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© RETORNO DE ZARATUSTRA! a (1919) Palavras @ juventude alemda. Quando entre os jovens da capital sussurrou-se 0 boato de que Zaratustra ressurgira, e estava sendo visto aqui e ali em ruas e pragas, alguns jovens puse- ram-se 4 sua procura. Eram jovens que haviam vol-: tado da guerra, e, na patria transformada.e arruina- da, preocupavam-se constantemente, ‘pois bem viam que estavam acontecendo grandes coisas, mas séu sen- tido era obscuro, e para muitos pareciam sem nexo. Esses homens mogos haviam visto no comego de'sua juventude em Zaratustra seu profeta e lider, tinham _ lido com o zelo dos mogos tudo o que se escrevera so- ~ bre. eles, haviam debatido e refletido a respeito, em * suas andancas por campinas ou montanhas, ou em quartos noite, 4 luz das lampadas. Zaratustra lhés fora sagrado, como se torna sagrada qualquer voz - que nos fale mais cedo e mais intensamente sobre nosso proprio eu, e nos lembre nosso destino. Quando esses jovens encontraram Zaratustra, ele estava numa larga rua repleta por uma multidao, comprimido contra uma parede, e escutava o discurso que um lider popular fazia de cima de um carro. Escutou, sorriu e fitou rostos de toda aquela gente. Fitou esses rostos como um velho eremita olha as on- das do mar ou as nuvens do amanhecer. Viu o medo dessa gente, sua impaciéncia e sua perplexa, chorosa, dependéncia infantil; viu também a coragem e ddio nos olhos dos decididos e desesperados, e nao se can- sou de contemplar, escutando o discurso do orador. E os jovens o reconheceram pelo sorriso. Ele nao era velho nem mogo, nfo parecia um professor nem um Soldado, parecia apenas um ser humano: o homem 87 Scanned with CamScanner que ha pouco emergira da escuridio do dever, o pri- meiro da sua espécie. Mas reconheceram-no pelo sorriso, depois de du- vidarem por algum tempo se seria ele mesmo. Esse sorriso era claro, mas nao bondoso; era inofensivo, sem ser pachorrento. Era o sorriso de um guerreiro, mais ainda o de um anciao que vira muitas coisas e nao ligava muito para lagrimas, E por isso o reco- nheceram. Quando o discurso chegou ao fim e 0 povo co- mecou a dispersar-se aos gritos, os jovens aproxima- ram-se de Zaratustra, saudando-o com respeito. — Estas aqui, mestre — disseram gaguejando. — Finalmente retornaste, pois nossa desgraga atin- giu o auge. Bem-vindo, Zaratustra! Nos dirds o que devemos fazer, e iras & nossa frente. Has de nos salvar desse maior de todos os perigos. Ele os convidou, sorrindo, para o acompanha- Tem, e ao prosseguir disse aos que o escutavam: — Estou de muito bom humor, amigos. Sim, voltei, talvez por um dia, talvez por uma hora, e es- tou assistindo ao seu teatro. Sempre me divertiu contemplar o espetdculo alheio. Em nenhum mo- mento os homens sao tao verdadeiros como quando Os representam. Os jovens escutaram e entreolharam-se; na sua opiniao havia zombaria demais, alegria demais, indi- ferenga demais nas palavras de Zaratustra. Como Ppodia falar em teatro quando seu povo estava na mi- séria? Como podia sorrir e divertir-se quando sua p4- tria fora vencida e estava arruinada? Como podia tudo isso, o povo e o orador popular, a hora tao gra- ve, a solenidade e respeito deles préprios, os jovens, atingir apenas os seus olhos e ouvidos, mero objeto de contemplacao e de um sorriso? Agora nao era tem- Po de chorar lagrimas de sangue, de gritar de “ai de 88 Scanned with CamScanner a vés”, de rasgar as vestes? Principalmente nao era hora de agir? De executar atos? De dar um exemplo? De salvar 0 povo e pais do fim certo? Zaratustra, que percebia seus pensamentos antes mesmo que os pronunciassem, disse: — Vejo que nao estao satisfeitos comigo, jovens amigos. Esperei por isso, e ainda assim me espanta. Quando se espera por uma coisa dessas, a0 lado da ex- pectativa existe também o contrdrio: algo em nés es- pera, e algo em nés espera 0 contrario, Assim acon- tece comigo agora em relaciio a vocés, amigos. Mas digam-me, no querem falar com Zaratustra? — Sim queremos! — Exclamaram ansiosos. Zaratustra sorriu e continuou: — Pois entao, meus caros, falem com Zaratustra, e oucam Zaratustra! Quem esta diante de vocés nao éum orador popular, nem um soldado, nem um rei ou chefe de exércitos; é Zaratustra, o velho eremita e gozador, o que inventou o Ultimo sorriso, que inventou tantas coisas tristes. De mim, amigos, nao poderao aprender a comandar povos ou a compensar derrotas. Nao sei ensinar-Ihes como se comanda rebanhos e se acalma aos famintos. Essas nao sao as artes de Zara- tustra, nem as suas preocupagées. Os jovens calaram-se, seus rostos se encomprida- ram, de pura decepedo. Andavam ao lado do profeta, _ consternados e desgostosos, por longo tempo nao sou- beram o que responder. Finalmente um deles, o mais jovem, falou, e enquanto falava seus olhos come¢a- ram a brilhar, e Zaratustra contemplou-o com agra- 10; _—— Pois bem — disse 0 mais jovem dos jovens — entao diz-nos o que tens a dizer. Porque se vieste ape- nas para te divertires conosco e com a dor deste povo, temos coisa melhor a fazer do que ficar passeando por ai contigo e escutar tuas excelentes anedotas. Olha 89 Scanned with CamScanner para, nés, Zaratustra: todos, tio jovens, que servimos na guerra, encaramos a morte de frente, e nao temos vontade de passar o tempo brincando e distraindo-nos. Nés te veneramos, Mestre, te amamos, mas maior do que nosso amor a ti 6 o amor por nés mesmos e pelo nosso povo. Queremos que saibas disso. O rosto de Zaratustra iluminou-se enquanto escutava o jovem, fitava com bondade, até com ter- nura, seus olhos irados. — Meu amigo — disse com seu melhor sorriso — como tens razio em nfo aceitares sem maiores dividas o velho Zaratustra, por o questionares e fazeres cécegas onde pensas que ele seja mais vul- neravel! Como tens razéo, meu caro, na tua descon- fiancal Evsabes que disseste uma palayra muito acertada, uma daquelas que gosto de escutar? Nao disseste “amamos mais a nés mesmos do que a Zaratustra?” Aprecio enormemente essa sincerida- de. E com ela me iscaste, a mim, velho peixe esqui- yo, em breve estarei no teu anzol! Nesse momento escutaram-se de uma rua dis- tante alguns tiros, gritaria e ruidos de luta; tudo aquilo parecia estranho e insensato, no silencioso entardecer. E quando Zaratustra viu que os olha- res e pensamentos dos seus jovens acompanhantes corriam para 14 como lebres, mudou o tom da voz. De repente, ela parecia vir duma grande distancia — soava como no primeiro encontro com os jovens, uma voz que nfo vinha de um ser humano, mas de estrelas ou deuses, ou, mais ainda, uma voz que sen- timos no peito quando Deus esta em nés. Os amigos escutaram, voltaram suas mentes e sentidos novamente para Zaratustra, pois reconhe- ciam a voz que ressoara um dia, na primeira juven- tude, parecendo vir de montanhas sagradas, seme- Ihante & voz de um deus desconhecido. 90. Scanned with CamScanner — Escutem-me, filhos — disse ele, sério, diri- gindo-se em particular ao mais mogo. — Se quise- rem escutar um som de sinos, niéo batam num peda- go de lata. Se quiserem tocar flauta, nao ponham a boca num odre de vinho. Entendem-me, amigos? Lembrem-se, meus caros, lembrem-se: 0 que foi que aprenderam de Zaratustra nas horas de éxta- se? Acaso foi sabedoria para usar nos mercados, na rua, no campo de batalha? Acaso lhes dei conselhos para reis, falei-Ihes como rei, ou burgués, ou politi- co ou comerciante? Nao. Lembram-se ainda. Eu lhes falei na linguagem de Zaratustra, na minha linguagem, coloquei-me diante de vocés como um espelho, para que pudessem ver-se a si mesmos nele. Acaso jamais “aprenderam algo” comigo? Acaso fui um professor de idiomas ou de coisas objetivas? Vejam, Zaratustra nao é um professor de quem se possa indagar e aprender, ou copiar boas receitas, grandes e pequenas, para casos de emergéncia. Zaratustra é o ser humano, é 0 ewe o tu, 60 homem que procuram em si mesmos, o sincero, 0 que nao se deixa seduzir — como poderia querer tornar-se vosso sedutor? Zaratustra viu muita coisa, sofreu muito, teve de quebrar muitas nozes amargas e foi mordido por muitas serpentes. Mas aprendeu uma coisa, tem uma tinica sabedoria, um tnico orgulho: aprendeu a ser Zaratustra. E é isso que vocés devem aprender dele, embora tantas vezes lhes falte cora- gem, Devem aprender a serem vocés mesmos, assim como eu aprendi a ser Zaratustra. Devem desapren- der'a ser outros, a nao ser nada, a imitar vozes des- conhecidas, a considerar rostos estranhos como seus. Por isso, amigos, se Zaratustra lhes fala assim, nao procurem nas suas palavras sabedoria, ou artes, ou receitas ou truques para apanhar ratos, mas procurem a ele proprio! Da pedra poderdo 91 Scanned with CamScanner aprender o que significa dureza, do passaro o que é Cancao. Mas de mim poderao aprender apenas o que é o ser humano e o destino. Conversando tinham chegado ao fim da cida- de. Andaram juntos ainda muito tempo sob as 4rvo- res que rumorejavam ao anoitecer. Perguntaram- Ihe muitas coisas, 4s vezes riram com ele, outras duvidaram do que dizia. Mas um dos jovens anotou e preservou para os amigos o que Zaratustra lhes falou naquela noite, ou ao menos uma parte disso. E o que escreveu, relembrando Zaratustra e suas palavras, é o seguinte: Do destino Assim falou Zaratustra: Uma coisa foi concedida ao homem, o torna um deus, e Ihe recorda que é um deus: o reconhecimen- to do seu destino. Nisso sou Zaratustra, porque reconheci o desti- no de Zaratustra. Porque vivi sua vida. Poucos reco- nhecem seu destino. Poucos vivem sua propria vida. Aprendam a viver a sua! Aprendam a conhecer seu destino! Queixam-se tanto do destino de seu povo. Mas um destino que lamentamos nao é nosso, ainda nos é estranho e hostil. E um deus distante e mau, que nos lanca nosso destino das trevas como se fossern dardos envenenados. Aprendam que o destino nao vem de idolos, e finalmente aprenderao que nao existem idolos nem deuses! Assim como uma crian¢a cresce no ventre de uma mulher, o destino cresce no corpo de cada homem, ou, se quiserem, poderao dizer: cresce no seu espirito, na sua alma. & a mesma coisa. E assim como a mulher é uma s6 com sua cri- anga, e a ama e nao conhece no mundo nada melhor 92 Scanned with CamScanner do que essa crianga — assim deveriam aprender a amar seu destino e a nao conhecer nada melhor do mundo do que ele. Deverd ser o seu deus porque yocés deverao se tornar seus préprios deuses. Se para um homem o destino vem de fora, esse homem sucumbira diante dele como a presa sucum- be ao dardo. Mas aquele a quem o destino vem de dentro, do seu mais {ntimo lugar, a esse fortalece e o torna um deus. Tornou Zaratustra Zaratustra: e devera te transformar em ti mesmo. Quem reconheceu seu destino jamais querera mudé4-lo. Querer mudar o destino é um esforgo de crianga, que nos leva a brigar, a nos matarmos uns aos outros, Querer mudar o destino foi a acdo e o esforco de seu imperador e dos generais, foi o que vocés também procuraram. Nao puderam realizar isso, e hoje tém na boca um gosto amargo, por isso pensam que é veneno. Mas se nao quisessem modi- ficar o destino, ele seria seu filho, seu coragdo, seria yocés mesmos: e como seu sabor seria doce! Um destino sofrido e estranho é dor, é veneno, é morte. Mas cada acéio e bondade e alegria e criagdo no mundo é um destino vivido, tornado “eu”. Vocés foram ricos demais antes da longa guer- Ta, meus amigos, ricos e gordos, e bem nutridos demais, vocés e seus pais, e quando sentiram dores no yentre teria sido o momento de reconhecerem nessa dor o destino, e escutar sua boa voz. Mas fica- ram com raiva dessas dores no ventre, imaginaram que seriam causadas pela fome e pela pobreza. Lan- Caram-se ao saque, 4 conquista de mais espago na terra e mais comida na barriga. E agora que volta- Tam para casa, sem terem conseguido o que que- tiam, esto novamente lamentando-se, sentem toda. a sorte de dores e sofrimentos, mais uma vez pro- curam o inimigo malvado que Ihes causou tais 93 Scanned with CamScanner dores, estao dispostos a atirarem nele, ainda que Seja seu irmao. Caros amigos, nao seria bom se refletissem um Pouco? N&o seria bom se pelo menos desta vez tra- tassem sua dor com mais respeito, mais curiosida- de, com virilidade e néo com medo infantil e grita- ria de bebés? Nao seria possivel que essas amargas dores fossem a voz do destino, e que se tornassem doces se fossem compreendidas? Nao poderia ser assim? Também os escuto, queridos amigos, queixa- rem-se alto demais dessas dores e destinos malva- dos, que atingiram seu povo e sua patria. Perdao, jovens amigos, se também desconfio um pouco des- sas dores, se sou um tanto lerdo e mal-humorado nessa crenga! Mas vocés todos ai, sofrem apenas de dores pelo seu povo? Sofrem apenas pela patria? Onde esta essa patria, onde sua cabega, seu cora- ¢Ho, onde pretendem comegar seus cuidados para cura-la? Como? Ontem era ainda o imperador, era © mundo inteiro aquilo de que se orgulhavam, aqui- Jo por que temiam, aquilo que julgavam sagrado. E onde foi dar tudo isso? Nao foi do Imperador que vieram essas dores, caso contrario ainda estariam aqui, e tao amargas, pois j& nao h& Imperador? Nem foi o Exército, nem a Marinha, nem as pro- vineias ou despojos. Mas por que, quando tém dores, ainda falam na patria, no povo, em coisas grandes e vener4veis, de que é facil falar, mas tan- tas vezes inesperadamente se dissolvem e desapare- cem? Quem é o povo? Sera o orador, ou os que o escutavani, Serao aqueles que concordam com ele, ou os que Ihe cospem na cara e brandem seus bastdes contra ele? Est&o escutando os tiroteios logo ali? On- de esté 0 povo, 0 seu povo: de que lado? Esta ati- 94 Scanned with CamScanner yando, ou sendo fuzilado? Esté a‘ ao 6, atanue? tacando ou efetuan- Como véem, é diffcil entender-se mutuamente, e até entender a si mesmo, quando se usa de pala- yras tio grandiosas. Se agora que tém dores, se nao se sentem bem no corpo ou na alma, se tém medo ou pressentem perigo — por que nao procuram for- mular de modo diferente a pergunta, ainda que seja apenas por brincadeira, por curiosidade, uma boa curiosidade sadia? Por que nao querem alguma vez procurar ver se a dor nao est& em vocés préprios? Houve um tempo em que todos estiveram convenci- dos de que o russo era seu inimigo e causa de todo o mal. Logo depois foi o francés, depois 0 inglés, depois outros, e cada vez estiveram convencidos e seguros, e cada vez tudo foi uma triste comédia, terminando em desgraga., Mas se viram que dores internas nao se curam atribuindo-as 4 culpa do inimigo, por que nao procuram essas dores onde elas estaéo: dentro de vocés? Talvez no seja o povo 0 que os faz sofrer, nem a patria, nem o poder do mundo, nem a demo- cracia. Talvez sejam simplesmente vocés, seu esté- mago ou figado, um tumor ou cAncer — e se ima- ginam que essa dor que os oprime é apenas a dor do povo, mas que vocés pessoalmente estéio na melhor satide, nao ser4 apenas um medo infantil diante da verdade ou do médico? Nao sera possivel? Nao sen- tem nenhuma curiosidade nesse sentido? Nao seria um exercicio bem divertido, no fundo, se cada um Seguisse a sua dor e procurasse ver onde ela se loca- liza, e a quem diz respeito? Talvez constatassem entaéo que um ter¢go, ou metade, e muito mais que metade dessa dor é real- mente uma dor pessoal, mais intima, e que seria bom se vocés tomassem banhos frios ou um pouco de vinho, ou fizessem qualquer outro tratamento, 95 Scanned with CamScanner em vez de ficarem importunando e tentando desa- jeitadamente curar sua patria, Acho que poderia ser assim, e nao seria muito bom se fosse mesmo? Nao se poderia ent&o realmente ajudar? Nao have- ria futuro? Nao haveria a possibilidade de transfor- mar a dor em beneficio, e o veneno em destino? Mas consideram egoista e mesquinho largar a patria e curarem-se a si mesmos. Talvez nfo tenham jinteira razdo nisso, meus amigos! Nao acreditam que seré mais sadia, e progrediré melhor, uma patria na qual cada doente nao fique atribuindo a ela seus proprios achaques, mas cada sofredor tente curar seus préprios males? Ah, meus jovens amigos, aprenderam tanta coisa na sua curta vida! Foram guerreiros, viram cem vezes 0 rosto da morte. Sao heréis. Sao os supor- tes da patria. E pego-Ihes que nao se satisfagam com isso! Aprendam mais ainda! Procurem mais ainda! E de vez em quando pensem: que bela coisa é a sinceridade! Sofrer e Fazer — Que devemos fazer, me perguntam, e per- guntam econstantemente a si mesmos, e esse “fazer” Thes vale muito, vale tudo. Isso é bom, amigos, ou seria bom se entendessem a fundo esse fazer. Mas, vejam bem, s6 essa pergunta: “Que deve- mos fazer?”, essa medrosa e infantil interrogacao mostra como sabem pouco a respeito dela. O que chamam “fazer”, meus jovens, eu, 0 velho eremita da montanha, chamaria com nome bem diferente. Encontraria muitos nomes bonitos, engracados ou sérios para esse “fazer”. E nem pre- cisaria revird-lo muito tempo entre os dedos, para transforma-lo, de modo belo e divertido, exatamen- 96 Scanned with CamScanner te no seu contrario. Pois ele é 0 contrario: o seu fazer é o contrario do que eu chamo de fazer. A acao, meus amigos — escutem essa palavra, escutem-na bem, lavem com ela os ouvidos — a agdéo jamais foi cometida por alguém que tivesse de perguntar o que deve fazer. A agao é luz que nos vem dum sol benfazejo. E se o sol no for bom, cer- to, dez vezes comprovado, se for um sol que ainda pergunta medrosamente o que deve fazer, entao jamais nos iluminara. A aco nao é um fazer, nao 6 pensamento nem aprendizado. Eu lhes direi o que ela é, mas antes, amigos, permitam que Ihes diga o que me parece o seu “fazer”, Depois, nos entendere- mos melhor. O seu “fazer”, esse que pretendem executar, que devera Ihes dar uma luz através da busca, da duvida, do desvio, esse fazer é 0 contrario e 0 inimi- go original da agdo. E o que o seu fazer, se me per- mitem dizé-lo, é covardia! Vejo que esto se irritan- do, vejo em torno de seus olhos o trago que tanto gosto de ver, mas esperem um pouco, escutem-me até o fim! Vocés, meus jovens, sao soldados, antes disso foram comerciantes ou fabricantes, e coisas assim, ou seus pais o foram e, partindo de alguma escola ruim, vocés acreditaram em certos contrarios que, segundo a lenda, vinham da eternidade, eram cria- dos por deuses. Eles mesmos eram os seus deuses, esses contrarios, e vocés aceitaram até mesmo esse contrario que é Deus/homem. E disso deduziram que um homem nao pode ser um deus, e vice-versa. Essa velha e péssima crenca nos opostos sagrados é algo que Zaratustra nfo lIhes pode desvendar de modo mais singelo e simples, na sua profunda falsi- dade e suspeicao, do que apresentando aos seus olhos 97 Scanned with CamScanner abertos esse outro contrério em que acreditam: fazer/sofrer. Abram, pois, os olhos, amigos, e contemplem o fazer e o sofrer da maneira que um velho eremita Thes quer mostrar! Fazer e sofrer, que constituem juntos a nossa existéncia, so um todo, so uma, 86 coisa. A crian- ¢a sofre quando é concebida, sofre seu nascimento, sofre seu desmame, sofre aqui e ali, até que por fim sofre a morte. Mas todo o bem que ha nela, e pelo qual ela é elogiada ou amada, é apenas um sofri- mento bom, o verdadeiro sofrimento, pleno e vivo. Saber sofrer bem, é mais do que metade da vida. Saber sofrer bem é a vida toda! Nascer é sofrer, crescer é sofrer, a semente sofre a terra, a raiz sofre a chuva, o botao de flor sofre a rega. Assim, amigos, 0 homem sofre seu destino. Des- tino é terra, é chuva, é crescimento. Destino déi. Mas vocés chamam “fazer” a fuga & dor, 0 nao querer nascer, a esquivanga 4 dor! Chamam “fazer”, ou assim o chamavam seus pais, remexer dia e noi- te em armazéns, escutar muitos martelos, soprar bastante fuligem nos ares. Entendam-me bem, nao tenho a menor hostilidade contra seus martelos e sua fuligem, ou contra seus pais. Mas me faz sorrir o fato de poderem chamar essa agitagaéo toda de “fazer”! Isso n&o foi fazer, foi apenas fuga da dor. Era duro estar sozinho — por isso fundaram socie- dades. Era duro escutar vozes interiores pedindo que vivessem sua propria vida, procurassem seu des- tino, morressem sua morte — era duro, por isso fugiram e comecaram a fazer barulho com maqui- nas e martelos, até que essas vozes interiores se tor- naram mais distantes, e por fim calaram. Foi assim que fizeram seus pais, seus professores, e vocés mes- mos. Pediam-lhes sofrimento — e ficaram decep- 98 Scanned with CamScanner cionados, nao queriam sofrer, queriam apenas “fazer”! Eo que fizeram? Primeiro fizeram sacrifi- cios ao deus do ruido e do atordoamento em seus estranhos negocios, tinham as maos ocupadas com coisas a fazer, nunca havia tempo de sofrer, escutar respirar, beber o leite da vida, beber a luz do céu. Nao: tinham de estar sempre fazendo algo. E quan- do fazer nfo adiantava nada, e o destino, em vez de doce e maduro, se tornou sempre mais podre e vene- noso, multiplicaram suas atividades, criaram inimi- gos, primeiro na imaginacdo, depois na realidade, e foram para a guerra, 14 se tornaram guerreiros e herdis! Conquistaram terras, sofreram as coisas mais insensatas, ousaram as coisas mais gigantes- cas. E agora? Agora esta tudo bem? Seu coracao esté quieto e feliz? O destino tem sabor doce? Nao, é mais amargo que nunca, por isso estao correndo atras do que fazer, andam pelas ruas, gritam, ele- gem conselhos e carregam novamente as armas. E tudo isso por estarem eternamente fugindo da dor! Fugindo de si préprios, e de suas almas! Escuto j4 0 que me responderao: perguntam se © que tiveram de suportar nao foi sofrimento. Se nao foi sofrimento verem seus irmaos morrendo em seus bracos, sentirem seus membros congelarem na terra ou tremerem debaixo do bisturi dos médicos. Sim, tudo isso foi sofrimento, um sofrimento pro- curado, desafiado, um sofrimento impaciente, foi querer algo diferente do destino. Foi herdico, até onde pode ser herdi quem foge do destino ou ainda © quer modificar. % dificil aprender a sofrer. Encontraréo isso mais freqiiente e mais belo nas mulheres do que nos homens, Aprendam com elas! Aprendam a escutar a voz da vida. Aprendam a ver o sol do destino brin- 99 Scanned with CamScanner cando com suas sombras. Aprendam o respeito pela vida. Aprendam o respeito por si préprios! Do sofrimento vem a forca e a satide. S40 sem- Pre as pessoas “saudaveis” que tombam de repente € morrem por causa de uma simples corrente de ar. S4o as que n4o aprenderam a sofrer. Sofrer endure- ce, torna-nos de aco. Ha criancas que fogem do menor sofrimento. Eu realmente amo as criangas, mas como poderia amar aos que pretendem perma- necer criangas pela vida toda? E assim so vocés, que fogem da dor para o “fazer”, com um antigo e triste medo infantil da dor e da escuridao. E vejam o que conseguiram, com seu tanto fazer, e aplicaco, e suas indistrias fuliginosas! Que restou de tudo aquilo? O dinheiro se foi, e com ele todo o brilho do seu covarde trabalho. Onde esta a acdo que teriam realizado com tanta atividade? Onde o grande homem, o radiante, o homem de agao o heréi? Onde esté o seu Imperador? Quem o suce- derd? E onde esta a sua arte? Onde as obras que jus- tifiquem o seu tempo? Onde os grandes pensamen- tos felizes? Ah, vocés sofreram muito pouco, e mui- to mal, para poderem produzir coisas boas e lumi- nosas! Pois a aco, boa e luminosa, meus amigos, esta nado vem do fazer, nem da atividade, do traba- lho e das marteladas. Cresce solitaria nas monta- nhas, nos cumes onde ha siléncio e perigo. Cresce do sofrimento que ainda terao de aprender. Da solidéo Perguntam-me pela escola do sofrimento, pela forja do destino. Nao a conhecem? Nao, vocés, que estéo sempre falando do povo e lidam com as mas- sas, € querem sofrer apenas com elas e por elas, vocés nao as conhecem. Estou falando da solidao. 100 Scanned with CamScanner

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