You are on page 1of 32
1, Ciéncia: Conjecturas e Refutacdes* “O Senhor Turnbull tinha previsto conseqiiéncias nefastas, ... € agora fazia tudo 0 que podia efetivar suas préprias profecias.” Anthony Trollope Quando recebi a lista dos participantes deste curso, © percebi que tinha sido convidado a me dirigir a colegas flésofos, imaginei, depois de algumas hesitagdes ¢ consultas, que os senhores prefeririam que falaste sobre os problemas que mais me interessam € os desenvolvimentos com os quais estou mais familiarizado. Decidi Portant, fazer algo que jamais havia feito antes: um relato do meu trabalho no campo da filosfia da ciéncia desde o outono de 1919, quando comecei a lutar com © seguinte problema: “Quando pode uma teoria ser classificada como cientifica?”, ou "Existe um critério para clasficar uma teoria como cientifica?” Naquela época, nio estava preocupado com as questdes “Quando é ver- dadeira uma teoria?” ou “Quando é aceitavel uma teoria?” Meu problema era outro. Desejava tragar uma distingdo entre a ciéncia e a pseudaciéncia, pois sabia muito bem que a ciéncia freqiientemente comete erros, a0 passo que a pseudocien- cia pode encontrar acidentalmente a verdade. Conhecia, evidentemente, a_resposta mais comum dada ao problema: a ciéncia se distingue da pscudociéncia ~ ou “metafisica” — pelo uso do método em. pirico, essencialmente indutivo, que decorre da observacio ou da experimentacio. Mas essa resposta nao me satisfazia. Pelo contrario, formulei muitas vezes meu problema como a procura de uma distin¢do entre @ método genuinamente em- Pirico € 0 nao empirico ou mesmo pseudo-empirico — isto é, 0 método que, em- bora se utilize da observacio © da experimentagio, ndo atinge padrao cientifico. ‘Um exemplo deste método seria a astrologia, que tem um grande acervo de evidén. cia empirica baseada na observacdo: horéscopos e biografias * Confertnca feitaem Peterhouse, Cambridge, no vero de 1953, como parte de curso sobre a evolugdo «a tendéncias da flosofa inglesacontempasinea, organizado pelo Brtth Couned, publicado orignal. ‘mente sob oto “Phe of Sse a Penal Rep tn" rth Philaapy ix Meet" edit CA Mace, 6 CCONJECTURAS F. REFUTAGOES Mas, como nao foi o exemplo citado que me levou a0 meu problema. creio aque seria oportuno descrever brevemente o clima em que ele surgiu e os exemplos que o estimularam, Apés 0 colapso do Império Austriaco, a Austria havia passado Tor uma, revolego; a staiafers extsin casregada dq’ sligens © tear revs Conérias; circulavam teorias novas e freqlentemente extravagantes Dentre as que me interewavam, a teoria da relatividade de Einstein era sem duvida a mats impor ante; outras tr eram a teoria da histéria de Marx, a psicandlise de Freud e @ ‘psicologia individuals de Alfred Adler Popularmente, falavam-se muitas coisas absurdas sobre essas teorias. so bretudo a da relatividade (como acontece ainda hoje), mas tive sorte com as pessoas ‘que me introduziram a clas. Todos nés — 0 pequeno grupo de estudantes a0 qual pertencia — vibramos ao tomar conhecimento dos resultados da observacio de um eclipse empreendida por Eddington, em 1919, a primeira confirmacao importante da teoria da gravitacdo de Einstein. Foi uma experiéncia muito importante para ‘nés, com influéncia duradoura sobre o meu desenvolvimento intelectual. Naquela época, as trés outras teorias que mencionei eram também. am: plamente discutidas no meio estudantil. Eu mesmo tive umm contato pessoal com Al. fred. Adler e cheguei a cooperar com ele em seu trabalho social entre as criangas & (5 jovens dos bairros proletirios de Viena, onde havia estabelecido clinicas de crientagao social, Durante o vero de 1919, comecei a me sentir cada ver mais insatisfeito com cessas trés teorias — a teoria marxista da hist6ria, a psicandlise © a psicologia in: dividual; passei a ter dividas sobre seu status cientifico. Meu problema assumiu, primeiramente, uma forma simples: “O que cstara errado com o marxismo, a psicandlise e a psicologia individual? Por que serao tao diferentes da teoria de New. ton € especialmente da ceoria da relatividade?” Para tornar claro este contraste, devo explicar que, naquela épaca. poucas afirmariam acrediar oa serdade contida na teoria da ravitagio de Einstein. O ‘ue me incomodava, portanto, nao era o fato de duvidar da veracidade daquelas ttés teorias, também no era o fato de que considerava a flsca matemética mais exata do que as tcorias de natureza psicolégica ou sociologica. O que me preo cupava, portanto, ndo era, pelo menos naquele estagio, o problema da veracidade da exatidio ou da mensurabilidade, Sentia que as trésteorias, embora se apresen tassem como ramos da cincia, tinham de fato mais em comum com os mios primi tks do gue com a propria ciécia, ques aproximavam mais da astoloia do que Percebi que meus amigos admiradores de Marx, Freud © Adler impres sionavam-se com uma série de pontos comuns as trés teorias, ¢ sobretudo com sua aparente capacidade de explicacdo. Essas teorias pareciam poder explicar prati: camence tudo em seus respectivos campos. O estudo de qualquer uma delas pa: recia ter 0 efeito de uma conversdo ou revelagao intelectual, abrindo os olhos para uma nova verdade, escondida dos ainda nio iniciados. Uma ver abertos os olhos. podia'se ver exemplos confirmadores em toda parte: 0 mundo estava repleto de verificacdes da teoria. Qualquer coisa que acontecesse vinha confirmar isso. A ver dade contida nessas teorias, portanto, parecia evidente; os descrentes eram niti. damente aqueles que ndo queriam vélla: recusavam-se a isso para ndo entrar em CIENCIA: CONJECTURAS E REFUTAGOES 6 conflito com seus interesses de classe ou por causa de repressdes ainda no anali sadas, que precisavam urgentemente de tratamento, © mais caracteristico da situagio patecia ser o fluxo incessante de confir- magies, de observacbes que «verificavams as teorias em questo, ponto que era en- fatizado constantemente: um marxista ndo abria um jornal sem encontrar em cada pagina evidéncia a confirmar sua interpretacio da histéria, Essa evidéncia era detectada nao s6 nas noticias, mas também na forma como eram apresentadas pelo jornal — que revelava seu preconceito de classe — e sobretudo, € claro. naquilo gue 0 jornal ndo mencionava. Os analistas freudianos afirmavam que suas teorias ram constantemente verificadas por “observagées clinicas”. Quanto a Adler, fiquei muito impressionado por uma experiéncia pessoal. Certa vez, em 1919, informei-o de um caso que ndo me parecia ser particularmente adleriano, mas que ele ndo eve qualquer dificuldade em analisar nos termos da sua teoria do sentimento de inferioridade, embora nem mesmo tivesse visto a crianca em questo. Ligeiramente chocado, perguntei como podia ter tanta certeza. “Porque a tive mil experiéncias, desse tipo” — respondeu; ao que n3o pude deixar de retrucar: "Com este novo caso, © ntimero passard entio a mile um...” © que queria dizer era que suas observagdes anteriores podiam nao merecer ‘muito mais certeza do que a altima; que cada observacao havia sido examinada a luz da «experiencia anterior», somando-se ao mesmo tempo as outras como contr magio adicional. Mas, perguntei a mim mesmo, que € que confirmava cada nova observacao? Simplesmente 0 fato de que cada caso podia ser examinado a luz da teoria. Refleti, contudo, que isso significava muito pouco, pois todo ¢ qualquer ‘caso concebivel pode ser examinado & luz da teoria de Freud e de Adler. Posso ilus tar esse ponto com dois exemplos muito diferentes de comportamento humano: 0 do homem que joga uma crianca na 4gua com a intencao de afogé-la e o de quem sacrifica sua vida na tentativa de salvar a crianga. Ambos 0s casos podem ser ex: plicados com igual facilidade, tanto em termos freudianos como adlerianos, Segun- do Freud, ¢ primeiro homem sofria de repressio (digamos, algum componente do seu complexo de Edipo) enquanto segundo aleaneara a sublimacao. Segundo Adler, o primeiro sofria de sentimento de inferioridade (gerando, provavelmente. necessidade de provar a si mesmo ser capaz de cometer um crime). ¢ 0 mesmo havia acontecido com o segundo (cuja necessidade era provar a si mesmo ser capaz de salvar a crianga). Nao conseguia imaginar qualquer tipo de comportamento humano que ambas as tcorias fossem incapazes de explicar. Era precisamente esse fato ~ elas sempre serviam e eram sempre confirmadas — que constituia o mais forte argumento em seu favor. Comecei a perceber aos poucos que essa forca aparente era, na verdade, uma fraqueza. Com a teoria de Einstein. a situacdo era extraordinariamente diferente. Tomemos um exemplo tipico — a predigao de Einstein, confirmada havia pouco por Eddington, A teoria gravitacional de Eins tein havia levado a conclusio de que a luz devia ser atraida pelos corpos pesados (como 0 Sol), exatamente como ocorria com os corpes materiais. Caleulow'se por tanto que a luz proveniente de uma estrela distante, cuja posi¢ao aparente estivesse proxima ao Sol, alcancaria a Terra de uma direcio tal que a estrela pareceria estar ligeiramente deslocada para longe do Sol. Em outras palavras, as estrelas proximas a0 Sol pareceriam ter-se afastado um pouco dele e entre si. Isso ndo pode ser nor ‘malmente observado, pois as estrelas se tornam invisiveis durante o dia, ofuscadas pelo brilho irresistivel do Sol; durante um eclipse, porém, € possivel fotografa-las Se a mesma constelacdo é fotografada durante um eclipse; de dia e & noite, pode-se medir as distancias em ambas as fotografias © verificar 0 efeito previsto, 66 (CONJECTURAS E REFUTAGOES © mais impressionante peste caso é 0 risco envolvido numa predicdo desse tipo. Se a observacdo mostrar que 0 efeito previsto definitivamente no ocorreu, a tcoria é simplesmente refutada: ela é incompativel com certos resultados passfoeis da observacio; de fato, resultados que todos esperariam antes de Einstein. Essa situacao € bastante diferente da que descrevi anteriormente, pois tornou-se evidente ‘que as teorias em questo eram compativeis com © comportamento humano ex. tremamente divergente, de modo que era praticamente impossivel descrever um. tipo de comportamento que ndo servisse para verificé-las, Durante 0 inverno de 1919-1920, essas consideragdes me levaram a con: clusdes que posso agora reformular da seguinte maneira. (1) £ facil obter confirmagies ou verificagies para quase toda teoria ~ des de que as procuremos (2) As confirmacies s6 devem ser consideradas se resultarem de predigies arriscadas; isto é, se, nao esclarecidos pela teoria em questo, esperarmos um acon: tecimento incompativel com a teoria e que a teria refutado. (3) Toda teoria cientifica “boa” é uma proibicdo: ela profbe certas coisas de acontecer. Quanto mais uma teoria profbe, melhor ela é (4) A teoria que nao for refutada por qualquer acontecimento concebivel ndo € cientifica, A irrefutabilidade no € uma virtude, como freqiientemente se pensa, mas um vicio. (5) Todo teste genutno de uma teoria é uma tentativa de refuté-la. A pos sibilidade de testar uma teoria implica igual possibilidade de demonstrar que € fal sa. Ha, porém, diferentes graus na capacidade de se testar uma teoria: algumas sd0 mais "testaveis", mais expostas a refutagdo do que outras; correm, por assim dizer. (6) A evidéncia confirmadora nao deve ser considerada se ndo resultar de um teste genuino da teoria; © teste pode-se apresentar como uma tentativa séria porém malograda de refutar a teoria. (Refiro-me a casos como o da “evidencia corroborativa”). (7) Algumas teorias genuinamente “testaveis", quando se revelam falsas, continuam a ser sustentadas por admiradores, que introduzem, por exemplo, al- uma suposicio auxiliar ad hoc, ou reinterpretam a teoria ad hoc de tal maneira que ela escapa a refutacao. Tal procedimento € sempre possivel, mas salva a teoria da refutacdo apenas ao preco de destruir (ou pelo menos aviltar) seu padrao cien- tifico. (Mais tarde passei a descrever essa operacdo de salvamento como uma “dis. toreda convencionalista” ou um “estratagema convencionalista, ") Pode-se dizer, resumidamente, que o critério que define o status cientifico de uma teoria € sua Capacidade de ser refutada ou testada 1 144 aqui uma ligeira simpliicagao, pos cerea de metade do efeico Einstein pode ser dedusido a partir da tori classiea, desde que se assuma uma teora Dalisies da lo CIENCIA: CONJECTURAS E REFUTACOES or Posso exemplificar 0 que acabo de afirmar com a ajuda das diversas teorias J mencionadas. A teoria da gravitacio de Einstein satisfazia nitidamente o critério da “refutabilidade”. Mesmo se, naguela época, nossos instrumentos nao nos per- ‘mitiam ter plena certeza dos resultados dos testes, existia claramente a possibili dade de refutar a teoria. A astrofogia ndo passou no teste. Os astrélogos estavam muito impres sionados ¢ iludidos com aquilo que acreditavam ser evidencia confirmadora — tan- to assim que pouco se preocupavam com qualquer evidéncia desfavordvel. Além iso, tornando suas profecias e interpretagdes suficientemente vagas, eram capazes de explicar qualquer coisa que possivelmente refutasse sua tcoria se ela ¢ as pro- fecias fossem mais precisas, Para escapar & falsficacdo, destruiram a “testabili dade" de sua teoria. £ um trugue tipico do adivinhador fazer predigdes to vagas ue dificilmente falham: clas se tornam irrefutaveis. Apesar dos esforgos sérios de alguns de seus fundadores e seguidores, a teoria marxista da historia tem ultimamente adotado essa mesma pratica dos adivi nhadores. Em algumas de suas formulacées anteriores (como, por exemplo, na analise de Marx sobre o carater da “revolucdo social vindoura"), as predicoes eram “vestaveis" e foram refutadas.? Mas em vex de aceitar as refutacdes, os seguidores de Marx reinterpretaram a tcoria e a evidéncia para fazé-las concordar entre si. Sal varam assim a teoria da refutagdo, mas ao preco de adotar um artficio que a tor nou de todo irrefutavel. Provocaram, assim, uma “distorgao convencionalista” des truindo-Jhe as anunciadas pretensbes a um padro cientifico. As duas teorias psicanaliticas pertencem a outra categoria, por serem sim. plesmente nao “testaveis" e irrefutaveis. Nao se podia conceber um tipo de compor- tamento humano capaz de contradizé-las. Isto nao significa que Freud e Adler es tivessem de todo errados. Pessoalmente, no duvido da importancia de muito do ‘que afirmam e acredito que algum dia essas afirmacdes terdo um papel importante numa ciéncia psicoldgica “testavel”. Contudo, as “observagoes clinicas”, da mesma ‘maneira que as confirmagdes diarias encontradas pelos astrGlogos, no podem mais ser consideradas confirmagoes da teoria, como. acreditam ingenuamente os analis. tas. Quanto a epopéia freudiana do Ego, Superego e Id. nio se pode reivindicar para ela um padrao cientifico mais rigoroso do que das estorias de Homero sobre (© Olimpo. Essas teorias descrevem fatos, mas A mancira de mitos: sugerem fatos psicoldgicos interessantes, mas no de maneira “testavel”, 2 — Vide, por exemplo, meu livro Open Society and Its Enemies, cp. 15, sexo, eas notas 18 e 14 83 ~ As “observacdes cinias". como qualquer tipo de observa, sho tnterpetacées empreendidas & luz das teoras vide, a seguir. as sees iv eseguiter); por esta rard0, pedem parecer sistentar a eoiat 8 us das quais foram interpretadas. Mas 0 verdadeito apoio «uma tora +6 pode ser obi através de ‘bservactes empreendidas como testes (“entativas de refi"), para or quale o criterias de refutagdo vem ser staelecidos aneriormente: devese defiair que situacdes observes relutariam a teria se fassern realmente obuervadas. Mas, que resultados elinicos poderiam refute satsftorimmente noc ure iagnéstico analtico em particular mas» propria psicandlie? Or snalsias tem disutido cvs con ‘cordado com cls? Nio exsiri, ao conraro, toda uma série de concitos analiicos como, por exempo, © conceto de "ambivaléncia” (nko estou ugerindo que ete conceito ndo exita) que tometiam dite, se ‘nfo impostvel, chegar a um acordo sobre tal erterior? Alem dima, ue. progresio tem sido 6s CONJECTURAS EREFUTAGOES. ‘Ao mesmo tempo, percebi que alguns desses mitos podem desenvolver-se € tomar-se “testaveis”. Compreendi que, historicamente, todas — ou quase todas — 1aram em mitos; que um mito pode conter importantes antecipacaes de teorias cientificas. Como exemplos, citaria a teoria da evolucio por ferros ¢ acertos, de Empédacles, e 0 mito de Parménides sobre o universo imutavel, ‘onde nada jamais acontece. Se adicionarmos mais uma dimensio ao universo vi sualizado por Parménides, teremos 0 universo de Einstein (no qual. também. nada jamais acontece, pois, em termos de quatro dimensdes, tudo esta determinado ¢ estabelecido desde o inicio). Acreditava, portanto, que, se uma teoria passa a ser considerada nao cientifica, ou «metafisicas, nem por isso seré definida como «ab- surdas ou “sem sentido”. Mas no se poderd afirmar que esteja sustentada por evidéncia empirica (na acepcao cientifica), embora possa facilmente ser um “resul- tado da observacao” em sentido lato. (Havia um grande mimero de outras teorias com este mesmo carater pré ou pseudocientifico, algumas das quais, infelizmente, to influentes quanto a teoria marxista da histéria. Pode-se citar, como exemplo, a interpretagao racista da his téria — outra daquelas impressionantes teorias que tudo explicam. e que atuam ‘como revelacdes sobre as mentes fracas.) Assim, 0 problema que eu procurava resolver propondo um critério de srefutabilidade» ndo se relacionava com o sentido ou significado, a veracidade ou a aceitabilidade. Tratava-se de tragar uma linha (da melhor maneira possivel) entre as afirmacdes, ou sistemas de afirmacdes, das ciéncias empiricas © todas as outras afirmacdes, de carater religiaso, metaffsico ou simplesmente pseudocientifico. Anos mais tarde, possivelmente em 1928 ou 1929, chamei este meu primeiro problema de “problema da demarcacdo", O critério da “refutabilidade” € a solucao para 0, problema da demarcagio, pois afirma que, para serem classificadas como cien- cas, as assertivas ou sistemas de assertivas devem ser capazes de entrar em con. flico com observacdes possiveis ou concebiveis ‘eico na tetatva de avaiar até que ponto a8 expectativas tori (conscientes ou inconscientes aceitas ‘pelo analina podem inlucnelar at “respouta linear” do paciente? (Sem mencionar as tenativas eons ‘Genes de influenciar 0 paciente, propande interpretagies, ec). Anos ards, eri a expres “feito de Epo” para denominar a influénca exercida por wma teria, expecatva ou predicao sobre 0 acon- tectmento prevto ou desert: vale lembrar que a squencia de acontecimentos casuals que levaram 20 parrcidio de Edipo comecou com a prediglo dese evento por um oriculo. Ene € um tema earacteris fico, que se repete com freqdencia em mits dene tipo, mas que, alvez no por acidense, nfo tem Strada lnterene dos analias.(O problema dor sonhos confiemadores sugeridos pelo anata € di utsdo por Freud, por exemplo, em Geutmmetie Schriften, III, 1925, onde 0 autor afrma, na pigina S14: "Do. ponto de vista da teorin analitia, neshuma objegdo pode ser feta 2 afirmatia de-que ‘atoria don sonhos usades durante oma andlise.. devem sua origem & rugestio (Jo analsta)". Freud “rma ainda, surpreendentemente, gue "hio hi nada nexe fato que poss prejudicar a confiabilidade or resultados abide” 40 caso da atrolog uma tipiea peudocizncia dos notoe dias, pode iasear esse ponte. Os ais toxic © euttosracionalistar, att a epoca de Newton, crieavam por um motivo errado — a aser ‘io, hoje aceta, de que ot planeta influenciam or acontecimentr terrestres (‘sublunates). De fat0. 2 feoria da gravitagio de Newton, « expeciimente a teovia lunar das mates, s20,historcamente, deri ‘acbes do fonbreimento astrolgico, Newton, ao que parce, elutava em acrtar uma teria da mesma Familia da. que afirmava, por exemplo, que a epemias de gripe etam causadas por uma “influénia tral. Galilu, pot sua vet. chegou 2 eekar a teoria lunar dat mares, sem divida pela mesma raz. ‘Alem diso,o recelo que tinha de Kepler pode sr Tuclmente expicado pelo seu reco em relacdo Bas twoogia CIENCIA: CONJECTURAS E REFUTAGOES 69 Hoje sei, claro, que esse critério de demarcagéo — 6 critério de “testa bilidade” ou “refutabilidade” — esta longe de ser dbvio} ainda hoje seu significado € raramente compreendido. Naquela época, em 1920, ele me pareceu quase trivial embora resolvesse um problema intelectual que me havia preocupado profunda mente, e tivesse conseqdéncias préticas dbvias (politicas, por exemplo). Mas ndo hhavia percebido ainda todas as suas implicacdes ou sua importancia filos6fica Quando o expliquei a um colega, estudante do Departamento de Matematica (hoje um conhecido matematico na Inglaterra), ele sugeriu que o publicasse. Isso me pareceu absurdo, pois estava convencido de que o problema, tendo em vista a sua importancia para mim, j4 havia decerto preocupado numerosos cientistas ¢ fil6 sofos, que certamente j4 teriam chegado a minha solucio, um tanto Gbvia, O trabalho de Wittgenstein ¢ 0 modo como foi recebido mostraram que nao era bem assim; por isso publiquei minhas idéias treze anos depois, sob a forma de uma exitica a0 critério de signaficacao de Wittgenstein. Witegenstein, como codes sabem, procurou demonstrar, em seu Tractatus (vide, por exemplo, as proposicdes 6.53; 6.54 e 5), que as propasigées filoséficas ou metafisicas, como $io chamadas, sio na verdade falsas proposigoes, ou. pseudo” proposicoes, sem sentido ou significado. Toda proposicao genuina (ou significativa) deve ser fungao da verdade de proposicao elementar ou “atomistica’’ que descreva “fatos atémicos", isto €, fatos que em principio podem ser verificadas pela obser: vacdo. Em outras palavras, as proposicdes significativas sio totalmente redutiveis a proposigdes clementares ou atomisticas, afirmacoes simples descrevendo um pos sivel estado de coisas que podem em principio ser estabelecidas ou rejeitadas pela observacdo. Se chamarmos uma afirmacao de “afirmativa resultante da obser- vagio", ou porque implica de fato uma observacio ou porque menciona algo que pode ser obscrvado, teremos de dizer (de acordo com 0 Tractatus, 5 ¢ 4.52). que toda proposicdo genutna deve ser uma funcao da verdade de afirmativa resultante da observacio, ¢ dela dedutivel. Qualquer outra proposicéo aparente seré uma pseudoproposicao sem significado; nao passara de um conjunto de palavras desar- ticuladas, sem sentido algum. (1-2 Essa idéia foi utilizada por Wittgenstein para uma caracterizagio da ciéncia fem oposicao a filosofia. Podemos ler (por exernplo, em 4.11, onde a ciéncia natural assume uma posi¢ao oposta @ filosofia): “A totalidade das proposigées verdadeiras corresponde a toda a ciéncia natural (ou a todas as ciéncias naturais)”. Isso nifica que as proposigdes pertencentes ao campo da ciéncia sio dedutiveis das afir- mages verdadeiras derivadas da observagao, @ podem ser verificadas por elas. Se Pudessemos conhecer todas as afirmagdes verdadeiras derivadas da observaclo, saberiamos tudo o que pode ser afirmado pela ciéncia natural, Isso nos leva a um critério de demarcacio grosseiro, para a verificacdo de teorias. Para tornd-lo um pouco menos grosseiro, podemos acrescé-lo da seguinte afirmacao: “As assergdes que podem recair no campo da ciéncia sio aquelas ve- Fificdveis por afirmagdes derivadas da observacdo; elas coincidem, ainda. com a categoria que compreende todas as assertivas genuinas ou significativas”. Segundo cata isto, orranto, hd uma coincidencin da vencabiidade, do significado ¢ do cardter cientifico 0 CONJECTURAS E REFUTAGOES Pessoalmente, nunca me interessei pelo problema do significado: ele sempre ‘me pareceu tum problema apenas verbal, um tipico pseudoproblema. Estava s6 in: teressado no problema de demarcacio, ou seja, na procura de um critério para definir 0 carater cientifico das teorias. Foi s6 esse interesse que me fez perceber imediatamente que para a verificacao de teorias de Wittgenstein o critério da sig nificagio deveria funcionar também como um critério de demarcacao; que, como tal, era completamente inadequado, mesmo se nao levassemos em conta 0s pro: blemas devidos ao conceito duvidoso de “significado”. De fato, o critério de demar: cacao de Wittgenstein — para utilizar minha terminologia neste contexto — € 0 da verificabilidade, da capacidade de deduzir a teoria de afirmacées derivadas da ob- servacao, Mas esse critério € ao mesmo tempo muito restrito e muito amplo: exclui da cigncia praticamente tudo 0 que a caracteriza, ao mesmo tempo que deixa de cexcluir a astrologia. Nenhuma teoria cientifica pode ser deduzida de afirmagées derivadas da observacao, ou descrita como fungao da verdade nelas contida. Em diversas ocasides demonstrei 0 que acabo de expor aqui a seguidores de Witigenstein e membros do Cireulo de Viena. Em 1931-32, resumi minhas idéias ‘num livro um tanto extenso (que foi lide por varios membros do Circulo, mas nun: ca publicado, embora parte dele tenha sido incorporado ao meu livro Logic of Scientific Discovery); em 1933, publiquei uma carta escrita ao editor da revista Er- kenntnis na qual tentei condensar em duas paginas minhas idéias sobre os pro- blemas de demarcacdo ¢ inducio. Nessa carta e em outros trabalhos, descrevi 0 problema de significado como um pseudoproblema, em contraste com o da demar- cacio. Os membros do Circulo, no encanto, classificaram minha contribui luma proposta para substituir o critério de significado para verificagio por um critério de significado para decerminar a “refutabilidade” — 0 que efetivamente es: variava minhas proposigoes de qualquer sentido.® De nada adiantaram meus protestos, embora afirmasse que estava tentando resolver nao o pseudoproblema de significado, mas o problema da demarcacao. 55 — Meu livro Logie of Scientific Discovery (1959, 1960, 1961) normalmentereferido aqui como LS, D., foi tradusido de Logik der Forschung (1994) com uma série de notas e apéndicesadicionais, in clusive (nan pSginas $12°3]4) 4 carta do Editor da Erkonntms mencionada no texto, publieada pela primeira ver em Erkennin, 8, 1983, paginas 425 seguints, "No que ir espeito ao lizo nunca publieado, mencionado acima, vide o trabalho de R, Carmap ‘Usher Protokollstere" (At Propst;des Protocolare), em Evkenntnis, 8, 1982, paginas 215 4228, onde, 2 partir da pagina 295, autor apresenca um esboco da minha teoria, que acta chama de "proce mento B” dizendo: “Partindo de ponto de vita diferente do de Neurath (que desenvolvew o que Carnap ‘Senomina, na pagina 228, “procedimento A"), Popper deseavoleu 0 "procedimento B” como parte de teu titers’, Apr uma minuciona deseri¢so da minhe teoria dos testes, CaTnap resume sua iis ‘Ans comparar os divenos arguments aqui dicutids, parece-me que a segunda forma de lnguagem, como procedimento Ba forma desrta aqui ~ a mais adequada de todas as formas de inguager ‘Gemiltes stuslmente delendidas. na teoria do conhecimento". O trabalho de Carnap contém 0 pr Ineiro relate publicado sobre minha feoria dos twtr critco. (Vide também minhas observagdes cas tem L. Se. Du nota 1 segio 25, pgina 104, onde a data 1988 deve ser corrgida para 1082; eno Cap. 11 ‘est ive). 5 — © exemplo de Wittgensein de uma pwudoproporgto sem significado ¢ 0 seguinte: “Sécrates € Tencico”, Obviamente, + afrmacio “Sécrats alo € identico” também nao tem sigifiado. Logo. & feqacio de qualquer afirmative sem significado também nao ters significado, e a de uma afirmagio Com significado, serd sentido. Ma, como observei em L-Se.D. (pcx, nas piginas $B eseguints) ema Card, em minhaserkcas, @ nega de wna afirmacdo"Yestdeel” (ou soja, pastel de ser refuada), nao berg neceseriamente "tstivel” Pode-seimaginar a confusio que surge quando se considera a “testa Bila” como um crtério de significado e nto de demarcacao, CIENCIA: CONJECTURAS E REFUTAGOES n Minhas criticas a respeito da verificagao tiveram, contudo, algum resultado: levaram rapidamente 0s fil6sofos verificacionistas do sentido ¢ do sem-sentido a ‘mais completa confusdo. Originalmente, a proposta que considerava a verifica~ bilidade como critério de significado era pelo menos clara, simples e eficaz, 0 que nao acontecia com as modificacdes e substituigdes introduzidas.? Devo dizer que, hhoje, as proprias pessoas que participaram do processo percebem isso. Mas. como sou normalmente citado como uma delas, desejo salientar que, embora tenha criado a confusGo, jamais participei dela. Nao propus a refutabilidade ou a testabilidade como critérios de significado. Embora possa me considerar culpado por haver in: troduzido ambos os termos na discussio, nao os introduzi na teoria do significado. As criticas ao meu alegado ponto de vista se difundiram muito e alcancaram éxito. -Mas ainda nao encontrei nenhuma critica as minhas idéias,® A testabilidade, por enquanto, tem sido largamente aceita come eritério de demarcacao. Vv Discuti o problema da demarcacao detalhadamente porque acredito que sua solugio dé uma chave para a maioria dos problemas fundamentais da filosofia da cigncia. Mais adiante. relacionarei alguns desses problemas, mas apenas um deles a inducdo ~ poderd ser discutido amplamente aqui. Interessei-me pelo problema da indugo em 1923, Embora ele esteja int mamente ligado ao problema de demarcacio. durante cinco anos nao fiz uma avaliacao completa dessa ligacdo. 7 ~ © exemplo mais recente do modo como a hisria dese problema pode ser mabinterpretada € 6 trabalho de A. R- White "Notas Sobre Signifiado e Veriicacio", em find. 63, 1954, paginas 66 © seguinies.O artigo de L. Esans em Mind. 62, 1953, paginar le seguintes, criicado por White, € ns minha opinido excelente © alamente perceptivo, Compreenaivelmente, nenhuin dos autores conseguc Feconstrair ssa historia. (Pode se encontrar algumar sugertges no meu lira Open Society and Ils Enemies, Cap. Il, nota 46, 51¢ 82; hs uma ani male completa no Cap. 11 dese liv). 8 Em L. Se, D, discus ceras objecdes plauvels que consinuaram entretanto a sr levantadas, sem ‘qualquer referencia 3s minhas respostas. Uma delas @ a argumentagao de que a refatagao de ma lei Satural € tao imposiel quanto sua veriieacio. A resposta € que ea objeeso confunde dois aves de andlise completamente diferentes (como acontece com a afirmacio de que demonstracbes maternitcas So impossives, pols por mals veses que se repita 4 corregdo, mio podemos fer cetera de que ni te Inhamos deixado de notar um erzo). No primeira aivel, hi uma assimetria lien: uma Unica asercdo — tobre, por exemplo, 0 perélio de Merctrio — pode formalmente refutar a leis de Kepler, mat eat ‘io poderao sr Tormalmente verieadas por aGirmativar woladat, qualquer que sea seu ntimero, A ten {atte de minimar asa auimetra s poderé resulta em confusio. No outta nivel de analise,poderes estar em aceitar uma asertiva qualquer, memo mais simples axeriva derivada da oleervacie; ‘corasdo faiam obvervagoes ernens — justamente aquelas que deseavarn fazer. Nao pode haver observacdo totalmente Segura, live dos pergos da interpretagao ertnes, (Fase € urn dot motivos pelos quais a tcoria da indugo no funciona)A "base empirica™consstequase sempre em uma Imucelanea de teorias de menor grau de universlidade (de “efeitor teprodusvei), De qualquer mode, independentcmene da bate que 0 ivetigador acs (arbcadameni), le poder ear sa eri 2 ‘CONJECTURAS E REFUTAGOES Aproximei-me do problema da inducdo através de Hume, cuja afirmativa de que a indug2o( nao pode ser logicamente justificada eu considerava correta, Hume argumenta gue nao pode haver argumentos légicos validos ? que nos per mitam afirmar que “agueles casos dos quais ndo tivemos experitnicia alguma as- semelham-se aqueles que jé experimentamos anteriormente”, Conseqientemente, “mesmo apés observar uma associagdo constante ou freqilente de objetos, néo temos motivo para inferir algo que ndo se refira a um objeto que jd experimen- tamos’.\0 Como a experiéncia ensina que 0s objetos que se associam constan- femente a outros objetos permanecem assim associados, Hume afirma, a seguir: 'Poderia renovar minha pergunta da seguinte forma: for que, dessa experiéncia, tiramos conclusdes que vdo além dos casos anteriores, dos quais jd tivemos expe riéncia?” Em outras palavras, a tentativa de justificar a pritica da indugo apelan. do para a experiéncia deve levar a um regresso infinito, Como resultado, podemos dizer que as teorias nunca podem ser inferidas de afirmacoes derivadas da obser. vacio, ou racionalmente justificadas por elas. Considero a refutacio da inferéncia indutiva de Hume clara ¢ conclusiva Mas sua explica¢do psicoldgica da indugao em termos de costume ou habito me deixa totalmente insatisfeito ‘Tem-se notado com freqiéncia que essa explicacio de Hume é pouco satis: faréria em termos filosoficos. Sem duivida, contudo, ela pretende ser uma teoria psicolégica e no filoséfica, pois procura dar uma explicacao causal a um fato sicolégico 0 fato de que acreditamos em leis, em assertivas que afirmam a regularidade de certos eventos, ou em certos tipos de eventos constantemente as: sociados — afirmando que este fato € devido ao (isto ¢, constantemente associado a0) habito ou costume. Mas essa reformulagao da teoria de Hume € ainda insatisfat6ria, pois o que acabo de descrever como um “fato psicol6gico” pode ser descrito como um costume ‘ou habito — 0 costume ou habito de acreditar em leis ¢ eventos regulares; de fato, ‘nao € muito surpreendente nem esclarecedor ouvir a explicacdo de que tal costume ‘ou habito é devido (ou associado) a um habito ou costume diferente. $6 quando nos Iembramos de que as palavras “costume” e "habito” so usadas por Hume, como também na linguagem corrente, ndo s6 para descrever comportamentos regulares ‘mas sobretudo para teorizar sobre sua origem (atribuida a repeticdo freqilente) € que podemos reformular sua teoria psicolégica de maneira mais satisfat6ria. Po- demos afirmar entao que, como acontece com qualquer outro habita, nosso hdbito de acreditar em leis € produto da repeticao freqiiente — da observacao repetida de que coisas de uma certa natureza associam-se constantemente a coisas de outra 9 _ Hume nao usa o termo “logico”, mat sim “demonsrativo” — terminalogis que, creo, tende 2 causar equlvoco, As duas ctagdesseguintes foram retirdas do Treatte of Human Nature, tomo 1 parte II: sees vie xi. (A énfae € do proprio Hume). 10 Faa ctagio © a sequinte foram do loe. cit vedo wi, Vide também 0 Enquiry Concerning Huy) tdertanding. do mesmo autor, segSo IV, parte I, © 0 Abstract, eitado em 1996 por J.M. Keys © M vatfa, pigina 18, ctado em L.Se.D., no nove apéndice® VIL texto da nots 6 een CIENCIA: CONJECTURASE REFUTACOFS a Como jé indicado, essa teoria genético-psicol6gica esté incorporada a lin. guagem ordinaria, e por isso nao é tio revoluciondria quanto acteditava Hume: € de fato uma teoria psicolégica extremamente popular — parte do “senso comum” poderiamos dizer, Contudo, a despeito da minha profunda admiracdo por Hume pelo senso comum, estava convencido do erro dessa teoria psicoldgica; convencido de que podia ser refutada com base em argumentos puramente légicos. Estava convencido de que a psicologia de Hume — que é a psicologia po- pular — estava errada em pelo menos trés pontos: (a) o resultado tipico da re peticdo; (b) a génese dos habitos: e especialmente (c) o carater daquelas experién- cias ¢ tipos de comportamento que podem ser descritos como "acreditar numa lei” ou “esperar uma sucesso ordenada de eventos" (a) © resultado tipico da repeticio — por exemplo, da repeticio de um trecho musical dificibexecutado 20 piano — é que of movimentos que inicialmente necessitavam de atencio sio afinal executados automaticamente, Podemos dizer que 0 processo se torna radicalmente abreviado e deixa de ser consciente: torna-se“ Tisiol6gico”, Esse proceso, longe de criar a crenga numa lei, ou a expectativa de uuma sucessio de eventos aparentemente baseados numa lei, pode, pelo contrario. = iniciar-se com uma crenca consciente e destrui-la, tornando-a supérflua, Ao apren ddermos a andar de bicicleta, podemos comecar com a certeza de que, para cvitar © uma queda, devemos voltar a roda para a dite¢ao em que ameacamos cair; essa certera poderd ser util para guiar nossos movimentos. Depois de alguma pratica, Podemos esquecer a regra: nao precisamos mais dela. Por outro lado, se ¢ verdade] que a repeticdo cria expectativas inconscientes, estas s6 se tornam conscientes af partir do momento em que algo sai errado (nao percebemos as batidas do relogio. ‘mas notaremos o silencio, se 0 rel6gio parar). (b) Habitos e costumes, via de regra, nao se originam na repeticao. Mesmo os- habitos de andar, falar e comer em horas determinadas tém inicio antes de que a repeticao possa ter um papel importante. Podemos dizer que 36 merecem o nome de “habitos" ou “costumes” a partir do momento em que a repeticdo exerce seu Papel pico; ndo podemos afirmar, no entanto. que as praticas em questio se originam de indimeras repetigées, (©) A crenga numa lei nao corresponde precisamente ao comportamento que revela a expectativa de uma sucesso de eventos aparentemente bascados numa lei; contudo, as duas coisas esto suficientemente interligadas para que sejam tratadas em’ conjunto; podem talver resultar, excepcionalmente, da mera. re peticio de impressdes dos sentides {como no Caso do reldgio que deixa de fun. ionar). Estava disposto a admitir isso, mas normalmente, e na maioria dos casos elas nao podem ser explicadas dessa maneira. Como admite Hume, uma tnica ob servacdo pode ser suficiente para criar uma expectativa ou uma crenga — fato que ele procura explicar como resultado de um habito indutivo, formado por indmeras longas seqiiéncias repetitivas que experimentamos em periodo anterior da nossa vida.!"” Mas isso era apenas uma tentativa de explicar fatos desfavordveis quel ameacavam a teoria; uma tentativa malograda. pois esses fatos podem ser obser-/ | vados em filhotes de animais e bebés. “Seguramos um cigarro aceso perto do fo.) 11 ~ Treatise, eco wii segho ay, repra 4 ” CONJECTURAS E REFUTACOES cinho de cachorrinhos", relata F. Bage. “Eles aspiraram uma vez e fugiram: nada podia indusi-los a retornar a origem daquele cheiro. Alguns dias mais tarde, apenas ao ver um cigarro ou mesmo um pedaco de papel branco enrolado, rea: giam, fugindo e espirrando”.12 Se procurarmos explicar casos como esse postulan do indimeras longas seqiiéncias repetitivas prévias nao s6 estaremos fantasiando mas também esquecendo de que na curta vida dos filhotes deve haver tempo no sé para a repetigdo mas também para muita novidade e, conseqiientemente, 0 con: trério da repeticao. ‘Mas nao so apenas certos fatos empfricos que negam apoio as idéias de Hume; hd também argumentos decisivos de naturera puramente logica contrarios & sua teoria psicoldgica, A idéia central da teoria de Hume é a da repeticdo baseada na similaridade (ou “semelhanca”). Essa idéia € usada de maneira muito pouco critica: somos Tevados a pensar nas gotas de agua a corroer a pedra: seqiléncias de eventos inques: tionavelmente semelhantes impondo-se a nés vagarosamente, como o funcionamen: to de um relogio. Mas devemos notar que, numa teoria psicolégica como a de Hume, s6 se pode admitir que tenha efeito sobre 0 individuo aquilo que para ele se caracteriza como uma repeti¢ao, haseada em similaridade que s6 ele podera iden- ificar. O individuo deve reagir as situagbes como se fossem equivalentes; deve con: siderd-las similares; deve interpretd-las como repetigBes. Podemos presumir que 0s ‘cachorrinhos mostraram, pela sua resposta — sua maneira de agir ou reagir — que haviam reconhecido ou interpretado a segunda situa¢Zo como repeticio da pri meira; esperavam a presenga do elemento principal: 0 cheiro desagradavel. A situacao foi percebida por eles como uma repeticZo, pois reagiram a ela antecipan: do sua similaridade a situacdo anterior. Essa critica aparentemente de carter psicolégico tem uma base puramente lsgica, que pode ser sintetizada no seguinte argumento, bastante simples (aciden. talmente, © mesmo com que comecei minha critica): 0 tipo de repeticdo imagi- nado por Hume jamais pode ser perfeito; os casos que ele expe nao sao casos de similaridade perfeita; s30 apenas casos de semelhanca. Logo, sao repeti¢des apenas se consideradar de um ponto de vista em particular (aquilo que sobre mim tem 0 feito de uma repeticdo poder nao ter 0 mesmo efeito sobre uma aranha). Mas isso significa que, por motivos légicos, deve haver sempre um ponto de vista — um sis tema de expectativas, antecipagdes, presungdes ou interesses — antes que possa cexistir qualquer repeticdo; © ponto de vista, conseqiientemente, ndo pode ser meramente resultado da repeti¢io. (Vide também o apéndice X, (1), em L. Se. D.), Para os objetivos de uma teoria psicoldgica que explique a origem das nossas crengas é preciso, portanto, substituir a idéia ingénua de eventos que sdo semelhan. tes pela idéia de eventos aos quais reagimos intérpretando-os como semelhantes. Mas, se € assim (e nio consigo ver nenhum modo de evité-lo) entdo a teoria psi colégica da inducdo proposta por Hume leva a um regresso infinito, precisamente anilogo ao que foi descoberto pelo proprio Hume ¢ usado por ele para derrubar a 12 — F. Biage, “Zur Entwicklung, et.", Zeitechnftf; Hundeforschung, 1988; D Katz, Animals ond ‘Men, cap. VI. nota, A CIENCIA: CONJECTURAS E REFUTACOFS. * tcoria logica da inducdo. Na verdade, que pretendemos explicar? No exemplo dos cachorrinhos, queremos explicar um tipo de comportamento que pode ser descrito como 0 reconhecimento ou a interpretagdo de uma situacio como repeticdo de ‘outra; claramente, ndo podemos esperar explicd-la apelando para repeticdes an- teriores, pois percebemos que tais repetigdes anteriores devem ter implicado tam- bem outras repetigdes, de modo que o mesmo problema ressurge sempre: 0 pro: blema de reconhecer ou interpretar uma situacZo como repeticio de uma outra De modo mais conciso, podemos dizer que vemos a similaridade como 0 resultado de uma resposta que envolve interpretacdes (as quais podem nao ser adequadas), antecipagdes e expectativas (que podem nunca se materializar). E impossivel portanto explicar antecipagdes ou expectativas como o resultado de ‘muitas repetigdes — conforme sugerido por Hume. Com efeito, mesmo a primeira repeti¢ao (como a vemos) precisa estar baseada naquilo que para nés é similaridade ~ © portanto expectativa — precisamente o tipo de coisa que queriamos explicar (© que demonstra que a teoria psicolégica de Hume nos leva a uma situagao de regresso infinite, Penso que Hume nunca aceitou plenamente sua prépria andlise, Tendo rejeitado a idéia légica da inducdo, ele foi obrigado a enfrentar 0 seguinte pro: blema: como podemos efetivamente alcangar o conhecimento de que dispomos, ‘como um fato psicoldgico, se a inducdo € um procedimento logicamente invlido ¢ racionalmente injustificével? H duas respostas possiveis: 1) chegatos a0 conhe- cimento por méodo ndo indutivo (resposta compativel com um certo racionalis mo); 2) chegamos ao conhecimento pela repeticao € a inducio — por conseguinte, por método logicamente invilido ¢ racionalmente injustificdvel, pelo que todo 0 conhecimento aparente nao passa de uma modalidade de crenca, baseada no habito (resposta que implicaria a irracionalidade até mesmo do conhecimento cien: tifico, levando a conclusio de que 0 racionalismo € absurdo e deve ser abando: nado). Nao examinarei aqui as tentativas imemoriais — que voltaram & moda — de resolver o problema afirmando que embora a indugio seja logicamente invalida se entendemos por “logica” a légica dedutiva, ela possui seus proprios padres logicos. 0 que se pode comprovar com 0 fato de que todos os homens razodveis a utilizam naturatmente: a grande realizacao de Hume consistiu justamente em des- truir essa identificacdo errOnea da questo factual — quid facti? — com a questdo da validade ou da justificagao — quid juris? (Vide 0 ponto 13 do apéndice a0 presente cap.) [Ao que parece, Hume nunca considerou seriamente a primeira alternativa Depois de rejeitar a explicacao légica da indugao pela repeticao, 0 filésofo “ne sgociou” com o bom senso permitindo o retorno da idéia de que a inducio se bascia nna repeticao, revestida de explicacao psicoldgica. O que propus foi recusar essa teoria de Hume, explicando a repeticao (para nés) como conseqdéncia da nossa in clinacao para esperar regularidades, da busca de repetigdes, em vex de explicar tal inclinacio pelas proprias repeticoes Fui levado portant, por consideracdes puramente logicas, a substituir a teoria psicologica da indugdo pelo ponto de vista seguinte: em ver de esperar pas: sivamente que as repeticdes nos imponham suas regularidades, procuramos de 16 CCONJECTURAS E REFUTAGOES modo ativo impor regularidades a0 mundo. Tentamos identificar similaridades interpreté-las em termos de leis que inventamos. Sem nos determos em premissas, damos um salto para chegar a conclusdes — que podemos precisar por de lado, ‘caso as observagies no as corroborem. Tratava-se de uma teoria baseada em processo de tentativas — de conjec: ‘turas e.refutacdes. Um processo que permitia compreender por que nossas tentativas de impor interpretacdes ao mundo vinham, logicamente, antes da observacao de similatidades, Como havia razées légicas para agir assim, pensei que esse proce: dimento poderia ser aplicado também ao campo cientifico; que as teorias cient ficas ndo eram uma composicao de observagdes mas sim invencdes — conjecturas apresentadas ousadamente, para serem eliminadas no caso de nao se ajustarem as observagies (as quais raramente eram acidentais, sendo coligidas, de modo geral, com o propésito definido de testar uma teoria procurando, se possivel, refuté-la). v A crenga de que a ciéncia avanga da observacdo para a teoria € ainda aceita tao firme ¢ amplamente que minha rejeicZo dessa idéia provoca muitas vezes reacdo de incredulidade. Jé fui até acusado de ser insincero — de negar aquilo de {que ninguém pode razoavelmente duvidar. Na verdade, porém, a crenga de que podemos comecar exclusivamente com observagies, sem qualquer teoria, ¢ um absurdo, que poderia ser ilustrado pela es: téria absurda do homem que se dedicou durante toda a vida a ciéncia natural — anotando todas as abservagaes que pode fazer, legou-as a uma sociedade cientifica para que as usasse como evidencia indutiva. Uma anedota que nos deveria mostrar {que podemos colecionar com vantagem insets, por exemplo, mas ndo observacdes. H4 um quarto de século, procurei chamar a atencio de um grupo de es tudantes de fisica, em Viena, para este ponto, comecando uma conferéncia com as seguintes instrucgdes: "Tomem lapis ¢ papel; observem cuidadosamente e anotem 0 ‘que puderem observar". Os estudantes quiseram saber, naturalmente, 9 que de: veriam observar: “Observem — isto é um absurdo!”!3 De fato, ndo € mesmo ha- bitual usar dessa forma o verbo “observar”. A observagdo € sempre seletiva: exige um objeto, uma tarefa definida, um ponto de vista, um interesse especial, um problema. Para descrevé-la € preciso empregar uma linguagem apropriada, im: plicando similaridade e classificagao — que, por sua vez, implicam interesses, pon. tos de vista e problemas. Katz escreveul4: “Um animal faminto divide 0 ambiente em objetos comestiveis © niio comestiveis Um animal que foge enxerga caminhos para a fuga ¢ cesconderijos... De modo geral, os objetos mudam... de acordo com as necessidades do animal”. Poderiamos acrescentar que 56 dessa forma — relacionando-se com recessidades ¢ interesses — podem os objetos ser classificados, assemelhados ou diferenciados. A mesma regra se aplica também aos cientistas. Para o animal sao 13 Vide asegdo 30 de L. Se. D. 14 Kats. oe tt CIENCIA: CONJECTURAS E REFUTAGOES ” suas necessidades, a tarefa e as expectativas do momento que fornecem um ponto de vista; no caso do cientista, so seus interesses te6ricos, 0 problema que esta in- vestigando, suas conjecturas ¢ antecipagdes, as teorias que aceita como pano de fundo: seu quadro de referéncias, seu “horizonte de expectativas” © problema “Que vem em primeiro lugar: a hipétese (H) ou a observaczo (0)2" pode ser solucionado; como também se pode resolver o problema “Que vern ‘em primeiro lugar: a galinha (G) ou 0 ovo (0)?” (A resposta adequada a primeira pergunta.é "Uma hipétese anterior”; a resposta apropriada a segunda € “Um ovo anterior”). E verdade que qualquer hipétese particular que adotemos sera sempre Precedida de observacdes — por exemplo, as observacées que ela se destina a ex licar, Contudo, essas observagdes pressupsem a adocio de um quadro de referén- cias — uma teoria. Se as observagdes, tém alguma significacZo, se pro: vocaram a necessidade de uma explicacio, dando origem assim a uma hipétese, é Porque nao podiam ser explicadas pelo quadro teérico precedente, o antigo ho- izonte de expectativas. Aqui ndo corremos © perigo de encontrar um regresso in finito: se recusarmos a tcorias e mitos cada ver mais primitivos, chegaremos final ‘mente a expectativas inconscientes ¢ inatas. E claro que a teoria das idéias snatas & absurda; mas todos os organismos tém reagdes ou respostas inatas — entre elas, respostas adaptadas a acontecimentos iminentes. Podemos descrever essas respostas como “expectativas” sem implicar que tais “expectativas” sejam iminentes. Assim, © bebé recém-nascido “tem a expec tativa” de ser alimentado (bem como — poderiamos dizer também — a expectativa de ser protegido e amado). Tendo em vista a relagdo estreita entre a expectativa ¢ 0 conhecimento, podemos falar mesmo, de modo muito razoavel, em "eonhecimento inato": um conhecimento que nao é vélido “a priori” — uma expectativa inata, por mais forte e especifica que seja, pode constituir um equivoco (o bebé recém-nascido pode ser abandonado e morter de fome). Nascemos, portanto, com expectativas — com um “conhecimento” que. embora nio seja udlido a priori, & psicoldgica ou geneticamente aprioristico — is to , anterior a toda a experiéncia derivada da observagio, Uma das mais impor: tantes dessas expectativas € a de encontrar regularidades — cla esta associada a in. clinagdo inata para localizar regularidades — ou a necessidade de encontrar re- gularidades —, como podemos perceber pelo prazer que a crianca sente em satis fazer esse impulso, Esta expectativa “instintiva” de encontrar regularidades, que ¢ psicologi camente @ prior’, corresponde cstreitaniente a “lei da causalidade” que Kant con- siderava uma parte do nosso equipamento mental, vilida @ priori, Poder-se-ia dizer que Kant deixou de tracar a distingio entre as formas de pensar ¢ de reagir psi cologiamente aprioristicas eas crencas vilidas @ prior’. Nao creio, porém, que seu equivoco tenha sido tao clementar — de fato, a expectativa de encontrar regula ridades ¢ aprioristica nao s6 psicologicamente mas também logicamente: em termos logicos. é anterior a toda a experiéncia derivada da observacdo, precedendo, como. vimos, 0 reconhecimento das semelhancas: e toda observacdo envolve o reconhe cimento do que é semelhante e do que nio o €. Mas, a despeito de ser logicamente aprioristica, neste sentido, a expectativa nao é valida a priori. Ela pode falhar: n CCONJECTURAS E REFUTAGOES poderiamos facilmente construir um ambiente (que seria letal) de tal forma ca6: tico, em comparacdo com nosso ambiente ordindrio, que nos fosse totalmente im- possivel encontrar nele quaisquer regularidades. (Todas as leis naturais poderiam continuar validas; ambientes desse tipo foram usados para experiéncias com. animais, conforme indicado na proxima secio.) Assim, a resposta de Kant a Hume estava quase certa: a distingdo entre uma expectativa valida a priori e uma outra genética e logicamente anterior a obser vacdo, sem ser contudo vilida a prior’, € de fato bastante sutil. Kant, porém, foi muito longe na sua demonstragio. Procurando demonstrar como o conhecimento possivel, propds uma teoria que tinha a conseqiigncia inevitavel de condenar 20 Exito nossa busca de conhecimento — 0 que ¢ evidentemente um erro. Kant tinha razao ao dizer que “nosso intelecto nao deriva suas leis da natureza, mas impde suas leis & natureza”. Ao imaginar porém que essas leis fossem necessariamente ver: dadeiras ou que necessariamente terfamos éxito em impé-las a natureza. ele se enganou. 15 Muitas vezes a natureza resiste com éxito. forcando-nos a rejeitar nos: sas leis — 0 que ndo nos impede de tentar outras vezes. Para sumarizar esta critica légica da psicologia da inducio de Hume po: demos considerar a idéia de construir uma maquina de inducdo. Posta num tuniverso simplificado essa maquina poderia, pela repetigdo, “aprender” as leis vigentes nese mundo ou mesmo “formuld-las". Se possivel construir tal ma. quina (no tenho duvida de que isso € possivel) pode-se argiir que minha teoria es ta equivocada de fato, se uma maquina pode praticar a inducdo na base da repeti¢aa, nao ha razdo logica para que no possamos fazer © mesmo. © argumento parece convincente, mas € falso. Ao construir uma maquina de indugao precisaremas, como seu arquiteto, decidir a priori em que consiste seu universe” que coisas devem ser consideradas “semelhantes” ou “iguais”: que modalidade de “leis” desejamos que a maquina “descubra®. Em outras palavras, precisamos incorporar maquina um quadro de referéncias que determine o que & relevante e interessante no seu “mundo” a maquina funcionara emtao na base de principios seletivos “inatos”. Os problemas da similaridade sero solucionados para ‘a maquina pelos seus fabricantes, que Ihe dardo uma “interpretagao” do mundo. vl Nossa inclinagdo para procurar regularidades © para impor leis & natureza leva ao fendmeno psicalégico do pensamento dogmético ou, de modo geral, do comportamento dogmético: esperamos encontrar regularidades em toda parte ¢ tentamos descobri-las mesmo onde elas nao existem: os eventos que resistem a essas tentativas so considerados como “rufdos de fundo"; somos figis a nossas expec tativas mesmo quando elas sio inadequadas ~ e deveriamos reconhecer a derrota. 1b Mot ubvedkara uy wines evo veils fio’ (Vides Lett Fela Metafiicos da Cignca Natural, publicado entre a primeira © a segunda edicoes da Critica da Rasa Pura) Contudo, se podemos explcar 4 vaidade da teoria de Newton, como penta, pelo fato de ‘qs noso ietelcto impoe suas lls 3 natureca, 0 que se segue, na minha apinigo, € que esse esforgo do iMtcleste tera Erto neeesriamente 0 qur torna diel entender por que motive'9 conkecimento a Drion, coma o de Newton, €1ho dificil de alcancar No cap. 2, especahmente na sega X.etambe nos ‘ape. 7 8 dese livroo letor encontrard uma exposcéo mais ample desta crite CIENCIA: CONJECTURAS E REFUTAGOES 19 Esse dogmatismo 6, em certa medida, necessério: corresponde a uma exigéncia de situacZo que s6 pode ser tratada pela aplicacio das nossas conjecturas a0 universo; além disso, ele nos permite abordar uma boa teoria em estagios, por aproximacdes, — se aceitamos a derrota com muita facilidade podemos deixar de descobrir que estivemos muito perto do caminho certo. Esta claro que essa atitude dogmatica que nos leva a guardar fidelidade as primeiras impressdes indica uma crenca vigorosa: por outro lado, uma atitude critica, com a disponibilidade para alterar padres, admitindo dvidas e exigindo testes, indica uma crenga mais fraca. Ora, de acordo com o pensamento de Hume © com a concepcio popular, a forga de uma crenca resulta da repeticao, devendo portanto crescer com a experiéncia, apresentando-se sempre maior nas pessoas ‘menos primitivas, Mas 0 pensamento dogmatico, o desejo incontrolado de impor regularidades ¢ 0 prazer manifesto com ritos © a repeticio per se caracterizam os primitivos © as crianeas; a grande experiéncia e maturidade criam algumas vezes uma atitude de cautela e de eritica, em vez do dogmatismo. Mencionaria aqui um ponto de concordéncia com a psicandlise, Esta afirma que 0s neuréticos interpretam 0 mundo de acordo com um modelo pessoal fixo, que nao é facilmente abandonado, ¢ cujas raizes podem remontar as primeiras fases da infancia. Um modelo ou esquema adotado muito cedo se mantém ¢ wrve como padrao interpretative para toda experiencia nova, verificando-a, por assim dizer, © contribuindo para enrijecé-la, Esta é uma descricdo do que chamei de ‘atitude dogmatica”, por comparacdo com a atitude eritica que tem em comum com ela a facilidade da adoga0 de um sistema de expectativas — um mito, talver: hipétese ou conjectura —, mas que estara sempre pronta a modificé-lo, a corrigi-lo ¢ até mesmo a abandon-lo, Estou inclinado a achar que a maioria das neuroses podem ser devidas a0 ndo desenvolvimento da atitude critica — a um dogmatismo enrijecido (e nao natural); & resistencia as exigencias de adaptacio de certas inter- pretacbes e respostas esquemsticas, Resisténcia que em si pode ser explicada, em alguns casos, por uma injdria ou um choque que provocou medo € o aumento da necessidade de seguranga, analogamente a0 que acontece quando ferimos um membro, que depois temos medo de usar — 0 que o enrijece. (Pode-se até mesmo argumentar que 0 caso do membro € ndo s6 anal6gico & resposta dogmatica, mas um exemplo desse tipo de resposta.) Em qualquer caso concreto, a explicacdo precisard levar em conta o peso das dificuldades envolvidas nos ajustamentos neces sirios — dificuldades que podem ser consideraveis, especialmente num mundo complexo ¢ cambiante: experiéncias feitas com animais nos ensinam que variando as dificuldades impostas. podemos provocar varios graus de comportamento neurético. Idemtifiquei muitos outros vinculos entre a psicologia do conhecimento ¢ campos psicoldgicos afastados (na concepcio geral): por exemplo, a arte © a musica, Na verdade, minhas idéias sobre a inducdo tiveram origem numa conjec: tura a respeito da evolucdo da polifonia ocidental. Mas essa é uma outra est6ria, de que vou poupé-los. vu Minha critica logica da teoria psicoldgica e as consideragées correspondentes (a maior parte das quais datam de 1926/27, quando preparei uma tese intitulada 80 (CONJECTURAS E REFUTAGOES “O Habito e as Crengas nas Leis”!®) podem parecer um tanto afastadas do campo da filosofia da ciéncia. Mas a distinco entre o pensamento critico e o dogmatic nos traz de volta ao problema central. Com efeito, a atitude dogmatica est cla ramente relacionada com a tendéncia para verificar nossas leis e esquemas, buscan: do aplica-los e confirma-los sempre, a ponto de afastar as refutacdes, enquanto a atitude critica ¢ feita de disposicdo para modific4-los — a inclinagao no sentido de testé-los, refutando-os se isso for possivel. O que sugere a identificacao da atitude critica com a atitude cientifica e a atitide dogmitica com a que descrevi quali ficando-a de pseudocientifica Acho também que gencticamente a atitude pseudocientifica é mais pri mitiva do que a cientifica, ¢ amerior a ela: € uma atitude pré-cientifica. Esse cardter primitivo e essa precedéncia tém também seu aspecto légico. Com efeito, a atitude critica ndo se opde propriamente a atitude dogmitica; sobrepde-se a ela: a critica deve dirigir-se contra as crencas prevalecentes, que exercem grande influén- cia e que necessitam uma revisio critica — em outras palavras, ela se dirige contra as crencas dogmaticas. A atitude critica requer — como “matéria-prima”, por as- sim dizer — teorias ou crencas aceitas mais ou menos dogmaticamente. A ciencia comeca, portanto, com os mitos ¢ a critica dos mitos: no se origina numa colegio de observagbes ou na invencio de experimentos, mas sim na discuss20 eritica dos mitos, das técnicas e praticas magicas. A tradicZo cientifica se distingue da tradicio pré-cientifica por apresentar dois estratos: como esta iltima, cla lega suas teorias, mas lega também com elas, uma atitude critica com relaczo a estas tcorias. As teorias sio transferidas no como dogmas mas acompanhadas por tum desafio para que sejam discutidas e se possivel aperfeicoadas. Essa tradicio € helenica e remonta a Tales, fandador da primeira escola (igo, deliberadamente da primeira escola, ¢ nao da primeira escola filoséfica) a nao se preocupar fun. damentalmente com a preservagao de um dogma. 7 A atitude critica, wradigao de livre debate sobre as teorias para identificar seus pontos fracos ¢ aperfeicos las, ¢ uma atitude razoavel ¢ racional. Emprega ex tensamente a observacio € os argumentos verbais — mas a primeira é funcio dos segundos. A descoberta do método critico pelos gregos provocou, inicialmente, a esperanga enganosa de que ele levaria & solugdo de todos os grandes problemas do pasado: de que estabeleceria o conhecimento certo; de que ajudaria a provar Ros sas teorias, a justificd-las. Essa esperanca ndo passava de um residuo da mentali dade dogmatic: na verdade, nada pode ser justificado ou provado (fora do campo da matematica ¢ da logica). A exigéncia de provas racionais para o conhecimento cientifico revela uma falha na separacdo que seria preciso manter entre a ampla regido da racionalidade e 0 campo estreito da certeza racional; € uma exigéncia irrazodvel, que nao pode ser atendida. No entanto, 0 argumento logico, o raciocinio légico dedutivo, continua a exercer uma funcao de grande importancia na abordagem critica: ndo porque nos permite provar nossas teorias ou inferi-las de afirmativas derivadas da observacdo, 16 — Tese nao publicada, submetida a0 Insituto de Educagéo de Viena, em 1997, ab 6 ttle “Ge ohnheit und Geseteertebnis 17 ~ Nos caps 465 dete vo 0 leitorencontraré comentéiosadicionais sobre o tema. CIENCIA: CONJECTURAS E REFUTAGOES oy ‘mas porque é impossivel descobrir as implicagdes dessas teorias (para poder criticé las efetivamente) empregando exclusivamente o raciocinio dedutivo. Como disse, a critica € uma tentativa de identificar os pontos fracos das teorias — pontos que, de modo geral, s6 vamos encontrar nas suas conseqiiéncias l6gicas mais remotas. £ af que © raciocinio puramente légico desempenha um papel importante. Hume tinha razdo ao acentuar 0 fato de que rfossas teorias ndo podem ser inferidas validamente do que podemos conhecer como verdadeiro — nem de obser- vagdes nem de qualquer outra coisa. Sua conclusio era a de que nossa crenca nes. sas teorias ¢ irracional. Se “crenca” significa neste caso a incapacidade de por em diivida as leis naturais a constancia das regularidades que a natureza nos oferece, Hume estava certo: esse tipo de f€ dogmatica tem uma base “fisiolégica”, por assim dizer, € nao racional. Contudo, se o termo “crenga” € empregado para denotar nossa aceitagao critica das teorias cientificas — uma aceitacdo tentativa, com nada com uma disposico para rever a (coria se conseguirmos refuté-la experimen. talmente =, Hume nao tinha razZo neste ponto, Com efeito, ndo ha nada de ir- racional na aceitacdo de uma teoria, como nada hé de irracional na admissio de teorias bem testadas, para fins praticos — nenhum outro tipo de comportamento & mais Facional ‘Vamos admitir que aceitamos deliberadamente a tarefa de viver neste mun- do desconhecido, ajustando-nos a ele tanto quanto possivel, aproveitando as opor tunidades que nos oferece; ¢ que queremos explicé-lo, se possfvel (nao sera preciso presumir esta possibilidade) e na medida da nossa possbilidade, com a ajuda de leis e de teorias explicativas. Se essa é nossa tarefa, 0 procedimento mais racional é @ método das tentativas — da conjectura ¢ da refutagdo. Precisamos propor teo- rias, ousadamente; tentar refuta-las; aceit4-las tentativamente, se fracassarmos, Deste ponto de vista, todas as leis © teorias so essencialmente tentativas, conjecturais, hipotéticas — mesmo quando ndo € mais possivel duvidar delas. Antes de refutar uma teoria nao remos condicao de saber em que sentido ela precisa ser modificada, A afirmativa de que o sol continuara a se levantar ¢ a se por uma ver ‘cada vinte ¢ quatro horas é, proverbialmente, um conhecimento “estabelecido pela indugdo, além de qualquer divida razodvel”. E curioso notar que ainda hoje lusamos esse exemplo, que serviu também nos dias de Aristételes e de Pitias de Mas: silia — 0 grande viajante que ganhou reputacdo de mentiroso devido a sua des crigdo de Tule, com 0 mar gelado e o “sol da meia-noite”. © método das tentativas no se identifica simplesmente com 9 método critico ou cientifico — 0 processo de conjecturas € refutacées. O primero é em- pregado nao s6 por Einstein mas — de forma mais dogmatica — pela ameba; a diferenca reside ndo tanto nas centativas mas na atitude critica ¢ construtiva as- sumida com relagao aos erros, Erros que o cientista procura eliminar, consciente € cuidadosamente, na tentativa de refutar suas teorias com argumentos penetrantes inclusive 0 apelo aos testes experimentais mais severos que suas teorias e engenho Ihe permitem preparar A atitude critica pode ser descrita como uma tentativa consciente de sub: ‘meter nossas teorias e conjecturas, em nosso lugar, a “luta pela sobrevivencia”. em que 0s mais aptos triunfam. Ela nos da a possibi de uma hipotese inadequada — quando uma atitude mais dogmatica levaria & nos se CONJECTURAS E REFUTAGOES sa climinacdo. (Ha uma estéria tocante a respeito de comunidade indiana que desaparecew por causa da sua crenca na santidade da vida — inclusive a vida dos tigres.) Adotamos assim a teoria mais apta a nosso alcance., eliminando as que sao ‘menos aptas. (Por “aptidao” ndo quero dizer apenas “wtilidade, mas também ver: dade; vide os caps. $ € 10 deste livro.) Na minha opiniao, este procedimento nada tem de irracional, nem precisa de maior justificacdo racional. vin Voltemo-nos agora da critica légica da psicologia da experiéncia para nosso problema real: o problema da légica da ciéncia. Embora algumas das coisas que comentei aqui possam ajudar-nos, na medida em que eliminaram certos precon. ceitos em favor da indugio, o tratamento a que me proponho do problema logico da indug@o independe totalmente da critica que fizemos, © de todas as conside . rages. psicoligicas expostas. Desde que 0 leitor ndo aceite dogmaticamente 0 alegado fato psicologico de que fazemos indugdes. podera esquecer tudo 0 que dis se, com a excecio de dois pontos de légica: minhas observacdes sobre a testabili “dade ou refutabilidade como critérie de demarcacao ¢ a critica logica feita por Hume a indugéo, Do que dissé aqui € obvio que havia uma estreita ligacdo entre os dois problemas que me interessavam entdo: a demarcacio ¢ a indugio — ou o método Gientifico. Era facil entender que 0 método da ciencia € a critica, isto é, as ten tativas de refutagdo. Contudo, levei alguns anos para perceber que os dois pro- bblemas (0 da demarcagao ¢ 0 da inducdo) num certo sentido eram um 6 Perguntava-me por que tantes cientistas acreditam na inducdo: descobri {que isso se devia ao fato de acreditarem que a ciéncia natural se caracteriza pela inducio: um métado que’ tem inicio em Iongas seqiiéncias de observacdes € ex perigncias ¢ nelas se baseia. Acreditavam que a diferenga entre a ciencia genuina © a especulagao metafisica ou pseudocientifica dependia exclusivamente do emprego do método indutivo. Pensavam, portanto (para usar minha propria terminologia) que $6 0 método indutivo fornecia um eritério de demarcacao satisfatorio. Encontrel_recentemente uma interessante formulacao dessa crenca num notével livro de filosofia, escrito por um grande fisico — Natural Philosophy of Cause and Chance, de Max Born.18 Escreve o autor: “A inducdo nos permite sgeneralizar um certo ndmero de observagies, sob a forma de regra geral: ade que a noite seque o dia, por exemplo... Mas, embora na vida quotidiana no tenhamos tum eritério definide de validade para a indw a ciéncia desenvolveu um cédigo ou norma para sua aplicacdo”, Born nao revela o contetido desse cédigo da indugdo mas salienta que “ndo hd um argumento l6gico” que apéie sua aceitacao: trata-se de “uma questio de {€°, pelo que o autor se inclina a qualificar a inducdo de “principio metafisico". Por que razdo a crenga de que deve existir um cédigo de regras indutivas validas? A resposta fica clara quando o autor se refere ao “grande indimero de pessoas que ignoram ou rejeitam a regra da ciéncia, entre as quais os 18 Oxford, 1949, pig. 7. CHENCIA: CONCTURAS F REFUTACOES as membros de ligas'contra a vacinagio c seguidores da astrologia. & indtil discutir com eles: no posso obrigé-los a aceitar os mesmos critérios de inducio valida nos quais acredito — o cédigo cientifico”. Essa passagem deixa bem claro que a “in: ducao wdlida” é usada aqui como critério de demarcagdo separando a ciéncia da pseudocitncia E obvio, porém, que a regra da “inducdo valida” no chega a ser metafisica cla simplesmente nao existe. Nao hé regra que possa garantir uma generalizacao inferida de observagdes verdadeiras, por maior que seja sua regularidade. (O proprio Born ndo acredita na verdade da fisica newtoniana, a despeito do seu éxito, embora acredite que ela se bascia na inducio.) Por outro lado, o éxito da ciéncia ndo se fundamenta em regras indutivas mas depende da sorte, do engenho dos cientistas ¢ das regras puramente dedutivas do raciocinio critica Poderia, portanto, sintetizar da seguinte forma algumas das minhas con- clusdes 1) A indugio ~ isto é, a inferéncia baseada em grande ndimero de obser vagdes — € um mito: nao é um fato psicoldgico, um fato da vida corrente ow um procedimento cientifico. 2) O método real da ciéncia emprega conjecturas © salta para conclusdes sgenéricas, as vezes depois de uma nica observacdo (conforme o demonstram Hume © Born). 5) A observacao a experimentagdo repetidas funcionam na ciéneia como: lestes de nossas conjecturas ou hipéteses — isto €, como tentativas de refutacao. 4) A crenea erronea na indugdo ¢ fortalecida pela necessidade de termos um critério de demarcagdo que — conforme aceito tradicionalmente, e equivo: cadamente — $6 0 método indutivo poderia fornecer 5) A concepgao de tal método indutivo, como critério de verificabilidade. implica uma demarcacio defeituosa 6) Se afirmarmos que a indugio nos leva a weorias provaveis (e nao certas) nada do que precede se altera fundamentalmente, (Vide em especial 0 cap. 10 des. te livro.) Ix Se é verdade. como sugeri, que 0 problema da induco é apenas um exem plo ou uma faceta do problema da demarcagio, a soluczo dada a este tltimo deverd solucionar também o primeiro. E esta a minha opiniao, embora a conclusio ppossa ndo parecer imediatamente obvia. Para um enunciado sucinto do problema da inducdo ‘podemos retornar a Born, que escreve: “... ndo ha observacdo ou experimentacio, por mais extensas, ue possam proporcionar a ndo ser um miimero finito de repeticdes". Portanto. “a Proposi¢ao de uma lei — B depende de A — transcende sempre a experiencia BAL,

You might also like