a0 banheiro, € bulia na co- zinha, ¢ ligava a televisio sem necessidade, € isso me ava um tipo de citime da casa. Preferia nao ver, € amici de fingia estar dormindo. De manha, deixava-a acor- dar sozinha, abrir ¢ fechar gavetas, ligar 0 chuveiro, ba ter vitamina ¢ sair para 0 trabalho, $6 entio comega- 39. via minha jornada, que era andar de um lado para 0 outro da casa, lembrando-me da minha mulher € con- sertando as coisas. Um dia ela prop6s a separag2o. Eu entendi e disse que ia continuar pensando nela do mes- mo jeito, a vida inteira. J4 deixar a casa foi mais dificil. Eu no saberia como me Jembrar da casa. tra dentro da casa que eu gostava da casa, sem pensar. Agora me revejo com as chaves na mao, mas nao tenho pressa; € somente a casa dela, um enderego, um apartamento térteo no bloco lateral de um prédio em Lnuma rua sem saida de um bairro timido. Daqui até 14é uma boa dis bairro, as ruas onde, cu andava antes de me casar, far- macias, padaria res com quem eu tratava, sabendo © nome de cada um. A pizza salgada ressecou minha boca. Paro num bar ¢ verifico que ali nfo ha ninguém do meu tempo, setvente também € novo, € se eu pedir um chope sem pagar na ficha € capaz de no me atender. Peco gua da bica, mas cle nlio me escuta, fica pasando um pano mothado no balcdo de formica. No extremo do balcao, um corredor que s6 se atravessa andando de lado leva a um mictério com um cheiro muito pesa- do, H4 também uma pia e me debruco nela, mas esta sem Agua, Passando 0 mictorio, © corredor prossegue até um depésito descoberto, com um amontoado de engradados cheios de garrafas vazias, Sinto vontade de escalar aqueles engradados. Escalo, chego ao topo ¢ respiro ar limpo. Os fundos do botequim dio para 0s fundos de um prédio de apartamentos. Consigo apoiar as maos entre os cacos de garrafa que estio ci: mentados na crista do muro, Se eu trouxer um pé até (© muro, nao seré dificil jogar 0 corpo para o outro lado, Eu nao tenho intengio de saltar para 0 outro Ia- do. Mas tampouco vejo sentido em descer dos engra: dados, pasar de novo pelo mictério fedorento, pas- \cia, € no caminho h4 o meu antigo bancas de jornal, homens ¢ mulhe- 40 sar pelo servente ¢ acabar na rua onde cu ji estava, sem ‘nem ter tomado agua da pia Salto 0 muro e caio no playground do prédio. Des- 0 ligeiro por uma escada que dé nia garagem subterta. nea, € acho que ninguém me viu. Um carro acaba de sair € 0 portdo da rua ficou aberto. Ja na calgada, um grupo de rapazes aproxima-se falando alto, rindo € ba- langando chaves. Cruzo a rua, € entro no pequeno jar- dim de uma casa onde funciona uma academia de ba- 1é, Dou a volta na casa, reconheco o quintal com amen- doeiras, ¢ lembro que aqui morava um conhecido meu, um que dava festas € tinha uma irma paralitica Amigo mesmo 56 me lembro de um, Era alguns anos mais velho e dizia que eu tinha um futuro, Vivia lendo 0 jornais, as revistas especializadas, depois me conta va que era tudo mentira. Recebia correspondéncia do estrangeiro, ouvia 0s clissicos, ia publicar em breve um tratado polémico sobre nao sei mais que matéria, In- ventou e queria me ensinar uma lingua chamada deses: peranto, tendo organizado uma gramitica ¢ farto vo- cabulirio. Dedicou-se numa fase a escultura comesti- vel; ergueu no apartamento uma cidade inteira de mar- ipa, mas nunca chegou a expor. Também era dado a premoniges; fazia certas previsdes que ele mesmo se assustava € emudecia uma semana. E parece que tinha ‘em seu passado uma hist6ria conhecida ¢ admirada por gente da sua geraco. Dessas hist6rias ele nunca me fa- lou, € por isso eu o admirava mais. No bar, quando be. bia além da conta, ou quando ja chegava cheio de esti: mulantes no pensamento, dizia poemas. Havia noites, geralmente noites de sébado quando lotava o bar, que cele deixava cair na testa a franja negra ¢ cismava de de- clamar em francés. Eu ficava sem jeito porque ele de: clamava alto demais ¢ olhando para mim, € as outras pessoas na mesa nao entendiam 0s versos. Eu, ele acha. va que eu pegava o sentido. O resultado € que sobré- a vamos 86 nés dois na mesa, porque as poucas pessoas que suportam poesia, no suportam francés. Nao sei o que essas pessoas pensavam de mim, do ‘meu amigo, da nossa amizade. Mas quando ele estava lLicido, ¢ falava coisas que para mim eram revelagoes, 08 outros mal 0 ouviam, olhavam-no com a fisionomia embacada, Era como se estivessem separados dele, ndo por uma mesa, mas por camadas de tempo. As vezes eu achava que ele preferia mesmo dizer coisas que os outros s6 pudessem compreender anos depois. As pa lavras que buscava, 25 pausas, € sobretudo 0 seu tom de voz, tio grave, faziam-me crer que ele era dessas pou- cas pessoas que sabem perisar ¢ falar com 0 tempo den tro. Hoje, porémt, quando procuro me lembrar do que ele falava, ougo puramente a sua vor, lisa de palavras. E se penso no meu amigo € porque, ao pular dos fun. dos de uma escola piblica para o terreno de um sobra- do em demoligio, me dou conta que ele mora ou mo- ravi nesta mesma avenida sem rvores, no edificio mais antigo do bairro, um edificio recuado ¢ cinzento com tum bar ao lado. Pretendo passar reto. Sao trés da tarde, € € bem pro- vavel que meu amigo ainda esteja dormindo. Nao te: nho nada para Ihe falar, nem ele hé de ter animo para abrir a boca. Se eu subir, nem sei se ele abrira a porta; me verd pelo olho magico, € talvez se faca de morto até cu ir embora. No caso de ele abrir a porta, talvez cu me surpreenda por encontré-lo igualzinho a cinco anos atras. Talvez ele me parega apenas um pouco mais baixo do que era, dois centimetros se tanto, mas até seri capaz de estar usando a mesma camisa social para fora da calga, com a mesma mancha de café no colari nho. Nao ter perdido um fio sequer dos cabelos ne~ gros, que Ihe cairdo na testa exatamente como da tlt- ma vez que 0 vi. Eu quase desejarei abracé-lo, entrar ‘como entrava no seu apartamento, espichar-me no sofa 42 da sala e dormir até amanha. Mas 20 fité-lo com maior atengdo, talvez volte a me intrigar a sua estatura; meu amigo era mais alto, coi depois, seria normal que estivesse encolhido de om bros, com o estémago dilatado ou um pequeno desvio de coluna. Mas ele estara ereto, como se Ihe tivessem simplesmente serrado dots centimetros da canela. Aqui- lo nao me parccer4 honesto. E cu nao saberei lidar com alguém que me dara a impressio de ser uma c6pia do meu amigo. Que passara a mio nos cabelos como ele passava, o que me enervard, pois quanto mais perfeita fora c6pia, maior sera a sensacio de logro. E que mor derd a lingua do lado direito, como ele mordia quando no gostava de alguma coisa, pois talvez ele também desconfie que cu scja uma cOpla. E que me veré ali plan: tado, e que sabendo que estou com a boca amarga, nao me oferecera um copo d’agua. E que dir "com licen- ca’, fazendo voz de baritono, € que bateré a porta na minha cara. Vejo tumulto defronte ao edificio do meu amigo. Aglomeracao, um camburio, duas joaninhas, um rabe- co, varios carros de reportage, guardas desviando © transito. No meio do povo, compreendo que houve um crime, alguém morreu esfaqueado ¢ estrangulado, Vem chegando a sirene de um segundo camburio, ¢ 0 empurra-empurra acaba por me levar a0 miolo doacon- tecimento. Uma corda vermetha isola a calgada do ve; Iho prédio, formando uma espécie de ringue. A televi- so entrevista 0 zelador sob a marquise da portaria, De- ve estar ruim de filmar, pois 0 zelador olha para o chao € no fala direito, parece um condenado. Penso que € ele 0 criminoso, mas em seguida me conven¢o de que esta somente muito envergonhado pelo seu edificio. 0 repérter pergunta se a vitima costumava receber rapa- 2e8, € 0 zelador faz sim com a cabeca, mais confessan, do que assentindo. A entrevista prejudicada por uma a toa, mas era, inca anos % baixinha com cara de india e lenco na cabega, que se des- vencilha de um policial ¢ investe contra 0 zelador, gti- tando “diga que conhece meu fitho, miserdvel!”. O po- licial levanta a india baixinha e deposita-a fora do cor- dio de isolamento. Ela passa outra vez. sob 0 cordao € agora se dirige ao puiblico. Diz.““ndo tem televisao af” e diz “ninguém vai me entrevistar?”. Um rapaz que se apresenta como rep6rter do Diario Vigilante pergunta ‘0 que fazia o suspeito no local do crime. Ela diz “que suspeito 0 qué” ¢ “que local do crime o qué”, ¢ diz “meu filho veio me ver, foi detido entrando no prédio, se fos- se suspeito estaria fugindo”, ¢ diz “onde € que ja se viu suspeito fugir para dentro?”’. Sem mais nem mais, co- ‘meco a fiéar a favor da mie india. O do Didrio Vigilan {e vai fazer outra pergunta, mas ela o interrompe € diz que trabalha no 204 ha quinze anos, que todo mundo sabe quem ela 6, que aquele miserével ali conhe Iho delae nao o defende porque tem preconceito decor. Vai atacar de novo 0 zelador, mas € suspensa pelo poli- cial, Outro repérter de tevé indaga do zelador sea vit maera homosexual, © zelador resmunga "isso af eu no sei porque nunca vi". A india responde a Radio Prima zia que prenderam o filho porque ele estava sem docu- mento. Diz “meu filho estava voltando da praia, no é crime ir na praia, ninguém vai na praia com carteira de trabalho metida no cal¢a0”. Um sujeito atras de mim diz que também ¢ de jornal ¢ pergunta “afinal a bichona era artista ou o qué?”. Ela responde ‘‘a bichona sei 4, pare ‘ce que era professor de gindstica”. Aproxima-se 0 rep6r- ter da TV Promont6rio dizendo “ouvimos também a mie do principal suspeito”. Afa india perde a rao, agar- raas lapelas do repérter e desata a chorar no microfone e berrar “ele nao € criminoso!, meu filho é um mogo decente!”’, mas 0 cameraman, que est4 trepado no capo of da camionete, grita “nao valeu, ndo gravou nada, troca a bateria!”’. A india para de chorar, olha para o sector da 44 imprensa e diz. “imagine meu filho, que até € doente, estrangulando um professor de ginistica’’. Volta 0 re porter da Tv Promont6rio e pede-the para repetir a fa la anterior, que ele achou bem forte. Eu fiquei com von- tade que ela nao repetisse aquilo, mas agora no adian- ta, ela jf estd chorando mais que antes ¢ berrando “ele ‘nao € criminoso!, meu filho € um moco decentel, ele € sério ¢ trabalhador!”, Eu preferia que ela nao fizesse aquela cena porque saiu confusa, ¢ vai comprometer Jo, E quando ela falou que € trabalhador, justo naquele instante o rapaz apareceu na portaria, € a cimera o pegou descen- do na calgada com uma sunga de borracha, imitando pele de onga. £ um negro do tamanho de quatro mies, na verdade mais balofo que forte. Vem empurrado pe Jos guardas, os pulsos algemados ¢ o corpo curvado pa- ra frente, mas vem com a cara para o alto ¢ ri. Ri para 4 cdmera no capO, ri para as janelas dos vizinhos, ri pa- ra ninguém, ele ri para o sol, € eu creio que aquilo na boca dele nao € bem um riso. A mac tenta seguré-lo, ‘uma garota grita “‘tesdo!”, outro geita “maconheiro!”, € 0 rapaz € jogado no fundo do camburio. A mae cesgoela-se e corre as unhas na porta traseira do carro, ‘quer penetrar nas frinchas da porta. Consegue enfim ser presa € trancada no segundo camburdo. As duas via turas disparam as sirenes € partem debaixo de vaias. Dois funciondrios com jaleco do Instituto Médico- Legal saem agora do edificio transportando © compo, envolto em cobertores ¢ lengéis, ¢ quem esta proxi- mo, até mesmo 0 pessoal do bar, emudece. Chego a perceber o fluxo do silencio, ¢ é como um silencio que viesse por baixo do chio, € 0 chao se enrolasse feito tapete que fosse abafando todos os sons até 0 outro lado a avenida. O conpo passa diante dos meus olhos. 0 primeiro funcionario, de nariz inchado, sustentao pe- las axilas, deixando a cabeca pender como um saco. 0 45 segundo abraca-o por tras dos joelhos €, com seu pas: so incerto, franze € distende-o como um fole. Os pés do morto ficaram descobertos, ¢ sto pés bem tratados, apenas as solas meio encardidas, mas so pés que me parecem enormes, sdo pés que deviam calcar quarenta e seis, quarenta e sete. O corpo é encaixado numa ga veta do rabecio, Fu esperci que pingasse sangue, mas nao pingou. A partida do rabecio desencadeia 0 transit. Vao- se as equipes de televisao, desfaz-se 0 cordao de isola- mento, 0 povo circula, ¢ o zelador parece senut o brus- co desamparo da celebridade, mesmo tendo sido um artista timido; ergue 0 rosio e olha para todos os lados, antes de se recother a0 interior do prédio. Restam ape. cada, € dois policiais na portaria, Se eu entrasse agora para vi sitar o meu amigo, certamente me fariam perguntas. En tro no bar ao lado, ¢ o baleao esté apinhado de cotove- os. H4 um mict6rio nos fundos, mas a pia foi arranca da da parede ‘fas uma joaninha com duas rodas sobre a ca No trajeto para a casa de minha ex-muther, a sede que eu tinha foi suplantada por atroz urgéncia uriné- tia. O tanque bebido em pensamento por pouco me explode a bexiga, enquanto forgo inutilmente a chave na porta que ja foi minha. Custo a atinar com a fecha dura, que deve ter sido trocada e agora abre para a di- reita, € Sao trés Voltas, € nao suporto mesmo, estou a poucos metros do alvo, a utina foi avisada ¢ j4 avanga pelo seu canal. Atravesso a sala correndo, baixando © ziper, entro no banheiro € nao é, é a cozinha, mas a esta altura nao di mais para conter a grossa mijada no mérmore da pia ¢ em sua cuba de aco inoxidavel re pleta de lougas de ontem € copos com restos de vinho tinto. Ao doloroso alivio segue a nausea. Abro a gela- 46 deira ates de gua, ¢ sobe-me um cheiro doce de goia ba. Volto a sala com tonturas, e tenho a impressio de que cla esté invertida, Teriam tapado as duas janclas € aberto outras duas na parede oposta {As torneiras também s6 querem girar para 0 outro ado, capricho a que cedo constrangido, sentindo a al- ma canhota, Tensa, a agua do chuveiro cai na minha pele € nao escorre, ricocheteia. Gom paciéncia, consi go regular o temperamento da Agua, € entio comeca ‘mos a nos reconhecer, meu chuveito € eu. Recomegam a coincidir as irregularidades dele € as do meu corpo Fecho a cortina do box, € o vapor vai me comendo, ‘Vou perdendo de vista o meu corpo € o resto. Um dia, na sauna, meu amigo disse que os antigos chamavam esses banhos de lacdnicos. Pode ser. Nao sei o que uma coisa tem a ver com a outra. $6 sei que vou levar uns bons anos até acertar com outro chuveiro igual a este Nao vai ser nada ficil. No meu apartamento, o chuvei ro era de um jorro todo bem torneado, correto, justo, macigo, era um chuveiro burro, Aqui nao, aqui eu me sinto pleno. Alias, os antigos talvez nao fossem tao ler dos quanto parecem, ¢ ndo gostassem de ficar assim muito tempo cogitando no banho, Banhos laconicos. Eu, por mim, levava no vapor o resto da existéncia, Mas acho melhor parar um pouco, porque meus pés esto algo moles, pesados. Sinto que a 4gua me bate nas ca- elas. Vou olhar, ¢ parece que 0 box esti sem fundo, Desligo 0 chuveiro, deixo desanuviar, € constato que ‘© chao do box é uma poga de 4gua preta, Deve ter en- tupido tudo. Vejo a 4gua marrom no ladrilho do ba- nheiro, amarelastra invadindo a sala. Saio do box pas 50 a passo. HA duas toalhas no cabide do banheiro. Ela deve guardar as outras no armério do quarto. Calculo que, com cinco ou seis toalhas, eu possa montar uma barragem na sala e evitar a calamidade. Abro 0 armério do quarto e, pelo espelho interno, deparo com as mi: 47 nhas pegadas barrentas no carpete pérola. Ela vai pen sar que foi de propésito. Preciso ir embora. Nao posso ficar aqui parado. Minha mala deve estar no fundo do armério, Para apanhar a mala, tenho de tirar as roupas rio, Vejo um paleté de tweed que parece dela do an de homem, mas nao € meu. As roupas ficam espalha- das pelo quarto, igual a butique. Bla s6 pode pensar que foi de propésito. Mas a mala ndo esti no fundo do ar mério, Nao adianta ficar aqui parado, Tenho de encon. to-me na cama que j4 foi nossa. Fla mala trar essa mala, Se no ‘disse onde enfiou Jo adianta ficar aqui parado. Bu nao posso me N tsconder lemme etn howern doe no sei quem €, Preciso saber se ele pretende con. tinuar me perseguindo, Quando esse homem cansar de tocar a campainha € for embora, me levantarei da ca mae irei atris. J4 terd caido a tarde, ¢ ele dara por en cerrado 0 expediente, decidindo voltar a pé para casa E ‘mais um dia de trabalho inutil. Moraré numa casa de vila nao longe daqui, mas assim que the puser os pés, serd de manha. Pela janela o verei recém-chegado, ¢ ja se despedindo da mulher gravida. A mulher gedvida nunca saber se ele vai beijé-la, ou se est4 apenas cada dia mais corcunda. Sair da vila e atravessari a rua sem me ver. Entrard na empresa, um prédio com cingiienta € cinco andares, ¢ seu departamento funcionar4 no ter- ceiro subsolo. Eu serei barrado por falta de crach4, mas poderei espid-lo pelo circuito fechado. Passara a ma nha cotejando suas fichas com a documentacao do ar quivo central, que estar no chao, Haverd muito servi 0 atrasado, sem contar o que ele pega por fora para completar o saldrio. Recebera instrucdes para perseguit um 4rabe que mora no subtitbio, ¢ que ele ja tera per- seguido outras vezes, sem éxito. A frota da empresa re cusard missdo no subGrbio, ea verba para o taxi esta rd cansado, estar ficando corcunda, ¢ lastimaré 31 ri suspensa, Ele sair do prédio pouco disposto a to- mar trés Onibus © um trem para perseguir um arabe que nic para em casa, Nao notara que 0 acompanho até 0 cinema da esquina, onde levam um filme pornd. Arran- jarei lugar na fila atras da sua, ¢ conhecerei a nuca do ‘meu perseguidor. Largard o filme na cena das duas gr vis, c andard cabisbaixo pela cidade, pensando no 4ra- be. Jd estard anoitecendo quando ele reconhecera 2s pe ras portuguesas da calgada do prédio em L, onde es- tarei morando com minha ex-mulher. Entao se lembrard cde me perseguir ¢ ainda pegar o jantar em casa, poden. do fraudar um relat6rio antes de dormir, Nao suspeita 14 que 0 vejo parar a-minha porta, corrigindo a postu radiante do olho magico, ¢ tera unha imunda 0 grosso polegar que aperta campainhas. Quando ele esmurrar porta, estarei na cama, Tentard arrombar a porta, mas do:mirei profundamente, Sonharei que cle grita meu nome ¢ tem voz de muther afonica. £ ela. Salto da cama, Minha ex-mulher entra em casa cheia de gis, mas 86 consegue pronunciar “vocé...”. Nao con- tava me ver nu abrindo a porta, € vacila com a visio doapartamento. Faz o giro da sala, para na entrada do banheiro, sai andando de costas, anda que nem beba- da, entra no quarto e mergulha na cama aos prantos Pensei que ela fosse dizer “ta satisfeito?”", mas nao diz mais nada, fica deitada de brugos, soluca com 0 corpo inteito, € nao sei o que fazer. S6 posso olhar 0 corpo de- Ia se debatendo, o lado esquerdo bem mais que 0 di- reito e, olhando aquilo, de repente me vem um forte desejo, Eu mesmo nao entendo esse desejo, € contra mim. £ um contra-senso, pois se ela agora me chamas- se, e com a boca molhada dissesse “vem”, ou “sou tua”, ou “faz comigo 0 que te der prazer”, talvez eu nao sentisse desejo algum, Mas ela chora da cabeca aos és, 05 pés contorcidos para dentro € as mios arran cando 0s cabelos, num espasmo que me deixa espan- 52 tado, um espanto que aumenta o meu desejo. Eu nao queria desejar uma mulher assim arrebentada. E se ela me vir neste estado, vai achar que é de prop6sito. Pro: curo pensar noutras coisas, ¢ lembro que ela sempre guardou nossas malas embaixo da cama. A minha é uma meio antiga, de curvim, Visto um jeans, uma camiseta branca sem publicidade, e ainda descubro no fundo da mala uns tenis pouco rodados € de bom tamanho que nem sei se.eram meus £ noite e faz um calor abafado. A mala até que esta leve, mas carregé-la € incémodo, chama a atengao. Pa ro no meio-fio ¢ fago de conta que espero um taxi, Um tixi freia e eu saio andando com a mala, fingindo con. ferir a numeragao dos edificios. Dobro a esquina ¢ to- mo uma rua sem movimento; talvez um assaltante me livre da mala. Com 0 sono em dia e de banho tomado, poderia andar por af até amanha, sem compromisso. Mas um homem sem compromisso, com uma mala na mio, est4 comprometido com o destino da mala. Ela me obriga a andar torto € depressa. Quando dou por ‘mim, estou ao pé das ladeiras que levam 2 casa da mi nha irma, Parece que era esse 0 caminho arrevesado que eu faria se fosse cego. E estas so as ladeiras ingre- mes que subo como Agua ladeira abaixo. Fazia tempo que no vinha aqui de noite, e quando via distancia a nova iluminagao do condominio, pen- Sei que fosse uma filmagem. Um aparato de holofotes anula 0s paralelepipedos, devassa as érvores por baixo as copas e ofusca a vista ce quem chega. Nao localizo 0 ‘vigia que pede para eu me identificar. f mais de um vi- ia, do varias vozes que repetem meu nome como um, eco na guarita. A resposta também chega em série, € tenho que ouvir "nao consta da lista”, “nao consta da lista", “no consta da lista”. Depots ougo uma ri 33 sada que vai € volta, € uma cigarra emaranha-se nos meus cabclos. Nao sei de que lista sto falando, 56 quero deixar uma mala na casa 16, ¢ devo ter algum problema porque as vozes vio se alterando. Pergun tam o que trago naquela mala, € antes que eu possa responder, uma silhueta arranca a alga da minha mao, Apesat do tranco, fico agradecido; a mala encontrou seu destino € estou afinal solto dela. Penso que estou solto de tudo, que a cidade me espera, mas quando ensaio a retirada, umas garras penetram meu braco arrastam-me de volta a0 foco de luz, Um camarada de jaquetao bege vem me abracar, depois desce as mos elas minhas costas, apalpa as minhas nidegas, viri Ihas, coxas, atrs do joelho, ¢ esté revistanco meu tor- nozelo quando chega um carro grande € preto com videos fume. Abre-se um centimetro na jancla da fren te, 0 homem que esté na direcio fala um nome com- prido de mulher. A guarita acha que esté bom ¢ acio- na 0 portio eletronico, mas o carro nao da a partida, Uma voz de mulher pergunta se no quero subir. Pro. curo a mulher no clarao da guarita, mas a voz vem da treva do fundo do carro preto. Todos os viglas bai ‘xam da guarita para atender 2.voz, falam “positivo ma- dame", em seguida o chofer sai do carro e abre a por- ta de tras para eu entrar. f uma amiga magrinha da minha irmA que conheco de old ha muitos anos, € esté com um binéculo na bo- ca. Pergunta se gosto de caub6i, e ofcrece-me um gole do binéculo. Depois apanha uma garrafa de ufsque atras do encosto e diz. que meu cunhado, nao da para con fiar nem na bebida dele. Tenta baldear 0 uisque da gar: rafa para o gargalinho do binéculo, mas 0 carro borde. ja na ladeira, ela sacode-se de tir, ¢ 0 uisque ensopa a saiacurta do scu tailleur. Fala “ih, caceta’’. Hd um con gestionamento no final da ladeira, ¢ ela resolve saltar ali mesmo. Saracoteia de salto agulha nos paralclepi- 54 pedos. Entra na festa com os sapatos na mao € o bind: culo pendurado no pescoco, Se eu soubesse que minha irma dava uma festa, te ria 0 menos feito a barba, Teria escolhido uma roupa adequada, se bem que ali haja gente de tudo que ¢ jei 10; jeito de banqueiro, jeito de playboy, de embaixa- dor, de cantor, de adolescente, de arquiteto, de paisa- sista, de psicanalista, de bailarina, de atriz, de militar, de estrangeiro, de colunista, de juiz, de filantropa, de ministro, de jogador, de construtor, de economista, de figurinista, de contrabandista, de publicitério, de vicia- do, de fazendeiro, de literato, de astréloga, de fordgra- fo, de cineasta, de politico, « meu nome no constava da lista, Parte desses convidados ocupa as mesas redon- das que foram armadas no jardim. Como nao conhe¢o ninguém, tenho liberdade para contornar as mesas € emendar fragmentos de discursos, discussées, gargalha- das, Outras pessoas retinem-se de pé na extensio do gramado, formando uma seqiiéncia de circulos. Posso observar como se comporta um circulo, como se fe- cha, como se abre, como um circulo se incorpora.a ou. tro. Vejo circunferencias que se dilatam exageradamen- te, até que se rompem feito bolhas e dao vida a novas rodas de conversa. Vejo rodas sonolentas, que perma necem rodas pela geometria, no pelo assunto. Tento acompanhar assuntos que saem de uma roda para ani- mar a outra, € a outra, € a outra, como uma engrena gem. Hi instantes em que a festa inteira parece combi nar uma pausa, € ouve-se entdo um acorde da orques tra que toca miisicas dangantes no interior da casa. Desco por uma aléia a luz de tochas onde jé nao ha rodas; as pessoas encontram-se de par em par € con: vversam em surdina. Passa por mim um rapaz.com uma taga de vinho branco em cada mio. O rapaz tem um rosto bonito, um pouco bonito demais, ¢ desaparece numa depresso do terreno, além das tochas. O céu 55 0 mesmo céu bruto de ontem a noite, € ainda no vi minha irma, L4 no fundo, o circulo transhicido da piscina salta do negrume como um antiposo. Rodeio a piscina, 0 vestidrio, a quadra de tenis, € sinto queas folhagens comegam a se agitar naquela bak xada, Tento seguir até 0 final do terreno, no limite do hhorto florestal, mas o vento langa areia nos meus olhos. ‘Acho improvavel que minha irmd esteja ai, ¢ quase ¢s- barro no rapaz muito bonito, que sobe de volta des pentcado. Passa olhando por cima da minha cabeca, le- ‘va.as duas tacas de vinho ainda cheias, e desvia por um atalho que eu nao conhecia, O atalho termina num nf vel abaixo da casa, onde hi um barranco de terra com- pactada entre aliverces, um ponto onde ninguém mar caria encontro. Nas juntas dos pilares de aco com a la je de sustentacio da piramide foram chumbaclos pane: Joes de luz amarcla que atraem ¢ fulminam todos os in- setos, O rapaz dé voltas errdticas sob a laje do grande salzo, que balanga na cadéncia da orquestra. Anda com a cintura presa, por equilibrar as tacas, ¢ mantém a f- sionomia compenetrada, como um modelo fotografi- co. Pra diante de um panelio de luz € vira 0 rosto pa- ramim num movimento abrupto, jogando para trés os cabelos que Ihe cafam na testa. Pergunta “que horas 107”, mas estou de camiseta ¢ é evidente que nao uso relbgio, Subo a escadinha de pedra de volta 20 jardim, que recebeu nova leva de convidados. Abro caminho em direcdo 2 casa, € no hall de entrada me envolvo com tum grupo de mogas que sacm da danga sc abanando, soprando os decotes de suas blusas pretas. Vern che gando do jardim dois homens de uns cingilenta anos, bronzeados, bebendo vodca, ambos com sapatos bran- cos € Jeito de sécios do late Clube, O mais alto traja ‘um blazer azulmarinho com botdes dourados, € usa gel nos cabelos grisalhos. O baixinho de axilas enchar- 56 cadas usa uma cinta anatOmica por baixo da roupa, de- formando o abdomen que supde disfargar; € esse © ma- rido da minha irma, ¢ aponta para mim, Enfio-me en: tre as mogas de preto, entro na casa, busco um banhel- 10, mas sou interceptado por um rapaz que julga me conhecer. Sacoleja meus ombros e diz "voce estava cer- tol, voce tinha razAot”. Diz outras coisas que nao en. tendo, com grande veeméncia € velocidade, como se me transmitisse uma corrida de cavalos. Meu cunhado me alcanga com o amigo grisalho, a quem me apresen: ta dizendo “é esse”. © grisalho diz que € sempre as. sim, que em toda familia que se preze existe um porra- louca, Meu cunhado quer me defender ¢ diz que sou meio artista, dé-me um soco nas vértebras € diz “nao mesmo?” Diz que o amigo tem uma casa de campo vizinha a0 nosso sitio, mas desistiu do verancio por- que a regio anda muito mal frequentada. Diz que 0 amigo diz. que deixei nosso sitio virar um antro de va- gabundos. Vejo passar um gargom afoito, saio no en- calgo de um uisque € me infiltro no salio, onde as pes- soas dangam ¢ batem palmas marcando 0 tempo da mi, sica, Atravesso o saldo por trés da orquestra, ¢ vou dar na sala de jantar. Abordo o bufé, hesito entre 0s cana: pés ¢ uns camardes espetados num repolho, quando escuto “‘vagabundos, marginais ¢ delingiientes”, Meu cunhado diz “nao acredito”, puxa a minha camiseta¢ pergunta “voce sabia?”. O grisalho diz “va ld ver”, € ‘meu cunhado, “nunca fui, minha mulher detesta”. O grisalho diz “era um paraiso”, meu cunhado, “ea po- licia?”, o grisalho, “‘cansei de dar queixa’, ¢ no sei o ‘que mais dizem, pois assisto escalada da ventania que apagou tocha por tocha nas aléias, ¢ agora revira os m6: eis do jardim. Gargons galopam no gramado com toa- thas de mesa coloridas, parecendo festejar um campeo- ato, ‘Abro uma portaque di na copa, € 0 rodeio de ban- dejas me desorienta para uma outra sala, desproporcio- 7 nada, deserta € branca, que desconfio ser uma sala de troféus de caga sem troféus de caca. Nas paredes altas parece reverberar a voz do meu cunhado, “minha mu- Iher detesta”, “minha mulher detesta”. Espio o jardim de inverno, o patio interno 3s escuras, a mesa oval, a grande escada, ¢ ali também nao ha ninguém. Aquela uma escada atraente, mais larga que alta, que um ca- sal poderia descer dangando. Se cu subisse agora para segundo andar, ninguém me veria, como ninguém vviu da primeira vez Era um domingo no inicio deste verao, e eu viera visitar minha irma de surpresa, Bla estava na piscina com uns amigos, € lembro que usava um maid inteiro, cor de vinho. Dei um mergulho, passei 6leo no corpo, to- mei sol, mas ndo me entrosei porque ali s6 se falava de viagens, de cidades e pessoas interessantes que nun- ‘avi, Rodei pelos jardins sem ser notado, entrei em casa bebi uma cerveja na cozinha, onde um rapaz pendu- rado nuns andaimes limpava a gordura das vidracas. Meu cunhado havia saido, acho que a filha também, € era folga da maioria dos empregados. Liguei a apare- thagem de som, passeei de sandilias pelos sal6es, ¢ vim dar nesta escada. Vime subindo a grande escada. Vi- ‘me nao tanto querendo ir, mas como que sendo cha- mado pelo quarto da minha irma. Nao set por que, passou-me a idéia de que minha irma queria que eu olhasse 0 scu quarto, dispensando familia, amigos e crta dagem do meu caminho. Atravessei um corredor cheio de portas falsas, sabendo muito bem onde era o quarto. Eu no precisaria entrar para saber como era 0 quat- 10 dela, pois ja imaginava conhecé-lo intimamente. Mas a curiosiciade é mesmo feita do que jé se conhece com a imaginacao. Entrei no quarto ainda desarrumado e re- conheci os espacos, a temperatura, a liminosidade, o tom pastel, gravuras orientais pelas paredes. No meio diquilo, a cama de casal me apareceu como uma instal. 58 clo insensata; eu jamais pudera imaginar que minha ir- ma € 0 marido dormissem no mesmo quarto. Hoje encontro a porta encostada, 0 quarto escuro, € arrependo-me um pouco de ter entrado, Os metais da orquestra chegam cé em cima com toda a poténcia, mas estou certo de ter ouvido um suspiro, um suspiro de voz conhecida, Sinto que me habituarei a penum- bra e verei dois corpos na cama. O homem poders ser © rapaz bonito das tacas de vinho, e terd os ombros mui- to brancos. Ea mulher, cla vera que estou ali, mas nao vai mais conseguir interromper, no vai querer inter romper, ¢ estar com os cabelos castanhos abertos co- mo um leque no lengol, € vai me olhar de um modo que nunca me olhou, Pretenderei virar as costas, mas estarei emperrado, Experimentarei dizer ‘agora chega’’, ‘mas sairo outras palavras. Determinarei nao enxergar mais nada, 0 que ser4 ingenuo; fecharei os olhos com tanto impeto, que as palpebras cairio no chao, Minha visio clareia e no hé ninguém no quarto, Ali std a cama impecivel, com uma colcha de renda anti ie almofaddes. Naqucle domingo aquela cama me des- gostou, 0 lado do marido todo amarfanhado, dei o quarto por visto. Estava me retirando quando ouvi uns passos no corredor. Se eu tivesse pedido a minha ir- ma, claro que ela largaria os amigos na piscina e me mostraria a casa inteira de bom grado, Mas ela topar co- ‘migo no quarto, ela me flagrar de calc3o timido no quar: to dela, seria lamentavel. Precipitei-me por uma porta a0 lado da cama, ¢ dei num closet que era mais uma sala, com vista para 0 patio interno, clara como um aqudrio ¢ sem outra saida, Os passos chegaram ao quar: to, € eu estava encurralado, Achei que ela entraria no closet para trocar de maid, porque ha uma hora em que elas trocam de maid, E eu me esconderia entre as rou- pas de inverno, e pelo espelho a veria a ponto de des- pir 0 maid cor de vinho. E cla poderia rodopiar e me 59 surpreender pelo mesmo Angulo, ou talvez. apenas me pressentisse, ¢ desejasse despir-se distraidamente para mim, Mas 0s passos em ziguezague pelo quarto nao eram dela. Os ruidos eram de arrumadeira, correndo as cortinas € basculando as janelas, juntando copos, cin. zeiros, jornais € suplementos pelo chio. Percebi que ‘© servico iria demorar, pois nao se tratava de arruma- do domingucira, de puxar os lenc6is fazendo monti- nnho embaixo do colchao; eram flops generosos de lencéis-bandeiras, proprios de camareira de grande hotel. Entro hoje naquele closet pela segunda vez, € mes mo sem acender a luz, sei por onde ando. Ando pelo setor dela € 100 camisolas, véus, vestidos, balango mangas de seda, Sei que metade da parede esquerda € ‘ocupada por uma sapateira que naquele domingo me encheu 0s olhos: botas, mocassins, escarpins, quanti: dade de modelos em todas as cores. Atris da sapateira hé uma reentrancia de que me lembro bem, pois foi ali que me embuti quando a arrumadeira entrou no clo- set, levou um bom tempo manejando cabides, ¢ encer rou o servigo. Naquele meu canto havia uma estante repleta de caixas que fui abrindo, encontrando mais sa- patos, ainda virgens. Depois abri uma caixa redonda ti po chapeleira, c dentro dela estava outra caixa, também redonda, ¢ saiu outra de dentro, ¢ mais uma, que nem boneca russa. Dentro da tiltima chapeleirinha encon- trei uma bolsa de camurga clara. Intrometi-the a mao € toquei as j6ias da minha irma. Em mostniério ou em corpo de mulher, minha vis ta pode nao discernir a j6ia nobre. Mas havia como que ‘uma transpira¢ao naquelas pedras, ¢ minha mao logo captou a sua natureza. A mao jé entorpecia ali dentro, ‘enio sabia mais largar as pedras. Larguei, refiz. 0 lago no cordao de camurga, € coloquei de volta a bolsa com as jOias na caixa da caixa da caixa da caixa. Lembrei 60 me da conversa na piscina, as mulheres comentando que nesta cidade ninguém mais € louco de andar com j6ias, “Na Europa € supernormal’”, dizia uma, ‘inclusi ve no metrd, usar j6ia € supernormal.” Significava que, para a proxima viagem, minha irma viria buscar suas joias nessa bolsa de camurga. Faltasse alguma coisa, uma micanga que fosse, ¢ a arrumadeira iria para 0 otho da tua, Deixei o closet considerando-me um bom sujeito. Despedi-me de longe do pessoal na piscina, mas creio que nem minha irma me ouviu. Agora tateio a estante das caixas e reconhego a cha peleira. Levanto as sucessivas tampas € aliso a camur- a. Repartir as j6ias entre os quatro bolsos do meu jeans um gesto ripido como um reflexo. Um ato tao silen- cioso € obscuro que nem eu mesmo testemunho. Um ato impensado, um ato tio manual que pode se esque: cer. Que pode se negar, um ato que pode nao ter sido, Ao passar do closet para 0 quarto, sou paralisado por um “olé” de muther. Desta vez ha mesmo alguém na cama, Bla vem se chegando descalga, € € a magri ‘aba amiga da minha ima com um batom na mao. Penso que vai pintar a boca, mas € 4 narina que ela leva o ba: tom € aspira fundo, Fala “ih, caceta’” e atira longe o batom. Atraca 0 corpo ao meu € diz.“melou””. Abraca me, comprime suas coxas contra as minhas, ¢ deve sen tira saliéncia das j6ias nos meus bolsos. Desembaraco me, procuro a saida, mas ela grita “olhat"’. Abre dois botdes do tailleur, vai descobrindo 0 seio esquerdo diz “voce nao me conhece”. No corredor, to “eu sou carinhosa!”’ € “eu sou hiperdoidal” A escada estd desimpedida, 0 jardim de inverno, a sala de troféus, € num pulo alcango a escada em cara. col que da na garagem; que daria na garagem, porque 4 porta est4 trancada ¢ levaram a chave. Sou obrigado a voltar pela copa. Ali me vejo no meio de uns homens que parecem de outra circunstdncia, cada qual com seu linda escu a

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