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HISTORICO NACIONAL he Volume 28 1996 Ministério da Cultura / Mistituto de Patriménio Histérico e Artistico Nacional Ministério da Cultura Francisco Weffort Instituto do Patriménio Histdético e Artistico Nacional Glaunco de Oliveira Campello Museu Histérico Nacional Vera Liteta Botirel Tostes Equipe Técnica: Editoracao: Cicero Anténio Fonseca de Almeida Maxricio Ennes de Souza Revisio: Maria de Fatima Oliveira Pinheiro Mauricio Siaines Capa: Campos Gerais! Washington Dias Lessa Museu Histérico Nacional (Brasil} M986 Anais do Museu Histérico Nacional. - ¥1(1940)- . -- Rio de Janeiro: O Museu, |941- vs iL; 23 om Anual Suspensa a partir do volume 26 (1975). Reiniciado em 1995 com o volume 27. ISSN 1413-! 803 | Arsenal de Guerra, Rio de Janeiro, RJ.2.Patriménio Historico e Artistico.3.Cartografia - Portugal - séculos XVI e XVIIL4.Museus - Antecedentes.5.Museus - Histéria.6.Meméria.7.Museu Historica Nacional - Brasil.8.Museologia.9.Cultura - Brasil.|0.Brasil - Histéria.| |.Museu Histérico Nacional (Brasil) - Acerve Museoldgico (Numismiatica). |2.Moedas alemas. [3.Brasil - Historia Miltar - Século XIX. 14. Numismiatica. | 5-lluminagao - Conservagao.|. Titulo CDD 069.0981 Sumdrio Gabinetes de Curiosidades ¢ Museus: sobre tradi¢Zo e rompimento José Neves Batter caurd vecccsssseccccccceccnsccsiemimenntesimmenieeimessercenssncnsasnseisnnansee 7 O Papel dos Museus na Construgao de Uma “Identidade Nacional” Maria Célia Tetreita Moura Sits seers nesses 2F Memoria, Histéria e Colegao Regia AGT eit sescssesssseseeseeeeeesnsessemnrasasnsneeceutmnmarsnscntimvansssenenisonsvananereersennniniece DF De Casa Que Guarda Reliquias 4 Instituigio Que Cuida da Memoria Vania Dolores Estemane de Off 0088 occ sensseessanssssiensssssaenscniseessenticiasercensans 65 Nagao, Histéria e Cultura no Brasil: um ensaio de reflexao desencantada, para uso, talvez, das institutigées de patriménio Guilherme Pereira das Neves cccccccccccsccsssteevececc cree cctessacsseeneaniencieennenstaneaeninanes 37 Patriménio Cultural e Cidadania: as representagdes de memaria nos museus Solange Godoy @ Maria Chagas .eeccscssisecssenesescnnecessensnnsceannnities senescence: 105 Luz - Subsidios ‘Técnicos Para a Conservagdo Preventiva Violeta CBERL AUN cisssssessssasescervisensassensenrssesnnnsaiesseeeneesceeeconeneesseseemesssenanenssnarereessenee EDF Moedas de Necessidade Efiane Rose Vag Cabral Ne ty css ussesssssesmmasnssceanensneneersnninsreccncns IIB Questées a Propésito do Pensamento Sobre a Gerra no Brasil, no século KIX Anténia Luiz Porta @ Albuquerque ssc iis nsinnniannianntttey 149 O Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro Adler Homere Fonseca de Cast ...ccccccccesseseeeesseenneneeis cen nenniesanennnnnnenaes 163 Representagées Cartogrificas Portuguesas Entre os Séculos XVI ¢ XVII Como Constructor do Saber/Poder Angela Maria C. da Matta Telles ccsccccsscccrsmecnmersnnnneeninasnnsscnnn IBF Regulamento dos Anais do MHI .....::cssccecsceecnssceeteettanssseteneteresnassceee LIS anais do Museu Historico Nacional volume 28 Gabinetes de Curlosidades e Museus: sobre tradicao e rompimento José Neves Bittencourt Mestre e doutorando em Historia, tecnico do MHN © carater dos museus modernos tem passado, ao longo dos ultimo cem anos, por diversas modificagdes. Desde o final da Segunda Guerra Mun- dial, essas instituicdes tendem a ser tratadas, pelos profissionais que nelas trabalham, como suportes de sistemas de informagées, e existe uma grande preocupacao em dota-las de meios. de agenciar documentos,.Por outro lado, também se observa uma certa tendéncia em fazer dos museus.centros maltimedia Itad iucacio.do_piblico, | ! Nessa direcao, consolida-se a identidade dos museus modernos. Tal identidade tem sido construida paulatinamente, 4 medida em que se consolida a fung4o social da instituigao, vale dizer, a.medida.em.que.novas.tarefas vao, ce Bd or outro lado, os museus s4o institui¢des historicamente datadas, cujas mudangas tém correspondido 4s mudangas pelas quais passaram as sociedades por sinal, de que, em suas origens, os museus estiveram estreitamente associ- ados a um duplo movimento » historico observado na Europa da Idade Mod osso objetivo indicar como os museus moderno mentos de rompimento por que passaram nos séculos sequintes, mantém, ain- ja, certa continuidade com seus antepassados mais remotos A pratica da ciéncia, nos dias atuais, apdia-se sobre dois pilares: um conjunto de rigorosos procedimentos de experimentagao e controle, geral- mente conhecido como metodo, € a existencia de espagos especialmente con- cebidos e constituidos para sua pratica. Como nao nos ocorre, no momento, melhor nome, chamaremos tais espacos de /ghoratérios, Certamente nao pretendemos que a ciéncia dependa exclusivamente desses dois fundamentos. Mas, em.suaorgem,.os.museus.modernos_ se... constituiram como espacos de reflexao cientifica, no interior dos quais era possivel a pratica de um dado método. Pelo menos nos museus cientificos e de SD historia, até hoje persiste essa_caracteristica’. Os Gabinetes de Curiosidades - a classificagao como légica oculta Em 1655 surgia versio impressa daquela que tinha, por certo, sido a obra maior da vida do naturalista dinamarqués Ole Worm,..o.catalogo de sua. enorme colecao de “curiosidades”, composta por mais de 1500 itens (se o catalogo for uma expressao fiel do gabinete e nada Indica que nao fosse). sala, por sinal, aparecia reproduzida no frontispicio do livro, cujo titulo, um anais do Museu Histérico Nacional volume 28 O interesse do museu (foi chamado assim, mas poderia ter ganho outro designativo) composto por Olaus Worm, reside no catalogo que descrevia seu contetdo. Nao fot, entretanto, nem oO primeiro, nem 0 maior museu de seu tempo. Por sinal, desde.o.século.anterior,.tal.tipo.deacumulacao.deobjetos, vinha se tornando cada vez mais comum. “Por toda a Europa, os intelectuais TO ) moviam-se por novos habitats. Nas cortes e nas cidades, de Praga 4 Copenha- gue, ae bi ia principal caracteristica, ao contrario do que os estudos tradicionais determinavam, era a auséncia de livros. Esses ambientes eram chamados ora de museus, ora de abinete de curiosidades, ora de Kunst und Wunderkammer (Camara das Artes One Manviliae ner alemio, no original), os novos locais eram supridos nao com textos, mas exatamente com o tipo de objetos naturais que Bacon tinha proposto que os eruditos estudassem.”’ Ai_esta, pois, a importancia do catélogo: trata-se de um documento, no mais moderno sentido da palavra - um rte de informacées. Através dele, sua colegao de objetos tornava-se aces- sivel até mesmo a longa distancia, e os objetos deixavam de ser metos itens materiais recolhidos no mundo, para se tornarem espécimens, quer dizer, re- presentantes. Mas quem era Oles\Worm, afinal? Podemos toma-lo como digno repre- sentante do grupo, entio em expansao, dos eruditos ocidentais, postos diante de um mundo gue, de uma hora para outra, revelava-se maior do que o alcance do mero olhar - maior para além da linha do horizonte, maior para cima, no céu, e mesmo para baixo da terra, dominio este em que parecia muito interes- sado. Estudou os habitantes ancestrais da antiga Escandinavia, particularmente da Dinamarca, sua terra natal. O que talvez explique a quantidade de artefatos aparentemente procedentes das regies articas (caique, pegas de vestuario de pele, esquis, dente de sarwha/ - uma espécie de baleia, comum nas aguas do Atlantico Norte e do Artico. ** ) visiveis na imagem do frontispicio. Elesse=e tornou conhecido como estudioso dos rituais pré-cristaos e profundo conhece- dor do alfabeto rinico. Como nao contava com documentos que suprissem suas duvidas, andava pelos campos adjacentes 4 Copenhague escavando, com técnica surpreendentemente apurada, os monumentos megaliticos pré-histori- cos‘. Mas nem a verve de colecionador demonstrada por Ole, e nem sua aplicagao em descrever sistematicamente a colecao, chegavam a ser exatamen- te novidade. Cerca de cem anos antes, um médico de Antuérpia, (atual Bélgi- ca) chamado vonQuiecheberg,..tinha.formado.uma.colecao.de curiosidades. Kentmann, médico inglés residente em Torgau, Alemanha, publicou, em 1565, uma cuidada descticao de seu gabinete de rochas € outros minerais*. Conside- enadas e€ in- corporando algum tipo de informago em torno do objeto considerado. Se formos considerar apenas relagdes de itens, ou seja, listagens (para usar um termo atual), teremos exemplos desde a_Antigtidade. Por outro lado, 9 catalogo de Worm apresenta, pela primeira vez, de uma colecao Outras imagens, publicadas mais ou menos na mesma época, mostram colegdes, mas nenhuma da maneira que Worm tentou fazer. Esta la, tomado de maneira ampla € frontal, O oo Podemos ver as colegdes arrumadas, e podemos perceber o método subjacente ao sistema. Em 1751, ou seja, 100 anos (arredondados, é verdade, mas 0 que sao quatro anos?..) depois do aparecimento do catalogo da cole¢ao de Worm, aparecia em Paris uma outra obra, que estava destinada a um brilho muito, mas muito mais intenso do que o atribuido ao pequeno livro de objetos: a Enciclopédia. Ponto de chegada e marco de toda uma tendéncia intelectual que pretendia representar o ponto alto das possibilidades do uso sistematico das faculdades humanas, a Enciclopédia buscava um objetivo que, examinado hoje em dia, pode parecer delirante: classificar ¢ representar_o conhecimento humano. Um pequeno livro e uma enorme obra, separados por mais de um século, s4o nossos marcos. O motivo é simples: Worm.c.os.enciclopedistas sao. todos tributarios de um método e de uma tradic4o que, tendo se consolidado fortemente, ainda hoje marca, de forma indelével, até mesmo nossos bancos de dados ee ecree de sinematnacio de realdade percepavel por dio da arrumacao de 1tens representativos. Poderiamos buscar a origem de tal tendéncia na Antiguidade, pois clas- sificar é uma mania humana (no existem classificages “naturais”, nem no homem, nem na natureza - as classficagdes sido sempre criagdes); podemos citar as cuidadosas descricées feitas por Plinio, o Velho, que aproximava itens naturais por similitude; antes de Plinio, Aristételes j4 tinha bosquejado o assunto. Mas, no que tange_a este estudo, o ponto inicial situa-se em Francis Bacon, O Chanceler ja tinha sugerido que os naturalistas estudassem com atencao objetos recolhidos na natureza. Com efeito, em 1594, o autor de anais do Museu Histérico Nacional volume 28 Um gabinete suficientemente vasto, no qual tudo quanto de estranho ou engenhoso a mao do homem tenha feito [...] tudo quanto de singularidade, de oportunidade, de estranheza tenha produzido; tudo quanto a natureza tenha forjado, em coisas viventes e que assim possam ser mantidas, devem ser selecionadas e incluidas. ° O gabinete de curiosidades descrito no catalogo que nos chega, nao se restringia apenas 4 categoria de objetos de interesse das pesquisas do natura- lista. Quem quer que examine a ilustragaéo em detalhes notara a presenca de itens que la devem ter sido postos para exemplificar categorias. Afinal, dificil- mente um jacaré e um tatu seriam encontrados no polo. Poderiamos ser (baconiamente...) induzidos ao erro de pensar que, tanto o erudito Olaus quanto seus pares, eram ou malucos ou visiondarios, e tinham metido na cabeca uma tarefa quimérica, visto que os fenédmenos da realidade sensivel sio em numero infinito, jamais podendo ser inteiramente capturados pelos sentidos, quanto mais reunidos numa sala. Etro seria pensar ‘cc - aoe + assim: lares, Ouesséncias.f...] Seus trabalhos Sugerem ainda uma ligacao entre as formas_a_serem descobertas.c.as.qualidades.primAtiasedas=eoisas”’. Worm, tanto quanto todos os outros formadores de gabinetes e colegdes (que na época nao eram poucos) sabia o que fazia - | . Com efeito, em um livro chamado “Nova Atlandida”, Bacon sugere que a compilacao de exem- plos ajudaria a governar um Estado com justica e provendo a felicidade dos cidadaos. A “Nova Atlantida”, uma estéria ut6pica bem ao gosto da época, descreve complicadissimos sistemas de pesquisa cuja fungao seria “o conheci- mento das causas e dos segredos dos movimentos das coisas € a ampliagao dos limites do império humano para a realizacio de todas as coisas que forem possiveis”8. Pode-se pensar se a pequena sala de Worm talvez nao buscasse a mesma coisa. Afinal, estao 14, postos lado a lado, uma quantidade grande de fendmenos, passiveis de observacio. Tratava-se de um laboratorio espe- cializado, do tipo que o Chanceler, naquela época j4 morto ha quase trinta anos, reclamava. Um dia, a uniao de todos os gabinetes, que entao prolifera- vam pela Europa, talvez permitisse atingir “a verdade”. A similaridade a ser surpreendente. Ba 5 : j igaca ue_permitiri da realidade empirica. A partir dessa observacgao, que deve ser sistematica, ascende-se as leis getais, que sao as causas daqueles. Com essas proposicdes, parte de um programa que o Chanceler denominava “Instauragao Magna”, ele inventou o que é chamado de método indutivo, e tornou-se um dos antecessores da moderna ciéncia. © método de Bacon consiste, em ultima analise, na a ossivel a selécao e classificaca éncias sensiveis, devidamente controladas por experimentos que permitam a certeza de que a experiéncia sensivel particular da realidade nao seria imedia- tamente tomada como generalidade, abrangendo imediatamente todas as de- mais que lhe guardassem alguma semelhang¢a. Mas o que tem o gabinete de Worm com o método indutiyo? palavra: as tabelas. Qualquer um que @tanine 2 pravura representando o Museu Wormiano percebe que, nas estantes do erudito dinamarqués, estéo arruma- dos diversos produtos da natureza e do engenho humano. De fato, os gabine- tes podem ser considerados, eles mesmos, artificios engenhosissimos, quando olhados de perto. Retmitem.uma.espécie.de.“purgacao” da realidade, organi- zando a experiéncia sensivel. O fendmeno la esta, mas sem a confusao que obliteraria os sentidos. Passavam a ser modelos isolados, e assim, tinham suas caracteristicas amplificadas. As “formas”, quer dizer, a lei geral que os diri- ge, poderiam surgir apdos certo tempo de reflexdo; além disso, isolados, os fendmenos poderiam ser melhor submetidos 4 experimentos de controle. Tra- ta-se de uma estratégia geral, que deveria ser aplicada a todo e qualquer feno- meno, permitindo inclusive observa-los em situagoes novas. Afinal, deveria gabinete do que num incéndio. abinetes faziam, pols, patte, deste novo comportamento cientifico. Vimos acima, o proprio Bacon tinha percebido a importancia dos ajuntamentos de itens materiais. “A ciéncia baconiana, como pratica sistematica e disseminada, era uma novidade historica no seculo XVII, e a eficacia da estratégia foi uma descoberta histérica, que permanece um componente vital da atividade cientifica. Parte importante da meta da verda- deira ciéncia é a ampliagio dos meios de, na pratica, intervir no mundo fisico e control4-lo, sistematicamente torcendo o rabo do leao...””” Mas é sempre importante frisar que Bacon.no.inventou.os.gabinetes, e nem eles surgiram de um momento para outro. A formagao de uma massa critica de testemunhos materiais, pode ser dada como tributaria da critica humanista do. final da Idade Média (Worm parece set produto direto desse movimento, visto que suas escolhas tematicas sao notadamente européias), bem como das Grandes Navegacoes. “As viagens através dos continentes e oceanos, os Descobrimentos, acabam por introduzir uma profunda revolucao na perspectiva de olhar o mundo. O medo do homem medieval de encarar [...] a realidade exterior, a multiplicidade sensual da natureza e a cren¢a das hierar- quias estabelecidas [...] caem por terra. Surge um ‘humanismo cientifico’... de homens que buscam o saber nas coisas, € nao nos livros [" Observados com olhos treinados, a massa critica dara lugar a suportes de informagado orga- anais do Museu Histérico Nacional volume 28 nizados, contando inclusive com o que, atualmente, chamamos “instrumentos de recuperagao e disseminagao”. Proposta surpreendentemente moderna, para a qual a existéncia prévia das colecdes foi dado imprescindivel. Proliferando pela Europa, ao longo de séculos, os Gabinetes de Curio- sidades tiveram, certamente, grande importancia na domesticacao do mundo. Podemos considera-los como _as primeiras bases de dados metodicas. E talvez nio encontremos, em nenhum outro lugar, preocupagao maior com o método do que na Enciclopédia. Em suas paginas encontra-se um enorme verbete denominado “Gabinete de Histéria Natural”. A estes, a obra dos ilustrados Diderot e D’Alembert atribui o maior interesse. iclopédi j istema, é também tributaria método baconiano. Débito devidamente creditado: ED Confessamos, em varias passagens do Prospecto, que era para com o Chanceler Bacon o principal débito de nossa drvore enciclopédica. O elogio gue desse grande homem péde ser lido no Prospecto parece mesmo ter contri- buido para revelar a varias pessoas as obras do Filésofo Inglés." Apesar de todo o crédito, Diderot e D’Alembert nao deixam de chamar aten¢ao para a originalidade de sua prdpria obra, que residia, segundo o reda- tor da matéria, numa diviséo nova das ciéncias, escudada em razGes ditas “filoséficas”: consideravam o sistema baconiano, denominado “Arvore”, im- preciso por diversas razGes. Mas nao é o que nos importa, pelo momento. O que vale chamar atengdo é a razao pela qual é atribuida grande importancia aos . em» Gabinetes: ED Para formar um Gabinete de Histéria natural nao é bastante exemplificar sem escolba e acumular sem ordem e sem gosto, todos os objetos [...] € preciso saber distinguir, pelo mérito, 0 que guardar daquilo que deve ser rejeitado. A ordem de um Gabinete nao pode ser aquela da Natureza, pots a natureza € tocada por uma sublime desordem [...] Mas um Gabinete de : Histéria natural é feito para_instruir; elo qual devemos bloco f... D> E notavel a grande preocupacéo do redator do verbete com a ordem (conceito citado varias vezes) e com o fato de que um gabinete deve instruir. Por instruir nao devemos entender o moderno wonceite de formar, mas alo proximo a informar, ou seja, indugio, por um conteudo, de alteragdes comportamentais apés colocado em relagéo com outro termo. Mas quais as alteragdes comportamentais possiveis? O proprio redator apressa-se em escla- recer que “a ciéncia da Historia natural progride 4 medida que os gabinetes se completam; o edificio nado se eleva sendo pelos materiais que nele se empre- gam”! . Ou seja, a reuniao de elementos ordenados permitiria conhecer a natureza. Mais além: o conhecimento da natureza, metodizado, resulta na Historia natural. Esta se trata,, em resumo, da Sistematizagao dos fatos que sio da natureza'*, ou seja, dos fendmenos. Isto.é.a.ciéncia, no entender dos redatores da Enciclopédia: ordem e método, resultantes da atuacao da Razao, faculdade humana, examinando os fendmenos. Mas mesmo a Razao necessita de informacoes. Tanto os Gabinetes, quanto a Enciclopédia sao, em ultima analise, repositorios de informacédes sistematizadas e recuperaveis. SAo_equipamentos_de Ciéncia_gerados pela pratica da classificacao. Sao, os dois, interposi¢Ges entre as coisas e as palavras, quer dizer, entre o natural e o humano”’. E interessante observar que tal interposi¢io, produto da classificagao, resulta em um simulacro da natureza, perfeitamente controlado pelo entendimento humano. Nossa moderna ciéncia,ndo parece ter mudado tanto assim, nos ultimos 400 anos: seus postulados sao produto da intervengao do entendimento sobre uma triade - laboratérios, experimentos, classificagao. Nao queremos dizer que, Sa oe a binciee or fenbmenor pomair ier davelicados e organizados e a natureza, circunscrita e domada. A ciéncia busca, hoje em dia, generalidades tedricas, pode-se dizer, talvez com maior intimidade do que seria apropriado, que est4 mais para Newton do que para Bacon, quer dizer, mais para a reflexao tedrica do que para o conhecimento pratco baseado na observagao. De qualquer forma, até hoje, sercientifico é ser sistematico, ¢ a ciéncia continua dando on- gem e lancando mio de “Arvores”, que nao diferem muito daquelas propostas por Bacon e pelos ilustrados enciclopedistas. A apoteose desta tradigao parecem set as modernas bases de dados automatizadas, que tendem, mais uma vez, a se interpor entre o simulacro e seu criador, o cientista. Sobre a Palavra Museu Significando o que Significa Até agora, falamos em rompimento; rompimento com toda uma tradicao de_construcao do conhecimento, originada na Antigitidade classica e transforma- dae adaptada pelo Cristianismo, ao longo da Idade Média. A moderna ciéncia € um corpo historicamente datado, cujo nascimento remonta a uns quinhentos anos. E 0 conceito, tal como usamos e criticamos atualmente, surgiu em um determina- do lugar, a Europa, como desdobramento de tendéncias filoséficas. O papel da classificagao no estabelecimento do campo da pratica cientifica nos parece claro: ciéncia e classificagio seriam, pois, filhas de uma mesma tradi¢ao; a classifica- cio, talvez, irma mais velha... Os fildsofos costumam chamar essas situagdes de “cortes epistemoldgicos”. Modernamente, a propria classificagiio tomou ares de ciéncia, e certos lugares, tidos indubitavelmente como espagos desta pratica, atribuiram-se, no decorrer do desdobramento incontrolavel da “arvore do conhecimento”, status anais do Museu Histérico Nacional volume 28 “cientifico”. O papel do corte, do rompimento, ficou, esperamos, marcado. Passemos a falar de tradi¢do. Examinemos seu papel na construgao do conceito de pelo menos um desses espagos: os museus. ° A palavra museu tem o mesmo radical em quase todas as linguas ociden- =D tais modernas, variando apenas a terminacdo. Detiva-Ostadical.da.palavradouseion, (mousaioz).,.modificada para o latim asanm - quer dizer, “templo das Musas. Estas eram nove divindades, filhas de Zeus e Mnemédsine. As Musas sao as cantoras divinas, cujo canto alegrava Zeus. Segundo a lista mais aceita, seriam, por ordem de dignidade, Caliope, detentora da poesia, Clio, da histéria, Polimnia, da pantomima, Euterpe, da musica, mas em algumas versoes, da flauta, Terpsicore, da danga e da poesia musicada, Erato, da lirica coral, Melpémene, da tragédia, Talia, da comédia e Urania, da astronomia e, em algumas versdes, da matemati- ca. A versio mais conhecida da palavra corresponde a denominacao de espacos dedicados 4s Musas em cidades tais como Alexandtia, Atenas e Siracusa; tam- bém houve pelo menos um poeta com este nome. A origem do conceito tem sido associada 4 Biblioteca de Alexandria (fun- dada por Ptolomeu Filadelfo). Teria havido 14 um espaco onde os sabios se reuniam com seus discipulos, e neste espaco estariam postas algumas colecdes, de _minerais, gemas ¢ estatuas. Diz, atualmente, ter sido a primeira Instituigao do género no mundo, cuja localizacao, ao que parece, o ligava ao corpo principal do estabelecimento. Entretanto, nig existe nenhum documento Biblioteca de Alexandria alguma relacdo com o Museu. Os cronistas ora falam dele, ora nao. Um dos escritores mais confiaveis, dos que estiveram em Alexandria, sequer o situa na planta da cidade”. Na Idade Média, a palavra caiu em desuso. Nao existe registro de colecao ou localizacio de colecio chamada “museu”. Por volta do inicio do século XV, acontece a explosao dos gabinetes de curiosidades e colecdes cientificas. Muitos destes eram chamados “museus”, mas haviam também espagos desse tipo deno- ED minados “theatrum”” e “philotheca’’. Eram espagos associados ao saber e a erudi- cio, mas eram também associados 4 reflexao e ao recolhimento. A definicio de “museu” encontrada nos verbetes de enciclopédias e dici- onarios, a partir dos setecentos, corresponde, no geral, ao conteudo atual. A Enciclopédia, por exemplo, define tal instituigao como ... Lugar na cidade de Alexandria, no Egito, onde se reuniam, as expensas do publico, um certo numero de homens de letras, distintos por seus meéritos, como se reuniam em Atenas, no Pritane, as pessoas que haviam prestado servicos importantes a republica. O nome das Musas, deusas e protetoras das Belas Artes, foi, incontestavelmente, a fonte desse do musen. " Por outro lado, o yerbete.da.Enciclopédia.acrescenta um. dado. interessan- te: remete a definicao de museu diretamente 20 Museu Ashmoleano da Universi- dade de Oxford, este dado como o primeiro muséu da moderna versio da institui- ¢ao. A Enciclopedia Britannica, faz a mesma remiss4o, s6 que uns vinte anos depois. E compreensivel que os eruditos da Ilustragdo, herdeiros que se conside- ravam do racionalismo e dos estudos de filologia iniciados no Renascimento, enxergassem uma continuidade linear entre a instituigao do periodo classico e aquelas existentes nos séculos XVII e XVIII. Mas, se observamos bem o conteu- do dos verbetes das duas enciclopédias, é possivel notar que o termo eta associ- ado ao progresso da ciéncia, muito embora fosse também “... entendido e apli- cado, hoje em dia, a todos os lugares onde sao encerradas as coisas que tem relacao imediata com as artes e com as musas’”®, As colecdes de objetos contidas mapeavam os “territorios invisiveis” que se descortinaram a_partir do século XY,..temetiam-se..a0s.“dominios.das.Musas”, Mas estes nao se restringiam ex- clusivamente 4s artes ou 4 “cultura” (no sentido que, hoje em dia, se costuma entender esta palavra). Ainda nao nos referimos a Gregor Reisch e a sua Margarita philosofica. Trata-se de um erudito suigo que, em meados do século XVI escreveu um tratado cuja estrutura antecipava diciondrios e enciclopédias do século seguinte. O frontispicio da obra é bastante esclarecedor, no que tange ao “encadeamento” dos trabalhos das artes e das ciéncias. A filosofia, representada por uma mulher de trés cabecas (filosofia natural, filosofia racional e filosofia moral), vela por sete “artes liberais”, representadas por figuras femininas menotes: ldgica, retd- rica, gramatica, aritmética, musica, geometria ¢ astronomia. Também podemos observar os sabios da Antigiiidade, Aristételes e Séneca, ao pé do conjunto, tepresentando a filosofia natural e a filosofia moral (nada disto é interpretacao - esta tudo escrito na figura)". As musas eram nove, e reptesentavam o conheci- mento, na €poca classica; sdo nove as figuras que, na fantastica composicio, representam o conhecimento da época humanista. Em corpo completo, o conhecimento estaria representado no “museu” de Reisch. Nos outros, fossem chamados “museus”, “teatros” ou “filotecas”, algu- mas colegdes eram diretamente afeitas a certas 4reas: a medicina, a botanica e a zoologia eram areas da “filosofia natural”. Outras bosquejavam o conhecimento, como, por exemplo, a pintura ou o desenho, afeitos 4 geometria. E. principal- mente, os restos da Antigiiidade, materiais ou nao, sio aspectos diretos da filoso- fias natural, moral e racional, para cujo avango contribuiam diretamente. Enc. scguido pelo bumanismo. Quer nos parecer que o uso anais do Museu Histdérico Nacional volume 28 Z0 entre os gabinetes e o ambiente intelectual mai representado pelo humanismo €, mento Imediatamente posterior, pelo racionalismo. Os museus que surgem no Renascimento nao s4o, pois, lugares de exibi- cio de colegdes. Estas estao 14 porque séo_o suporte da producao dos estudiosos que criam _o campo da ciéncia. Os itens expostos lado a lado séo documentos materiais que, na falta de outros, tém de ser decifrados. Mas a esséncia conceitual do corte epistemolégico que se configura é a recuperacio, em novos termos, do conhecimento e mesmo do contetdo (os restos) da Antigiidade. Qarevivescimentom do_“reino das musas” que o humanismo leva.adi arece ser este oO sent do conceito #wuseum. AO longo do século XVIII, o parece ter sido mantido, associado tais firmemente 4 questao da ciéncia em fungao da destinagao dada, em 1683, pela Universidade de Oxford, 20 Museu Tradescantino”’ (ou Ashmoleano): uma.colecio aberta a curiosidade de todos os estudiosos. E possivel que 2 denominagio tenha criado uma certa confusao, que fixou a idéia de que o “primeiro museu” foi a (provavelmente inexistente) institui¢gao de Alexandria. Os museus modernos tiveram suas primeiras histdrias escritas no século XIX, numa época em que os eruditos tentavam estabelecer continuidades entre suas formacées histéricas nacionais e um passado remoto - é a época da historiogtafia romantica nacionalista que busca compor uma “biografia da na- cio”. A continuidade com a cultura clissica enquanto matriz ideolégica da cultu- ra ocidental pode explicar porque os homens do Museu Briténico tenham busca- do tao longe as origens de uma instituicao de passado bem mais recente. O uso do conceito como sentido atualmente usual - lugar de exposicao de colecdes - tam- bém esteja ligado ao fato de que os grandes museus organizados ao longo dos setecentos sempre possuiam grandes colecdes de Antiguidades greco-romanas. Mas é importante frisar que os eruditos ‘fe entao nunca chegaram a pretender fazer das Musas gestoras da heranga material da humanidade. Isto foi, decidida- mente, uma invengao do século XIX. Os museus atuais parecem ter, em comum.com.seus.antepassados.Gabine- tes, nao apenas o nome, filho do entendimento humanista da Antigiidade. A continuidade, esta baseada no fato de que continuam a.serlugares de classifica- ¢io_- como eram aquelas distantes salas. A definicao essencial de “lugar de classificacao” nos parece forte o suficiente para criar uma tradicao. Por certo, as nao poucas e muito significativas transformagdes passadas pela instituicao, ao longo do século XIX, constituem rompimentos. O advento do “Museu Napoleao” parece ser um dos mais significativos; a instalagéo, pouco depois, do carater de “museu publico”, outra. Se pudéssemos examinar com calma, veriamos que, examinados de préximo, tradicao e rompimento aparecem como faces da mes- ma moeda. Notas 1. E nossa impressao que os museus de arte terianrsua origem mais proxima das colegses principescas do que dos gabinetes de curiosidades. Mas a discussao dessa dicotomia foge ao escopo limitado deste artigo. 2. WORM, Olaus - Musenm wormianum. Copenhague?, 1655, 392 pp. A Secio de Obras Raras da Biblioteca Nacional possui um exemplar, procedente da Biblioteca Real da Ajuda. 3. GRAFTON, A.- New worlds, ancient texts- the power of tradition and the shock of déscovery. New York, NY : Harvard University Press, 1992, p. 220. 4. Idem, tbidem. 5. MURRAY, D.- Musenms- their history and their use. Glasgow : James MacLechose and Sons, 1904, pp. 28-29. 6. Bacon- “Instauratio magna”, apud, IMPEY, O.e MACGREGOR, A. (eds.)- The origins of museums. Oxford : Oxford Univ. Press, 1985, p. 1. 7. Sobre as proposigSes baconianas, ver ANDRADE, J. A. R. de (cons.)- “Bacon” in PESSANHA, J. A. M.- Op. ct; também HAMLYN, D.W.- Uma historia da Jiélosofia ocidental, Rio de Janeiro, RJ : Jorge Zahar, 1990, pp. 149-153. 8. BACON, F.- “Nova Atlantida”. in PESSANHA, J. A. M.- Op. a4, p. 262. 9, CHALMERS, A.- A fabricacdo da ciéncia. Sdo Pauls, SP : Editora da UNESP, 1994, p. 44.. 10. DEUS, J. D. de- Créncia, curiosidade, makdicao, Lisboa, Gradiva, 1986, p. 14. 11. DIDEROT, D.- ObservacGes sobre a divisio das ciéncias do Chanceler Bacon. in ANDRADE, J. A. R. de e Marques Neto, J. C.(eds) Enciclopédia . Discurso preliminar e outros textos. Sao Paulo, SP : Editora da UNESP, 1989, p. 125. 12. DIDEROT, D. e D’ALEMBERT, J. le R.( eds.)- Encyclopédie ou Diccionnaire raisonné des Sciences, Des Arts et Des Métiers pouur une societe de Gens de Lettres. Paris, 1751, t. II, p. 488, verbete Cabinet d'Histoire naturelle. 13. Idem, ibiden. 14. DIDEROT, D.- Explicagao detalhada do sistema de conhecimentos humanos. in ANDRADE, J. A. R. de e Marques Neto, J. C.{eds) Enciclopédia ... Op. cit., p.115. 15. Esta idéia é tributaria de certas proposi¢gGes de Paolo Rossi, no artigo intitulado “Linguas artificiais, classificagdes, nomenclaturas”. V. A céncia e a filosofia dos modernos. Si0 Paulo, Editora da UNESP, 1992, pp. 267-332. Ver, particularmente, as paginas 275-277 e 322-326. 16. Ver CANFORA, L.- A bibhoteca desaparecida. Sio Paulo, SP : Companhia das Letras, 1991. Capitulos II e VIII. O visitante a que se refera o autor é Hecateu, historiador e fildsofo cuja vida transcorreu no século IV a. C. 17. DIDEROT, D. e D’ALEMBERT, J. le R.( eds.)- Encyclopédie ... Op. cit, t. X, p. 893, verbete Musée. 18. Idem, ibiden. anais do Museu Histérico Nacional volume 28 19. A ilustragao em questao, bem como a descri¢ao encontram-se em GRAFTON, A.- Op. ct, p. 15. 20. O Museu Ashmoleano, que existe até hoje, corno o nome de Museu de Arte e Ciéncia originou-se numa colegio de curiosidades que tinha comegado a ser for- mada por volta do inicio do século XVII por um naturalista inglés chamado John ‘Tradescant. Este andou, até 1626, por muitos lugares, de Flandres ate a Turquia. Seu grande interesse eram as plantas raras, mas tinha também adquirido diversas espécies de curiosidades. Naquele ano, estabeleceu-se ao sul de Londres, com sua ja consideravel colecdo, numa casa que, significativamente, passou a ser conhecida como “Arca de Tradescant’”. Trinta anos depois, o filho de. Tradescant, também chamado John, resolveu inventariar a entao enorme colecao de seu pai, e o trabalho deu origem a um catilogo, que foi intitulado Museum Tradescantinun. © catalogo relacionava animais empalhados e conservados, minerais e gemas, frutas, e todo o tipo de artefatos e Antigtiidades, algumas das quais relativas a historia inglesa, como, por exemplo, as esporas de Henrique VII. Em 1662, com a morte de John-filho, a colecio passou ao controle de Elias Ashmole, um advogado com veleidades de cientista, também colecionador. Em 1678 as curiosidades-preciosidades foram doadas a Universidade de Oxford, que, pouco depois, as colocou a disposigao dos estudantes. Bibliografia CANFORA, L. A biblioteca desaparecida. S40 Paulo : CIA das Letras, 1991. capitulos De III. CHALMERS, A. A fabricagao da ciéncia. Sao Paulo : UNESP, 1984. p.44. DEUS, J.D. de. Ciéncia, curiosidade, maldigao. Lisboa : Gradiva, 1986, p.14. DIDEROT, D, D’ALEMBERT, J. Encyclopédie ou diccionaire raisonné des Sciences. Des Arts et des Métiers pouur une societe de Gens de Lettres. Paris, T.I], 1751, p.488. DIDEROT, D. Observacées sobre a divisdo das ciéncias do chanceler Bacon. Enciclopéie. discurso preliminar e outros textos, S40 Paulo : UNESP, 1989. p.i25. GRAFTON, A. New Words, ancient texts the power of tradition and the shock of discovery. New York : HarvardUniversity Press, 1992, p.220. HAMLYN, D. W. Uma historia da filosofia ocidental. Rio de Janeiro : Zahar, 1990.p.149-153. MACGRECOR, A. The origins of museums. Oxford : Oxford University press, 1985, p.1. MURRAY, D. Museums their history and their use. Glasgow : James Maclehose and sons, 1904, p.28-29. WORM, Olaus. Museum wormianuns. Copenhague : [s.n.], 1655. 392p.

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