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dan: COHNA . pgodt 9s? O wdudlo doo peliiune de saute 0 ESTUDO DAS POLITICAS DE SAUDE: IMPLICACOES E FATOS Amélia Cohn © estudo das politicas de safide na area da Saiide Coletiva ocupou sempre um lugar central, dadas as proprias caracteristicas dessa Area. Dentre elas, a de se constituir simultaneamente num campo de conhecimento e de priticas, envolvendo uma conjugagdo de perspectivas de andlises que possibilite 2o mesmo tempo avangar na produgto do conhecimento e orientar as agdes ¢ a formulagao das pol Em conseqdiéncia, elas consistem numa vertente de estudos na area da saiide sempre muito marcada pelas questdes e pelos desafios no que diz respeito a salide que a propria sociedade impée aos especialistas do tema, acentuando assim uma caracteristica da propria érea da Satide Coletiva, vale dizer, de conjugar, nem sempre em tempos ¢ instincias distintas, a teoria e a pratica. No entanto, ha que se ter claro que isso nao implica, em nenhuma hipétese, que 0s estudos realizados nessa 4rea sejam estudos aleatérios, marcados por distintas vontades individuais c/ou de determinados grupos sobre o que deva ser a organizagio da sociedade para enfrentar os seus préprios problemas de satide de que padece, nem muito menos estudos que ndo devam obedecer, como qualquer campo do conhecimento cientifico exige, rigorosos procedimentos metodolégicos e cientificos. Em resumo, no significa que esses estudos © andlises sejam frutos da vontade dos sujeitos que os produzem de demonstrar a "sua" verdade, ou "a sua" resposta para aqueles desafios como "a resposta - € iniea - correta”, Desde ji, para o que se chama a atengiio ¢ que as politicas de saiide consistem num campo de conhecimento da drea das ciéneias fhumanas, € que como tal estabelece um outro padro de relagio entre o sujeito ¢ 0 objeto do conhecimento que nao aquele proprio das areas das ciéncias biolégicas & cexatas; mas que, apesar disso, ao contrario do que o senso comum interpreta, ndio deixa de se catacterizar como um conhecimento igualmente cientifico, vale dizer, como a produgdo de um conhecimento que busca estabelecer relagdes entre fendmenos criteriosamente coletados e selecionados. Dito isto, vale uma outra adverténeia: nfo busque o(a) leitor(a) neste texto respostas conclusivas - ou solugdes - para os desafios que a saiide impde para a nossa sociedade hoje. Ao contrério, o que buscaremos fazer ¢ exatamente apontar a complexidade que 0 proprio objeto - politicas de saiide - envolve, 0 que ele ttaz consigo, © 05 desafios que 0 préprio esforgo de buscar explicagées para os rumos que clas tomaram ¢ vém tomando no Brasil enfienta Hi, na area da Satide Coletiva, basicamente duas grandes vertentes de anélise das politicas de satide: uma que privilegia a organizacao dos servigos ¢ do sistema de satide nos distintos paises ¢ no Brasil em particular, ¢ outra que enfatiza o impacto das sucessivas reformulagbes dos sistemas de satide de cada pais sobre o acesso dos individuos aos servigos de saiide a satisfagdo de suas necessidades basicas de saide. Neste caso, 0 que esté no cento das preocupagdes dos pesquisadores € dos formuladores de politicas de saiide & se essas reformulagGes e/ou reformas dos sistemas de satide esto levando a um maior grau de eqiidade no acesso da populagdo aos servigos de saiide, Em outras palavras, sao estudos que analisam as politicas de saiide da icas de saiide, perspectiva de uma de suas implicagdes bisicas, qual seja, a de ela se configurar cfetivamente "como um diteito de todos e um dever do Estado", tal como reza a Constituigdo brasileira de 1988: Art, 196. A sate & um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante politicas sociais e econdmicas que visem & reducao do risco de doenga e de outros agravos e ao acesso universal e igualitirio as agdes e servicos para sua promocfo, protegilo ¢ recuperacdio, Estudar as politicas de saiide e a organizagio dos servigos de satide que configuram as caracteristicas do sistema de satide dos distintos paises nao é uma tarefa pouco complexa. Ela envolve um conjunto de variéveis dindmicas, com pesos relativos 1no conjunto do jogo de quebra-cabega que caracteriza qualquer sociedade, que & muito mutante a depender das conjunturas eeondmicas, sociais, politicas ¢ de govemos, ¢ a0 ‘mesmo tempo apresentam uma logica intrinseca que se faz necesséria deseobrir qual vem a ser ela. Por exemplo, como se articulam os interesses das diferentes formas de organizagao e de obtenao de lucro das diferentes instituigdes e complexos hospitalares, como esses imteresses se articulam com a indistria de produtos farmacéuticos hospitalares, como se articulam como sistema pablico estatal de saide, e por ai vai. Claro que nao se pode querer que em poucas paginas se esgotem esses temas, nem que sejam todos eles abordados com igual nivel de detalhes. O que buscaremos fazer aqui é num primeito momento apontar o que esti por traz de algo aparentemente to simples como "politicas de saiide", e que definitivamente ndo se reduz ao estudo das medidas de agdes adotadas por distintos governos ao longo do tempo, mas sim buscar apontar exatamente "o que esté por tris" disso tudo, ¢ seus efeitos para frente. E, num segundo momento, concentrar @ atengio no caso do Brasil, ai sim, mostrando as articulagdes das politicas de sade com as dimensdes econdmicas, politicas ¢ sociais da nossa sociedade nos grandes marcos que caracterizam sua trajetéria histérica no Pais, ¢ que consistem nas raizes dos principais desafios que essa area enfrenta hoje. Enfim, recuperar essa trajetéria para elucidar 0 presente ¢ as possibilidades do futuro do sistema de saide brasileiro, ou melhor, de a salide se constituir efetivamente num "direito de todos ¢ dever do Estado". | Politicas de Sai: Do que se Trata? Que dimensdes da vida social esto envolvidas quando se trata da questio das politicas de saide, c/ou de qualquer politica da drea social (educagao, assistencia social, de combate a pobreza, etc.)? Elas sto muitas, e as principais delas serdo tratadas a seguir. No entanto, héi que se iniciar pelo comego: o que se entende por politica, para fins de nossos estudos. Os estudos de natureza politica tratam, necessariamente, de duas dimensdes fundamentais que envolvem 0 processo de formulagao ¢ implementagao das politicas de sade: a dimenstio do exercicio do poder, ¢ a dimensio da racionalidade que esté envolvida nas propostas de organizagto, reorganizagdo e de escolha de prioridades ao se cleger uma dentre varias possibilidades para a érea da sade fazer frente as necessidades de saiide da populacdo de cidadios que esté sob a autoridade ¢ a responsabilidade do Estado. Assim sendo, é na dimensto politica de nossas sociedades que se verificam os processos de tomada de decisdo e imposigdo para a sociedade pelo poder do Estado de determinadas diretrizes de agdio e organizagao setorial sobre outras. No geral, as teorias sociais contempordneas distinguem trés tipos principais de poder social, e o sistema social global se apresenta articulado em trés subsistem as fundamentais: organizagao das forgas produtivas, organizagao do consenso ¢.a organizagao da coagfo, cabendo sempre ao Estado 0 monopélio do uso da forga. Dessa forma, cabe ao Estado, locus por exceléncia do exereicio do poder, gerir a sociedade de forma que preserve a seguranga, dos cidadtos, portanto a ordem, bem como as condigdes para que a sociedade se reproduza e se desenvolva de forma que sempre responda da maneira a mais adequada possfvel ao bem geral e ao interesse piiblico, Em conseqiléncia, tem-se que, na esfera da politica, o exercicio sempre presente é da disputa, dentro de determinadas regras do jogo estabelecidas, acordadas socialmente, e reconhecidas pela sociedade como legitimas, entre interesses particulares de distintos grupos sociais para que sejam estes contemplados pelas decisbes politicas, ¢ assim impostos A sociedade; ¢ ainda, que nesse proceso se configurem como interesses gerais para a sociedade como um todo, Portanto nao como o interesse de um determinado grupo especifico, mas como um bem pliblico, respondendo ao interesse de todos. E nessa arena da disputa politica, portanto, que se dé a constante disputa entre interesses individuais e interesses de grupos, ou de determinados segmentos da sociedade, no geral pautados pela visio (correta do seu Ponto de vista) de curto prazo, e os interesses gerais, no geral pautados pela visto (inerente ao Estado) de médio e longo prazos. Neste ponto € interessante transerever algumas linhas de Bobbio, do texto acima referido, quando afirma: "Conseqiiéncia direta da monopolizagao da forga no ambito de uum determinado terrtério e relativa a um determinado grupo social, assim ho de ser consideradas algumas caracteristicas normalmente atribuidas a0 poder politico & que 0 diferenciam de toda ¢ qualquer outra forma de poder: a exclusividade, a universalidade © & inclusividade”. Por exclusividade entendendo-se a ndo-petmissdo, pelos detentores do poder politico, de formagao de grupos armados independentes; por inclusividade se entendendo a possibilidade de intervir, de modo imperativo, em todas as esferas da atividade dos membros do grupo e encaminhé-la ao fim desejado, por meio de instrumentos de ordenamento juridico; por universalidade, entendendo-se a capacidade exclusiva dos detentores do poder politico de tomar decisbes legitimas € verdadeiramente eficazes para toda a coletividade no que diz respeito a distribuigao € destinaedo dos recursos econdmicos ¢ de toda natureza, como por exemplo, de equipamentos e profissionais de saide. E necessétro, assim, que se tenha em conta que quando se vai tratar das politicas de saiide, 0 que passa a ser 0 foco do estudo é 0 processo de tomada de decisbes, por parte do Estado (leia-se, daqueles grupos que detém 0 poder naquela conjuntura histérica que esté sendo estudada, e constituindo os governos), ante uma série de possibilidades de escolhas alternativas, que representam, cada uma delas, ganhos ¢ perdas para distintos grupos sociais, tendo-se todavia por referencia que ao Estado compete, sempre, orientar suas decisdes para o bem comum da sociedade. Mas também ha 0 outro lado da medalha: cada grupo social e/ou econdmico pode, por exemplo, defender uma prioridade na area da saiide para que ela se traduza na principal politica de um determinado governo; por outro lado, a maior parte da sociedade pode entender que uma outra medida seja priortéria na area da saiide, © nfo aquela. E ambas no encontram respaldo em estudos de cariter ciemtifico, epidemiolégicos por exemplo, para que se evidencie serem uma delas ou ambas efetivamente causas de um dos principais indicadores de morbimortalidade na sociedade, ou mesmo numa dada regio, ou num determinado municipio. Evidencia-se ai um "choque” entre a dimensio politica - de representayao de imteresses sejam eles de caréter econdmico (prioridade n,O 1), sejam eles de entendimento de determinados grupos socinis do que vem a ser “sua” necessidade de saiide (prioridade n.0 2), ¢ a dimensao técnica (prioridade n.0 3), representada por estudos epidemiolégicos, da area da Saide Coletiva e da drea biolégica propriamente dita, Vale a ressalva, aqui, que a técnica no geral, se configura, nos tempos contempordneos, como um valioso instrumento no processo de tomada de decisdo, mas no substitu - ¢ nem deve fazé-l 0, sob pena de sacrificar a democracia (isto 6, a convivéncia harménica - embora sempre tensa - de diferentes), a dimensio politica propriamente dita, e que diz respeito exatamente & tomada de decisio, ¢ portanto a ‘escolhas entre alternativas disponiveis. Assim, se @ grande tensdo de fundo, na politica, é @ disputa entre interesses particulares © interesses gerais, que ocorre numa arena onde os poderes dos distintos ‘grupos sdo altamente diferenciados quanto a sua capacidade de impor aos demais sua vontade, por outro lado, avoutra grande tensdo, nos tempos atuais, reside na disputa sempre tensa entre a dimensdo técnica ¢ a dimensdo politica nos processos de tomada de decisdo, De fato, no caso do Brasil, vem sendo apontado um crescente distanciamento entre representados ¢ seus representantes na esfera politica gragas a um avango da presenga da dimensio buroerstico-administrativa do Estado em detrimento da dimensfio politica propriamente dita nos processos de tomada de decisdes e de sua implementagdo. De fato, no caso especifico da sate, vérios estudos sobre a dindmica ¢ o funcionamento dos Conselhos de Satide, por exemplo, mostram como as pautas e discussdes travadas nesses espagos so marcadas por questdes operacionais e orgamentirias, e no por hegociagdes efetivas entre interesses divergentes ou diferenciados, traduzindo assim 0 que Nogueira aponta quando distingue a "politica dos téenicos’ da "politica dos cidadaos" "Politicas de Suide: Estado, Sociedade e Mereado ‘As sociedades contemporaneas identificam como o locus por exceléncia dos processos politicos nas sociedades o Estado, com suas instituigdes, embora nao seja este © espago exclusivo do exercicio da politica. Mas é esta a instancia da sociedade - em seus distintos niveis, federal, cstadual ¢ municipal, no caso brasileiro - que detém o ‘monopélio dos instrumentos para a formulagdo ¢, sobretudo a implementagao das politicas de saiide, seja no que diz respeito a definigao de prioridades a serem contempladas pelo Estado na area da saiide, & definigdo das formas de como implementé-las ~ que se decide que mecanismos € quais instrumentos langar mao, que Pablico alvo priorizar, a que fontes de financiamento recorrer. De fato, 0 século XX, na drea das politicas sociais, foi mareado pela emergénci de politicas estatais que configuraram modelos de sistemas de protego social conhecidos hoje como Estados de Bem-Estar Social (Welfare States). Sob este rétulo tio identifieados 0s modelos anglo-saxdes, social-democratas, apés a Segunda Guerra Mundial, e que traduziam um pacto entre empresirios e trabalhadores que teve como resultado um pacto de solidariedade social segundo o qual o excedente de recursos advindo de menores taxas de lucro dos empregadores e de menates salétios dos empregados assalariados seria destinado ao financiamento das politicas de aposentadoria, pensdes, saiide, educagao, ete. Este € um modelo conhecido como Universal redistributivista, em que o Estado se configura como o principal e/ou exclusivo, a depender do pais, provedor e produtor dos servigos sociais, ineluindo os servigos de satide, que nos interessa aqui diretamente, Sao estes os modelos que prevaleceram na Suécia, Dinamarca e Inglaterra, tidos como exemplos tipicos, e que tém como caracteristicas prinepais: 0 financiamento advindo dos recursos diretos do ‘orgamento do Estado, 0 que thes atribui um carter acentuadamente redistributive, porque esses recursos provém dos impostos que recaem sobre os ganhos dos individuos. Como nesses paises 0 imposto ¢ altamente progressivo (quem ganha mais paga relativamente mais do que quem ganha menos), os recursos alocados na Area social adquirem uma capacidade de redistribuigdo maior, j@ que independentemente das condigdes socioecondmicas dos distintos individuos, todos eles tém o mesmo acesso 20 ‘mesmo padrio de servigos de satide, segundo suas necessidades. Portanto, 0 padriio do acesso dos individuos aos servigos de sade, nesses paises, independe da condigdo deles no meteado, isto é, independe de eles serem ricos ou pobres. Por outro lado; os servigos de satide ¢ de assisténcia médica séo produzidos exclusivamente pelo Estado, configurando-se como servigos piiblicos estatais, € quando ha a presenga de servigos de assisténcia médica privados, estes so absolutamente residuais, ¢ esto sob as regras ‘exelusivas do mercado, sem subsidio algum dos recursos estatais. © segundo modelo de sistema de protesao social € conhecido como meritocrético-corporativista, e 0 exemplo tipico ¢ o proprio caso brasileiro: a extensio dos direitos © dos servigos sociais, dentre eles a saiide, se dé a partir exatamente do ‘posto do modelo anterior - a parti da situago dos individuas no mercado de trabalho. E meritocratico porque 0s individuos s6 tém acesso a assisténcia médica, aposentadorias « pensdes se coniribuem para o sistema de proteglo social, ao contrario do caso anterior, em que a contribuigdo € diretamente para o orgamento da Unido, que redistribuiré os recursos pelos mais distintos setores sob responsabilidade do Estado, dentre eles a satide, © mérito neste segundo modelo constitui portanto um tributo vinculado a contribuigto individual de cada um, contribuigao esta que por sua vez esté vinculada a tuma situago dos individuos no mercado de trabalho: o fato de serem trabalhadores formalmente contratados, e sindicalizados, o que thes atribui o reconhecimento, pelo Estado, de estarem sob as leis que regulam a relagao entre capital ¢ trabalho (politica trabalhista, politica sindical e politica previdenciéria). Nesse modelo no geral o que se vetifica ¢ que ele acaba por gerar, ao contr do modelo anterior, uma segmentagdo ¢ uma diferenciagao dos individuos no que diz respeito aos beneficios e servigos a que tém dircito, e com isso interpde barreiras para que construam uma identidade comum na busca de melhores condigdes de acesso aos servigos sociais basicos, como por exemplo saiide ¢ educagao. No geral nas sociedades em que prevalece esse modelo 0 que se verifica é a presenga de um sistema dual de protegdo social: um subsistema de servigos sociais para quem tem acesso a renda, ¢ um outro subsistema para quem nao tem acesso_a nenhum tipo de renda, os pobres. No primeito, no geral prevalece o Estado como provedor mas nao necessariamente produtor de servigos sociais, e de saiide em particular; no segundo, prevalece o Estado como provedor ¢ produtor de servigos sociais e de saide, contando aqui como principal pareeiro os servicos ¢ as instituigdes filantrépicas. Hid ainda um terceito modelo, o residual, tipico dos Estados Unidos da América. Nele 0 Estado se ocupa somente dos segmentos sociais mais pobres, que para terem aacesso aos servigos e beneficios sociais tém de previamente comprovar sua condigao de carente. O restante da sociedade vincula-se a servigos ¢ beneficios cujo acesso & garantido pela contribuieao diretamente as instituigdes privadas do mercado, sejam elas de seguro social, sejam elas de seguro de saiide. Os servigos sociais esti, assim, diretamente vinculados ao Estado que os produz somente para os segmentos da populago comprovadamente pobre Como se vé, nos trés modelos a presenga do Estado se faz sentir, ¢ independentemente do tamanho dessa presenga e do pablico alvo a que ela se destina, sempre esté imbuida de um caréter minimamente redistributivo; e hi casos em que, concomitantemente, também assume um cardter de ago que acaba por reproduzir as desigualdades e diferengas sociais, como no caso extremo do modelo residual. Dai por que se afirmar que, embora todo sistema de protegdo social envolva um pacto de solidariedade social, uma vez que envolve distribuigdo direta ou indireta de recursos e riquezas da sociedade entre os diferentes segmentos sociais, esse pacto de solidariedade nem sempre é virtuoso: ele pode redistribuir de forma perversa os recursos, seja pelo padrao de financiamento das distintas politicas na area social, seja pelo acesso aos servigos sociais que o Estado produz ou prové para a sociedade. Assim € que as distintas sociedades, ao implementarem esses distintos modelos, que nelas hoje em dia nao se verificam de forma pura, mas combinados e misturados, com pesos maiores ou menores dos tragos que compdem cada um deles, apresentam uma especifica relagio entre as fungdes do Estado, da sociedade e do mercado na érea social e da saiide. E de fato, nos dias atuais a grande discussao recai sobre quais devam ser o papel ¢ as fungdes do Estado, 0 que cabe a sociedade e 0 que cabe ao mercado. E esse debate no geral se traduz numa equagdo "mais mercado e menos Estado", "mais Estado ¢ menos mercado, a depender da escolha feita, mudando o papel da sociedade nessa equagao. Sendo vejamos: cabe ao Estado ser provedor, isto é, responsivel pelas medidas necessétias que fagam com que a sociedade conte com um sistema de saiide que responda as necessidades de saiide de toda a populagio, regulando a prestagio dos servigos publicos e privados de satide para que a ela seja garantida a sua qualidade, independentemente de quem e para quem cles so produzidos? Qu cabe ao Estado, além de garantir a toda @ populagdo 0 acesso a servigos de saiide.com qualidade, produzir esses servigos, € produzi-los de forma exclusiva, ou oferté-los permitindo também a presenga da produgdo de servigos de saiide pelos subsistemas privado lucrativo e no lucrativo de servigos de saiide? Neste caso, a tesponsabilidade do Estado reside nfo 56 cm zelar pela qualidade na prestaydo desses servigos, como também pelo cumprimento das regras estebelecidas na definiglo de “quem tem acesso a que tipo de servigas". E nnesse ponto, dentre outros, que cabe como fungtio bisica do Estado garantir que, independentemente da presenga de distintos interesses privados (dos produtores privados de servigos de assisténcia médica, por exemplo) e da presenga de interesses, particulares representados pelas diferentes necessidades sentidas pelos diferentes segmentos da populagio sobre que tipo de servigos de saiide atenderiam melhor suas demandas (hospitais, pronto-socorro, ambulatério, unidades basicas de satide, por exemplo) atuar (exereer seu papel de regulador, de drbitro) para que os interesses de determinado grupo nao prevalegam sobre os demais de modo que prejudique a légica maior de atendimento as necessidades de saiide da populacao em geral, entendido aqui esse conjunto de oferta de servigos de satide como um bem piblico. Assim, da mesma forma que niio se pode esperar do mercado que ele supra 0 papel do Estado, uma vez que este sempre tem, por definig¢&o, sua ago voltada para a satisfacdo do bem piblico, no sentido da necessidade geral da sociedade, enquanto ¢ da esséneia do mercado a légica da satisfacdio das necessidades privadas dos detentores do capital e/ow dos consumidores individualmente, ¢ que portanto ele seja redistributivo dos bens na sociedade (ao contririo, € no mercado que se geram as diferencas e as desigualdades econémicas e sociais), & sociedade sempre & preservado um papel espectfico. O pri desses papéis, muito em voga na discussdo contemporinea, consiste na autoresponsabilizagio dos individuos sobre suas condigdes de saiide: levar uma vida saudavel, se automonitorar na prevengao de determinadas doengas, e até mesmo, nos casos mais radicais das reformas do Estado de varios paises, autofinanciar determinados servigos de satide que consuma, fazendo com isso que 0s individuos © as familias se responsabilizem, ¢ nao mais 0 Estado como nos modelos acima referidos, pela sua propria sade. O segundo deles consiste, também muito presente na discussdo contempordnea, ‘em atribuir & sociedade responsabilidades que antes eram do Estado, seja na gestdo dos servigos de saiide (contratar para gestio de hospitais piblicos estatais, por exemplo, organizagoes soviais de interesse piblico (Oscips) ou ONGs (organizagdes ndo- governamentais), ambas sem fins lucrativos, e entidades filantrépicas, e/ou fundagdes piblicas, para prestagdo de servigos de saiide, e demais servigos na area social, introduzindo assim uma légica no sistema de satide que ndo € necessariamente piblica, ‘mas tam pouco privada no sentido estrito do termo, j que esse tipo de instituigdes nao ‘busca diretamente 0 lucto. Mas isso terd suas repercussdes, no caso brasileiro, como se verd adiante. Dessa forma, a depender do tamanho, da posicao e das fungdes que cada sociedade em cada momento dado atribui a0 Estado, a0 mercado e sociedade, estes, terfo seus papéis, fumgdes e magnitude de ago articulados com aquela concepgao central sobre qual o papel do Estado na Area da saiide que aquela sociedade num determinado momento hist6rico define como sendo a essencial. Dai porque,embora no caso brasileiro a0 longo da nossa histéria se possa verificar uma certa constancia na definigo desse papel, o perfil de atuagio do Estado na sauide mude em distintas conjunturas histéricas ¢ politicas ao longo do século XX, ¢ inicio deste. Isso porque © Estado, como locus privilegiado da politica, enquanto um conjunto de instituigdes que corganizam as regras do jogo da representagdo, na esfera politica, dos interesses @ da capacidade do exereicio de poder das distintas forgas sociais que compsem a sociedade, nada mais faz do que, nas suas ag6es, refletir as distintas conjunturas da composigao de forgas soviais e politicas em cada momento histérico das sociedades, refletindo assim que tipo de pacto de solidariedade social (com maior ou menor grau de solidariedade virtuosa) foram elas capazes de estabelecer. Dai por que se falar de politicas de satide, ¢ «las terem que ver com trés das dimensdes bisicas da sociedade: 0 Estado, a soviedade & ‘o mercads __Politicas de Slide: Cidadania ¢ Justia Social Quando a constituigao brasileira afirma que a saiide é um direito de todos e um dever do Estado", ela esta exatamente reconhecendo que todo individuo brasileiro, independentemente de raga, género, situago socioecondmica e credo, tem igual direito com relagao a todos os demais de acesso a satisfagdo de suas necessidades de satide, centendida a responsabilidade da proviso desses servigos como exelusivamente do Estado. Isso significa duas coisas basilares: 1) que ao Estado cabe a responsabilidade por providenciar as condigdes e os recursos necessérios que garantam a todo cidadao brasileiro 0 acesso a satisfago de suas necessidades de satide; 2) que como 0 direito satide & de todos, todos os individuos sto reconhecidos ¢ legitimados pela sociedade na sta qualidade de cidadtios, isto ¢, como portadores de direitos e deveres iguais, independentemente das diferengas e desigualdades sociais que os distingam. De fato, os Estados nacionais modemos sto caracterizados pelo reconhecimento, na area social dos direitos sociais como direitos de cidadania, ¢ como tais, enquanto direitos universais e equiinimes de todos os individuos que vivem sob protecdo daquele Estado, em que pese 0 fato de serem, no geral sociedades desiguais, sobretudo aquelas abaixo da linha do Equador. O que caracteriza, portanto a cidadania & seu cardter universal, eqditativo, impessoal e tendo como contrapartida uma série de deveres, que vido desde cumprir os deveres cfvicos até prestar obediéncia as leis maiores que regem a sociedade. Mas aqui hé que se fazer um reparo no que diz respeito & sociedade brasileira. Nossa tradicdo € a de sempre fazer prevalecer, na esfera societéria € na relagdo da sociedade com 0 Estado, a nossa condiedo de individuos nao enquanto cidadaos, mas enquanto pessoas. O que isso significa? Isso se traduz exatamente no ‘posto da cidadania: enquanto esta é a garantia de todos ao mesmo padrao de tratamento € a0 acesso aos mesmos bens sociais bésicos, independentemente dos atributos de cada um, portanto a garantia dos individuos aos direitos estabelecidos pela sociedade como universais, nosso costume tradicional é sempre que possivel fazer prevalecer nossos atributos pessoais - parentesco, amizade, compadrio, poder econmico, ocupagio de posigdo estratégica em determinadas instituigdes, etc. - sobre os universais para com isso conseguir privilégios no atendimento do que se busca, seja na rapidez. do acesso, seja do beneficio a ser alcangado. Isso se resume, em suma, na famosa frase de que tanto gostamos e utilizamos em nossa vida cotidiana: "sabe com quem esté falando?". Exatamente porque com ela estamos fazendo prevalecer a nossa condigio pessoal (sempre que nos favorega, claro) sobre a nossa condi¢do comum a todos os demais, isto 6, ade ser um cidadto com direitos iguais aos demais. Por outro lado, nas sociedades capitalistas modemas as politicas sociais assumiram uma dupla fungao: pata regular a relago entre capital e trabalho, definindo 6s limites de agao de cada uma dessas catcgorias sociais fundamentais da sociedade na busea de seus ganhos e de suas conquistas, garantir @ populagdo em geral um patamar minimo de condigdes de vida ¢ de reprodugdo social, sempre definido esse patamar segundo convengdes sociais contratadas socialmente. Nesse sentido, as politicas sociais surgem como politicas que compensem de certo modo as desigualdades sociais geradas pelo proceso de acumulagao capitalista, vale dizer, pelo mercado. Dai porque nos paises nérdicos a implantagao do Estado de Bem-Estar Social ter enfrentado resisténcia das classes dominantes: de um lado, porque esse sistema de protegao social fortalecia os assalariados, uma vez que nas suas reivindicagdes junto aos empregadores a garantia dos direitos sociais basicos Ihes tomava independentes da sua situago no mercado, Possibilitando-lhes reivindicar aumentos do salirio direto e n8o beneficios indiretos, como seguro-saiide, moradia, educaydo, etc. Mas, de outro lado, para as classes ‘economicamente dominantes esse sistema de protegdo social significava a garantia de disponibilidade de um padrao satisfatério de qualificago da forga de trabalho para ser ‘empregada no setor produtivo, representando assim condigdes satisfat6rias para a reprodugao social das classes assalariadas num patamar necessério para a garantia do proceso de acumulago do capital. Ao mesmo tempo, a0 assim funeionar, fazia com que 0 Estado tivesse disponiveis instrumentos dgeis e eficazes de regular os confitos sociais em limites minimamente tensos, regulando 0 padrio de comportamento das classes assalariadas, Quanto a esse aspecto, Boaventura de S. Santos aponta como nas sociedades modemas © paradigma capitalista de regulagdo social caracterizava-se pela contradigio centre 0s prineipios da emancipagao (dos direitos da cidadania), apontando assim para a ‘igualdade e a integrago social, e 0 da regulag2o, apontando exatamente para a desigualdade e a subordinagdo/dominagao. Mas como ele assinala, ambos eram contraditérios entre si, emergindo dessa contradigao exatamente a tensio necesséria para que @ emancipagao das classes subaltemas e dominadas ocorresse. E nesse sentido que as politicas sociais, e, portanto também as politicas de saiide, esto comprometidas com promover, quando geridas pelo Estado, a justica social. 1ss0 porque, como j4 visto, & por meio delas que o Estado lanca mao dos instrumemtos que sto seu monopélio para redistribuir, segundo critérios e parametros negociados socialmente, as riquezas da sociedade, sociedade esta composta, nas realidades capitalistas, por grupos, segmentos e classes sociais altamente desiguais entre si, No entanto, deve-se ressaltar que o pardmetro da justiga social definido por cada sociedade (ou, seu inverso, qual o grau de desigualdade social que se pode suporter conviver, segundo cada sociedade) esti em constante processo de redefinigto. Redefinigdo esta que traduz a composigao do jogo de forgas politicas sociais em distintas conjunturas econdmicas ,- umas mais, outras menos favordveis a gastos do Estado na érea social -, ¢ envolve sempre a disputa em torno da origem e do volume dos, recursos que serio destinados a financiar a érea social e em quis tipos de servigos serdo feitos aquetes investimentos, e quais os segmentos sociais a serem priorizados. Mas aqui vale novamente uma observagdo, Num primeiro momento nos referimos aos recursos alocados na drea social como "gasto na drea social"; e num segundo como "investimentos na drea social". Esta & outra grande polémica que ocorre nos tempos atuais sobre o lugar e as fungdes das politicas sociais ¢ da saiide, ¢ tem que ver com o que ja se discutiu anteriormente: os papéis ¢ fungdes do Estado, da sociedade © do mercado. Os mais conservadores, em favor de mais mercado e mais sociedade e menos Estado na proviso ¢ produgdo da salide, entendem, que os recursos destinados as politicas de saiide que nao sejam para a populagdo extremamente pobre ¢ algumas medidas coletivas historieamente inerentes ao Estado se configuram como gastos; jé os defensores da responsabilidade do Estado na garantia da proviso dos servigos de saiide que garantam 0 direito de todos & saiide como um dever do Estado, entendem esses recursos como investimentos na sociedade, ¢ que como tal retomario quando a populagao, tendo suas condigdes de satide prescrvadas ou restabelecidas, volta a contribuir para a geragio da riqueza social Eis ai um elemento a mais para se pensar a questio da promogao da justia social por meio de politicas sociais, pois ela nao é algo que possa se equiparar A justiga das leis, embora esteja nesta calcada, Se de um lado se trata de fazer cumprir as leis (no caso brasileiro, 0 direito de todos a satide como um dever do Estado), de outro se trata de se fazer cumprit na sociedade, por meio das ages do Estado, um pardmetro acordado de,justiga social, que em diltima anélise se define pelo acordo sobre” quem tem direito a qué, em quais circunstincias". O que procuramos mostrar aqui & exatamente que o direito a sadde, enquanto um direito dos cidadios, nfo se presta a esse tipo de questionamento na sua dimenso mais ampla. No entanto, algo bem distinto &, garantido © direito nos preceitos constitucionais e legais, condig&io fundamental para que ele seja conquistado de fato, fazer com que toda a populagao tenha acesso real aos servigos de satide, e deles se aproprie de forma eqiitativa segundo suas necessidades. Mais uma vez, como se verd, no é esta a nossa tradigao, Em termos teéricos, a promogao da justiga social por meio das politicas sociais e de saide geridas pelo Estado implica que todos, como afirma um dos principais estudiosos do tema, Van Rarijs, conquistem a mesma possibilidade de desenvolverem suas capacidades individuais na sociedade, € dela possam participar, como afirma outro grande estudioso do tema sem sentir vergonha, __ Politicas de Sai: a Relagio Péblico/Privado no Setor ‘Como jj visto, ha duas grandes vertentes de possibilidades de se coneretizara dever do Estado em prover para a sociedade 0 direito & satide: 0 Estado ser provedor e produtor dos servigos de satide; ou prover esse direito sem exercer 0 monopélio da produgao desses servigos de saiide, permitindo que instituigdes do setor privado da saiide articipem na oferta de servigos, mas sempre vinculadas @ légica da satide "como um direito de todos um dever do Estado". Como se verd ¢ esse mix piblico/privado na produgao de servigos de saiide que prevalece no sistema de sade brasileiro. E é exatamente como ocorrem essa articulagao e essa divisdo de trabalho entre 9s subsistemas piblico estatal e privado de servigos de satide que vai compor 0 perfil do sistema nacional de satide de cada pats. Assim, por exemplo, se num determinado pais 0 sistema piblico de servigos de satide esté voltado somente para a atengao primaria, e 0 sistema privado de servigos de satide para a atengo hospitalar, de maior complexidade, a tendéncia é que o perfil do seu sistema de satide, composto desses dois subsistemas, segmente a populago entre ricos e pobres: estes com acesso somente a um sistema Piblico que the oferta servigos basicos de saiide, nas unidades basicas de said, e outro privado, voltado predominantemente aos que a ele tém acesso pelo mercado, isto é, por ‘meio de pagamento direto ou por meio de pagamento de Seguros ¢ planos de saide. Dai a importancia de se distinguir entre Estado provedor ¢ Estado produtor de servigos de saiide, pois o Estado provedor de servigos de salide que acolhe @ produgao de servigos das instituigdes privadas, com ou sem fins lucrativos, na oferta da garantia do acesso a eles para toda a populacao, necessariamente terd de imprimir & parte do setor privado da satide que presta servigos para o Estado uma légica de controle ¢ de regulagdo, para que ele cumpra tal tarefa, que difere da légica privada do mercado, uma vez que tem de responder a Iégica da satisfagao das necessidades de saiide da populacdo. Por outro lado, como este & um setor privado, que enquanto tal depende da sua lucratividade, nfo cabe ao Estado coibir que na produgao desses servigos vinculados a0 dever do Estadoll nao haja a rentabilidade da produgao. Dai a importancia, uma vez mais, de 0 Estado regular as priticas desse segmento privado da produgio de servigos de saiide para que naquela articulagdo entre 0 segmento piiblico e 0 privado este nao onere aquele, quer selecionando somente a prestago daqueles servigos lucrativos, pouco onerosos, deixando para o Estado a prestago dos servigos onerosos & que por envolver muito uso de tecnologia geram prejuizos financeiros, quer para nao selecionar populagdo a ser por eles coberta, desconhecendo aqueles segmentos popula ‘mais onerosos por consumirem mais servigos de sate (0s mais idosos, por exemplo) ou determinadas patologias ¢ determinados grupos de risco, pelo mesmo motivo. Em resumo, ha sistemas de satide em que a produgio de servigos de saide ¢ monopétio tinico do Estado, e atualmente representado pelo caso de Cuba, que ndo & uma sociedade capitalista, No mundo capitalista, mesmo sistemas de saiide estatais, como era até reventemente o caso da Inglaterra, vém sofrendo sucessivos processos de reforma que incorporam de forma erescente a prestagiio de servigos privados no seu sistema de saide. E no geral essas reformas trazem consigo nfo sé mudangas na composigao piiblicorprivado no sistema de oferta e de acesso dos diferentes segmentos da populagao aos servigos de saiide com distintos niveis de complexidade, como vém acompanhadas de substanciais mudangas na forma de financiamento desse sistema, sobretudo na repartigfio entre 0 que passa a ser financiado pelo orgamento geral da sociedade, portanto com recursos piiblicos, e o que passa a ser financiado com recursos préprios da sociedade, por meio de pagamento direto (integral ou parcial) dos servigos, ¢ de pagamento compulsério de seguros de saiide (piblicos ou privados), dentre outros. A conseqiiéncia imediata dessas mudangas de fundamental importancia para a garantia ou ndo da sade como um direito de todos € um dever do Estado, portanto da saiide como um direito de cidadania, Isso porque, como jé visto, a satide como um direito implica que ela seja concebida e implementada pelo Estado mediante politicas especificas e/ou afins tendo como piblico-alvo toda a populayao, independentemente de qualquer condi¢do social especifica dos diferentes segmentos que a compdem. Se a prépria politica do Estado, por meio de suas agdes, passa a segmentar a populagao segundo "quem tem direito a que tipo de assisténcia, em que condigdes, e com que participagdo no financiamento", 0 que se verifica ¢ que a satide como um direito de cidadania, ¢ portanto como um direito universal e equinime (relativo & eqiiidade, que & distinta da igualdade, uma vez que contempla as diferengas do padrao de necessidades de eada individuo e/ou segmento social visando exatamente a igualdade, vé-se atingida, exatamente porque uns terdio mais acesso a mais servigos que outros, seja por meio de prioridades que o Estado define, seja por meio de introducio de determinados meeanismos de financiamento pelo mercado; em poucas palavras, introdugao de mecanismos denominados como de co-pagamento (0 Estado, ¢ portanto a sociedade, aga uma parte ¢ 0 usuério individualmente se responsabiliza pelo pagamento do restante). E com isso, 0 préprio Estado passa entao a diferenciar a sociedade, no que diz respeito ao acesso A satide, segundo a capacidade de compra de servigos de salide de seus membros, e portanto,” segundo sua capacidade de consumo, transformando-se entio a saiide num bem de consumo como qualquer outro, © que vem se verificando nos paises latino-americanos sto reformas dos seus sistemas de satide que aprofundam ou introduzem exatamente essa diferenciaglo dos diferentes segmentos da populagao no acesso aos servigos de sate. Diante do processo de globalizagdo da economia, em que as economias nacionais perdem autonomia ante a logica global de acumulagdo de capital determinada por grandes conglomerados, econémicos transnacionais do capital financeiro, e suas conseqiiéncias em impacto social negativo sobre a capacidade de as economias nacionais incorporarem os individuos a setores produtivos ou a fontes regulares de renda para sua sobrevivéncia (¢ ‘© que se denomina de inclusdo social), © diante das restrigdes econdmicas aos ‘orgamentos dos Estados nacionais, o resultado na drea social e da sade & no geral que prevalega o lema de que "jé que o Estado nao pode ofertar tudo pata todos, ele deve se encarregar daqueles setores socialmente mais desfavorecidos, ou socialmente vulheraveis", Isso vem significando, nas reformas da sade na América Latina, a instituiga6de um sistema de saiide fragmentado, que segmenta a populagdo em doi grandes grupos: os segmentos sem renda ou de baixa renda (miseréveis e pobres) para 05 quais 0 Estado prové e produz servigos de satide basicos (sio os denominados pacotes bisicos de saide), e aqueles no pobres ou com algum poder de compra, que tém acesso aos servigos de satide piblicos estatais e/ou privados através de co- pagamentos ou de seguros de saiide. ‘Com isso, segmenta-se a populagdo, fragmenta-se o sistema de satide, e se consotidam modelos de assisténcia a saide caracterizados por diferentes mixes de relagiio entre os subsistemas piiblico e privado de saiide. Nao é, pois pouco complexo classificar os sistemas de satide de cada pais, como sendo "piblico", "privado", "hospitalocéntrico", "focalizado", "universal", “integral”, ¢ por ai vai. Isso porque a diversidade da sociedade contempordnea ¢ ampla, como grande € a complexidade de sua conformagao, em niveis de desigualdade social e econémica, de diferengas de género, de raga, de distancias geracionais, ete. Com isso, @ propria configuragdo do perfil satide — doenga que as sociedades contemporaneas apresentam torna-se igualmente complexo, nao se expressando mais, como hé trés ou quatro décadas atrés, como “doengas de rico vs. doengas de pobre", 0 que muitas vezes acabava em propostas, de politicas de saiide preventivas para as areas pobres da Populagdo, de saneamento do meio ambiente dos grandes conglomerados urbanos, sendo a atengao de nivel primério a que apresentava maiér impacto potencial na queda dos indicadores de doenga. Atualmente nao basta a expansio da cobertura da atengio priméria, se no se contemplam também as demais causas de morbimortalidade que prevalecem na sociedade, e que nao permitem mais serem caracterizadas como umas correlatas & pobreza e outras & nao-pobreza, embora no geral todas as causas vitimem mais os pobres que os nao pobres. No Brasil, por exemplo: enquanto ainda se apresenta uma estreita relagdo entre condigdes de vida precérias € maiores taxas de mortalidade infantil, a expanstio da cobertura do parto hospitalar contribuiu significativamente para {que elas se reduzissem, apesar da continuidade daquelas condigdes de vida precirias dos segmentos populacionais. Sabe-se que a violéncia vitima muito mais os jovens pobres ue 0s ricos, por exemplo. No entanto, a mortalidade por causas externas é hoje uma das primeiras causas de mortalidade tanto em grandes como em pequenos centros urbanos. Dito de outra forma, n&o se pode mais, na atualidade, diante da complexidade da realidade social e, em conseqiéncia, da complexidade do perfil de morbimortalidade da populagio, pensar em politicas € programas de satide para dreas pobres e outros para Areas ricas, pois esses perfis nao diferem tao drasticamente hoje como no pasado. Resta entio saber, no que diz respeito & satide, o que fica como responsabilidade do Estado, e © que fica como responsabilidade do mercado e da sociedade. Nessa equagio de trés clementos, é sua composigao (0 que estamos aqui chamando de mix) que vai definir se naqucla sociedade especifica, naqueles paises, cabe ao Estado, ao mercado ou a sociedade a maior parte da fatia da oferta e do provimento dos servigos de sate para a populagao, e a que segmentos da populagio cada uma dessas instituigdes se dirige. F esse perfil desse mix nia composigdo piblico — privado que vai definir se os sistemas de satide nacionais so essencialmente pilblicos © universais; se so essencialmente privados com um subsistema pablico estatal voltado para os pobres; ou se so mistos de forma que componha uma articulagao entre os servigos piblicos estatais, os servigos privados (com ou sem fins lucrativos), e os servigos prestados pela sociedade (por meio de organizagbes ndo-governamentais, por exemplo), € que acabam por contemplar de forma diferenciada e sini os distintos a sociais, s paises latino-americanos so conhecidos como grande contingente de pobres que caracteriza suas sociedades, e alguns dentre eles pela extrema desigualdade social que as marca, com especial destaque para o Brasil. Nessas sociedades, e também na nossa, ndo 36 a desigualdade atinge niveis espantosos, que se expressa numa brutal concentragao de renda (no nosso caso, os 10% mais -ricos se apropriam do equivalente de riqueza apropriada pelos 40% mais pobres), como a pobreza adquire uma caracteristica particular: ela ndo ¢ mais residual mas sim uma pobreza cm massa, configurando assim um desafio distinto do que vinha acontecendo anteriormente & questao da garantia pelo Estado, na rea social dos direitos de cidadania, [Até hé pouco tempo o grande debate sobre as reformas das politicas sociais © dos sistemas de protegdo social se dava em tomo da questdo da universalizagao vs. focalizagio da cobertura do Estado na garantia dos servigos sociais, Nesse periodo 0 embate ocorria entre duas grandes vertentes de compreensio do fenémeno dos direitos sociais na nova conjuntura marcada pelos ditames da globalizagdo: uma primeira que, ao defender @ universalizagao dos direitos sociais, se filiava a continuidade das duras conquistas desses direitos ao longo da historia das sociedades capitalistas modemas, independentemente de estas nfo se caracterizarem mais como sociedades salariais, fazendo-se necessérias outras formas de contratos sociais que garantissem a solidariedade social. E uma segunda que, ao enfatizar que os Estados nao tém condigoes de prover a todos de forma universal e com eqdidade os direitos sociais, sua responsabilidade deve recair somente sobre os absolutamente necessitados ¢ incapazes de por conta propria satisfazer suas necessidades sociais basicas. E esta a polémica entre focalizagio e universalizagdo. F ela nada mais & do que a retomada, numa nova versio, da cléssica polémica que prevalecia até duas décadas atrés entre politicas voltadas para 0s direitos sociais e as voltadas para a assisténcia social; aquelas respondendo a direitos e estas respondendo, por no geral apresentarem forte traco caritativo, 4 filantro mesmo quando se tratava de servigos publicos estatais, e nfo de entidades filantrépicas. No entanto, embora essa polémica ainda persista, muito mais como disputa ideolégica do que como fundamento, ela de certa forma deixa de fazer sentido hoje em dia. Isso por pelo menos duas razbes basieas: nao se trata mais t8o-somente de, por meio das politicas sociais, suprir 08 individuos, cidaddos portadores de direitos, da satisfagao de suas necessidades bisicas,. mas sim de promover formas de incluso social desses individuos. Noutros termos, o desafio que qualquer politica social hoje enfrenta, e as, politicas de satide inclusive, ¢ de como contribuir para que grandes contingentes de nossa sociedade, exeluidos:do mercado de trabalho ¢ do acesso a fontes regulares de renda para sua subsisténcia, sejam incluidos ¢ participem da vida social. Nao se trata mais, portanto, de se pensar politicas residuais para segmentos pobres da populagao. Primeiro, porque estes segmentos atingem, no caso brasileiro, um tergo de nossa gente; segundo, porque neste caso, felizmente, o Brasil anda na contramao da histéria dos demais paises latino-americanos: desde 1988 a saiide é um direito de todos ¢ um dever do Estado, garantido e reconhecido pela constituiga0 brasileira, Dai por que, sobretudo no nosso caso, nao ter sentido raciocinar como alternativas opostas ¢ excludentes a universalizagao e a focalizagdo. Tendo certo que as agéncias financeiras intemacionais multilaterais defendem 05 preceitos neoliberais cléssicos do Estado minimo tanto na dea econdmica como - © sobretudo - na drea social, devendo este se responsabilizar tdo-somente por pacotes bisicos de servigos para @ populagao extremamente pobre, cabendo aos restantes segmentos da sociedade (a participagtio no custeio dos servigos que consomem por meio de co-pagamentos.) De fato é isso que vem acontecendo nas reformas da drea da saiide de muitos dos paises latino-americanos - um pacote bisico de servigos para os contingentes extremamente pobres da populacao e seguros populares para os que podem co-financiar © constumo dos servigos de saiide, no Brasil isso nao vem ocorrendo, em que pese 0 fato de um dos principais programas de side hoje em desenvolvimento ser o Programa Saiide da Familia, que consiste numa proposta de extensto do acesso da populagdo aos servigos primédrios de saiide, mas respeitando-se os principios da universalidade, integralidade e equiidade na ge a salde, AS principais caracteristicas do sistema de saiide brasileiro de hoje tém raizes ainda no inicio do século passado, ¢ sdo (fruto de uma politica do Estado) Nao de um Estado nacional, uma vez que este se constituiu no Brasil somente apés os anos 1930, nem de uma politica propriamente de saiide, mas da ago de um poder central, exercido pelas oligarquias regionais, que instituiu normas de regulagao social da relagiio entre ‘capital ¢ trabalho, isso numa época em que a sociedade e a economia brasileira estavam pasando por profundas mudangas. A origem das atuais caracteristicas que hoje representam sérios desafios para o cumprimento dos preceitos constitucionais de 1988 no que diz respeito a satide esté na legislagao previdencidria, que data de 1923, quando sto criadas as Caixas de Aposentadorias ¢ Pensoes. A partir de 1930 elas se transformam em Institutos, agora no mais organizados por empresas, como era 0 caso das Caixas, mas por segmentos dos assalariados segundo o setor econémico em que estavam insetidos. Em ambos 0s casos, 08 beneficios a que os trabalhadores tinham direito correspondiam a prestagdes em dinheiro (aposentadoria © pensdo) e a assisténcia médica; € 0 acesso a eles eta vinculado, até 1930, somente 4 contribuigtio compulséria do empregado do empregador, complementada com uma parte de financiamento do Estado, que pata tanto criava novos impostos especificos; e a partir de 1930, acrescentasse 0 vinculo com a legislago trabalhista, que significava a inserglio do trabalhador no mercado formal de trabalho. A assisténcia médica, portanto, era uma assisténcia previdencidria, para os segmentos assalariados urbanos da populagfio brasileira, cabendo ao Estado, na drea da satide, as agSes tidas entio como clissicas da Saiide Piblica, de saneamento (no sentido amplo do termo) do ambiente: vacinagaio, isolamento dos portadores de doengas contagiosas ou "perigosas" para. a sociedade, como por exemplo era a doenga mental entendida & época. Quanto aos pobres, a estes cabiam os hospitais filantrépicos, as santas casas, ao passo que as classes dominantes estavam reservados os profissionais médicos formados no exterior, e 0 acesso a tratamentos no exterior. Sio dessa época, portanto, varias das caracteristicas do sistema de saiide brasileiro com as quais 0 SUS - Sistema Unico de Satide, institucionalizado na Carta Magna de 1988 - teve e ainda esté tendo de se defrontar. Enumeremos algumas delas, as mais complexas: + um sistema pablico de sade dual: um, para os assalariados do mercado formal de trabalho © outro, para os niio assalariados; afora o liberal, para aqueles com acesso & assisténcia médica pelo mercado; + uma tradigdo historica de politicas de saiide, como as demais politicas sociais, altamente centralizadas ¢ verticalizadas, cabendo ao nivel central de governo a definigao das prioridades ¢ da execugao dos servigos de satide pelos estados e municipios; + uma tradigao histérica de a sate (entendida como assisténcia médica) ser um direito Vinculado 20 mercado de trabalho, © nessa condi¢a0 a previdéneia social, nao se constituindo, assim, na representago desses sujeitos sociais, como um direito do ccidadio, mas sim como um direito do trabalhador assalariado com carteira de trabalho assinada, e que para ter esse direito contribui compulsoriamente para a previdéncia social; + um sistema com um setor privado prestador de servigos de satide que teve suas origens na década de 20 do século pasado, e que sé constituiu precocemente quando se compara com a histéria de outros paises latino-americanos, conflito fruto da politica previdencidria do Estado. Isso porque a previdéneia social tinha como regulamento niio exceder 05 gastos com assisténcia médica para seus filiados além de um certo limite (12% da receita de cada Instituto de Aposentadoria e Pensdes); em conseqUéncia, para prestar assisténcia médica aos seus filiados os Institutos compravam servigos do setor privado, ja que seus recursos ndo eram suficientes para construir uma infra-estrutura propria ambulatorial, aboratorial e hospitalar. Os hospitais do sistema de previdéncia social, que se concentraram no Rio de Janeiro - até a década de 1960 sede do governo central - tormam-se progressivamente insuficientes para dar conta da demanda, sobretudo a partir do momento em que o Brasil se desenvolveu economicamente e se industrializou, e com isso provocou aumento acentuado da massa de assalariados turbans (e seus dependentes) a ser coberta pela assisténcia médica previdencidria; + uma heranga, como € de se imaginar, de uma distribuigao de equipamentos de saiide - Piblicos mas sobretudo privados - altamente desigual, concentrando-se nas reas geogrifieas que correspondem aos niicleos mais ricos ¢ populosos da sociedade brasileira. + uma heranga de um modelo de atencao a saiide comandado pela logica da assisténcia médica, vale dizer, um modelo que vem sendo denominado de hospitalocéntrico, com uum complexo industrial médico hospitalar altamente sofisticado € lucrativo, invertendo com sua dindmica de funcionamento a légica prépria de um sistema de saiide integrado, hierarquizado e regionatizado, no qual a porta de entrada do usuério seriam as unidades basicas de saide. + uma heranga de uma divisto e conseqilente dualidade entre érglos governamentais no ‘que diz respeito & definigao ¢ implementagao de politicas de satide no Pais: no Ambito central € no ambito estadual de poder, um duplo comando na area da saiide - 0 da previdéncia social relativo prestagto de servigos de assisténcia médica, ¢ 0 do Ministétio da Sade relativo as ages coletivas de saiide publica. Em decorréncia, criou- se acentuada desigualdade no que diz respeito & forga politica, & visibilidade para 0 piblico em geral © forga econémica entre a assisténcia médica previdenciaria ¢ a atengéo a saiide vinculada ao Ministério da Saiide: enquanto aquela, vinculada inicialmente ao Ministério da Industria e Comércio, ¢ a partir de 1970 contando com um ministério somente para 3 previdéncia c assisténcia social era rica em recursos, uma vez que sua origem era contributiva € ndo do orgamento piblico, a segunda, vinculada originalmente as ages de saide de controle e prevengio contava com pareos recursos, sempre advindos do orgamento da Unio e dos demais entes da federagao, + criam-se entdio duas grandes c1ivagens no sistema de satide brasileiro, e esta constitui outra heranga: a primeira delas, oriunda diretamente do sistema previdenci diferenciava as categorias de trabalhadores por sua insergao no mercado de trabalho. Os banedtios, por exemplo, por serem uma categoria com salérios diferenciados com relagio aos demais, a partir de 1933 até a unificagdo da previdéncia social em 1967, comtavam com uma cobertura de assisténcia médica sensivelmente superior A das demais categorias de trabalhadores, como os industriétios e 0s maritimos. J4 a segunda clivagem diz respeito a mudangas acentuadas na estrutura da demanda e da oferta de servigos de satide que ocorrem no Pais a partir da década de 1970, criando-se com isso um sistema de satide, em particular de assisténcia médica, composto de dois subsistemas de satide: um subsistema pablico e outro privado, diferenciando com isso 0 ‘acesso dos individuos aos servigos de satide segundo sua posigao no mercado de trabalho e de consumo. Isso porque a partir da década de 1970 o setor piiblico de servigos de satide, vinculado a0 Ministério da Saide, passa a ofertar assisténcia médica individual & populagdo previdencidria e nfo previdenciéria, para além dos tradicionais programas que ele j4 desenvolvia, sobretudo na érea materno-infantil. E dessa época que a propria. previdéncia social comprava servigos de assisténeia médica sob responsabilidade do Ministério da Saiide e/ou dos estados e dos municipios, pagando a produgio dos servigos estalais para esse piiblico previdencisrio por produgao, ta] como fazia com o setor privado. Assim, uma das iniimeras distorgdes que o SUS tem de enfrentar, a partir de 1988, quando comega a ser implantado, consiste em redefinir 0 modelo de financiamento do governo federal para estados ¢ municipios no interior do prop sistema piblico de satde, para que este nfo se limite aos moldes de convénio com pagamento por produto. Isso porque caso persistisse aquela modalidade de pagamento como modalidade exclusiva de remuneragio entre servigos piiblicos estatais de sade de distintas instincias de govemno, 0 que aconteceria seria reproduzit o que jé vinha acontecendo: reafirmar as desigualdades de acesso ela populagao & assisténcia médica e A atengao & satide, uma vez que os repasses maiores se dariam exatamente para aquelas areas © localidades onde se concentra maior volume de equipamentos de sade, sejam cles piblicos ou privados, com ou sem fins Iucrativos. Finalmente, mas nao menos importante, a heranga de um setor privado de produgao de assisténcia médica que se constituiu sob as sombras do Estado, isto €, com uma clientela cativa garantida pela politica de previdéncia social, sem com isso ter de disputé-ta entre si, e muito menos com o setor piblico ou mesmo filantrépico. Mais que isso, que para constituir sua infra-estrutura de equipamentos contou com financiamentos estatais que adotavam pardmetros de juros distantes dos ditados pelo mercado, ptomoveu uma "especializagdo" precoce de suas clientelas para cada modalidade de organizagao privada. Na fase mais acentuada de privatizagao da saiide, como de resto da educagdo também, a partir de meados da década de 1960, enquanto as empresas médicas (conhecidas aqui como medicina de grupo) se voltavam para as empresas da {rea econdmica do setor de ponta (a época a indiistria automobilistca, por exemplo), as cooperativas médicas (mais conhecidas aqui como Unimeds) se voltavam para o interior do Pais, nas reas de maior concentragto de riqueza, ¢ atuavam estreitamente vinculadas as santas casas Dal porque um dos principais desafios atuais do Estado para enftentar as distorgdes proprias do mercado (imperfeito) na drea da saiide consistir em regular as regras de funcionamento desse setor de modo que nao s6 nao prejudique o consumidor (Porque ¢ um mercado imperfeito) como nao prejudique os cidadaos em seu conjunto, tomando medidas que sobrecarreguem os servigos piblicos do SUS por restringir a cobertura do segurado privado a determinados procedimentos médicos onerosos ¢ que envolvem alta concentragao de uso de teenologi s textos indicados ao final dio conta da trajetéria das politicas de saide no Brasil, e desse perfodo mais recente. Por isso que nilo fizemos aqui uma reconstituigto dessa histéria, mas ressaltamos exatamente os pontos que nos parecem cruciais para serem observados e debatidos quando analisamos as politicas de sade. No entanto, & guisa de finalizagto, nao podemos deixar de assinalar as principais caracteristicas € desafios (segundo nossa perspectiva) da conjuntura atual no que diz respeito as politicas de satide no Pats Na Constituigao da Repéblica Federativa do Brasil, na seg 11 Da Saide, 0 artigo 198 reza que as agdes e os servigos piblicos de sa‘ide constituem uma rede regionalizada e hierarquizada de servigas de sade, que conforma um sistema nico de satide, organizado segundo irés diretrizes bisicas: descentralizagao; atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, mas sem prejuizo dos servigos assistenciais; e participagao da comunidade Quanto a descentralizagao, desde meados da década de 1970 ela vinha sendo timidamente implementada num contexto de um Estado altamente centralizado, E a partir da década de 1980 que ela ganha forea, sobretudo a partir de 1988, quando passa a ser respaldada pela lei maior da sociedade. No entanto, a descentralizagao da saiide tem varias especificidades ¢ enftenta vérias circunstincias institucionais nem sempre favoriveis a ela a primeira delas, a tradigio brasileira de um Estado nacional altamente centralizado, 0 que por stia vez se associa & tradigao de politicas de saiide altamente centralizadas e verticalizadas, cabendo aos municipios a mera execugao das prioridades © agdes ditadas pelo nivel central, e em segundo lugar pelo nivel estadual. Mas a partir jos sto algados condigdo de entes da federagdo, caso singular na ‘América Latina, e nessa condiglo integrando a federagdo brasileira. Por outro lado, os Fundos de Participagao Estadual e Municipal, por meio dos quais, © governo federal é obrigado a repassar um porcentual dos recursos que arrecada para esses entes federados, reforgam a autonomia relativa destes ante © governo central. Mas apesar disso, como © financiamento da saiide em grande medida ainda é de responsabilidade do governo federal ¢ ele que acaba determinando os pardmetros pelos quais a descentralizagao da saiide acaba se dando, com a definigao das atribuigdes dos estados ¢ municipios ¢ seu grau de autonomia para ditar suas respectivas politicas de saide Quanto & integralidade, hierarquizagao e regionalizagdo do sistema de saide, a regionalizagio acaba se defrontando com duas questdes: 0 cardter de nossa federagio ¢ das formas de financiamento da satide, que tornam os municipios e os estados competitivos entre si na arrecadaco de recursos: ¢ a distribuig8o altamente desigual dos equipamentos de saiide, mais acentuadamente ainda no que diz respeito aos equipamentos de maior complexidade tecnoldgica. Assim sendo, uma das principais caracteristicas das politicas de saiide desse perfodo mais recente (a partir de meados da década passada), e que consiste na expansio da ateneao priméria & satide promovida por meio da estratégia do Programa Saiide da Familia, no consegue lograr que essa expressiva expanstio da cobertura da populagio nesse nivel de atengio venha acompanhada da suficiente retaguarda de cobertura dos outros niveis de atengao (Gecundétio e tercidrio), uma vez que os investimentos em satide nesses tipos de equipamento vém sendo muito timidos, quase nulos. No entanto nao ¢ de se menosprezar a implantagao da estratégia Programa Satie dda Familia no que diz tespeito a mudangas, se nao tanto no modelo de atengio a saiide, pois dados a infra-estrutura de equipamentos existente © os interesses envolvidos e ja cristalizados no que diz respeito & indistria médico-hospitalar © aos operadores e provedores do subsistem a privado de servigos de satide ela ndo se modificara de um dia para outro, mas sim no perfil da légica de financiamento do setor. Isso porque no caso do PSF 0 governo federal repassa recursos para estados ¢ municipios a partir de um duplo eéleulo: um fixo e um mével baseado na cobertura da populado. Com isso, 0 Estado, por meio do mecanismo de financiamento da atengdo basica, se utiliza desse instrumento para redistribuir de fato os recursos segundo necessidades de sauide da populagdo, e nao segundo producto de servigos de atendimento a populagao (pagamento por produgdo). Talve7 af resida uma das maiores relevancias do PSF. No que diz respeito & participayao da comunidade, ou © denominado Controle Social ela vem se dando de forma cada vez mais consolidada nos espagos institucionais previstos em lei, e que so os Conselhos de Saiide, Ambitos nacional, estadual ‘municipal. Eles tém carater deliberativo, isto ¢, por lei deveriam ditar e determinar as prioridades © as politicas de salide nas suas respectivas esferas de atuagio, © t8m representagao paritéria do Estado © da sociedade civil. No entanto, estudos sobre a dindmica de funcionamento-desses Conselhos de Saiide demonstram que sua efetividade « sua eficdcia quanto & sociedade ai exercer a representagdio de seus interesses ¢ que ssa representagio diga respeito a conjuntos de interesses mais gerais de grupos e/ou segmentos sociais mais amplos sto muito diferenciadas, impedindo que se afirme categoricamente que a existéncia desses colegiados de fato garanta maior democtatizagio das politicas de sade, sem dividas eles constituem um instrumento valiosissimo para 0 exereicio da negociagio entre Estado e sociedade civil no que diz respeito as diretrizes implementadas pelas politicas de saiide; mas necessariamente no s€ constituem em espagos efetivos de negociagao de diferentes interesses em jogo. Finalmente, dos fatos e anélises aqui arrolados merecem destaque duas observagdes, A primeira delas, de que niio se pode pensar; quando se trata de politicas setoriais, a de satide no nosso caso especifico, em dicotomias e antinomias, uma coisa a outra, e€ muito menos em relagdes causais tinicas e unilaterais, As politicas de sade, quer na sua formulag2o, quer na sua implementagdo, se configuram como processos com reflexos de interesses miiltiplos existentes na sociedade, de confronto de representagdes sobre 0 que vém a ser as necessidades sociais como divididas de forma estanque entre politicas ¢ programas para pobres e outros para ricos. (© mercado da satide ¢ as politicas de saide fragmentam e segmentam o sistema de salide ¢ @ populagdo no tocante ao acesso aos servigos de saiide; no entanto, os subsistemas piblico ¢ privado de servigos de sauide apresentam uma articulagdo entre cles de tal forma que dividem tarefas e clientelas, tornando altamente complexa a relagdo miitua que estabelecem na garantia da luctatividade dos servigos privados de sate, No entanto, em sociedades como a brasileira, com um dos mais altos indices de desigualdade social do planeta, 0 que passa efetivamente a importar ¢ como implantar politicas sociais © de salide que, a0 priorizarem os segmentos socialmente mais vulnerdveis num primeiro momento, o fagam com a légica da universalizagio, da imtegralidade e da equidade na atengdo a saide Mas esse nao é um processo que se dé como num passe de migica, nem depende ‘io-somente da vontade politica dos governantes de plantdo, mas depende sobretudo de uma sociedade que patticipe de forma cidada e responsével para que os direitos sociais se constituam como uma realidade de maior justiga social. Mas tengo: nfo se trata de substituit 0 Estado pela sociedade, ou pelo mercado. Ao contririo, como se viu, & 0 Estado a nica insténcia da sociedade que detém os instrumentos legitimos competentes para redistribuir de forma efétiva as riquezas socialmente produzidas, dentre elas "a atengao & saiide como um diteito de todos ¢ um dever do Estado".

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