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A CENTRALIDADE DA QUESTAO SOCIAL PARA O SERVICO SOCIAL BRASILEIRO. The centrality of the Social Issue for brazilian social work Grupo Temitico de Pesquisa da ABEPSS Servico Social: Fundamentos, formacao e trabalho profissional Fatima Grave Ortiz* sosilorcid orgl0000-0001-8796-0033 Hamida Assungao" @birosiiorcid orgloo00-c00178812605 Luciana Cantalice’ @bupsutorcid.orglooo0-2003-1035-8170 Mariléia Goin’*** @hsxpsilorcid.orgloone-0003-485-3008 Tatiana Reidel” Dupssforcid orgio000-0002-8590-3836 * Assistente Social. Doutora em Servico Social. Professora Associada da Escola de Servico Social e do Programa da Pés-Graduagéo em Servico Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil). Av. Pasteur, n*250, Botafogo, Rio de Janeiro, CEP.: 22290-240. Membro da comissdo coordenadora 2021-2022 do GTP Fundamentos, Forma¢ao e Trabalho Profissional da ABEPSS. E-mail: fgraveortiz@gmail.com. “~ Assistente Social. Doutora em Ciéncias do Ambiente e Sustentabilidade na Amazénia. Professora do curso de de Graduacdo e de Pés-graduacSo em Servico Social da Universidade Federal do Amazonas (UFAM, Manaus, Brasil) Ay. Dallas, quadra A, 24, Parque das Laranjeiras, Flores, Manaus (AM), CEP.: 69058-125. Membro da comiss3o coordenadora 20212022 do GTP Fundamentos, Formagdo e Trabalho Profissional da ABEPSS. E-mail hamida.assuncao@gmail.com; hamida@ufam.edu.br. “* Assistente Social. Doutora em Servico Social. Professora do Departamento de Servico Social da Universidade Federal da Paraiba (graduaao). (UFP8, Joao Pessoa, Brasil). Campus | -Lot. Cidade Universitaria (PB), CEP.: 5805 1900. Professora do Programa de Pés-graduacao em Servico Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. (UFRN, Natal, Brasil). Campus Universitério, Lagoa Nova, Natal (RN), CEP.: 59078-970. Membro da comisso coordenadora 2021-2022 do GTP Fundamentos, Formac © Trabalho Profissional da ABEPSS. E-mail: lucianabocantalice@gmail.com. *" assistente Social. Doutora em Servico Social. Professora do Departamento de Servico Social da Universidade de Brasilia (graduacdo ¢ pds-graduago). (Un8, Brasfia (DF), Brasil). Campus Universitario Darcy Ribeiro, Brasilia (DF), CEP. 70910-900. Membro da comissio coordenadora 2021-2022 do GTP Fundamentos, Formacao e Trabalho Profissional da ABEPSS. &-mail: mari,goin84@gmail.com. *" assistente Social. Doutora em Servigo Social. Professora Associada do Departamento de Servico Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (UFRGS, Porto Alegre, Brasil). Av. Ramiro Barcelos 2600, Bairro Santa Cecilia, Porto Alegre (RS), CEP.: 3040-060. Membro da comisso coordenadora 2021-2022 do GTP Fundamentos, Formacio e Trabalho Profissional da ABEPSS. E-mail: tatyreidel@gmail,com. 246 ‘Temporalis, Brasilia (DF), ano 21, n. 42, p. 246-260, jul,/dez. 2021. | ISSN 2238-1856 3) GRUPO TEMATICO DE PESQUISA DA ABEPSS SERVICO SOCIAL: FUNDAMENTOS, FORMACAO COMPOP AIS: ereasaiso pronssiona, esumo artigo dscute a questo socal como um dos fundamentos do Servigo Social rato e, por conseguine, a sua vivida'eholerna centraldade para a formagio e para o trabalho profisona,a partir das reflexGes que tem tmbasado 0 Grupo Temdtico de Pesquisa (CTP) Fundamentos, Formacéo e Trabalho Profissiona, da ABEPSS Ancorada no materlalsa Mstrcoe dalétco, producto orunda de levantamento bblogrificee documental ec apresenta andes que evidencam o qufoimperativo€o fortalecmento dessa perspectva em tempos marcados pelo avang das tendéncias conservadoras ea ampliagao das scussbes acerca darelagi orgrica entre questo focal e Servigo Soci, de modo a Incoporarmos_permanentemente suas determinagges e conformagées decorrentes das espectficidades do momento historic PALAVRAS-CHAVE, Questo Social. Servigo Social. Formagao Profissional. Trabalho Profissional. ABSTRACTS. The article discusses the social issue as one of the foundations of the Brazilian Social Work and, therefore, its vivid and current centrality for training and professional work, based on the reflections that have supported the Thematic Research Group (TRG) on Foundation, Training, and Professional Work, from ABEPSS. Anchored in historical and dialectical materialism, the production comes from a bibliographic and documentary survey and presents analyzes that show how imperative itis to strengthen this perspective in times marked by the advance of conservative trends and the expansion of discussions about the organic relationship between social and Social Work, to permanently incorporate its determinations and conformations resulting from the specificities of the historical moment. KEYWoRDS Social Issues. Social Work. Professional Training. Professional Work. INTRODUCAO obre os vinte e cinco anos de existéncia das Diretrizes Curriculares da Associagdo Brasileira de Ensino e Pesquisa em Servico Social (ABEPSS), ha muito o que podemos dizer e analisar, tendo em vista que os processos ideo-politicos e sécio-econémicos que j4 despontavam nos agora passados anos de 1990 se aprofundaram, tensionando ainda mais os propésitos do projeto ético-politico profissional e a partir dele, do projeto de formacao profissional. Dentre os diversos processos, assistimos as consequéncias que a primazia da financeirizagao do capital, do neoliberalismo e seu Estado Minimo e do recrudescimento da crise econémica, politica e social trouxeram as necessidades e a sobrevivéncia da classe trabalhadora, Sem diivida, estes vinte e cinco anos mostraram como a chamada crise estrutural expressa o metabolismo social do préprio capital (MESZAROS, 2011), cujo desenvolvimento desenfreado nao poupa nada ouninguém, desde os direitos histdricos e socialmente conquistados por parcela da humanidade até o meio ambiente em todo o globo. 0 Servico Social e seu projeto profissional ndo so incdlumes em relacdo a isso. Ao contrério, nosso projeto ético-politico e de formacao profissional tem sofrido graves ataques, que exigem de todos nés a anilise critica e acurada da realidade para a construcao de respostas objetivas e competentes em face a tais processos. Cabe ressaltar que um projeto expressa sempre a prévia ideacao daquilo que se deseja construir cou afirmar e, no nosso caso, 0 projeto de formacao profissional do Servigo Social brasileiro, cujas Diretrizes Curriculares da ABEPSS sdo legatérias, expressa o perfil profissional que se pretende formar para o desenvolvimento de acées e de respostas técnico-profissionais compativeis com os principios e interesses de classe que nosso projeto ético-politico pressupée. 247 ‘Temporalis, Brasilia (DF), ano 21, n. 42, p. 246-260, jul,/dez. 2021. | ISSN 2238-1856 Acenrnauipape a quesrdo soci ranaoseavco soci. snasieno LOMPOF Olis Assim, 6a partir deste propdsito que a questo social assume prioridade ontoldgica no projeto de formacao profissional do Servico Social, visto que ela carrega consigo a chave histérica e, a0 mesmo tempo, heuristica para entendermos as légicas politica e econdmica que gestaram em finais do século XIX no mundo e no inicio do século XX no Brasil, as condigGes sdcio-histéricas para o surgimento de uma profissao particular como a nossa. Portanto, sem a exploso da questdo social e dos processos politicos e sociais a ela vinculados no qual se destaca a refuncionalizago do Estado, nos termos de Netto (1996), nao haveria condig6es objetivas e subjetivas para que as politicas sociais se constituissem e com elas, a necessidade de um determinado profissional. Foi [e ainda é] a existéncia das expresses da questo social que justificaram [e justificam] e legitimaram [e legitimam], ndo somente o significado social da profisso, mas também seu lugar e particularidades na divisdo social e técnica do trabalho. E a partir deste entendimento que podemos localizar e depreender a preponderancia assumida pela questo social no ambito das Diretrizes Curriculares da ABEPSS, estando seus principios explicitados num conjunto de conhecimentos necessérios ao perfil que se deseja formar e que, pedagogicamente, se organizam em Nucleos de Fundamentago — da vida social, da sociedade brasileira e do trabalho profissional (ASSOCIACAO BRASILEIRA DE ESCOLAS DE SERVICO SOCIAL, 1996). © Niicleo de Fundamentos tedrico-metodolégicos da vida social, reine um conjunto de conhecimentos relativos ao ser social, situado no processo de produgéo e reproducao da vida em sociedade. Nessa via, o trabalho, como categoria ontolégica, é entendido como medular na constituiggo humano-genérica, uma vez que implica na apreensdo das determinacSes expressas pela divisdo social, sexual e racial do trabalho, pela luta de classes, pelas relacdes de exploracao e dominacao e pelas formas de alienacao e resisténcia. A questo social, ao consubstanciar 0 conjunto das desigualdades e lutas sociais oriundas das forcas contraditérias das relaces sociais, torna-se indissociével da ordem burguesa e inaugura neste Nuicleo, a partir de suas determinagées sécio-histdricas, sua centralidade na proposta de formacao (ABESS, 1996) © Nuicleo da vida social se expressa no Nticleo de Fundamentos da particularidade da formagao sécio-hist6rica da sociedade brasileira, ao particularizar a constituicao social, econémica, politica e cultural da sociedade brasileira, em seus aspectos dependente, periférico, urbano-industrial e subordinado &s economias centrais (ABESS, 1996). 0 trato das determinag6es que consolidam o desenvolvimento do capitalismo no Brasil carimba o selo das peculiaridades histéricas nacionai conformagéo do Estado (classista); desigualdades sociais; concentraco de renda; superexploraco da forca de trabalho; relacGes de classe, raca, género e etnia; e resisténcias. Na particularidade brasileira, a questo social assume contornos que impactam visceralmente a vida dos sujeitos, dada a constituigéo e desenvolvimento da sociedade brasileira, ao expressar “[...] desigualdades econémicas, politicas e culturais das classes sociais, mediatizadas por disparidades nas relacdes de género, caracteristicas étnico-raciais e formacées regionais” (IAMAMOTO, 2007, p. 160). A partir dos fundamentos constantes nos Nucleos da vida social e da particularidade da realidade brasileira, 0 Nticleo de Fundamentos do Trabalho Profissional articula conhecimentos que apreende o Servico Social como especializagao do trabalho coletivo, participe de processos de trabalho, que tem na questao social a base de sua fundacao enquanto profissao. Ademais, dada a centralidade e transversalidade do seu objeto profissional - a questo social -, a formag3o retine elementos que conduzem ao trabalho profissional competente, ético, critico, intelectivo, 248 ‘Temporalis, Brasilia (DF), ano 21, n. 42, p. 246-260, jul,/dez. 2021. | ISSN 2238-1856 3) GRUPO TEMATICO DE PESQUISA DA ABEPSS SERVICO SOCIAL: FUNDAMENTOS, FORMACAO COMPOPGIS ereacnno Rorssiona ontolégico, tedrico e politicamente referenciado (ABESS,1996). Apreender as particularidades profissionais - de caréter eminentemente interventivo -, as relacdes com as instituicées empregadoras - essencialmente publicas -, 0 assalariamento, as condigdes objetivas, éticas e técnicas de exercicio do trabalho, além das marcas histéricas que institucionalizam e desenvolvem sua necessidade social enquanto profissao so quesitos fulcrais para que o Servico Social, dado seu rigoroso adensamento tedrico e metodolégico constante dos Niicleos que fundamentam a formacéo e o trabalho, nao resvale na pulverizacéo, fragmentagdo e indiferenciagdo da questo social. Nessa ética, a nucleacao tridimensional expressa os pressupostos orientadores da formagao profissional e traduz seus eixos basilares: o significado social da profissao - como especializacao do trabalho coletivo e inserida na divisdo social, técnica e sexual do trabalho -; a questo social como fundamento histérico da profisséo, no bojo das particularidades sécio-histéricas da sociedade brasileira; o trabalho como categoria fundante, de modo a sintonizar o exercicio do Servico Social na sociedade capitalista; e a teoria social de cariz marxiano, como conduto teérico- politico que subsidia o desvelamento das contradiées inerentes a lei geral de acumulacao capitalista. A perspectiva de nucleacéo, na sua totalidade de conhecimentos, néo concebe a departamentalizagao dos componentes, atrelados a um ou a outro Nuicleo (TEIXEIRA, 2019) € busca superar os vieses mecanicistas e historicistas no trato dos Fundamentos da profissao - dos quais, a questo social é constitutiva. Superam a ldgica formal fragmentadora de contetidos, matérias, disciplinas e ementas e estabelecem a necesséria dinamicidade entre os componentes curriculares', uma vez que consistem em eixos estruturadores do projeto de formacéo profissional e nao sao “{...] hierarquizados, classificatérios e auténomos, mas interdependentes @ indissociéveis, que expressam niveis diferenciados e complementares de abstracdo para decifrar a profissao na dinamica societaria e ancoram os Fundamentos do Servico Social” (GOIN, 2019, p.2). A partir desses elementos que assentam o debate, 0 presente artigo objetiva sintonizar a questo social como um dos fundamentos para o Servico Social brasileiro, no ano em que se comemoram os 25 anos das Diretrizes Curriculares e cuja centralidade, a partir da fecunda incidéncia marxista, permanece vivida e hodierna. Para isso, 0 texto esta organizado em dois momentos, além da introdugéo e das consideracées finais, os quais buscam evidenciar a centralidade da questao social para o Servico Social enquanto area de conhecimento e a necessidade do fortalecimento de estratégias para o enfrentamento do conservadorismo no tempo presente. Assim, no primeiro tépico, a discussdo gira em torno da concep¢io critica de questo social considerada como pressuposto para a formacdo e para o trabalho profissional. Na sequéncia, as reflexdes que envolvem o avanco do conservadorismo no tempo presente e as possibilidades regressivas que esto postas as relagGes sociais e para profissao. Distribuidos em disciplinas, laboratérios, oficinas e semindrios temsticos (ASSOCIAGAO BRASILEIRA DE ESCOLAS DE SERVICO SOCIAL, 1996). 249 Temporalis, Brasilia (DF), ano 21, n. 42, p. 246-260, juljdez. 2021. | ISSN 2238-1856 AcenTRauipape a quesrdo soci. ranao seavco sociatsnasieino LOMPOF OliS A QUESTAO SOCIAL NO AMBITO DA FORMACAO E DO TRABALHO PROFISSIONAL: PREMISSAS PARA A ANALISE DOS SEUS FUNDAMENTOS, A apreensao da questo social e o debate sobre ela sao basilares para a drea de Servico Social, tendo em vista que o/a assistente social é reconhecido como profissional especializado para trabalhar com as suas diversas manifestag6es. Todavia, essa no é uma discusséo que suscita unanimidade. Trata-se de assunto gerador de polémicas e dissondncias, mas que, no projeto de formacdo profissional constituido ao longo da década de 1990, se explicita de modo hegeménico 3 luz da perspectiva marxista que norteia o referido projeto. A questéo social, entendida como as expressdes resultantes do processo de formagdo e desenvolvimento da classe trabalhadora (industrial e urbana) na sociedade capitalista, como referem lamamoto e Carvalho (2001) na cldssica e pioneira obra escrita na década de 1980, intitulada Relacdes Sociais e Servigo Social no Brasil: esboco de uma interpretagao histérico- metodoldgica, & © solo do ousado e critico projeto ético-politico do Servico Social na contemporaneidade. Vale lembrar que desde a publicagdo do referido livro, a profissdo tem avangado e maturado acerca da apreensdo da questéo social, especialmente no Brasil, considerando suas caracteristicas histéricas predominantes de género e raga, como veremos neste texto adiante. Embora a questo social ndo seja matéria exclusiva dos/das assistentes sociais, é preciso reafirmar sua centralidade para compreensao ¢ interven¢ao profissional na realidade. Em tempos tao sombrios, marcados por crises que se somam & pandemia da Covid-19, emergida em marco de 2020 no Brasil, é fundamental a reafirmaco da questo social como importante elemento para a formacdo e para o trabalho dos/das assistentes sociais. Esta reafirmacao deve vir embasada por reflexdes atualizadas acerca das particularidades da sociedade capitalista, a qual jamais pode ser entendida como algo imutavel, estanque e intransponivel.. E imprescindivel reconhecer que os debates sobre a questo social precisam pulsar constantemente ¢, por conseguinte, fundamentar e perpassar a formacao e o trabalho profissional em uma perspectiva critica, engajada aos interesses da classe trabalhadora e comprometida com a construgéo de uma ordem societdria sem dominacao, exploragdo e discriminagao de qualquer natureza. Nesse sentido, lamamoto (2007) discute os rebatimentos da financeirizacao do capital no ambito das express6es da questo social e nos aponta que “{...] 0 predominio do capital fetiche conduz & banalizacao do humano, a descartabilidade e indiferenga perante o outro, o que se encontra na raiz das novas configurages da questo social na era das finangas” (IAMAMOTO, 2007, p. 125). Desta afirmativa analitica, depreende-se que na sociedade capitalista contemporanea, marcada pela intensa financeirizagéo da economia, a questao social mantém as mesmas bases, embora apresente algumas novas conforma¢ées decorrentes das especificidades do momento histdrico atual. Tal andlise converge com 0 pensamento de Netto (2001), que considera que a questo social é elemento constitutivo da sociedade capitalista, assim, sé serd suprimida em outro ordenamento societario. De forma categérica, 0 autor afirma que inexiste qualquer nova questao social, contudo, alerta que o entendimento da questao social nao é univoco, nem dentro e nem fora da Srea de Servico Social e, nesse sentido, pode trazer varias tens6es para a profissao. 250 ‘Temporalis, Brasilia (DF), ano 21, n. 42, p. 246-260, jul,/dez. 2021. | ISSN 2238-1856 3) GRUPO TEMATICO DE PESQUISA DA ABEPSS SERVICO SOCIAL: FUNDAMENTOS, FORMACAO COMPOP ALS: ereasatio pronssionay A luz do pensamento conservador, o qual também tenta incidir forcas sobre o projeto ético- politico do Servico Social, a questo social pode revelar outros sentidos e significados, de modo a subsidiar aces moralizadoras, higienistas, assistencialistas e caritativas. Por isso, principalmente se considerarmos as incertezas do tempo presente, marcado pelas crises sanitéria (decorrente da pandemia da COVID-19), econémica, social, politica e ambiental, é fundamental a reafirmagao da questo social como produto das relagdes desiguais entre classes sociais antagénicas nesta sociedade. Quando se trata das particularidades da questo social no Brasil, Santos (2012) nos convida a analisar o desemprego, o qual tem aumentado de forma assustadora na Ultima década. Nessa légica, a autora frisa que essa expressdo da questo social é delineada por alguns processos histéricos nacionais que merecem destaque, como, por exemplo: a sociedade escravista e patriarcal sobre a qual se instituiu o trabalho livre; o ambiente antidemocrético que se estabeleceu em diferentes momentos da Repuiblica; e a histdrica dificuldade de articulagdo e organizago da classe trabalhadora em prol de direitos. Diante dessas evidéncias, € preciso entendermos que as categorias género, raga e classe social so eixos estruturantes da questao social brasileira, ou seja, inconcebivel que a questao social seja entendida sem eles, ou ainda que seja assinalada de forma fragmentada como uma nova questdo social. Nessa perspectiva, 0 racismo, o feminismo, o machismo, a opressdo, a diversidade sexual, entre outros temas que, acertadamente, tém tide maior proeminéncia em nossas pesquisas nos tempos atuais, sdo urgentes e imprescindiveis, pois esto profundamente enraizados as relages desiguais na sociedade capitalista. Consistem, portanto, em mediacées que devem ser insuprimiveis da nossa andlise sobre as express6es da questo social no Brasil e, por conseguinte, tematicas que sao [ou deve ser] transversais ao nosso projeto de formacao profissional. No segundo ano que vivenciamos os deletérios impactos da crise pandémica no Brasil, celebramos os 25 anos da implementagiio das Diretrizes Curriculares da ABEPSS - que expressam 0 projeto de formacao profissional em Servico Social e demarcam a diregdo social critica que, por sua vez, coaduna com um novo projeto societario, antagdnico ao capitalismo e ao lucro acima da vida. Nesta direcdo, se faz necessério considerar 0 processo destrutivo do capital e seu impacto sobre as novas configuragdes da questéo social - como aludido linhas atras — e suas multiplas expressGes. Tudo isso em meio ao avanco acelerado do Estado no agenciamento e na expansao da educacao superior através do fortalecimento de parcerias com a iniciativa privada, compartilhando com esta as verbas destinadas & educacéo, e contribuindo com o aumento exponencial da privatizagao e do empresariamento da educaco por meio de conglomerados — grandes corporacées - e com a expansio do Ensino a Distancia (NEVES, 2002; MANCEBO; MARTINS, 2012). As adversidades para a garantia de uma formacao de qualidade frente & égide da ofensiva neoliberal, cujas demandas e desigualdades séo orquestradas pelo capitalismo, se agigantam no 251 ‘Temporalis, Brasilia (DF), ano 21, n. 42, p. 246-260, jul,/dez. 2021. | ISSN 2238-1856 AcenTRauipape a quesrdo soci pana seanco soci. enasieino LOMPOF Olis contexto da Covid-19, perfodo em que, dentre muitos outros retrocessos’, proliferam-se o ensino 0 trabalho remoto - numa nitida tentativa de desmonte da universidade publica presencial ~ tanto nas esferas puiblica como privada. Refletir sobre a centralidade da questo social para o Servico Social, seja no projeto de formacao, seja no trabalho profissional, evidencia fértil interlocugio com a producéo da érea, principalmente no campo dos Fundamentos do Servico Social com a teoria marxiana ea tradi¢ao marxista. Resulta disso a incorporacdo da Lei Geral da Acumulaco Capitalista (MARX, 2014) para © entendimento critico sobre os processos histdricos e politico-econémicos geradores das expresses da questo social no século XIX, mas ainda vigentes e aprofundados na atualidade com a quarta revolucao industrial e nova divisdo internacional do trabalho. Esta interlocucao permite situd-la como indissociavel da produgo capitalista e da sociabilidade burguesa, a partir do aporte da teoria do valor trabalho, da lei geral de acumulacao, da (re)producao das relaces sociais, do debate da subalternidade, das lutas e movimentos sociais, conformando uma abordagem totalizante que nao segmenta estrutura e sujeito, uma vez que integra dimens6es materiais e espirituais na andlise das desigualdades e resisténcias sociais e suas refracdes na vida dos sujeitos (CLOSS, 2017). Todavia, o entendimento da questo social no Brasil pressupSe reconhecer a relago entre capital e trabalho a partir das particularidades do desenvolvimento capitalista dependente e periférico do pafs, que passa, necessariamente, pela sua formagio sécio-histérica - dimensao essencial no projeto de formacao profissional. Essa dimensdo permite apreender as determinacées estruturais da questo social no Ambito da realidade brasileira, as quais explicam-se por varios processos que se auto implicam. Essas determinagGes se expressam, dentre outras, pela superexploracao do trabalho, pela questéo étnico-racial, pela questéo de género e sexualidade, pela questo agréria, urbana e ambiental, mas sobretudo, pela luta e pela resisténcia que historicamente foram apassivadas, “[...] mantidas sob o controle do Estado e das classes dominantes [...]” (SANTOS, 2012, p. 437) € marcadas pelo conservadorismo e pelo autoritarismo antidemocratico. Aanilise da questo social requer, portanto, a apreensdo da formacao sécio-histérica do pais, sem a qual as formas particulares que as expressées da questdo social assumem no Brasil no so compreendidas desde suas bases>. A questo social, em sua relacdo com a profissao, se desdobra em varios aspectos: na prdpria elucidaggo do significado social do trabalho do assistente social; na sua inscrigo no Ambito da (re)produgao das relagSes sociais; na leitura critica das requisicdes sécio-histéricas dirigidas a esta profissao na divisdo sociotécnica do trabalho; e, inclusive, como base explicativa e analitica do desenvolvimento das politicas sociais no capitalismo (IAMAMOTO; CARVALHO, 2001). 20 atual governo brasileiro tem contribuido para o processo profundo de retrocessos, ascensio neoconservadora e desmontes, a0 passo em que evidencia seu desprezo pela educacao e pelo Ensino Superior, realizando alteracSes no Ministério da EducacSo, que prioriza a privatizagao em detrimento do ensino piiblico, laico, de qualidade, social e democraticamente referenciado. Além disso, reduz investimentos, subsidiado pela Emenda Constitucional (EC) n, 195, que incide diretamente nas universidades federais, com corte de 30% - evidenciando o total descaso pela ciéncia. > Destaca-se a contribuiggo, no ano de 2018, do documento Subsidios para o debate sobre a questo étnico-racial na formagio em Servico Social, a0 afirmar que “{..] 0 conceito de raga/etnia é fundamental para a compreenséo da questo social na dialética da formacéo social brasileira” (ASSOCIAGAO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVICO SOCIAL, 2018, p. 13) 252 ‘Temporalis, Brasilia (DF), ano 21, n. 42, p. 246-260, jul,/dez. 2021. | ISSN 2238-1856 3) GRUPO TEMATICO DE PESQUISA DA ABEPSS SERVICO SOCIAL: FUNDAMENTOS, FORMACAO COMPOP ALS: ereasatio pronssionay Destaca-se, deste modo, a relevancia da centralidade da questao social no modo de ser e de existir desta profissdo, pois amesma fornece os elos que conectam radicalmente o Servigo Social coma dinamica societaria em seu movimento histérico, no quadro das relacGes entre as classes sociais e 0 Estado, como um conduto essencial para a resisténcia & cultura conservadora na categoria. Apesar disso, verificam-se dificuldades da apropriacao do potencial teérico-analitico acumulado na drea pela categoria profissional, conforme evidenciaram os dados da pesquisa realizada em 2006, pela ABEPSS, ao referir que a questéo social nos curriculos se desenvolvia preponderantemente em disciplinas com os mais diversos titulos e que nem sempre preconizavam seu contetido como central, tratando a contradicgo de forma abrangente. Assim, “{...] nao por acaso alguns discentes afirmam que a questo social, de fato, atravessa o curriculo, mas falta clareza no que se refere a compreensao tedrica do processo que a origina e dos nexos com a pratica do assistente social [...” (TAVARES, 2007, p. 113-114), 0 que demarca um desafio fulcral a ser enfrentado na apreensao dos Fundamentos do Servico Social. Assim, apesar de as Diretrizes Curriculares da ABEPSS afirmarem a questo social como elemento central, ordenador ¢ transversal ao curriculo, pois ela explica e justifica a existéncia e o modo de ser da prépria profissao, verifica-se a importancia de adensar estratégias pedagégicas que superem sua abordagem difusa e pulverizada, sem um aprofundamento teGrico-critico dos seus fundamentos. Reitera-se, a partir do exposto, o desafio de garantir a questéo social como dimensao estruturante da forma¢o profissional, com sua devida transversalidade nos curriculos a partir da tridimensionalidade dos Nuicleos de Fundamentacao, sendo que este entendimento se evidencia nas Diretrizes Curriculares da ABEPSS, a partir de uma sélida base teérico- metodolégica fundada no pensamento marxiano e marxista, essencial a andlise da realidade (e seus determinantes sdcio-hist6ricos). Soma-se a estes desafios na formacdo, a necessidade de uma especial atencao para o debate do processo de apreensdo e formulacdo de respostas & questao social no plano do trabalho profissional, onde se percebem dicotomias no seu trato, seja nas andlises estruturais ou fragmentadoras das expressdes da questo social, nas compreensdes economicistas da mesma ¢, ainda, naquelas que néo superam a imediaticidade das demandas institucionais. Assim, aprofundar e dar visibilidade dimensao tedrico-metodolégica totalizante na abordagem da questao social, que realize o transito entre as dimens6es universais e singulares das suas expresses, a partir das situag6es vividas pela populagao e das demandas institucionais, é uma exigéncia tedrico-pratica para uma intervengao profissional competente e condizente com os principios e coma direcdo do nosso projeto ético-politico (CLOSS, 2017). Desta forma, afirmamos que o estudo sistematico das expressées da questo social necessita ser privilegiado na formagao profissional, para 0 qual ratificamos a importancia do método critico-dialético para a andlise da realidade e, nesta, as expressdes da questo social, tal como emergem imediatamente no cotidiano de trabalho e como converte-se em matéria para a formulacao de respostas criticas e inovadoras. Ressaltamos em meio a este contexto, a centralidade do método materialista histérico dialético na analise e nos processos interventivos profissionais como recurso capaz de articular 253 ‘Temporalis, Brasilia (DF), ano 21, n. 42, p. 246-260, jul,/dez. 2021. | ISSN 2238-1856 AcenTRauipape a quesrdo soci. ranao seavco sociatsnasieino LOMPOF OliS © transito entre as diversas situag6es singulares postas no cotidiano profissional e na totalidade social, forjando as necessérias mediagGes para um trabalho critico e propositivo, compromissado com processos reflexivos e emancipatérios (CLOSS, 2017). A excegdo desta perspectiva, que sinaliza a relevancia da consistente formagdo tedrico-metodolégica voltada para a apreenséo dialética e contraditéria da questo social, fragilizam-se as respostas profissionais e a projecao de ages que transcendam a mera imediaticidade do cotidiano - 0 que por conseguinte, fragiliza as lutas e as resisténcias da classe trabalhadora. © AVANCO DO CONSERVADORISMO E AS AMEACAS REGRESSIVAS Firma-se uma conjuntura de ofensivas postas a classe trabalhadora e ao Servico Social, como especializagao do trabalho coletivo. De um lado, os/as assistentes sociais sofrem os impactos do recrudescimento do neoliberalismo, tendo em vista o esfacelamento dos direitos vinculados ao trabalho e, de outro, o agravamento das mtiltiplas expresses da questo social, mediante as consequéncias societérias de mais uma crise estrutural do capital (MESZAROS, 2011) e, antagonicamente, 4 contingéncia severa dos gastos do Estado com politicas sociais. Em momentos de crise avanga 0 conservadorismo, visto a necessidade de se obnubilar uma apreensdo imanente da realidade, a partir da qual € possivel se localizar as raizes das is, portanto, no caso da sociedade burguesa, das contradic6es da relaco capital-trabalho. Desse modo, articulam-se leituras sobre a realidade a partir da perspectiva do binémio razao formal abstratajirracionalismo, o que para Coutinho (2010) faz lembrar da cabeca de Janus, cuja biparticao das faces nao anula a unidade do corpo, pois “[...] ambas sao encarnagdes de um pensamento imediatista, incapaz de atingir a esséncia do objeto” (COUTINHO, 2010, p. 19). Aordem burguesa demanda, assim, uma forma especifica de apreensio da realidade, guiada pela reificacdo e pela pseudoconcreticidade (KOSIK, 2011), consolidando uma espécie de reducao da razéo & racionalidade analitica. Nessa medida, a certa altura do seu desenvolvimento “{...] por sua ldgica imanente, deve prosseguir estimulando o evolver da razéo analitica (a intelecco), mas, deve, igualmente, obstaculizar os desdobramentos da sua superacio critica (a dialéticay” (NETTO, 2017, p. 181). A respeito dessa vigente crise, apesar da articulacéo das estratégias empreendidas - flexibilizago do trabalho, desregulamentacao comercial e privatizacées do patriménio publico = no se observou a recuperacéo das taxas de crescimento do capitalismo na proporcéo esperada. Na verdade, essas medidas de reestruturagéo no reeditaram a emergéncia de uma onda longa de expanso do capital (MANDEL, 1982), como 0 ocorrido apés a crise de 1929. Ao contrario, trouxe consequéncias societérias na ordem do recrudescimento das miltiplas expressdes da questo social, cujas medidas para manutenco das condicées sociais necessarias & produgéo/reprodugdo social foram, conforme Netto (2012), por um lado, o minimalismo das politicas sociais, na atuacao em relacao a extrema pobreza; e, por outro, a ampliagéo do Estado Penal, mediante a ampliago do encarceramento da populagéo pobre, o genocidio de jovens pretos/as e periféricos/as e a criminalizagao dos movimentos sociais. Nessa mesma dire¢do, 0 avango de uma leitura miserével da realidade (MARX, 2017) néo considera as dimensées da totalidade, da mediacéo e das contradi¢des sociais, que se apreendidas evidenciariam - em tempos de financeirizacdo mundial do capital — os limites da 254 ‘Temporalis, Brasilia (DF), ano 21, n. 42, p. 246-260, jul,/dez. 2021. | ISSN 2238-1856 @) GRUPO TEMATICO DE PESQUISA DA ABEPSS SERVICO SOCIAL: FUNDAMENTOS, FORMACAO COMPOP AIS: ereasatio mrorssiona, sociabilidade capitalista, da qual resultam a barbérie social e 0 processo de retroversao civilizatéria, Deste modo, o conservadorismo encontra solo fértil para seu avanco e para o cumprimento de sua tarefa histdrica, a defesa de uma ordem social estabelecida, em que os interesses privados e 0 privilégios da classe dominante se apresentam como se fossem os de toda a sociedade. Ademais, porque a dominaco vivida no mundo material é reproduzida no mundo ideal, conforme jé desvendado por Marx e Engels (2007). Na contramao dessa perspectiva, é preciso uma apreensio critica da realidade que permita a identificag3o das determinacées concretas da (re)produgéo dos processos de exploraco, dominaggo e opressio dos/as trabalhadores/as, da subsunco real do trabalho ao capital e da producao coletiva da riqueza social em detrimento de sua apropriago privada. Um movimento que ao contratio dos pensamentos imediatistas vai da aparéncia a esséncia da “questéo social” e que em termos de realidade brasileira, explicita as suas devidas particularidades*. © avango do conservadorismo tem se explicitado nitidamente no Brasil, nos ultimos anos, a partir de varios acontecimentos: o golpe que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff em 2016; 0 realinhamento dos movimentos politicos de extrema-direita; a massificagéo do fundamentalismo religioso e finalmente, a ascensdo do fenémeno do bolsonarismo; 0 recrudescimento neoliberal no pais por meio da aprovacao da Emenda Constitucional 95/2016 (Lei do Teto dos Gastos), cujo principal desdobramento foi o congelamento dos gastos com as politicas sociais por vinte anos, a partir de 2017; e as varias edicdes da Reforma Trabalhista, que significaram, por sua vez, a incisiva perda de direitos por parte dos/as trabalhadoresjas. Além disso, observa-se também o recuo nas pautas progressistas que se dirigiam ao debate e as politicas dirigidas aos Direitos Humanos, aos negros/as, 25 mulheres, ao segmento LGBTQIAP+, ao meio ambiente, a Reforma Agraria e a demarcaco de terras indigenas. Nao obstante, tendo em vista que o conservadorismo se espraia no tempo presente pelos diversos campos da vida social, o Servigo Social sofre os impactos dessa conjuntura e se encontra como um solo fértil, uma vez que é entendido como produto histérico das relagées soci vigentes — dada a heranga conservadora ainda presente em seu interior e que se reanima diante de tais investidas. Retoma-se a contumaz critica das fragdes conservadoras ao Servico Social critico e a0 projeto ético-politico que a ele se vincula. Reacende-se a defesa da perspectiva tecnicista-instrumental da profissao, alimentada pelo mercado e por uma formagdo alinhada a ele (aligeirada, flexibilizada e rebaixada). Outra possibilidade regressiva se inscreve no 2mbito da apreensio da questéo social, haja vista que se se avancou em uma concepcio critica, como aludido anteriormente, a partir das aproximagGes sucessivas com a teoria social critica, a ofensiva do conservadorismo na realidade € no interior da profissdo pode contra restar este avanco. “Um conhecimento oriundo de uma leitura essencial da realidade e que deve instrumentalizar a classe trabalhadora , assim, conduzir aos processos de organizacSo da resisténcia e de plena consciéncia de sua tarefa histérica nos marcos da sociedade do capital 255 ‘Temporalis, Brasilia (DF), ano 21, n. 42, p. 246-260, jul,/dez. 2021. | ISSN 2238-1856 AcenTRauioape a quesrdo soci. ranaoseavco soci. srasieino LOMPOF Olis Considerando o pensamento social conservador - nao ignorando suas diferentes express6es -no que tange as contradigdes sociais tem-se a obliteracaio. Para os/as conservadoresjas a ordem social vigente é funcional e harménica, assim sendo, qualquer perturbacao € classificada como uma disfungao centrada no individuo, como uma anomia social. Assim, a questao social sob a Iégica conservadora esvazia-se de seu sentido politico e demarcado pela luta de classes realinha-se 4 perspectiva microssocial, que articula ora o assistencialismo, ora o caso de policia. Outrossim, 0 conservadorismo perpassa o ambito estatal, que mediante a agenda utraneoliberal, registra o proceso de desresponsabilizacao no enfrentamento as multiplas expresses desse conjunto de contradicées da relagdo capital/trabalho. O Estado prenhe de uma funcionalidade conservadora atua apenas nas fracdes, que ameagam as condi¢6es necessérias & produgdo e reproducdo social capitalistas, mas sem nenhuma pretensdo de erradicé-las. Nesse sentido, ganham evidéncia no processo de minimizagao dos efeitos da questo social: por um lado, 0 recrudescimento do caréter seletivo, focalizado e fragmentado das politicas sociais, a exemplo, a centralizacdo da assisténcia social junto & extrema pobreza; e, por outro lado, segundo Yazbek (2009), as alternativas privatistas geridas no ambito da sociedade, numa proposta de retorno a filantropia social, que, por sua vez, centra-se na individualizacdo, moralizagao e no assistencialismo. Nessa dinamica séo colocados desafios ao Servico Social critico, posto que um processo de desestruturagao da protecao social ¢ a reedigao dessas velhas praticas no que se refere ao enfrentamento da referida questao social, atingem frontalmente a profissao, visto que a atuacao junto as politicas sociais se constitui enquanto uma das competéncias profissionais, portanto, é condi¢go constitutiva de sua atuacéio. E as velhas praticas assinalam para uma direcao diametralmente oposta a inscrita no projeto ético-politico profissional do Servico Social. Como descrito por Yazbek (2009) esse processo [.-Jinterfere diretamente no carater publico e construtor de direitos das politicas socials. ‘Ou seja, ainda nos defrontamos com o legado da subordina¢ao do social ao econdmico. © social constrangido pelo econémico. social refilantropizado, despolitizado e despublicizado. (VAZBEK, 2009, pp.138-139) Entretanto, afirmamos que o legado da vertente da “Inten¢ao de Ruptura” (NETTO, 1991) resiste as investidas conservadoras e ratifica a plena centralidade da questéo social para a formacao e para o trabalho profissional. A andlise critica da realidade nos permite também reconhecer a sua complexificagao, mediante as transformacées societarias ocorridas pés-crise de 1970, cujas inflexGes incidem para a profissao, resultantes [..] de novas requisicSes postas pelo reordenamento do capital ¢ do trabalho, pela reforma do Estado e pelo movimento de organizagéo das classes trabalhadoras, com amplas repercuss6es no mercado profissional de trabalho.’ (ASSOCIAGAO BRASILEIRA DE ESCOLAS DE SERVICO SOCIAL, 1996, p. 4). Reafirma-se, nesse sentido, o pressuposto de que a formacdo e 0 trabalho profissional séo determinados pelas configuracées estruturais e conjunturais da questo social e pela articulacao de formas diferentes de seu enfrentamento, articuladas, por sua vez, pela acdo politica dos/as trabalhadoresjas e do capital, mediatizadas pelo Estado. 256 ‘Temporalis, Brasilia (DF), ano 21, n. 42, p. 246-260, jul,/dez. 2021. | ISSN 2238-1856 3) GRUPO TEMATICO DE PESQUISA DA ABEPSS SERVICO SOCIAL: FUNDAMENTOS, FORMACAO COMPOPGIS ereacnno RorssionaL CONSIDERACGES FINAIS Os esforgos empreendidos até aqui foram realizados no sentido de ratificar a relevancia da questdo social como fundamento central para a apreensdo nao apenas da génese sécio-histdrica da profisséo, mas sobretudo seu significado social e suas particularidades na divisdo social e técnica do trabalho. Além disso, é imprescindivel - e o artigo tentou mostrar isso - entendermos a questo social como histérica, mas também como resultado da sociabilidade burguesa e do processo capitalista de producao de mercadorias e de reproducdo social. Assim, capté-la em sua historicidade nos permite identificar suas novas expressdes em meio ao avanco do neoliberalismo e do conservadorismo. O debate da questao social nos tempos atuais tem suscitado muitas reflexdes no interior da categoria profissional, trazendo questées que desafiam o atual projeto de formagao, de matriz marcadamente marxista. Exatamente por isso, no marco dos 25 anos das Diretrizes Curriculares da ABEPSS, é imprescindivel a demarcagéo da atualidade do seu contetido e dos seus pressupostos para a formacao e para o trabalho. 0 Servico Social brasileiro, ao longo de mais de oito décadas de existéncia, expandiu seus espacos de trabalho profissional, tornando-se uma profisséo de relevo e de notdvel reconhecimento social e, sobretudo nos tiltimos 30 anos, tem firmado compromisso ético- politico coma construgéo de uma sociedade sem exploragao e discriminagdo, notadamente justa ¢ igualitéria. Embora a postura questionadora das desigualdades sociais seja hegeménica no projeto de formagao e nos documentos que orientam diretamente o trabalho profissional, como a Lei de Regulamentagdo da Profissio (Lei 8.662/1993) e o Cédigo de Etica (1993), 0 enfrentamento ao conservadorismo tem sido uma constante ~ seja pelo avanco das praticas fascistas, miséginas e machistas que circundam 0 Palacio do Planalto, seja pelo discurso polarizado que tem adentrado os diversos espacos da vida social. Estamos desafiados/as, nessa penumbra conservadora, a nao resvalar na perspectiva que naturaliza a questéo social, que a fragmenta em questées sociais ou entéo que a generaliza, atrelando suas andlises deslocadas da vida concreta dos sujeitos. Como refere lamamoto (2007), © Servico Social se situa num terreno movedico, em que pairam interesses sociais distintos e antagénicos. Aos/as profissionais, que trabalham com as muiltiplas dimensdes da questo social, € fulcral o deciframento das mediagées para aprender tanto as variadas expressées que assumem no 4mbito das relagées sociais capitalistas - 0 que leva & asser¢éo que a questo social 20 modo de produco capitalista é inerente -, quanto para forjar formas diversas de resisténcia. Sendo assim, diante da persisténcia dos movimentos conservadores que se apresentam na sociedade e, como refracao disso, também na formacdo e no trabalho de assistentes sociais, 6 salutar para os processos de lutas a reafirmacao da perspectiva disposta no projeto hegeménico de formagao — em que a questo social é eixo transversal -, como elemento basilar para 0 fortalecimento do Servico Social critico e combativo. © Servico Social, em especial suas vanguardas e entidades, estd atento sobre como o recrudescimento da crise capitalista tem metamorfoseado a questo social e suas express6es, trazendo consequéncias importantes ao trabalho e a formas profissional. 257 ‘Temporalis, Brasilia (DF), ano 21, n. 42, p. 246-260, jul,/dez. 2021. | ISSN 2238-1856 AcenTRauipape a quesrdo soci ranaoseavco socia.snasieino LOMPOF OliS Nessa esteira, mostra-se imperativo 0 protagonismo das entidades da categoria (ABEPSS, Conselho Federal de Servico Social (FESS), Conselhos Regionais de Servico Social (CRESS) e Executiva Nacional do Estudantes de Servico Social (ENESSO)) para a resisténcia do Servico Social critico e para a articulaco da profisséo com as lutas gerais da classe trabalhadora e, em defesa da mesma. Abramides (2019) aponta que 0 momento atual tem exigido da profisséo 0 refinar de suas estratégias de luta e resisténcia frente aos desafios estruturais e conjunturais que esto postos e 0 reafirmar de sua articulagdo com uma frente classista, anti-imperialista e anti capitalista. Nesse sentido, a profissdo vern avangando em relagéo & andlise das dimens6es teérico metodolégica, ética-politica e técnico-operativa do Servico Social e, segundo Abramides (2019), atuado incisivamente nas lutas, seja pela eliminacdo de todas as formas de preconceito, discriminagao, dominagao exploracao; seja, contra a criminalizacao dos movimentos sociais, populares e da organizacao dosjas trabalhadores/as e contra todas as formas conservadoras e reacionérias que expressam atitudes e comportamentos racistas, fundamentalistas, patriarcais e miséginos. Além disso, nossa categoria profissional, em linhas gerais, tem se posicionado contrariamente a todas as articulagdes politico-partidarias que visam a destruigo dos direitos dos/as trabalhadores/as, bem como aos processos de privatizacao do patriménio publico e das politicas sociais. Com firmeza politica, se coloca contra os golpes da extrema direita que ameacam a democracia no pais e sua explicita expressao no atual governo federal brasileiro. O cenério, que ja era bem castico, se agudizou ainda mais com a crise sanitéria, agravada com a explosio da pandemia da Covid-1g, a qual impés imensurdveis desafios para a drea de Servico Social. Tal contexto, ao explicitar a precarizagao das politicas sociais, em especial da satide e da assisténcia social, colocou oja assistente social, sobretudo os que trabalham na operacionalizacdo destas, em situagées adversas ~ condic6es objetivas de trabalho, falta de equipamentos de seguranga individual para atendimento, recursos para o atendimento do ntimero exponencial de sujeitos sem condicgo minima de subsisténcia, dentre tantos outras que poderiamos evidenciar. E nesta esteira que as nossas entidades historicamente vem se manifestando na busca da ampla defesa da profisséo ~ a ABEPSS, por exemplo, de longa data vem desenvolvendo ages politico praticas como (1) a ABEPSS Itinerante, que promove a difusao, ampla e democratica, de pautas e contetido que desafiam a consolidacao das Diretrizes Curriculares e (2) a ABEPSS ao Vivo, que se constitui como um mecanismo de resisténcia em tempos de negacionismo da ciéncia e promove debates cientificos na drea, a partir de temas fulcrais & profissao. Destarte, o Servico Social brasileiro, sobretudo suas vanguardas e entidades, continua produzindo uma massa critica que reafirma a direcdo social e estratégica presente no Projeto Etico-Politico Profissional, rechagando qualquer investida conservadora que possa incidir sobre retrocessos na profissdo. A defesa intransigente deste projeto profissional e seus principios consiste, desta forma, na tinica safda possivel, sobretudo, em meio a tantas perdas para a classe trabalhadora, como tentamos apresentar. Como vimos, as crises proporcionam um ambiente receptivo para as ondas conservadoras, as quais vao na contramio do que o Servico Social brasileiro acredita e defende. Nesse movimento, 258 ‘Temporalis, Brasilia (DF), ano 21, n. 42, p. 246-260, jul,/dez. 2021. | ISSN 2238-1856 tomporaiis ‘kuro TeMATICO DE PESQUISADA ABEPSS SERCO SOCIAL: FUNDAMENTOS,FORMACKO & inegocidvel a defesa dos principios ético-politicos que dio embasamento ao Servico Social critico, assim como a centralidade da questo social como fundamento para a formagao e para 0 trabalho profissional. REFERENCIAS ASSOCIACAO BRASILEIRA DE ESCOLAS DE SERVICO SOCIAL (ABESS). Diretrizes gerais para o Curso de Servico Social (Com base no Curriculo Minimo aprovado em Assembleia Geral Extraordindria de 8 de novernbro de 1996). 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