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A Imaginagao e a Arte na Infancia Lev Vygotsky RELOGIO D'AGUA Reldgio D' Agua Editores Rua Sylvio Rebelo, n° 15, 1000-282 Lisboa tel: 218 474 450 fax: 218 470 775 wwwzrelogiodagua pt relogiodagua@relogiodagua pt Titulo: A Imaginagao e a Arte na Inffincia Titulo original: Voobrajenie i vorchestvo. Psikhologicheskii ocherk: Kniga dlia Uchitelia (1930) Autor: Lev Vygotsky Tradugdo (a partir do castelhano): Miguel Serras Pereira Revisiio de texto: Célia Louro Capa: Carlos César sobre um desenho seu realizado aos 5 anos © Reldgio D’ Agua Editores, Janeiro de 2009 Se no encontrar nas livrarias o livro que procura da R. A.,.pode recorrer ao sitio yrww relogiodagua.pt Composigio ¢ paginagao: Reldgio D'Agua Editores. Impressio: Tipografia Peres Depésito Legal n° 28744709 Lev Vygotsky A Imaginacfo e a Arte na Infancia Tradugdo de Miguel Serras Pereira Obras Escolhidas indice T Arte e Imaginagao I Imaginagao e Realidade TI O Mecanismo da Imaginagao Criadora IV A Imaginagao da Criancga e do Jovem Vv «Os Tormentos da Criagado» VI A Criagao Literdria na Idade Escolar Vil A Arte do Teatro na Idade Escolar VIE O Desenho na Idade Infantil Anexos 15 29 37 47 53 87 95 1 Capitulo I Arte e Imaginacaéo Chamamos actividade criadora a toda a realizagéo humana responsavel pela criagdo de qualquer coisa de novo, quer cor- responda aos reflexos deste ou daquele objecto do mundo exte- rior, quer a determinadas construgées do cérebro ou do senti- mento que vivem e se manifestam somente no préprio ser humano. Se nos fixarmos no comportamento do homem, em to- da a sua actividade, apercebemo-nos facilmente que podemos distinguir nele dois tipos de impulso fundamentais. Poderiamos chamar a um deles reprodutor ou reprodutivo: este encontra-se habitualmente ligado 4 nossa meméria; a sua esséncia reside no facto de o homem reproduzir ou repetir normas de conduta jé criadas e elaboradas ou ressuscitar tragos de impressGes antigas. Quando recordo a casa onde passei a minha infancia ou regides longinquas que visitei no passado estou a reproduzir marcas de impressGes vividas na infancia ou durante as viagens. Exacta- mente do mesmo modo, quando desenho a partir de algo de na- tural, escrevo ou realizo algo que tem a ver com uma imagem dada, no fago mais do que reproduzir uma coisa que esta dian- te de mim ou que anteriormente elaborei. Todos estes casos tém em comum o facto de a minha actividade nao criar nada de no- vo, limitando-se fundamentalmente a repetir com maior ou me- nor precisao alguma coisa ja existente. 10 Lev Vygotsky E facil compreender a enorme importincia que ao longo da vida do homem tem a persisténcia da sua experiéncia anterior, a medida em que isso 0 ajuda a conhecer o mundo que o rodeia, criando e promovendo habitos permanentes que se repetem em circunstancias idénticas. O alicerce organico desta actividade reprodutora ou memori- zadora é a plasticidade da nossa subst4ncia nervosa, se enten- dermos por plasticidade a propriedade por parte de uma substancia de se adaptar e conservar as marcas das suas trans- formagGes. Deste ponto de vista diremos que a cera é mais plas- tica do que a 4gua ou do que o ferro porque se adapta as trans- formagées melhor do que o ferro e conserva melhor do que a digua as suas marcas. S6 as duas propriedades conjugadas criam a plasticidade da nossa substancia nervosa. O nosso cérebro e os nossos nervos, dotados de uma enorme plasticidade, modificam com facilidade a sua estrutura extremamente fina sob a influén- cia de diversas pressGes , mantendo a marca dessas modificagdes contanto que as pressGes sejam suficientemente fortes ou se re- pitam com bastante frequéncia. Passa-se com o cérebro qual- quer coisa de parecido com 0 que se passa com uma folha de pa- pel quando a dobramos ao meio: no lugar da dobra fica um sulco como resultado da transformagao operada — sulco que fa- vorece a reiteragdo posterior dessa mesma transformagao: bas- tard soprar o papel para que ele volte a dobrar-se pelo mesmo sulco. O mesmo se passa com a marca que uma roda deixa na terra mole: forma-se um rasto que fixa as transformagdes efectuadas pela roda ao passar e que facilitaré no futuro passar por ali no- vamente. De igual modo as excitagdes fortes ou frequentemen- te repetidas abrem no nosso cérebro trilhos semelhantes. Verifica-se portanto que o nosso cérebro constitui o érgio que conserva experiéncias vividas e facilita a sua reiteracio. Mas se a sua actividade se limitasse apenas a conservar experiéncias anteriores, o homem seria um ser capaz de se adaptar as condi- gdes estabelecidas no meio que o rodeia. Qualquer nova trans- formagio, inesperada, nesse meio ambiente que nao se tivesse A Imaginacio e a Arte na Infancia i produzido anteriormente na experiéncia vivida seria incapaz de suscitar no homem a reacgo adaptativa adequada. A par desta fungao de manutengao de experiéncias passadas, 0 cérebro pos- sui outra fungio nao menos fundamental. Além da actividade reprodutora é facil detectar no homem outra actividade, que combina e cria. Quando imaginamos qua- dros do futuro —- por exemplo, a vida humana nas condigées do socialismo — ou quando pensamos em episédios antiquissimos da vida e da luta do homem pré-hist6rico nao nos limitamos a reproduzir impressGes vividas por nds. Nao nos limitamos a rea- vivar marcas de excitagGes pretéritas que chegaram ao nosso cé- rebro, pois nunca vimos fosse o que fosse nem desse passado nem desse futuro, e contudo podemos imagind-los, podemos formar uma sua ideia, uma sua imagem. Toda a actividade humana que no se limite a reproduzir fac- tos ou impressGes vividas, mas que cria novas imagens, novas acgGes, pertence a esta segunda fungdo criadora ou combinaté- ria, O cérebro nao se limita a ser um 6rgio capaz de conservar ou reproduzir as nossas experiéncias passadas, € também um 6r- gao combinatério, criador, capaz de reelaborar e criar novas nor- mas e concepgées a partir de experiéncias passadas. Se a activi- dade do homem se reduzisse a repetir 0 passado, o homem seria um ser virado exclusivamente para 0 ontem e incapaz de se adap- tar a um amanhi diferente. E precisamente a actividade criadora do homem que faz dele um ser projectado para o futuro, um ser que contribui para criar e que modifica 0 seu presente. A psicologia chama imaginagio ou fantasia a esta actividade criadora do cérebro humano baseada na combinagao, dando a estas palavras, imaginagao e fantasia, um sentido cientifico di- ferente. Na sua acepgao corrente, costuma entender-se por ima- ginagao ou fantasia o irreal, 0 que nao se ajusta a realidade e, portanto, é desprovido de valor pratico. Mas, em ultima anilise, a imaginag&o, como base de toda a actividade criadora, manifesta-se igualmente em todos os aspectos da vida cultural, possibilitando a criacio artistica, cientifica e técnica. Neste sen- tido, absolutamente tudo o que nos rodeia e foi criado pela mao 12 Lev Vygotsky do homem, todo o mundo da cultura, na medida em que se dis- tingue do mundo da natureza, tudo isso é produto da imagina- ¢4o e da criagdo humana, baseando-se na imaginacio. «Qualquer descoberta — diz Ribot — grande ou pequena, an- tes de se realizar na prdtica e de se consolidar, formou-se na imaginagaéo como uma estrutura construida na mente através de novas combinagGes ou correlagées... ... Ignoramos quem fez a grande maioria das descobertas; nao conservamos mais do que uns poucos nomes de grandes inven- tores. A imaginagao, evidentemente, comparece em todos os ca- sos, qualquer que seja o modo como se apresenta: em personali- dades isoladas ou na colectividade. Para que 0 arado, que nao era de inicio mais do que um simples pedago de madeira com a ponta endurecida pelo fogo, passasse de um instrumento manual tao elementar ao que € hoje através de uma série de transforma- ¢Ges descritas em obras especializadas, quem poderd dizer quan- ta imaginagao foi necessdria? De modo andlogo, a fraca chama do fragmento de madeira resinoso, do tosco archote primitivo, conduz-nos através de uma longa série de inventos até a ilumi- nagao a gas ¢ a clectricidade. Todos os objectos da vida de todos os dias, sem que fiquem de fora nem os mais simples ¢ habituais, acabam por ser qualquer coisa como fantasia cristalizada.» Daqui depreende-se facilmente que a nossa habitual repre- sentagio da criagdo nao coincide por completo com o sentido cientifico da palavra. Para o comum das pessoas a criagdo é pri- vativa de uns quantos seres de eleigdo, génios, talentos, autores de grandes obras de arte, de descobertas cientificas de culto ou de importantes aperfeigoamentos tecnolégicos. Concordamos em reconhecer, e concedemos com facilidade, a criagfio na obra de um Tolstéi, de um Edison ou de um Darwin, mas tendemos a admitir que esse tipo de criag4o nao existe na vida do homem do povo. Mas, como ja indicémos, uma concepciio semelhante é abso- lutamente injusta. Um grande sabio russo dizia que do mesmo modo que a electricidade se manifesta e age nao s6 na magnifi- céncia da tempestade ou no brilho ofuscante do relampago, mas. A Imaginagio ¢ a Arte na Infancia B também na pequena Jampada de uma lanterna de bolso, assim também existe criag&o nao s6 quando esta é origem de aconte- cimentos histéricos, mas também sempre que o ser humano imagina, combina, modifica e cria qualquer coisa de novo, por insignificante que a novidade possa parecer se comparada com as realizacgdes dos grandes génios. Se acrescentarmos a isto a existéncia da criacfo colectiva que agrupa todos esses contribu- tos insignificantes por si sds da criag&o individual, compreen- deremos melhor como é imensa a parte que tudo o que é criado pelo género humano cabe precisamente & criagdo andnima co- lectiva de inventores anénimos. Desconhece-se o nome dos autores da grande maioria das descobertas, como justamente fazia notar Ribot, e a compreen- sao cientifica deste problema faz-nos ver na fung4o criadora mais uma regra do que uma excep¢do. E certo que os niveis mais elevados da criagiio, hoje em dia, so apenas acessiveis a um punhado de grandes génios da humanidade, mas na vida que nos rodeia quotidianamente existem todas as premissas neces- sarias & criagdo e tudo o que ultrapassa o quadro da rotina ¢ en- cerra uma particula, por minima que seja, de novidade tem a sua origem no processo criador do ser humano. Se considerarmos a criago nestes termos, veremos sem difi- culdade que os processos criadores sio observaveis j4 em todo o seu vigor desde a mais recuada infancia. Entre as quest6es mais importantes da psicologia infantil e da pedagogia conta-se a da capacidade criadora das criangas, a da promogao desta ca- pacidade e a da sua importancia no desenvolvimento geral e ma- turacdo da crianca. Desde os primeiros anos da infancia, encon- tramos processos criadores que se reflectem, sobretudo, nos seus jogos. O rapazinho que cavalga um pau e imagina que monta a cavalo, a rapariguinha que brinca com a boneca ¢ se imagina mie dela, as criangas que brincam aos ladrées, aos sol- dados, aos marinheiros, mostram nos seus jogos exemplos da mais auténtica e verdadeira criagdo. E verdade que, nos seus jo- gos, reproduzem muito do que véem, mas é bem conhecido o imenso papel que cabe a imitagdo nos jogos infantis. Estes so 4 Lev Vygotsky com frequéncia um mero reflexo do que véem e ouvem dos mais velhos, mas estes elementos da experiéncia alheia nunca sdo transportados pelas criangas para os seus jogos como eram na realidade. As criangas, nos seus jogos, nao se limitam a re- cordar experiéncias vividas, mas reelaboram-nas de modo cri: dor, combinando-as entre si ¢ construindo com elas novas reali- dades de acordo com os seus afectos e necessidades. A avidez que sentem de fantasiar as coisas é um reflexo da sua activida- de imaginativa, como acontece também nos seus jogos. Ribot descreve um rapazinho de trés anos e meio que, ao ver um coxo na rua, disse 4 me: «Olha, mae, a pea daquele po- bre homem!». Mas, acto continuo, comecou a romancear 0 que via: «Ele ia a cavalo num cavalo muito alto, caiu em cima de um penhasco € partiu um pé: temos de encontrar uns pés para 0 curarmos». Vé-se muito claramente neste caso a actividade combinatéria da imaginagao. A situagdo que a crianca nos descreve € com- posta por uma efabulacio cujos elementos, na sua totalidade, ela conhecta devido a sua experiéncia anterior: de outro modo, néo poderia té-los inventado; mas a combinagao desses elementos constitui qualquer coisa de novo, de criador, que pertence a crianga, sem que seja mera repeticao de coisas vistas ou ouvi- das. Esta faculdade de compor um edificio com aqueles cle- mentos, de combinar 0 antigo com 0 novo, langa as bases da criagdo. Com toda a raziio, muitos autores afirmam que j4 nos jogos de alguns animais podemos observar as rafzes desta combina- go criadora. O jogo do animal € também, com frequéncia, pro- duto da imaginaco dindmica, mas tais embrides de imaginacao criadora nos animais nao podem dar lugar, dadas as suas condi- goes de existéncia, a um desenvolvimento firme e estdvel, e s6 © homem péde elevar essa forma de actividade ao nivel que ne- le hoje se reconhece. Capitulo IT Imaginagio e Realidade Podemos, no entanto, perguntar: como se produz esta activi- dade combinatéria criadora? De onde surge, o que é que a con- diciona e a que leis se submete no seu desenvolvimento? A andlise psicoldgica desta actividade pde em relevo a sua gran- de complexidade. Nao surge de stbito, mas lenta e gradual- mente, ascendendo de formas elementares € simples a outras mais complicadas, adquirindo em grande etapa do seu cresci- mento uma expressao peculiar, uma vez que a cada periodo infantil corresponde a sua prépria forma de criagéo. Posterior- mente, niéo ocupa um compartimento isolado do compor- tamento humano, mas mantém-se imediatamente ligada a ou- tras formas da nossa actividade e, em particular, a nossa experiéncia acumulada. / ; Para compreendermos melhor o mecanismo psicolégico da imaginagio e da actividade criadora com ela relacionada, con- vém que comecemos por analisar o tipo de ligagdo que existe entre a fantasia e a realidade no comportamento humano. J4 chamémos a atencdo para o facto de ser erroneo o juizo corren- te que traga uma fronteira impenetravel entre fantasia e realida- de. Tentaremos agora mostrar as quatro formas fundamentais que ligam a actividade imaginativa a realidade, uma vez que a sua compreensao nos permitird ver na imaginagao, nao um di- 16 Lev Vygotsky vertimento caprichoso do cérebro, uma coisa como que suspen- sa no ar, mas uma fungdo vitalmente necesséria. A primeira forma de ligagdo entre a fantasia ¢ a realidade con- siste no facto de toda a elucubragao se compor sempre de ele- mentos tomados da realidade e extraidos da experiéncia anterior do homem. Seria um milagre que a imaginacdo pudesse criar al- guma coisa a partir do nada, ou dispusesse de outra fonte de co- nhecimento que nao a experiéncia passada. S6 ideias religiosas ou mitolégicas acerca da natureza humana poderiam supor para os frutos da fantasia uma origem sobrenatural, diferente da ex- periéncia anterior. Segundo essas concepgoes, os deuses ou os espiritos inspiram sonhos aos homens, concedem aos poetas contetidos para as suas obras, ditam aos legisladores os dez mandamentos. A and- lise cientifica das elucubragSes mais fantdsticas e afastadas da tealidade, como por exemplo os mitos, os contos, as lendas, os sonhos, etc., convencem-nos de que as maiores fantasias no sdo mais do que novas combinagdes dos mesmos elementos to- mados, bem vistas as coisas, da realidade, mas simplesmente submetidos a modificagdes ou reelaboragées pela nossa imagi- nagao. Nao existem cabanas construidas sobre patas de galinha a nao Ser nos contos, mas os elementos integrantes desta imagem len- daria séo tomados da experiéncia humana e a fantasia intervém apenas na sua combinagdo, 0 que faz com que a sua construgao nao corresponda 4 realidade. Vejamos, por exemplo, esta ima- gem escrita que Ptichkin nos dé do mundo irreal: «Na clareira do bosque verdeja o carvalho com uma cadeia doirada a cintura que 0 gato sdbio ronda de noite e de dia: vai para a dircita, e can- ta uma cantiga, vai para a esquerda e conta um conto. E um lu- gar prodigioso: eis que os elfos brincam enquanto as sereias descansam nos seus ramos; eis que em trilhos escondidos ha rastos de feras desconhecidas; eis que se ergue, sem portas € sem janelas, a cabana sobre patas de galinha». Podemos seguir toda esta descrigo palavra a palavra e com- Pprovar que nela o fantastico esté somente na combinagao dos A Imaginagao e a Arte na Infancia 7 elementos, mas que estes foram tomados da realidade. O carva- Iho, a cadeia doirada, o gato, a cangao, tudo isso existe na reali- dade, e s6 a imagem do gato sdbio que ronda a cadeia doirada e conta contos, somente a combinacio destes elementos, é fanta- sia. No que diz respeito as imagens irreais que aparecem a se- guir: os elfos, as sereias, a cabana sobre patas de galinha, elas representam simplesmente uma combinagao complexa de certos elementos proporcionados pela realidade. Por exemplo, na ima- gem da sereia misturam-se a imagem da mulher com o passaro que poisa nos ramos das drvores; na cabana magica conjugam- -se a imagem das patas de galinha com a de uma choga, etc., etc. Deste modo, a fantasia constréi sempre com materiais toma- dos do mundo real. Sem drivida, como podemos ver pelo frag- mento citado, a imaginagio pode criar novos graus de combina- ges, misturando primeiro elementos reais (0 gato, a cadeia, 0 carvalho), combinando depois imagens de fantasia (a sereia, os elfos) e assim por diante. Mas os elementos tiltimos que inte- gram as imagens mais afastadas da realidade, até mesmo esses elementos Ultimos, constituem sempre impressGes da realidade. Deparamos aqui com a primeira e principal lei a que a fungao imaginativa se subordina. Poderiamos formuld-la nos seguintes termos: a actividade criadora da imaginagdo encontra-se em re- lago directa com a riqueza e a variedade da experiéncia acu- mulada pelo homem, uma vez que esta experiéncia é 0 material com que a fantasia erige os seus edificios. Quanto mais rica for a experiéncia humana, tanto mais abundante seré o material de que a imaginagao dispée. E por isso — pelo facto de a sua ex- periéncia ser menor — que a imaginacao da crianga é mais po- bre do que a do adulto. Quando examinamos a historia das grandes descobertas, dos principais inventos, podemos comprovar que quase sempre umas e outros surgiram na base de enormes experiéncias pre- viamente acumuladas. Toda a fantasia parte precisamente desta experiéncia acumulada: quanto mais rica esta for, mantendo-se iguais as restantes circunstancias, mais abundante deverd ser a fantasia. 18 Lev Vygotsky A seguir a0 momento da acumulacao da experiéncia comega — segundo Ribot — o periodo de maturag4o ou decantagao (in- cubacao). «Em Newton este perfodo durou dezassete anos ¢, no momento de estabelecer definitivamente os seus cdlculos, sentia-se invadido por uma emogao tao forte que teve de deixar a outrem a tarefa de os concluir. O matematico Hamilton contou-nos que o seu método dos “quaterniGes” s6 numa oca- sido em que atravessava a ponte de Dublin surgiu completo no seu espirito: “Nesse instante colhi o fruto de quinze anos de es- forgos”. Darwin recolheu dados ao longo das suas viagens, ob- servou demoradamente animais e plantas e, mais tarde, a leitu- ra de um livro de Malthus que lhe chegara por acaso as maos, iluminou-o levando-o a ajustar definitivamente a sua doutrina. Podemos encontrar exemplos andlogos também nas criagées li- terdrias ¢ artisticas.» Daqui a conclusao pedagdgica da necessidade de alargarmos a experiéncia da crianga se quisermos proporcionar a sua activi- dade criadora uma base suficientemente sélida. Quanto mais ve- ja, escute e experimente, quanto mais aprenda ¢ assimile, quan- to mais abundantes forem os elementos reais de que disponha Na sua experiéncia, tanto mais importante e produtiva serd, mantendo-se idénticas as restantes circunstancias, a actividade da sua imaginagao. Desta primeira forma de unio de fantasia e de realidade deduz-se facilmente como é falso op6-las. A fungao combinaté- ria do nosso cérebro aparece como nao constituindo qualquer coisa de absolutamente novo em relag&o 4 sua funcao de con- servagao, sendo antes muito simplesmente a sua complexidade posterior. A fantasia néo se opde 4 memoria, mas apoia-se nela e dispde os seus dados em combinagdes sempre novas. A acti- vidade combinatéria do cérebro baseia-se, bem vistas as coisas, no facto de o cérebro conservar marcas das excitagGes anterio- res, e toda a novidade desta fungao se reduz ao simples facto de que, dispondo das marcas dessas excitagdes, 0 cérebro as com- bina em posigées diferentes daquelas em que se encontravam na realidade. A Imaginagao e a Arte na Infancia 19 A segunda das formas de ligacao entre fantasia e realidade é diferente e mais complicada: nado se efectua entre elementos de construcdo fantdstica e a realidade, mas entre produtos prepara- dos da fantasia e determinados fenémenos complexos da reali- dade. Quando, baseando-me nos estudos e relatos dos historia- dores e dos viajantes, imagino de mim para mim o quadro da Grande Revolugaéo Francesa ou do Deserto do Sahara, tanto num caso como noutro, o panorama que obtenho é fruto da fun- ¢4o criadora da imaginagao. Esta nao se limita a reproduzir 0 que assimilei de experiéncias passadas, mas cria, a partir delas, novas combinacées. Nesta medida subordina-se inteiramente a primeira das leis antes mencionadas. E estes frutos da imaginagao sao integrados por elementos da realidade claborados ¢ modificados, sendo ne- cessdrio dispormos de enormes reservas de experiéncia acumu- lada para podermos construir as imagens em causa através de tais elementos. Se eu nao possuisse imagens da seca, de areais, de espacos imensos, de animais que habitam os desertos, de ma- neira nenhuma poderia criar a imagem dos desertos. Se nao ti- vesse miltiplas imagens histéricas, também nao poderia imagi- nar um quadro da Revolucao Francesa. Manifesta-se aqui com a maior clareza a dependéncia da ima- ginagao criadora relativamente As experiéncias anteriores. Mas, ao mesmo tempo, hd nestas criacgdes da fantasia qualquer coisa de novo que as diferencia muito substancialmente do fragmen- to de Ptichkin que analisdmos atras. Tanto no caso da clareira do bosque com 0 gato sdbio, como no caso do deserto africana, on- de nunca estive, a esséncia da construgao idéntica da imagem reside na combinagao pela fantasia de elementos da realidade. Mas o fruto da imaginacao, a propria combinagao destes ele- mentos, num dos casos é irreal (conto), enquanto no outro caso a propria ligac¢déo dos elementos, o préprio produto da fantasia, e jd nio s6 os seus elementos, corresponde a um fenémeno real. E precisamente esta ligagao do produto final da imaginagao com uns ou outros fenédmenos reais o que constitui esta segunda for- ma, mais elevada, de conjungao entre a fantasia e a realidade. 20 Lev Vygotsky Esta forma de conjungao sé é possivel gragas a experiéncia alheia ou social. Se ninguém tivesse visto nem descrito o deser- to africano e a Revolugao Francesa, seria absolutamente impos- sivel a alguém formar uma ideia clara de um e de outra. E sé porque em ambos os casos a minha imaginagao trabalha, nao li- vremente, mas guiada por experiéncias alheias, como que diri- gida por outros, é s6 gragas a essa circunstaéncia que posso con- seguir o resultado obtido no caso presente, no qual o produto da fantasia concorda com a realidade. Neste sentido a imaginacao adquire uma fungio da maxima importancia no comportamento ¢ no desenvolvimento humanos, transformando-se em meio de ampliar a experiéncia do homem que, ao ser capaz de imaginar 0 que nao viu, ao poder conceber baseando-se em relatos e descrigdes alheias o que nao experi- mentou pessoal ¢ directamente, nao se encontra encerrado no circulo estreito da sua prépria experiéncia, mas pode ultrapassar largamente os seus limites assimilando, com a ajuda da imagi- nagado, experiéncias histéricas ou sociais alheias. Sob esta for- ma, a imaginagao constitui uma condigao absolutamente neces- sdria de quase toda a fungdo cerebral do ser humano. Quando lemos os jornais e tomamos conhecimento de milhares de acon- tecimentos que nao pudemos presenciar pessoalmente, quando em criangas estudamos a geografia ou a hist6ria, quando sabe- mos por carta do que sucede a outra pessoa, em todos estes ca- sos, a nossa fantasia ajuda a nossa experiéncia. Daqui resulta uma dependéncia dupla e reciproca entre a rea- lidade e a experiéncia. Se no primeiro caso a imaginacao se apoia sobre a experiéncia, no segundo caso é a experiéncia que se apoia na fantasia. A terceira das formas de ligacdo entre a fungdo imaginativa e a realidade é a conjung4o emocional, que se manifesta de duas maneiras: por um lado, todo 0 sentimento, toda a emogao tende a manifestar-se em determinadas imagens que concordam com cla, como se a emogdo pudesse escolher impress6es, ideias, imagens congruentes com o estado de espirito que nos domi- nasse nesse instante. E bem sabido que quando estamos alegres A Imaginagao e a Arte na Infancia 2 vemos as coisas com olhos que sdo muito diferentes daqueles com que as vemos quando estamos tristes. Os psicdlogos deram-se conta, desde longa data, de que todo 0 sentimento pos- sui para além da manifestagao exterior, corporal, uma expressao interior que se manifesta na selecg4o de pensamentos, imagens e impress6es. Os psicdlogos deram a este fenémeno o nome de lei da dupla expressao dos sentimentos. Assim, por exemplo, 0 medo nao se manifesta apenas na palidez, no tremor, na secura da garganta, na respirag¢do entrecortada e nas pulsag6es do co- ragao, mas também, além disso, no facto de todas as impress6es ent&o recebidas pelo homem, de todos os pensamentos que lhe passam pela cabeca, se tingirem de um modo geral do senti- mento que o domina. O provérbio que diz que 0 corvo assusta- do tem medo dos ramos tem justamente em conta este influxo do nosso sentimento que matiza a percepcao dos objectos exte- fiores. Do mesmo modo que os homens aprenderam ha muito tempo a manifestar por meio de expressGes exteriores 0 seu es- tado de espirito interior, assim também as imagens da fantasia servem de expressio interior dos nossos sentimentos. O homem simboliza a dor e 0 luto com a cor negra, a alegria com 0 bran- co, a serenidade com 0 azul, a insurreigao com o vermelho. As imagens da fantasia conferem também uma linguagem interior 40s nossos sentimentos seleccionando determinados elementos da realidade e combinando-os de maneira a que essa combina- gdo corresponda ao nosso estado de espirito interior e no a 16- gica exterior dessas mesmas imagens. Esta influéncia do factor emocional nas combinagGes da fan- tasia, é conhecida pelos psicdlogos pelo nome de lei do sinal emocional comum, significando esta que todas as coisas que nos causam um efeito emocional coincidente tendem a unir-se entre si, apesar de poder nao se ver entre elas semelhanga algu- ma — exterior ou interior. O resultado é uma combinaco de imagens com base em sentimentos comuns ou um mesmo sinal emocional aglutinador dos elementos heterogéneos conjugados. Ribot afirma que «as representagdes acompanhadas de uma mesma reacgao afectiva se associam posteriormente entre si, 22 Lev Vygotsky uma vez que a semelhanga afectiva une e cimenta entre si re- presentacées divergentes. Tal distingue-se das associagdes por semelhanga, que consistem em reiterar a experiéncia, e das as- sociagées por coincidéncia no sentido intelectual. As imagens combinam-se reciprocamente nao porque tenham sido dadas an- teriormente em conjunto, nao porque nos demos nelas conta de relagdes de semelhanga, mas porque possuem uma tonalidade afectiva comum. Alegria, tristeza, amor, 6dio, admiracao, tédio, orgulho, cansago, etc., podem servir de centro de atracgdio agru- pador de representagdes ou acontecimentos desprovidos de li- gages racionais entre si, mas que correspondam a um mesmo sinal emocional, a uma mesma caracteristica: por exemplo, ju- bilatoria, triste, erdtica, etc. Esta forma de associac4o encontra- -se com frequéncia nos sonhos, nos devaneios, ou seja, em es- tados de espirito em que a imaginagdo voa com plena liberdade ¢ trabalha sem regras nem concertacéo. Compreende-se facil- mente que esta influéncia implicita ou explicita do factor emo- cional deve propiciar o aparecimento de agrupamentos total- mente inesperados e oferece um campo quase ilimitado a novas combinagGes, uma vez que € muito grande o némero de ima- gens que possuem um selo emocional idéntico». Como exemplo, muito simples, desta combinagfo de imagens possuidoras de um sinal emocional comum, poderiam citar-se Os casos correntes de aproximacio estabelecida entre duas im- pressées quaisquer que nada absolutamente tém em comum ex- cepto 0 facto de despertarem em nds estados de espirito coinci- dentes. Quando dizemos que a cor azul € fria ¢ a vermelha quente, aproximamos os conceitos de vermelho e azul baseando-nos no simples facto de despertarem em nés estados de espirito coincidentes. E facil compreender que a fantasia, movida pelo factor emocional, do mesmo modo que a l6gica in- terior dos sentimentos, surgiré como 0 aspecto mais intimo, mais subjectivo, da imaginagao. Mas existe além disso uma ligagdo recfproca entre imagina- go e emogao. Se no primeiro dos casos anteriormente descri- tos, os sentimentos influenciam a imaginagio, no outro caso é, A Imaginagao e a Arte na Infancia 23 pelo contrario, a imaginagao que exerce a sua influéncia sobre os sentimentos. Poderia chamar-se a este fendmeno lei da re- presentagio emocional da realidade, e a sua esséncia é formula- da nos seguintes termos por Ribot: «Todas as formas da representagao criadora contém em si ele- mentos afectivos». Isto significa que tudo 0 que a fantasia cons- trua influenciard reciprocamente os nossos sentimentos, e ainda que tal edificio nao concorde, em si mesmo, com a realidade, to- dos os sentimentos que provoca sao reais, efectivamente vividos pelo homem que os experimenta. Imaginemos um simples caso de ilus%o: ao entrar as escuras no seu quarto, a crianga imagina que uma pequena pega de roupa ali pendurada é um estranho ou um bandido que entrou as escondidas em sua casa. A imagem do bandido, fruto da fantasia da crianga, é irreal, mas o medo que sente, 0 seu susto, sio completamente efectivos e reais para a crianga que os experimenta. Qualquer coisa de semelhante su- cede também com qualquer representacao por fantastica que se- ja, e esta lei psicoldgica deveria explicar-nos claramente porque causam em nés uma impressdo tao profunda as obras de arte criadas pela fantasia dos seus autores. Os sofrimentos e a sorte dos personagens imagindrios, as suas dores e alegrias emocionam-nos contagiosamente apesar de sa- bermos bem que nao sdo acontecimentos reais, mas efabulagdes da fantasia. E isso deve-se ao facto de as emogGes que nos con- tagiam através das paginas de um livro ou da cena de um teatro por efeito de imagens artisticas filhas da fantasia, de essas emo- gdes serem completamente reais e de as sofrermos deveras, sé- ria e profundamente. Com frequéncia, uma simples combinagdo de impress6es exteriores como, por exemplo uma obra musical, desperta em quem a escuta todo um universo complexo de sen- timentos e emogées. A base psicolégica da arte musical reside precisamente em alargar e aprofundar os sentimentos, em reelabord-los de modo criador. Falta-nos ainda falar da quarta e ultima forma de relag&o en- tre a fantasia e a realidade. Esta Ultima férmula estd ligada es- treitamente por um lado 4 que acabamos de descrever, mas por 24 Lev Vygotsky outro lado distingue-se substancialmente dela. A sua esséncia consiste em que o edificio erigido pela fantasia pode represen- tar qualquer coisa de completamente novo, de nao existente na experiéncia do homem, e qualquer coisa que nao é também se- melhante a nenhum outro objecto real; mas ao receber uma for- ma nova, ao assumir uma nova encarnag4o material, esta ima- gem «cristalizada», convertida em objecto, comeca a existir realmente no mundo e a exercer a sua influéncia sobre os outros objectos. Estas imagens adquirem realidade. Qualquer dispositivo téc- nico, qualquer maquina ou instrumento pode servir de exemplo desta cristalizagdo ou materializacao das imagens. Fruto da ima- ginagéo combinatéria do homem, estes novos objectos ndo se ajustam a qualquer modelo existente na natureza, mas emanam a mais convincente realidade, e ligagdo pratica com a realidade, uma vez que, materializando-se, adquirem tanta realidade como Os restantes objectos e exercem a sua acg4o no universo real que nos rodeia. Estes produtos da imaginagdo atravessaram uma historia mui- to longa que talvez seja conveniente resumir por meio de um breve esquema: podemos dizer que descreveram um circulo no seu desenvolvimento. Os elementos que entram na sua compo- sig¢do so tomados pelo homem da realidade, e no interior des- te, no seu pensamento, sofreram uma reelaborago completa, tornando-se um produto da sua imaginagio. Por fim, materializando-se, voltaram 4 realidade, mas trazendo ja consi- go uma forga activa, nova, capaz de modificar essa mesma rea- lidade, completando-se assim 0 circulo da actividade criadora da imaginagao humana. Seria err6neo supor-se que s6 na esfera da técnica, no campo da influéncia pratica na natureza, a imaginagio pode descrever este circulo completo. Também na representaga4o emocional, ou seja, na representagio subjectiva, é possivel que este circulo se complete, como nao se torna dificil observar. Acontece que precisamente quando nos encontramos perante um circulo completo tragado pela imaginaga4o, os dois factores, A Imaginagao e a Arte na Infancia 25 intelectual e emocional, se revelam de igual modo necess4rios ao acto criador. Sao o sentimento e 0 pensamento que movem a imaginagao humana. Ribot dizia que «toda a ideia dominante toma apoio sobre alguma necessidade, anseio ou desejo, quer dizer, algum elemento afectivo, pois seria absurdo acreditarmos na permanéncia de qualquer ideia que por hipstese existisse no estado simplesmente intelectual com toda a sua secura e frieza. Todo o sentimento ou emocdo dominante terd de se concentrar numa ideia ou imagem que lhe empreste substancia, sistema falta do qual permaneceria num estado nebuloso... Vemos assim que os dois termos — pensamento dominante e emogéo domi- nante — s&o quase equivalentes entre si, sendo um e outro dois elementos insepardveis, ¢ nao se tornando possivel mais do que indicar conforme os casos 0 simples predominio de um ou ou- tro de entre eles». O exemplo da imaginagao artistica torna mais facil mostrar que assim é. Na realidade, para que hd necessidade da obra de ar- te? Nao agird ela sobre 0 nosso mundo interior, as nossas ideias € 0s nossos sentimentos, do mesmo modo que o instrumento téc- nico age sobre o mundo exterior, o mundo da natureza? Vejamos um exemplo extremamente simples que nos permitiré com- preender com toda a clareza sob a sua forma mais elementar a accao da fantasia artistica. E um exemplo tomado do romance de Ptichkin, A Filha do Capitdo, descrevendo 0 encontro de Puga- chev com 0 heréi do romance, Griniov. Griniov era um oficial que, feito prisioneiro por Pugachev, tenta convencer este a dei- Xar OS seus companheiros e a recorrer ao perdao da imperatriz. Nio é capaz de compreender aquilo que anima Pugachev. Pugachev sorri amargamente: — Ndo — responde ele —, é tarde para me arrepender. Nao haveria perddo para mim. Continuarei como comecei. Quem sa- be? Talvez consiga! Grishka Otrepiev ndo chegou a reinar em Moscove? — Escuta — prosseguiu Pugachev com uma intensidade sel- vagem. — Vou contar-te uma histéria que uma vetha calmuca 26 Lev Vygotsky me contava na minha infancia, Uma vez a dguia perguntou ao corvo: «Diz-me, pdssaro corvo, como é que tu vives trezentos anos e eu sé vivo trinta e trés?». «Isso, meu amiguinho — res- pondeu o corvo —, porque tu bebes sangue vivo e eu sé me ali- mento de caddveres». A dguia ficou pensativa: vou experimen- tar comer também assim. Pois bem. Largaram voo a dguia e o corvo, e avistaram uma pileca morta. Desceram sobre ela, e 0 corvo comegou a debicar e a comer. A dguia deu uma bicada, depois outra, agitou as asas e disse ao corvo: «Nao, irmdo cor- vo, em vez de trezentos anos a comer porcaria mais vale saciar- -nos uma vez de sangue quente e a seguir seja o que Deus dis- ser!» Qual é a moral da histéria da calmuca? O conto de Pugachev é fruto da imaginago, dir-se-ia, de uma imaginagio totalmente desligada da realidade. $6 no es- pirito da velha calmuca a 4guia e 0 corvo podiam conversar. Mas nao é dificil darmo-nos conta de que noutro sentido esta fantastica construgao parte imediatamente da realidade e age directamente sobre ela, e no do exterior, mas a partir de den- tro, no mundo dos pensamentos, das ideias e dos sentimentos do homem. Costuma dizer-se de obras assim que sao fortes, nao pela sua forga exterior, mas pela sua verdade interior. Damo-nos facilmente conta de que nas imagens da 4guia e do corvo Ptichkin mostrava duas diferentes atitudes frente ao mundo e, coisa que nado poderia compreender-se somente a partir do didlogo frio e sucinto dos dois interlocutores, a dife- renga entre 0 ponto de vista do indiferente e 0 juizo do rebelde — diferenga que através do conto encontramos com a maxima clareza e uma enorme forga afectiva inscrita no espirito do nar- rador. O conto ajuda a explicar relagdes praticas complexas; as suas imagens esclarecem um problema vital e o que a fria prosa ndo poderia fazer por si s6, fé-lo 0 conto com a sua linguagem figu- rada e carregada de emogdo. Por isso Ptichkin acertava ao dizer que o verso pode ferir 0 coragdo com uma forga imensa, e vol- {a, numa outra poesia, a falar da realidade do sofrimento afecti- A Imaginagao ¢ a Arte na Infancia 27 vo causado por uma figuragéo: «Sobre a figuragdo derramo as minhas lagrimas». Basta que recordemos a influéncia que as obras de arte exer- cem sobre a consciéncia social para nos darmos conta de que a imaginagao descreve nelas um circulo tao completo:como o que traga ao materializar-se num instrumento de trabalho. Gogol es- creveu O Inspector; os artistas representaram a pega no teatro; autor e actores criaram uma obra de fantasia, mas a obra, ao ser levada a cena, desnudou com tal evidéncia os horrores da Rtis- sia de entao, ridicularizou tao fortemente os pilares sobre os quais assentava essa vida e que pareciam inamoviveis, que to- dos os presentes compreenderam, ¢ o préprio czar que assistiu também 8 estreia, mais do que ninguém, que a comédia com- portava uma ameaga enorme para todo o regime que 0 soberano representava. «Atingiu-nos a todos, hoje, e a mim, mais do que a qualquer outro!», exclamou Nicolau no dia da estreia. As obras de arte podem exercer uma tio forte influéncia so- bre a consciéncia social gragas a sua légica interna. O autor de qualquer obra de arte, 4 semelhanga de Pugachev nao combina em vao, sem sentido, as imagens da fantasia, amontoando-as ar- bitrariamente umas por cima das outras, ao acaso como nos so- nhos, ou nos delirios insensatos. Segue, pelo contrario, a légica interna das imagens que a obra desenvolve, e esta légica inter- na € condicionada pela ligag4o que a obra estabelece entre o seu préprio mundo ¢ o mundo exterior. No conto da 4guia e do cor- vo, as imagens dispdem-se e¢ combinam-se segundo as leis da 1égica da duas forgas que os personagens de Griniov e Pugachev encarnam. Lev Tolstéi, quando descreve, nas suas confissées, como surgiu a imagem de Natasha no seu romance Guerra e Paz, fornece-nos um exemplo extremamente curioso do circulo completo que as obras de arte comportam, «Peguei em Tania», dizia Tolsti, «misturei-a com Sonia, ¢ saiu Natasha». Tania e Sonia, a sua nora e a sua mulher, eram duas mulheres reais, de cuja combinacao surgiu a imagem artistica. Estes ele- 28 Lev Vygotsky mentos tomados da realidade vio-se combinando a seguir, nao segundo o livre capricho do autor, mas segundo a légica interna da imagem artistica. Em certa ocasifio, uma leitora disse a Tols- t6i que ele procedera de modo muito cruel para com Anna Ka- rénina, a protagonista de um dos seus romances, quando fez com que cla se atirasse para de baixo das rodas de um comboio. Tolst6i observou: Isto faz-me lembrar o que se passou com Piichkin, quando disse a um dos seus amigos em certa ocasido: — Nem imaginas a partida que a Tatiana me pregou ao casar- -se. Nunca tinha esperado dela tal coisa. O mesmo posso eu dizer de Anna Karénina. Em geral, os he- ris e as heroinas fazem algumas vezes coisas que eu nao teria querido que fizessem. Fazem o que deviam fazer na vida real e de acordo com 0 que acontece na vida real, néo como eu dese- Jaria que fosse. Poderfamos encontrar confissdes andlogas em toda uma série de artistas, pondo em evidéncia a mesma l6gica interna que go- verna a construgdo da imagem artistica. Wundt forneceu-nos um magnifico exemplo desta légica da fantasia ao dizer que a ideia de casamento pode acarretar a intervencdo da ideia de enterro (uni&o e separagdo do noivo e da noiva), mas de maneira ne- nhuma a ideia de dor de dentes. Deste modo, nas obras de arte podemos encontrar com fre- quéncia unidos tracgos distantes uns dos outros e sem ligacao ex- terior; mas estes nunca serao estranhos um ao outro como as ideias da dor de dentes e do casamento, mas ligar-se-do segun- do a sua ldgica interna. Capitulo TI O Mecanismo da Imaginagao Criadora Como se depreende do que anteriormente se disse, a imagi- nagio constitui um processo de composi¢io extremamente complexo. E € precisamente esta complexidade que se torna di- ficuldade principal no estudo do processo criador e habitual- mente conduz a conclusées falsas sobre a prépria natureza do processo é o seu cardcter, concebido em termos de qualquer coi- sa de desusado e absolutamente exclusive. Nao nos propomos por agora encetar uma descrigao mais ou menos completa do processo, 0 que exigiria uma andlise psicoldégica prolixa que neste momento nao nos interessa, mas, a fim de darmos uma ideia da complexidade da sua fungao observaremos brevemente alguns dos seus aspectos integrantes. Qualquer actividade ima- ginativa tem sempre uma longa histéria atras de si. Aquilo a que chamamos criagdo nao é habitualmente mais do que um parto catastr6fico que ocorre apés uma prolongada gesta¢do. No comeco do processo, como j4 vimos, encontramos sempre a percepcdo exterior e interior que serve de base 4 nossa expe- riéncia. Concluimos assim que os primeiros pontos de apoio que a crianga encontra para o que sera a sua criagdo futura so aqui- lo que vé e ouve, acumulando materiais que mais tarde serao usados nas construgdes da sua fantasia. Intervém depois um processo bastante complexo de elaboragao dos materiais acu- 30 Lev Vygotsky mulados, cujos aspectos fundamentais sao a dissociagfo e a as- sociacio das impressdes percebidas. Cada impressao constitui um todo complexo composto de miiltiplas partes isoladas. A dis- sociacdo consiste em fragmentar este conjunto intrincado sepa- rando as suas partes, sobretudo por comparagdo umas com as outras: assim, algumas sao conservadas na memoria, e outras esquecidas. A dissociagao é, deste modo, uma condig4o neces- sdria do jogo subsequente da fantasia. Antes de reagrupar mais tarde sob outra forma os diversos ele- mentos, o homem tem, antes do mais, de desarticular a ligagao natural desses elementos tal como foram percebidos. Antes de criar a imagem de Natasha em Guerra e Paz, Tolstéi teve de ex- trair tracos isolados de duas mulheres da sua familia, e sem o fa- zer, nao lhe teria sido possivel misturar ou integrar esses mes- mos tragos na imagem de Natasha. A esta extracgao de alguns tracos, ignorando os restantes, podemos justificadamente cha- mar dissociagao. Constitui um processo de extraordindria im- portancia em todo o desenvolvimento mental do homem que ser- ve de base ao pensamento abstracto e A compreensio figurada. Saber extrair tragos isolados de um conjunto complexo tem importancia para todo o trabalho criador que o homem efectua sobre as impressGes. Ao processo de dissociacdo segue-se 0 pro- cesso das transformagdes a que s4o submetidos os elementos dissociados. Este processo de transformacgées ou modificagdes baseia-se na dinamica das nossas excitagdes nervosas internas e das imagens que Ihes correspondem. Mas as marcas das im- pressdes exteriores no se amontoam iméveis no nosso cérebro como os objectos no fundo de uma cesta, mas constituem pro- cessos que se movem, mudam, vivem, morrem e é neste movi- mento que reside a garantia das suas transformagées sob a in- fluéncia dos factores internos, que os deformam e os reelaboram. Pode servir de exemplo destas transformagées in- temas 0 processo de subestimagao ¢ de sobrestimagdo de ele- mentos isolados das impressGes que assumem uma enorme im- portancia na imaginacao em geral e na imaginacio infantil em particular. A Imaginagio e a Arte na Infancia 31 As dimens6es da impressao real mudam de forma aumentan- do ou diminuindo as suas medidas naturais. A intensa propensdo das criangas que as leva a exagerar, do mesmo modo que essa mesma. intensa propensao nos adultos, tem uma raiz interna muito profunda, deve-se em grande parte a influéncia que o nos- so sentimento interior exerce sobre as impressGes exteriores. Exageramos porque quereriamos ver as coisas aumentadas quando isso corresponde 4 nossa necessidade, ao nosso estado de espfrito interior. A intensa propensao infantil tendente a exa- gerar reflecte-se com clareza nas imagens dos contos. Groos ci- ta a este respeito um conto da sua filha quando esta tinha cinco anos e meio de idade: Era uma vez um rei — comegava a crianga — que tinha uma filha pequenina, deitada no ber¢o, e ao chegar junto dela soube que era sua filha. Depois casaram-se. Quando estavam sentados a mesa, o rei disse-lhe: Traz-me, por favor, um jarro de cerveja. Ela entdo trouxe-the um jarro de cerveja com trés varas de altu- ra. Depois todos adormeceram, menos 0 rei que ficou a velar por eles, e se ainda nao morreram, é porque devem estar ainda vivos. Este exagero — diz Groos — é devido ao interesse por tudo 0 que sobressai e é extraordindrio, ao qual se junta um sentimen- to de orgulho associado a ideia de se possuir qualquer coisa de especial: Tenho trinta moedas, ndo, cinquenta; ndo, cem; ndo, mil! Ou: Vi agora mesmo uma borboleta do tamanho de um ga- 10; ndo, do tamanho de uma casa! Bihler assinala com razdo que neste processo de modifica- gdes e, sobretudo, no exagero, as criangas fazem experiéncias de operagdes com grandezas desconhecidas na sua experiéncia directa. Nos exemplos de imaginagao numérica citados por Ri- bot podemos ver facilmente a extrema importancia assumida por estes processos de transformagao e, em particular, de exa- gero. Diz Ribot: 32 Lev Vygotsky A imaginagdo numérica em nenhum outro lugar floresceu tdo intensamente como entre os povos do Oriente. Estes jogam auda- ciosamente com os numeros e esbanjam-nos prodigamente. Assim na cosmogonia caldaica diz-se que Deus, o peixe Oannes, dedicou 259 200 anos a educar a humanidade; depois, durante 432 000 anos reinaram na terra diversas personalidades mitolégicas, e ao fim de 691 000 anos, o diltivio submergiu a face da terra... Mas os hindus foram muito mais longe inventando unidades gigantescas que servem de base e material a jogos com cifras fantdsticas. Os Djainasis dividem o tempo em dois periodos: ascendente e des- cendente, tendo cada um deles uma duragao prodigiosa: 2000 000 000 000 000 oceanos de anos, sendo cada oceano de anos igual a 1000 000 000 060 000 anos... O budista devoto deve sentir verti- gens ao pensar em grandezas de tempo semelhantes. Este tipo de jogo com exageros numéricos revela-se altamen- te importante para o homem, como comprovamos na astrono- mia e varias ciéncias naturais que tém de operar com niéimeros nao mais pequenos, mas notavelmente superiores. Nas ciéncias — diz Ribot — a representagao dos mimeros ndo se reveste de uma forma de delirio semelhante. Acusam a ciéncia de esmagar a imaginagdo ao progredir, enquanto, na realidade, a imaginagdo que abre campos cada vez mais vas- tos @ criagdo cientifica. A Astronomia flutua na imensidéo do tempo e do espago. Vé nascer mundos, os primeiros clarées in- termitentes das nebulosas que se tornardo depois sdis esplen- dorosos. E estes sdis, arrefecendo, cobrir-se-Go de manchas, perderdo brilho e apagar-se-Go, Os gedlogos seguem o desen- volvimento do planeta que habitamos através de toda uma série de transformacées e de cataclismos; prevé um futuro longinquo em que a esfera terrestre, perdido o vapor de dgua que protege @ sua atmosfera da excessiva irradiagdo de calor, perecerd de rio. As hipéteses hoje em voga na fisica e na quimica sobre os dtomos e as particulas dos corpos ndo cedem na sua auddcia as mais arrojadas elucubragées da imaginagao hindu. A Imaginagao e a Arte na Infancia 33 Vemos deste modo que o exagero, tal como a imaginacio em geral , sao tao necessdrias na arte como na ciéncia e que sem es- ta capacidade, que se exibia em termos tio cémicos no conto da menina de cinco anos e meio, a humanidade nao poderia ter criado a astronomia, nem a geologia, nem a fisica. O momento seguinte nos processos imaginativos € a associa- ¢4o, ou seja, o agrupamento de elementos dissociados e modifi- cados. Como antes dissemos, esta associagao pode ter lugar so- bre diferentes bases e adoptar diferentes formas que vao do agrupamento puramente subjectivo de imagens até a conjungio cientifica objectiva, como a que caracteriza, por exemplo, a re- presentacao geogrdfica. E, finalmente, 0 momento seguinte e definitivo do trabalho preliminar da imaginagao é a combinacaio de imagens isoladas que sao ajustadas a um sistema, integradas num quadro complexo. Mas a actividade da imaginagao criado- ta ndo termina aqui, mas, como anteriormente indicamos, 0 cir- culo da sua fungao sé estard completo quando a imaginacao en- carnar ou cristalizar em imagens exteriores. Deste processo de cristalizagao ou passagem do imaginado ao teal falaremos mais tarde. Agora, atendendo apenas ao aspecto interno da imaginagio, teremos de aludir aos principais factores psicolégicos dos quais dependem todos estes processos isola- dos. A andlise psicolégica estabelece sempre que o primeiro de entre estes factores é a necessidade que o homem experimenta de se adaptar ao meio ambiente que o rodeia. Se a vida que 0 ro- deia no lhe apresentasse tarefas, se as suas reacgdes naturais e herdadas 0 mantivessem por inteiro em equilfbrio com o mun- do em que vive, entaéo nao haveria qualquer base para o apare- cimento da acgéo criadora. Um ser que se encontrasse plena- mente adaptado ao mundo que o rodeia, nada poderia desejar, nao experimentaria anseios de outra coisa e, decerto, nada po- deria criar. Por isso na base da ac¢ao criadora esta sempre a ina- daptagao, fonte de necessidades, anseios e desejos. Diz Ribot: Toda a necessidade, todo o anseio, todo o desejo por si 86 ou juntamente com outros pode servir assim de impulso @ criacdo, 34 Lev Vygotsky Aandlise psicolégica deverd em cada caso distinguir «a criagdo espontanea» presente nestes elementos primdrios... Toda a in- ven¢do tem assim uma origem motora; a esséncia fundamental da invengdo criadora revela-se sempre e em todos os casos de ordem motora. A necessidade e o desejo nada podem criar por si sés, sdo simples estimulos, simples molas. Para inventar € necessaria além disso outra condigao: o surgimento esponténeo de ima- gens. Entendendo-se aqui por surgimento espontaneo 0 que apa- rece repentinamente, sem motivos aparentes que o impulsio- nem. Estes motivos existem em termos praticos, mas a sua acgao confunde-se com uma forma oculta do pensamento por analogia através do estado mental afectivo, fungdo inconsciente do cérebro. A existéncia de necessidades ou desejos pde, assim, em mo- vimento 0 processo imaginativo reanimando as marcas das ex- citagdes nervosas, que fornecem um material que torna possivel seu funcionamento. As duas premissas s4o necessarias e sufi- cientes para compreendermos a actividade da imaginagao e de todos os processos que a integram. Poderd aqui perguntar-se quais sao os factores dos quais de- pende a imaginaciio. No que diz respeito aos factores psicolégi- cos, estes foram jé enumerados por nds, embora de maneira um tanto desordenada. JA dissemos que a fungao imaginativa depende da experién- cia, das necessidades e dos interesses em que se manifesta. Fa- cilmente se compreenderé também que depende da capacidade imaginativa exercida na actividade que consiste em dar forma material aos frutos da imaginagao; e depende do mesmo modo dos conhecimentos técnicos, das tradigdes, quer dizer, dos mo- delos de criac4o que influenciam o ser humano. Todos estes fac- tores se revelam da maior importancia, mas s4o tao simples ¢ evidentes que nao teremos de os referir em pormenor. Muito menos conhecida, assumindo por isso muito maior relevo, é a acg4o de um outro factor: 0 meio ambiente que nos rodeia. Cos- A Imaginagio ¢ a Arte na Infancia 35 tuma ver-se a imaginagao como uma fungdo exclusivamente in- terna, independente das condigées exteriores, ou em todo 0 ca- so, dependente dessas condigées apenas por um lado: na medi- da em que elas determinam o material que a imaginacao deverd trabalhar. No que se refere ao préprio processo imaginativo, a sua direcgdo poderia, 4 primeira vista, parecer orientada sim- plesmente do interior pelos sentimentos e pelas necessidades do homem, parecendo 0 processo condicionado apenas por causas subjectivas, no objectivas. Na realidade, nado é assim que as coisas se passam e a psicologia estabeleceu de longa data uma lei segundo a qual o anseio de criar é sempre inversamente pro- porcional a simplicidade do meio ambiente. Por essa razdo — argumenta Ribot —, quando comparamos 08 negros com os brancos, os homens primitivos com os civili- zados, 0 resultado é que para uma populagdo quantitativamen- te igual, € esmagadora a despropor¢do dos nimeros de inova- dores num e noutro caso. Weissman esclarece perfeitamente esta dependéncia da cria- ¢4o relativamente ao meio quando escreve: Suponhamos que nas Ilhas Samoa nascia uma crianga dotada com as qualidades e 0 génio de Mozart. Que poderia fazer? Quando muito, ampliar a gama de trés ou quatro tons para sete e compor algumas melodias um pouco mais complicadas, mas seria tdo incapaz de compor sinfonias como Arquimedes de construir um dinamo eléctrico. Todo o inventor, por genial que seja, é sempre produto da sua €poca e do seu ambiente. A sua obra criadora partird dos niveis anteriormente alcancados e apoiar-se-4 nas possibilidades que existem igualmente fora dele. E por isso que descobrimos uma sequéncia estrita no desenvolvimento histérico da ciéncia e da técnica, Nenhuma descoberta ou invengao cientifica aparece an- tes de estarem criadas as condigdes materiais e psicolégicas ne- 36 Lev Vygotsky cessdrias aos seu surgimento. A obra criadora constitui um pro- cesso histérico consecutivo no qual cada nova forma se apoia sobre as anteriores. E precisamente isto mesmo que explica a distribuicdo des- proporcionada de inventores e inovadores nas diferentes classes sociais. As classes privilegiadas forneceram uma percentagem consideravelmente maior de criadores cientificos, técnicos e ar- tisticos, devido ao facto de terem nas suas maos todas as condi- gGes necessdrias para a criagao. Como diz Ribot: Habitualmente fala-se tanto do voo livre da fantasia e da om- nipoténcia do génio que se esquecem as condigées sociolégicas (sem falar de outras) das quais a cada passo uma e outro de- pendem. Por muito individual que parega, toda a criagéo com- porta sempre em si um coeficiente social. Nesse sentido, ndo hd invengées individuais na acep¢do estrita da palavra: em todas elas existe sempre uma colaboragdo anénima. Capitulo [V A Imaginagao da Crianga e do Jovem A acco da imaginagao criadora revela-se muito complicada e dependente de toda uma série dos mais diversos factores. Da- qui se depreende claramente por que raz4o esta actividade nao pode ser idéntica na crianga e no jovem, uma vez que todos os factores em causa adoptam aspectos diferentes nas diversas épo- cas da infancia. Por isso, em cada periodo do desenvolvimento infantil, a imaginagao criadora age de modo peculiar, de acordo com 0 estédio de desenvolvimento em que a crianca se encon- tra. Jé vimos que a imaginag4o depende da experiéncia e que a experiéncia da crianga se vai acumulando e aumentando paula- tinamente sendo portadora de tragos peculiares profundos que a distinguem da experiéncia do adulto. A atitude perante 0 meio ambiente, que com a sua simplicidade e a sua complexidade, com as suas tradigdes e com as suas influéncias, estimula e di- Tige 0 processo criador, é também muito diferente na crianga. Sao diferentes ainda os interesses da crianga e do adulto; e de tudo isto se conclui que a imaginagao da crianga funciona de um modo diferente do seu funcionamento no adulto. Em que se diferencia a imaginagio da crianca da do adulto e qual é a linha mestra do seu desenvolvimento na época infantil? Continua a existir a opinido de que a imaginagdo da crianca é mais rica do que a do adulto, e considera-se assim que a infan- 38 Lev Vygotsky cia é a época em que mais se desenvolve a fantasia, do mesmo modo que a sua capacidade imaginativa e a sua fantasia dimi- nuem 4 medida que a crianca vai crescendo. Este juizo assenta em toda uma série de observacdes sobre a actividade da fanta- sia. As criangas podem fazer tudo de tudo, dizia Goethe, e esta simplicidade, esta espontaneidade da fantasia infantil, que dei- xa de ser livre no adulto, confunde-se habitualmente com a ex- tensdo ou a riqueza da imaginagao da crianga. Mais tarde a cria- ¢%o da imaginagao infantil diferencia-se clara e bruscamente da experiéncia do adulto — daqui se deduzindo de modo andlogo que a crianga vive mais no mundo da fantasia do que no da rea- lidade. Sio do mesmo modo tragos conhecidos a inexactidao, a deformagao da experiéncia real, o gosto pelos contos e narrati- vas fantasticas caracteristicos das criangas. Tudo isto, no seu conjunto, serviu de base para afirmar que na época infantil a fantasia € mais rica e variada do que a do adul- to. Mas trata-se de uma afirmagio que no resiste ao exame cientifico, pois sabemos que a experiéncia da crianga é muito mais pobre do que a do adulto. Sabemos também que 0s seus in- teresses sfo mais simples, mais pobres, mais elementares, por fim, a sua atitude em relagio ao meio que a rodeia é desprovida da complexidade, da precisao e da variedade que caracterizam © comportamento do adulto, sendo que todos estes aspectos constituem os factores fundamentais determinantes da fungao imaginativa. A imaginagao da crianga, como daqui se depreen- de claramente, nao € mais rica, mas mais pobre do que a do adulto; € ao longo do processo de crescimento da crianga que se desenvolve também a sua imaginagao, e esta s6 na idade adulta alcanga a maturidade. Por isso, os frutos da verdadeira imaginacao criadora em to- das as esferas da actividade de criagdo so pertenca apenas da fantasia jé madura. A medida que se aproxima a maturidade, também a imaginacdo comega a amadurecer, e, na idade de tran- sigdo, a partir do despertar sexual dos adolescentes, o impulso pujante da imaginagao une-se aos primeiros embrides de matu- ridade da fantasia. Assim, os autores que escrevem sobre a ima- A Imaginagao ¢ a Arte na Infancia 39 ginaco, aludem a estreita ligagdo existente entre o despertar se- xual e o desenvolvimento da imaginacio. E uma conjungao que podemos compreender quando temos em conta que nessa altura o adolescente assimila e concentra uma ampla soma de expe- riéncia, a0 mesmo tempo que se delineiam os chamados inte- resses permanentes, se apagam rapidamente os interesses infan- tis e, em relagaéo com a maturidade geral, a actividade da sua imaginagdo adquire também uma forma definitiva. Analisando a imaginacao criadora, Ribot desenhou uma cur- va que segue e reflecte simbolicamente 0 desenvolvimento da imaginag&o permitindo compreender os tragos peculiares da imaginacao infantil, da do homem maduro e a do perfodo de transigdo a que agora nos referimos. A lei fundamental do de- senvolvimento da imaginagdo que esta curva reflecte formula- -se do seguinte modo: a imaginagio, ao longo do seu desenvol- vimento, atravessa dois periodos separados por uma fase critica. A curva IM reflecte o percurso do desenvolvimento da imagi- nagao durante o primeiro periodo. Sobe vigorosamente e man- tém-se depois durante muito tempo ao nivel alcangado. A linha RO, a tracejado, representa 0 percurso do desenvolvimento do intelecto ou da razdo, que, como a figura mostra, comega mais tarde e se vai elevando mais lentamente, porque requer uma acumulacao de experiéncia muito maior, a ser submetida a uma elaborag’io complexa. E sé no ponto M que coincidem as duas linhas do desenvolvimento da imaginagdo e da razdo. A parte esquerda do esquema mostra claramente a fei¢io pe- culiar da imaginagao na época infantil, aquilo que, com efeito, numerosos observadores confundem com a riqueza imaginativa

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