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Francisco de Aquino Junior Viver segundo 0 espirito de Jesus Cristo Espiritualidade como seguimento Prefacio de Jon Sobrino @.. ‘Dados tncenaionis de Catalogo na Publica (CP) (Clara Branca o Liv, St, rail ‘en ta rc > Nie eae ops em Cie ephtlins suing |p ee So” ub Pals, 314 (Caeto segs no) “hE 2. io a in 3. Vib i Indice para catilogo sstemscor y {Jer Cito: Epa Cetasene 2484 Dirge: Bernal Bolt ators responsive Newfane Bombonatto ‘ono ML. Sar opidesaue Mania Eline G8 de Conte oordenago de rerio: ‘Marna Mendonca ath Mito Koha ‘Geren de rouge: Folio Calegar Neto Diagramacto ‘Mota Rebelto Miramonter inate eerste. be apriwnep Teomareting SAC 0800-7010081 (©Pa Soidade Fis de So Palo ~Séo Palo, 2014 Para Pedro Casaldéliga, profeta do Reino, atriarca da Igreja dos pobres, inmao-companbeiro na caminhada, testemunha fil. Viver segundo o espirito de Jesus Cristo Espiritualidade como seguimento" Espiritualidade € uma das palavras mais usadas na Igreja nas tiltimas décadas: tem sido tema constante de homilias, re- tos e encontros pastorais; hé uma quantidade enorme de a £805 € livros sobre o assunto. Aparece como 0 conceito que me- Ihor resume ¢ expressa a vida crista.” £ como se espiritualidade fosse sinénimo de vida cristas como se houvesse uma identidade radical entre ambas. (© problema € que comumente lidamos com uma concepsi0, ambigua, reducionista ¢ pouco ctistd de espiritualidade, com enormes consequéncias para a vida crista: ambigua, na medi- dda em que € compreendida num horizonte dualista que ope © espiritual a0 material (matéria x espirito}; reducionista, na medida em que é identificada com a vida crista e nfo como uma de suas dimensdes fundamentais (totalidade x dimensao) ena medida em que é identificada com certas priticas “religio- sas” (culto, devogbes, exercicios de piedade, simbolos); pouco crista, na medida em que o espirito nem sempre é considerado e ert pedo da resins Convergtncia da CRB e poliado em Convergtacia 446 2011) 574.592. "Mas bom no perder de vista que o concio espirtualidade €relarvamene ce eae ree er ee en eeeeecere ei ce (Peliio, Dionisio, o Pequeno), garha relevinca ¢adguive importinca com 2 ‘cola exprtal frances do scalo XVII impde-te como eter elogis 0 fina do scalo XIK cinco do scalo XX (el. MONDON, Danilo Teolopa da cspirtalidade rst, So Paulo: Loyola, 2000, 13-16; GUTIERREZ, Gustavo. Bebermo proprio pose: kinetic epritael de um pov. Petopolis: Voues, 1988, 29. Vier gon opi eems Crin Dri nensss ptt Cn discernido a partir da pedxis de Jesus de Nazaré (pneumatolo- gia x cristologia). Certamente isso nao aparece sempre de modo ‘tio claro e explicito. Ninguém contrapée sem mais 0 Espirito Santo a Jesus Cristo. Mas o que muitas vezes sc descreve como experigncia do espirito ou como frutos do espirito tem muito pouco a ver com a experiéncia do Espirito de Jesus de Nazaré com os frutos que o Espirito produziu em sua vida. Ninguém nega que a vida humana tem dimens6es materiais ¢ dimensdes ‘espirituais e poucos contrapdem sem mais uma dimensio a ou- tra, Mas quando se trata de definir 0 especifico da vida crista, ‘quando se olha para as prioridades pastorais da Igreja (liturgia, catequese, sacramentos, misses, devogdes) ¢ quando se analisa ‘mais atentamente 0 modo espontiineo ¢ convencional de se refe- rir ao espiritual (rezar pela alma, o que vale é 0 espitito, morrer para encontrar com Deus, imortalidade da alma, libertar-se da matéria ete), percebe-se sem muita dificuldade um reducionis- ‘mo da vida cristd A sua dimensio espiritual, um reducionismo da vida espiritual a praticas “religiosas” ¢ certa contraposigéo te6rica e, sobretudo, pratica do espiritual ao material. Nossa abordagem da espiritualidade crista enfrentaré pre~ cisamente essa problemtica, tratando a espiritualidade como tama dimensio da vida humana (1), mostrando em que consiste essa dimensio espiritual (2) ¢ explicitando sua especificidade evista (3). 1. Espiritualidade como dimensdo. da vida humana A vida humana € uma realidade complexa (vive, sente, in- ‘elige), constituida por uma pluralidade de notas.* Algumas 7 Polen falc aqui de propriedade,aspetos, momento, dimendSes ee Pre ferns com Zubia expresso nota pla *dopl vantage de desig Imente dois moments de cott’spertoce constiutvamente 2 cise € de cardter mais formalmente material ow corpéreos outras de cardter mais formalmente espiritual ou psiquico.’ Quanto a isso nio ha maiores problemas. A questo reside em saber 0 modo como essas notas esto vinculadas ou articuladas entre sie qual a especificidade de cada uma delas na realidade plural € complexa que é a vida humana. E aqui a coisa se complica e as opinides se dividem. Grosso modo, pode-se identificar trés tendéncias ou posturas antropol6gicas no que diz respeito a0 viinculo entre 0 que, para tornar 0 texto mais eve, chamaremos simplesmente de notas materiais e notas espirituais. A primeira 6a que poderiamos qualificar como dualista. £ a tendéncia ou postura predominante em toda tradicio ociden- tal, inclusive na atualidade. Ela chega até nés através do mundo sgtego € pode ser caracterizada por uma separagio e mesmo contraposigio entre o material e 0 espiritual. Por um lado, ma- terial e espiritual sdo tomados como duas réalidades completas «€ autossuficientes: existem independentemente um do outro. O ‘maximo que pode se dar entre eles é uma relacao entre relatos «que em sie por si nada tém a ver um com 0 outro e que, ade- mais, terminam se separando um do outro: existe 0 material ‘sob um determinado aspecto ou dimenso cf ZUBIRI, Xavier. EI Bombrey Dios ‘Made: Alianaa Edvrial, 2003, 18). ‘idem, 30-46, expeialmente 39-41. Zubr pefre falar de nots comptes a falar denotes materi: "radical do corpo esté em ser principio de aealidade ‘Corpo é, portant, algo mais conreto que matéria. Porque se trata de maria ‘corpéteae mio de matéra em oposiio 20 esprit”. Da mesma forma, pefere falar de nots paluicas a falas denotasepiestunis “ao achamo [a psig e cto pela mesma ratio pela gual ado chamei o corpo matéria. E tampoaco + ‘came alma porque o voedbulo eats sobreacregado de um sectidoexpecil mais (que dscutel, a saber, uma entidade substancial que habia “dene do corpo [Ge] Apsique € apenas um subsistema parcial de nots dentro do sistema total de subeantiviade humana” (bide, 409, (CE.GARCIA RUBIO, Alfonso. Unidade me pluaidade:o ser hamano us da fe ¢ ‘elles crits So Pl Pau, 2001, 95-114, 318-360; ELLACURIA, Inicio iad, in EscritosTeolgios IV, San Saeador. UCA, 2002, 4757, ag er cound saptide ens Creo © ew rps sep Gis © existe 0 espiritual; eles podem se juntar (vida humana), mas terminam se separando (morte). Essa postura aparece tanto em teorias filos6fico-antropotégicas (Platao, por exemplo),’ quan- t0 no discurso mais espontineo ¢ convencional (morte como separago da alma do corpo, imortalidade da alma etc.). Por ‘outro lado, material e espiritual sio tomados como realidades contrapostas: ndo sio apenas realidades distintas, mas realida- des contrapostas; realidades que se opéem uma & outra. Om: terial € de natureza sensivel eo espiritual é de natureza intelec- tiva, ea relagio entre sensibilidade e inteligéncia é de oposigdo. A segunda tendéncia ou postura pode ser qualificada como, reducionista ou monista. Ela tende a reduzir a dualidade ma- terial-espiritual a um desses elementos ou aspectos: seja tra- tando © material como inferior a0 espiritual, como passageiro , €m tiltima instncia, como algo destituido de realidade (es- Piritualismo); sja tratando o espiritual como uma espécie de reflexo quase mecinico de determinadas condicdes materiais (materialismo). No primeiro caso, a dualidade acaba reduzida 0 espiritual. © que importa mesmo € o espiritual e no fim das contas 0 espiritual € 0 dinico que permanece (imortalidade da alma), jf que o material acaba com a morte. No segundo caso, a dualidade acaba reduzida a0 material: tudo é matéria; © que comumente se chama espirito nao é sendo uma propriedade da ‘matéria ou o resultado de determinados processos materiais. Se © dualismo afirma a dualidade material-espiritual separando © opondo matétia e espirito, 0 monismo reduz essa dualidade ‘@ um de seus elementos ou aspectos. Trata-se de uma postu- +a simplista e, por isso mesmo, pouco convincente, sobretu- do quando apresentada sem maiores precisées. Em todo caso, © CE. REALE, Gioranni. Histria da filosofiaamtig I, Sd Paulo: Loyola, 1994, 185-215; LIMA VAZ, Henrique Gldudo. Antropologs Plosific I. So Pulet Loyola, 191, 35-38, nem de longe tem a importancia ¢ a repercussio que a postura dualista, A terceira postura ou tendéncia € a que poderiamos qua- lificar com Ignécio Ellacuria como estrutural. Ela afirma a dualidade material-espiritual em sua unidade radical, superan- do tanto o dualismo quanto 0 monismo. Material ¢ espiritual nem se separam (dualismo} nem se identificam (monismo). Nao existe 0 espirito ¢ a matéria como realidades independentes € autossuficientes que casualmente se juntam (vida), mas termi- ‘nam se separando (morte), com 0 ocaso desta e a sobrevivencia daquele* O que existe é a realidade humana como realidade complexa constituida por uma pluralidade de notas sistema- ticamente articuladas ou estruturadas ¢ notificada por essa ‘mesma pluralidade de notas. Cada uma dessas notas, por mais irredutivel que seja, é nota da realidade humana ¢ s6 existe em uunidade estrutural com as demais notas dessa realidade. As- sim, matéria e espirito aparecem como dimensoes da realidade humana, isto como algo que constitui essa realidade e, en- quanto tal, a mensura sob certo aspecto. Certamente, podemos € devemos distinguir essas duas dimensOes, mas nunca separa -las. Na realidade conereta que é a vida humana elas aparecem sempre articuladas uma em fungio da outea, qualificando essa realidade simultaneamente como material ¢ espiritual. Nao existe nenhum espftito passeando por af como realidade sepa- rada da matéria. Sem divida a dimensao espiritual é irredutivel © Comvém advertr com Antonio Gonatles que Yo cxstaniamo ao crt na ior ima, mas na retureigo dos mertoy, algo dingo em principio. et de ado, ds sobrevivéncin do horem into, de sua unidde sto ogiaics complea eno de uma parte insubstantiva dela como & sua psig Em segundo lugar, a0 falar de ressureigfe eno de inortalidae,ocritianismo stella ao eserrecional 3 atuagao livre de Deus no a wna capacdade ut 2 alma ens ors] em tereieo lugar, afrmagio cris sobre a eure ‘io € uma wet losbfica, mas um artigo de 16" (GONZALEZ, Antonio. Inro- ‘ecinala prdctica del sofia San Salvador: UCA, 2005, 222. rages pins Crise @ Os iar, { dimensio material, tem sua especificidade ¢ sua autonomia, ‘Mas essa autonomia é apenas relativa, na medida em que a di- ‘mensdo espiritual esta estruturalmente articulada com outras dimensdes e, inclusive, “sustentada por condigdes ‘nao espiri- tuais’, nas quais deve necessariamente encarnar-se e expressar- -se €, por sua ver, iluminé-las ¢ transformé-las”? Uma correta compreensao € articula¢io do material € do ‘spiritual na vida humana deve evitar, portanto, as tendéncias € posturas dualistas € monistas, assumindo uma perspectiva estrutural, na qual se afirma simultaneamente a irtedutibili- dade do material e do espiritual e sua unidade radical. E aqui 6 espiritual aparece como uma dimensio constitutiva da vida hhumana e, enquanto tal, como algo que a mensura sob um de- terminado aspecto. 2. A dimenséo espiritual da vida humana Depois de abordar a espiritualidade como wma dimensio da vida humana (ieredutivel, mas estruturalmente articulada com outras dimensGes), & necessario explicitar em que consiste pre- cisamente essa dimensio espiritwal, qual a sua especificidade ante outras dimensdes. Eo faremos a partir da compreensio biblica: seja por sua abordagem dimensional do espiritual, ain- da que nao a formule nesses termos, sea pelo interesse concreto de nossa abordagem de explicitar 0 especificamente cristao da espiritualidade, Certamente, a Biblia nao oferece um tratado sistematico de spiritualidade. Ela nao tem a pretensio de definir rigorosa- ‘mente o que seja o espiritual da vida humana, nem de determi- nar como se dé sua experiéncia hist6rica. No entanto, na Biblia ‘no encontramos outra coisa sendo a vivéncia/experiéncia mais ITA, lsc. Op. it 48. ‘ou menos consciente, reflexa ¢ elaborada do que estamos cha- ‘mando aqui dimensio espiritual da vida humana e que tem a ver fundamentalmente com a experiéncia de Deus. Como afir- ma Victor Codina, “a presenca do Espirito é uma constante na Biblia, ainda que sempre de forma difusa endo sistematizada. £ como o fio condutor de toda a Palavra de Deus, sem que os autores biblicos tenham sentido a necessidade de plasmar essa experiéncia em um sistema dogmético. f, antes de mais nada, ‘uma experiéncia vital, globalizante e unificadora das diversas dimensdes ou etapas da revelacio do mistério divino na his- t6ria da humanidade”.* E € a partir dessa experiéncia bibli- ca, mais concretamente de sua formulagio ou narragio, que. procuraremos determinar em que consiste o espiritual da vida humana ou pelo menos identificar suas caracteristices mais importantes. A primeira coisa que chama a atencio nos relatos biblicos é ‘que o espiritual aparece sempre como uma dimensio da vida humana intrinsecamente vinculada a sua dimensio material. A Biblia nunca fala do Espirito ou do espiritual como algo inde- endente, separado nem muito menos contraposto ao material Fala sempre da vida concreta em sua totalidade e complex dade, ainda que destacando nela essa dimenso que a vincula mais diretamente a Deus. Dai que a Biblia sempre fala de Deus falando de sua experiéncia por um povo concreto em um tem- Po, em uma situagao ¢ em um lugar concretos; fala da expe- rigncia de Deus falando da vida e da hist6ria concretas de um ovo (economia, politica, cultura, religiio etc.). Nao é possivel separar nem no Exodo nem na vida de Jesus Cristo 0 que seja ‘© espiritual e o que seja o material, o que seja de Deus e o que seja do mundo etc. © de Deus, o espiritual, se materializa no © CODINA, Vietoe. “No extngeso Espirito” (Ts 5,19)niiago 3 presmato ogi So Paul: Prulinas, 2010, 34 Pow piso cptints json @ © 0 somes i Exodo e na praxis de Jesus Cristo; a materialidade do Bxodo da praxis de Jesus Cristo, por sua vez, é uma materialidade espiritualmente dinamizada e conduzida pelo Espirito de Deus. Essa unidade fundamental aparece na tradigao biblica como um “pressuposto antropolégico bésico”, ainda que nao esteja suficientemente elaborado e formalado. “Os semitas, tal como ‘outros povos primitivos, veem a realidade de maneira preva- lentemente sintética. Embora reconhegam no ser humano vi- ios aspectos ou dimensées, isto é feito dentro de uma unidade basica.”” A experiéncia espiritual na Sagrada Escritura é, por- tanto, uma experiencia materialmente mediada ¢ possibilitada. Atal ponto que nao pode ser separada de sua materialidade, ainda que nao possa ser identificada sem mais com ela. Isso aparece inclusive nas expressées utilizadas na Escritura para se referir a essa experiéncia."* O que comumente chama- ‘mos espirito(latim: spiritus; grego: pnewma; hebraico: rwah) se manifesta ai “através de simbolos fluidos ¢ impessoais” como “dinamismo de vida e forca” (vento, agua, fogo, defesa, selo, dedo...) e como “dogura e suavidade penetrante” (perfume, vi- ‘ho, ungio, pomba...." E 0 que comumente chamamos ala (latim: anima; grego: psyches hebreu: nefesh) designa af tan- to garganta ¢ pescogo (necessarios para a ingestio de alimen- tos para a respiracéo) quanto a sede do desejo e de outros > GARCIA RUBIO, Afonso, Opts 320. (CL WOLFF, Hans Wate. Antropoiogi do Antigo Testament, Sto Palo: Loyo- Is, 1975; LEON-DUFOUR, Xavier. Alin. Vocabulario de Teologia Bilic, Pe- tropa: Vores, 2008, 36:59; GUILLET, Jacques. Expt, im op it, 293-3045 KOCH, Robert Epis, in BAUER, Johannes. Diciondio de Teologia Bibles 1. SioPaslo: Loyola, 198, 364389; SCHWANTES, Milee.O Fspto fax his- ‘6c, So Leopoldo: CEBI/0, 19885 GARCIA RUBIO, Alfonso. Op. cit, 32055 GUTIERREZ, Gustav, Op.cic, 6481; CODINA, Vitor Op. cit, 23-32; CON GAR, Yes. Revelaga expriénia do Esprit, Sto Palo: Paulas, 2008, 17s " CODINA, Vier. Op. ct sentimentos, quanto ainda a propria vida ou o ser vivente." Em ambos 0s casos, trata-se da vida humana em sua totali- dade, considerada do ponto de vista de seu dinamismo vital e de sua relagdo com Deus. Nada mais estranho & mentalidade «¢a0 vocabulério biblicos do que a oposi¢ao matéria x espirito, corpo x alma. Como bem afirma Yves Congar, “se o mundo de cultura grega pensa em categorias de substincia, o judeu pensa «em forsa, energia, principio de agdo. O espirito-sopro é aquele ‘que age e faz agir e, quando se trata do Sopro de Deus, anima, faz agir para realizar o designio de Deus. £ sempre uma energia de vida”. E nesse contexto faz referéncia a afirmagio/interro- gacd0 do cardeal Daniélou - segundo ele, “um tanto carregada no tocante A oposigio entre o grego ¢ o hebraico, mas interes- sante e pedagogicamente bem-sucedida”: “Quando falamos de ‘espirito’, quando dizemos que ‘Deus € espirito’, o que quere- ‘mos dizer? Falamos grego ou hebraico? Se falamos grego, di- zemos que Deus é imaterial etc. Se falamos hebraico, dizemos que Deus é um furacio, uma tempestade, um poder irresistvel idades quando se fala de espiritualidade. Acespisitualidade consiste em se tornar imaterial ou em ser ani- mado pelo Espirito Santo?” © CE, WOLFF, Hans Wate, Op city 21-435 GARCIA RUBIO, Alfonse. Op. it, 320s, % CONGAR, Yoes. Op. cit, 18. “O que sepa raicalmente a concep biblica ‘mnidade do homem de qualquer form de daliemo onogicn € fat de que ‘8 linguagem bblice sobre o homer nfo se relere a natrezas gue sel s opo- hae, mas suas existenciais que tradaren a vicissieudes do eu itneitio ‘em conlronto permanente com a niiativa slic de Deus ¢ com su Playa ‘Assim, o homer & ‘atm’ (bar) na media em que se reveam a fe ‘ransitoriedade des eitécia; ‘alma’ (nafs na medidaem que a fagiidade ‘compentada, tele, pelo vigor da sua vitaldade 'esplcito' ruah, ov sj ma- ‘ifestagto superior da vida edo conheciment, pela gual o homem pode entar fm seaydo com Deu finalmente,€eoragt’ eb), ou sa, o interior profunde ‘do homem, onde sim sua sede actos e pixbes, onde se eraizam intligtcia€ ‘vontdee onde rem loga opecado 2 conversio a Deus (LIMA VAZ, Henrique ‘Cliudio. Anropoogi filosifca I Sio Paulo: Loyola, 1993, 61. rer epi oeptine J Crise Grr semis ign jn tm E aqui aparece mais explicitamente o outro trago ou @ ou- ‘tra caracteristica fundamental da dimensao espiritual da vida humana na Biblia, Ela diz respeito nfo apenas a seu dinamis- ‘mo vital (vida, agio), mas também & sua relagao com Deus {criagdo, salvagio) ou, mais precisamente, ela se refere ao dina- ‘mismo vital enquanto dom de Deus. Dai por que a expresso cspirito pode se referir tanto a vida humana (espirito humano) ‘quanto a Deus (Espirito Santo), quanto ainda a ambos ao mes- ‘mo tempo (Espirito de Deus como principio e fonte do din: mismo vital). £ o Espirito de Deus que da vida, revela seus de- signios e faz agir de acordo com eles. Nas Escrituras hebraicas (AT) 0 Espirito tem a ver com a criagio, com a profecia e com a sabedoria; designa a “ago e presenga permanente de Deus na criagio e na historia” (eria, liberta e penetra os coragoes); “é uma forga misteriosa que, a partir de dentro ¢ de maneira sutil, tudo penetra e ilumina, purifica e santifica, vivifica e dé con- sisténcia definitiva”, diz respeito a0 dinamismo vital e & ago vivificante de Deus ou a0 proprio Deus; ¢ simultaneamente es- pitito humano e Espirito divino, Nas Escrituras cristas (NT) 0 Espitito tem a ver fundamentalmenté com Jesus Cristo ¢ com a vida crista: diz respeito a0 dinamismo vital/acional de Jesus Cristo ¢ dos cristdos, enquanto configurados ou conformados a dle. © cardter mais fluido e impessoal das imagens que, so- bretudo nas Escrituras hebraicas, evocam a presenga ¢ ago do Espitito (vento, sopro, fogo, dgua, forga etc.) ganham na vida de Jesus de Nazaré tal concregio e densidade que a constituem em critério € medida de discernimento de sua presenca € acio ‘no mundo. O Espirito (tanto no que tem de dinamismo vital {quanto no que tem de Deus) aparece aqui como Espirito de Jesus Cristo. “Por isso, para conhecer e discernir um Espirito CODINA, Vitor Op. ct, 4, € preciso constatar se conduz a Jesus ou niio”.'S Sobre isso j insiste a primeira Carta de Séo Joo: “Queridos, nio vos tor- neis figis de qualquer espirito; a0 contririo, comprovai se os espiritos vém de Deus; pois muitos falsos profetas vieram a0 mundo, Nisto reconhecereis 0 Espirito de Deus: todo espirito que confessa que Jesus Cristo veio em carne mortal, vem de Deus; todo espirito que nao confessa Jesus nao vem de Deus, mas do Anticristo” (IJo 4,1-3). Assim, a vida concreta de Jesus de Nazaré se apresenta como a expresso por antonomasia e ‘como o critério ¢ a medida da unidade entre o espirito hamano © 0 Espirito Santo, ou seja, do dinamismo vital enquanto dom de Deus. De modo que se o Espirito de Deus tem a ver fun- daméntalmente com Jesus Cristo, deve dinamizar nossa vida ‘como dinamizou a vida de Jesus Cristo: é de Deus, portanto, se faz em nossa vida/carne 0 que fer na vida/earne de Jesus. Por ‘ssa razdo, a espiritualidade crista nao € outra coisa senio viver segundo o Espirito de Jesus, isto & seguir seus passos, viver como ele viveu. A dimensao espiritual da vida humana tem a vet, portanto, ‘com seu dinamismo vital (espirito humsino) e com a fonte ou o Principio desse dinamismo (Espirito de Deus). Por um lado, ela dia respeito ao dinamismo vital, sto &, a vitalidade, ao cardter ativo, ao instinto, & forga, & energia, aos impulsos, as moti- vagGes, a8 paixdes, aos projetos, aos sonhos etc., que fazem dda realidade humana uma realidade viva/ativa, uma realidade aberta, transcendente, dinamica, inacabada, em realiza = para além de todo materialismo, imediatismo e determinis- mo. Por outro lado, ela diz respeito & fonte ow ao principio desse dinamismo, isto é, trata 0 dinamismo vital como dom! raga de Deus ~ para além de todo imanentismo e de toda idem, 32. Vi pats ipa: iasoee @ © Vie apni epi Jn Cie autossuficiéncia, E Deus que, mediante seu Espirito vivifican- te, dé a vida e faz agir; é Ele que impulsiona ¢ orienta a agio segundo a justica, de modo a conservar e promover a vida, so- bretudo, dos fracos e oprimidos; ¢ Ele que mantém a vida das pessoas e a histéria dos povos permanentemente abertas, em constante transcendéncia, impedindo que qualquer aconteci- ‘mento ou situacdo tena a viltima palavea; por fim, é Ele que ‘nos faz superar todos os limites, inclusive a morte, mantendo vviva nossa esperanga contra todas as evidéncias e mesmo con- tra toda esperanca: “a esperanga € a tiltima que morre” e “se ‘morrer, ressuscita”, lembra Casaldaliga. na medida em que experimentamos nosso dinamismo vi- tal como algo que nos constitui e que nos é dado (para além do que queitamos e do que fagamos) ¢ que o vivemos segundo © dinamismo de Jesus de Nazaré que 0 experimentamos como dom de Deus e, consequentemente, como participagio em sua vida, como comunhao com Ble. Se é verdade que “essa esp tualidade nao se explica sem a presenga operativa do Espfti- 0”, também é verdade que “esse Espirito no percebido nem ctido realmente sendo a partir de uma espiritualidade viva, a partir do que é sua presenca operativa no cora¢io do homem, nna comunidade crista ¢ ainda na institucionalidade da Igreja € nna marcha da histéria, Sao as palavras e os acontecimentos no- ‘vos, 05 comportamentos inesperados e anormais que levantam a pergunta de quem os impulsiona e como os inspira’. E é af conde a dimensio espiritual que nos constit se revela como abertura, dinamismo, transcendéncia e, em iltima instincia, comunhZo ou ruptura com Deus. = TELLAGRIA,Ipntcio. Op. ci 50, 3. Espiritualidade crista ‘Vimos que a espiritualidade é uma dimensio constitutiva da vida humana ¢ que essa dimensio tem a ver precisamen- te com nosso dinamismo vital e, por ele, com nossa relacéo com Deus, em comunhao ou em ruptura. Quando falamos de ‘espiritualidade crista, falamos desse mesmo dinamismo vital ‘em comunhao com Deus, tal como se dew na vida/praxis de ‘Jesus de Nazaré. ‘Nas Escrituras cristas (NT), como ja indicamos, o Espitito aparece sempre vinculado a Jesus Cristo: 6 Espirito de Cristo (Rm 8,9; Fl 1,19), Espirito do Senhor (2Cor 3,17), Espirito do Filho (GI 4,6). Sua missio no ¢ outra seno ensinar € recordar tudo 0 que Jesus disse (Jo 14,26), dizer e explicar 0 que ouviu! recebeu de Jesus (Jo 16,13-14), dar testemunho de Jesus (Jo 16,26). “Do ponto de vista do contetido, nao hé autonomia ¢ muito menos disparidade de uma obra do Espirito em relago de Cristo”:” Nao por acaso “um grande niimero de efeitos so atribuidos indiferentemente a Cristo e ao Espirito” e “as férmu- las ‘em Cristo’ e ‘no Espii rentemente uma pela outra”." E no por acaso a vida/carne de Jesus de Nazaré € apresentada como 0 critério fundamental ¢ definitive de discernimento dos espiritos (IJo 4,1-3). De modo ‘que “ninguém, movido pelo Espirito de Deus, pode dizer: mal- dito seja Jesus! E ninguém pode dizer: Senhor Jesust, se nfo é movido pelo Espirito Santo” (ICor 12,3). 0 Espirito de Deus é, portanto, inseparivel da vida/praxis de Jesus de Nazaré. Ela é ‘o lugar por exceléncia de sua manifestacao/revelacio. so utilizadas muitas vezes indife- 5 GONGAR, Yes. Op. cit 6. bide, Ele indica alguns textos onde ito aparece mas explicitamense:2Cae 521 Ra 14,175 GL1,17~10or 6,1; Ren 8 10~Ro 8,9, F131 ~ Rm 14,178.39 1,8 F14,7 ~Ran 14,17, 1Cor 12.30 - Ren 15,16 27s 2135 26 2,17 ~ Cor 12,3; €12,10 BF 518; Ren 12,5 G3,27 ~ 1Cor 12413 BF 2,21 ~ BF 2,22. ow apni sept Jeu Cris @ © eet tine cin Daf por que falar de espiritualidade, na perspectiva crista, niio seja outra coisa senio falar da experincia do Espirito de Jesus de Nazaré: viver como Ele viveu e do que Ele viveu, isto 6 configurar ou conformat a propria vida a sua vida, Numa palavra: viver segundo seu Espirito. Do ponto de vista cristo, diz Ellacusia, “homens espirituais sio aqueles que estao cheios do Espirito de Cristo ¢ o esto de uma maneira viva ¢ consta- tavel, pois a forca e a vida desse Espirito invade sua pessoa e sua ago"; “espirituais no so, entdo, os que fazem muitas priticas ‘espirituais’, mas os que cheios do Espirito [de Jesus de ‘Nazaré] alcancam seu impeto criador e renovador, sua supera- cio do pecado e da morte, sua forca de ressurreicao e de mais vidas 05 que alcangam a plenitude e a liberdade dos filhos de Deus, os que inspiram ¢ iluminam os demais e os fazem viver mais plena e livremente”.*" Trata-se, pois, de uma dinamica de vida, de um modo de viver, de um jeito de configurar a vida xno qual transparecem e se historicizam/encarnam a forga € 0 poder criador e salvador de Deus, tal como se dew na vida/carne de Jesus. Por isso, quando Paulo fala de vida no Espirito, dos frutos do Espirito (Gl 5,228; 2Cor 6,68; Rm 8,5ss; 14,17), fala fundamentalmente de agéo, de modos de relagio, de valores etc. E quando os evangelhos falam do pecado contra o Espirito Santo (Me 3,29 Mt 12,325 Le 12,10), falam fundamentalmen- te do fechamento e da rejeigdo & ago de Deus em Jesus de Na- zaxé, atribuindo sua origem a Satané Por essa razo, para falarmos da espiritualidade crista é ne- ‘cessirio, antes de mais nada, voltarmo-nos para a vida conereta de Jesus de Nazaré, explicitando sua estrutura e seu dinamismo fundamentais. $6 entio, ¢ confrontando essa estrutura e essa ELLAGURIA,Ipncio. Op. i, 49 ® idem. * CL CODINA, Victor. Op. it, 227.230. dinamica de vida com a estrutura e a dindmica de nossa vida, poderemos afirmar se e em que medida vivemos uma espiritua- idade autenticamente erista. E para além de todo discurso e de toda confissio explicita de No que diz respeito a vida concreta de Jesus de Nazaré, a0 seu dinamismo vital, a sua praxis, enfim, a sua vivéncia espiri tal, cla tem a ver fundamentalmente com sua interacio/relagao com a5 demais pessoas ¢ com Deus. E isso numa tal unidade que uma € inseparavel da outra, O Espirito de Jesus, diz Ellacu- ria, se refere tanto “ao Deus que Jesus confessa como seu Pai” quanto “ao modo como Jesus estabelece sua relagio com Deus na realizagio de sua vida e na praxis de sua missi0”.” Jesus age movido e na forga do Espirito e nessa acdo no Espirito é obe- diente¢ fie a Deus como um filho € obedientee fie a0 seu Pai. De modo que tanto sua agao salvifica (reinado de Deus) quanto sua relagdo com o Pai (filiagao) daio-se no Espirito Santo. Por um lado, Jesus age movido e na forga do Espirito Santo: “O Espirito do Senhor est sobre mim, porque ele me ungiu para que dé a boa noticia aos pobres; enviou-me para anunciar a liberdade aos cativos ¢ a visio aos cegos, para pér em liber- dade os oprimidos, para proclamar o ano de graga do Senhor” (Le 4,18s); “Deus ungiu com Espirito Santo e poder a Jesus de Nazaré, que passou fazendo o bem e curando todos 08 possu- ‘dos pelo diabo, porque Deus estava com ele” (At 10,38). £0 Espirito que dinamiza e conduz a vida de Jesus ¢ o faz de um modo muito concreto. Ao lermos as Escrituras, sobretudo os Evangelhos, somos imediatamente confrontados com a bonda- dee a misericérdia de Jesus para com os pobres, os érfios, as vitivas e os estrangeiros. Ele aparece, antes de mais nada, como ® ELLACURIA, Ignacio, La Iglesia que nace del pueblo pore! Espisito. Ecrtos Teoligicos 1 San Salvador: UCA, 2000, 43-355, 350, nun spine Cie @) © oe synopsis ‘uma pessoa boa, verdadeira, misericordiosa e justa: cura os do- entes (cegos, surdos, coxos, leprosos...);liberta muitas pessoas do poder dos espiritos maus; acolhe pessoas consideradas peca- doras (publicanos, prostitutas, fariseus, samaritanas); senta-se ‘mesa ¢ come com pecadores e desprezados; denuncia autori- dades religiosas ¢ politicas; relativiza a lei e 0 templos afronta costumes ¢ tradig6es que impedem ou dificultam a pratica do bbem e excluem pobres e fracos; iguala o amor a Deus ao amor estabelece as necessidades da humanidade sofredora como critério ¢ medida de participacao/exclusio na vida eter- ‘na, no reinado de Deus (Le 10,25-37; Mt 25,31-46). E faz tudo isso em nome de Deus. Mais. Reconhece nessas priticas a ago mesma de Deus, a chegada de seu reinado, 0 poder e a forca de seu Espicito, 20 irmac Por outro lado, a0 se deixar conduzir pelo Espirito de Deus, agindo segundo seu dinamismo, sua forga e seu poder, Jesus revela tanto o Deus em quem cré quanto © modo como ele se relaciona com esse Deus. 1. © Deus em quem Jesus cré, a quem cle entrega sua vida, manifesta-se no modo como ele vive: a0 agit com bondade ¢ com misericérdia para com os caidos & bei- +a do caminho, revela um Deus bondoso e misericordio’o; a0 acolher pessoas consideradas impuras e pecadores, revela um Deus que é perdao e gratuidade; ao socorrer as pessoas em suas necessidades e ao defender o direito dos pequenos ¢ oprimidos, revela um Deus que ¢ justiga; ao fazer sua as necessidades da hhumanidade sofredora, revela um Deus parcial e partidério dos pobres e oprimidos deste mundo; e assim por diante. Ora, se © Espirito de Deus age em ¢ através de Jesus (Le 4,185) ou se Jesus age na forga no poder do Espirito de Deus (Mt 12,28), através de sua aco temos acesso a Deus e sabemos quem cle é. Conhecemos a Deus porque o vimos agir em Jesus. Eem Jesus, Deus age como um Pai atento as necessidades e aos clamores de seus filhos:? “quem me vé, vé aquele que me enviou” (Jo 12,45; 14,79); “o Pai e eu somos um” (Jo 10,30). 2. Com esse Deus, Jesus estabelece uma relagao filial. Relaciona-se com Ele como um filho se relaciona com seu pai. E num duplo sentido. Por um lado, como insiste o Evangelho de Joao, Jesus vem de Deus ‘sua vida consiste em fazer a vontade do Pai (Jo 5,30). Por ou- tro lado, é obediente e (F12,8). Na yerdade, s6 quem experimenta a vida como dom missio, 56 quem nao € autossuficiente e egoista, s6 quem no +e basta a si mesmo, pode viver como filho, isto é, como quem sabe que nio vem de si mesmo, que nao tem em si mesmo a ori- a Deus até a morte morte de cruz ‘gem e 0 centro da propria vida e, consequentemente, que no pode viver para si. Viver como filho é viver segundo a vontade de Deus, sendo obediente e fiel aos seus designios. Esses dois aspectos da vida espiritual de Jesus ~ sua acao sal- vifica e sua relagio filial — implicam-se e condicionam-se mu- ‘tuamente: em sua ago (realizagao do reinado de Deus), Jesus revela o Deus em quem cré (Pai) ¢éfiel e obediente a ele (Filho); ‘© Deus em quem Jesus cré (Pai) se manifesta precisamente em sua vida/agao (reinado de Deus). Como bem afirma Gonzalez Faus, “o reino dé a razao de ser de Deus como Abba e a pater- nidade de Deus da fundamento e razio de ser do Reino [uJ A experiéncia dessa vinculagao Abba-Reino |..] constitui toda a chave daquilo que parece que Jesus pessoalmente vivia, con tui todo o horizonte daquilo que Jesus quis peegar ¢ constitui todo o sentido do diseipulado que, para Jesus, parece néo ser ‘mais do que uma introducao a essa experigncia”.** ® GE MUNOZ, Ronaldo Trindade de Dews: amor ofeecido em Jesus, 0 Cristo. ‘So Palo: atlas, 2002, 28 ™ GONZALEZ FAUS, Jot Ie ‘Sto Paulo: Loyola, 1981, 36 cea Jes: ena de teologia arrati Vw ape septs ee @ © i ptintinccim E com isso voltamos ao cétne da problemética da espiritua- lidade cristd, enquanto experiéncia do Espirito de Jesus Cristo. Ela tem a ver com nossa relacdo com Deus (Paiffilho) ¢ com os irmios (salvacao/fraternidade): “o Espirito Santo, que guiou ‘caminho histérico de Jesus para o Pai, realiza em nés [.] 0 que realizou nele. Faz que vivamos na filiago em relagdo a Deus ¢ na fraternidade em relagao aos homens”. E diz respeito & to- talidade da nossa vida: todas as dimenses e todos os aspectos de nossa vida devem ser conformados ou configurados a Jesus, isto é, devem ser vividos segundo o seu Espirito ~ na forga ¢ no dinamismo de seu Espitito que € o Espirito de Deus. Dai por aque a espiritualidade crista nao possa ser tratada como um de~ partamento da vida nem muito menos reduzida a determinadas priticas ditas religiosas ou espiituais. Embora nio possamos oferecer aqui um tratamento ade- ‘quado nem sequer um esbogo suficientemente abrangente da cespiritualidade cristi, indicaremos a0 menos algumas dimen- sBes e alguns aspectos que merecem uma atengao e um cuidado especial dos cristaos no cultivo eno dinamismo da dimenstio espiritual de suas vidas. 1. Ela diz respeito tanto a dimensdo individual quanto & dimensao social da nossa vida. Ambas devem ser vividas se- gundo o Espfrito de Jesus Cristo. A espiritualidade ndo pode jamais ser reduzida ao Ambito da individualidade, como se cla Iiio tivesse nada a ver com o modo como nos vinculamos uns aos outros e interagimos, e com o modo como organizamos « regulamos nossa vida coletiva; tampouco pode ser reduzida 20 ambito social, como se fosse possivel uma sociedade nova com pessoas velhas. Dai por que, em se tratando de vida crit’, TLADARIA, Las F. Introdugio 3 antropolopia tolipica, Sto Paulo: Loyola, 1998, 1226. isto 6, da configuragio ou conformagio de nossa vida a Jesus Cristo, sejam necessérias tanto a conversao do coragao (ambito da individualidade) quanto a transformagao das estruturas da sociedade (ambito social) ~ pessoas novas ¢ sociedade nova, ambas renascidas/recriadas na forga e no dinamismo do Espi- rito de Jesus Cristo. 2. Tem uma dimensio de interioridade e uma dimensio de exterioridade, Certamente, a espititualidade € algo que diz res- peito a0 mais profundo e a0 mais intimo de nossa vida. Confor- ‘maa ou configura-a por dentro, para além de toda aparéncia « superficialidade, Mas no por isso deixa de ser algo visfvel ¢ palpavel; algo que se exterioriza. Pelo contrario, ela toma cor- po, materializa-se, encarna-se no cotidiano de nossas vidas. E é aqui, precisamente, que se pode discernir o espirito que anima/ dinamizalconduz nossa vida: pelos frutos, conhece-se a arvore (Le 6,438); a f€ se mostra pelas obras (Te 2,18). Para sabermos se vivemos segundo o Espirito de Jesus Cristo, precisamos ver ‘se vivemos como ele viveu, se agimos como ele agiu, se produ- zimos os frutos que ele produzi, Os discursos espirituais inti- mistas (pura interioridade) sio, no fundo, uma maneira muito sutil de ofuscar o verdadeito espitito que anima ¢ dinamiza nossa vida. 3. Na medida em que a espiritualidade tem a ver com 0 nos- ‘s0 dinamismo vital, com o jeito como vivemos, ela diz respeito tanto ao modo como sentimos e os sentimentos que alimenta~ ‘mos quanto as decisdes que tomamos. Envolve, portanto, sen- timento € decisdo como momentos constitutivos da agdo hu- ‘mana: 05 sentimentos condicionam e interferem nas decisdes, ‘mas podem ser modificados/convertidos mediante decisdess as decis6es sio condicionadas pelos sentimentos, mas podem alteré-los e adequi-los a seus projetos. Daf por que a confi- ‘guragio de nossa vida a Jesus Cristo implique tanto em ter os Ver end spite Jos Cries © Fw nis sepiteefo Os ‘mesmos sentimentos que ele tinha (Fl 2,5; Mt 14,14) quanto ‘em agir como ele agia (1Jo 2,6). E porque sentia compaixio misericérdia pelos caidos que se dedicava a curar suas feridas (Le 10,25-37). Quando as opcdesidecisées no convertem os sentimentos a seus projetos, acabam, mais cedo ou mais tarde, senclo vencidas por eles ou degenerando-se em ativismo. 4, Enquanto conformacio ou configuragao de nossa vida a Jesus Cristo, a espiritualidade tem um momento de opedo pes- soal intransferivel e irrecusavel. Nao é algo natural: ninguém ‘nasce cristdo; torna-se cristo, mediante uma opgo. Ninguém € obrigado a viver como Jesus viveu. Esta é uma possbilidade, ‘mas uma possibilidade que s6 se efetiva na medida em que al- ‘guém opta por ela © se apropria dela. Além do mais, trata-se de uma op¢do condicionada pelas ciscunstincias ¢ situagdes individuais e coletivas que nos tocam viver. Afinal, a espiritua- lidade néo € outra coisa sendo um modo concreto de viver a nossa vida. No caso da espiritualidade crist, trata-se de viver ‘a nossa vida segundo o Espirito de Jesus de Nazaré. E & isto gue faz com que a espiritualidade crista esteja sempre referida a vida concreta de Jesus de Nazaré ¢ a vida concreta de seus seguidores. 5. A vida espiritual nao se opde & atividade intelectiva; espf- tito ndo € sinénimo de ignorncia nem o Espirito Santo pode ser tratado como “asilo de ignorancia”,% a quem apelamos quando ‘do compreendemos ou nao conseguimos explicar algo. A in- teligéncia € um momento fundamental de nossa vida espiritual que deve ser vivida com lucides ¢ criticidade. O cristéo nao pode renunciar jamais & tarefa de dar razio de sua f€ (2Tm 1,12). f claro que nao se deve cair na tentacio intelectualista/ ™ CL. PANNENBERG, Wolthart. Grudfragen systematicher Theoogie. Goein- ‘gen: Vandeahord& Raprech, 1967, 235, racionalista que, além de depreciar o sentimento e negar 0 que no consegue explicar, acaba reduzindo a espiritualidade a confissdo de doutrinas. Mas é preciso ficar muito alerta contra a tentagao sentimentalista e fundamentalista que, além de opor sentimento inteligéncia e de acentuar unilateralmente 0 sen- timento em prejufzo da inteligéncia, transforma a fé num ato irracional ou numa atitude de pessoas ignorantes. 6. Profundamente vinculada & dimensio intelectiva da vida espiritual esta sua expressao simbélico-ritual-litargica, E aqui ‘onde ela se expressa de modo mais explicito ¢ intenso, Daf por ‘que a tentagao constante de identificar e reduzir a vida espiri- tual com sua expresso ¢ celebragao simbélico-ritual. Quantas ‘vezes ouvimos falar em encontros pastorais ¢ mesmo em mo- -vimentos populares de “momento da espiritualidade” ou “mo- ‘mento da mistica”, como se espiritualidade e mistica fossem sinénimos de oracio, ritos, simbolos, dindmicas etc. Sem falar que muitas dessas expressdes simbélico-rituais utilizadas pelos cristdos ¢ suas comunidades expressam muito pouco (quando ‘no 0 contrario) 0 dinamismo de vida de Jesus de Nazaré e do Espirito que o anima e © conduz. Valeria a pena confrontar a “estética” palaciana de nossas liturgias (altar-cétedra, vesti _mentas e objetos litirgicos, titalos, Deus todo-poderoso etc.” com a “estética” evangélica da vida Jesus (Belém, lava-pés, Cal- virio, Deus todo-miserivordioso ete.). 3 Cann incegragto da Isa no Implrio Romano no sécalo IV, a ideologia i pera entrou profundamente na tologis oficial da core iflenci prandes cores da ge, sobeetado no Oriente. Crist oi repesentado como Imperador ‘Deus eno Supcrimpertdor, Os atibutos do pode foram detacado com ita forga. A eologia inperial weve muita inflsocia mas ergs crits la lod sobrevve nas liaise auais” (COMBLIN, Jo. O pobre eri pata «profe- ‘iin OLIVEIRA, Pero Ribeiro (or. Opi pelos pobres no sewlo XXI, So Paulo: Palins, 2011, 139-201, agu 190). Viernes pins oe ice @ Opa pmoe 7. Por fim, ha um aspecto fundamental e decisive na espici- ‘tualidade crista que, embora nunca se tenha perdido completa- mente na tradigao da Igreja, foi redescoberto e reafirmado de ‘modo particular pela Igreja latino-americana e sua teologia da libertagio: a centralidade dos pobres e oprimidos. E 0 Espirito ‘que conduz Jesus aos pobres ¢ oprimidos deste mundo ¢ € na forca e no poder do Espirito que Jesus age em favor dos pobres oprimidos. A acio do Espirito, tal como se dé na vida de Jesus de Nazaré, esta de tal modo vinculada as necessidades dos pobres e oprimidos que eles se tornam eritério e medida de nossa comunhio com Jesus € com 0 Pai, assim, de nossa par- ticipagdo na vida eterna (Le 10,25-37), no reinado de Deus (Mt 25,31-46). Como diz So Romero de América, “hé um critério ppara saber se Deus esté perto ou distante de nés: todo aquele {que se preocupa com o faminto, com 0 desnudo, com 0 pobre, ‘com o desaparecido, com o torturado, com o prisioneiro, com toda essa carne que sofre, esté perto de Deus". Nesse sentido ‘compreende-se bem a afirmacao escandalosa de Jon Sobrino: “fora dos pobres nao ha salvacio”.*”E aqui, precisamente, resi- de 0 maior escindalo, perigo e desafio da vida cri Em concluséo: a espiritualidade crista como seguimento de Jesus Cristo Conforme vimos no item anterior, a espiritualidade crista ‘tem a ver, fundamentalmente, com a experiéncia do Espirito de Jesus Cristo: viver segundo o seu Espirito, 0 que significa viver como ele viveu e do que ele viveu. Trata-se, portanto, de 3 ROMERO, Mons. Oscar. Su pencomionto II. Sa Salvador: UCA, 2000, 194. “Dest ques densificar deel mats com o pobre que os mértos de cada um © deumacivilzagio serdo medidos plo tat ue teahamos para com onecessiado fo pobee” bide. CESOBRINO, Jon. Fora dos pobres mio hi salva: pequenosensoeutpico- “roltcos. Se Pauls Paulina, 2010. ‘um modo concreto de viver e dinamizar a prépria vida, confor- ‘mando-a ou configurando-a a Jesus de Nazaré. E nesse sentido que se pode e se deve falar da espiritualidade ctistd como seguimento de Jesus Cristo: seguir seus passos, prosseguir sua missdo, atualizar seu modo de vida. “Seguir a Jesus é pro-seguir sua obra, per-seguir sua causa ¢ con-seguir sua plenitude”. Isto € 0 que significa viver segundo seu Espi- tito. E é nisso, precisamente, que consiste a vida crista. Jon So- brrino chega, inclusive, a tomar o “seguimento de Jesus” como a “formula breve do cristianismo”,”! como “sinénimo de tot lidade da vida crista”.” Se o Espirito de Jesus se manifesta no modo concreto como ele viveu, 56 na medida em que o seguimos, isto é, em que vi- vemos como ele viveu, em que reproduzimos/atualizamos seu ‘modo de vida (seguimento) podemos afirmar que vivemos $e- gundo seu Espirito (espiritualidade), B nfo hé, aqui, nenhum reducionismo ativista e/ou imanentista. Afinal, “se 0 caminho de Deus a0s homens é Jesus de Nazaré, 0 caminho do homem a Deus é0 seguimento desse mesmo Jesus de Nazaré”."" Demodo que a espiritualidade crista nada mais é que o seguimento de Jesus Cristo. BOR, Leonard, Jesus Crit ibertador, etcpols: Vores 1991, 35. ® SOBRINO, Jon. Seguimento de Jesus in FLORISTAN-SAMANES, Castano; TAMAYO:ACOSTA, Jan-Jost. Diiondio de Concetos Fundamentas do Cie tianismo, Sto Pas: Pash, 1998, 71.775, agai 771. Sobre 0 Jesas em Jon Sobvio, of BOMBONATTO, Vera Ivanie. Segimento de Jour ‘ums shordapem segundo cristologia de Jon Sobrin. Sto Pauls Paulina, 2002; ‘dem. O segaimeno de Jesus: categoria crtlopcs, in SOARES, Afoneo Mat Ligorio (org) Dilogando com Jon Sobrin. Sto Paul Paslnas, 2009, 21 SSOBRINO, Jon. Espsitualidadee teologiay in Expirtuldade da liberia: es ‘roturaecontoidos. So Paulos Loyola, 1992, 59:96, agul 67 ELLACURIA, ldo. Eabouo pats una cits pastoral in EseritorTeoégicos I 623.661, equ 62, Vier ge opi Je Cre

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