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Diagnéstico e destino Por que sempre acontece de arelagdo entre médica ¢ paciene ser pouco satisfatéria ¢ até mesmo mativo deinflicidade,ndo obstante os mais sincers eforgos por parte de ambos? Michel Balint, Metin, pazente ¢ malatia, 1961 Algumas paginas dos capitulos 1 € 11 foram reelaboradas a partir de escritos anteriores de minha autoria, indicados na bibliografia final. |. Diagnéstico e tormento arpé, bepinevooy aeavtév, (Médico, cura-tea ti mesmo) Lucas, 4: 23 Doentes segundo Sontag N final dos anos 1970, Susan Sontag es- creve um livro em que se insurge contra aideia de doenca como metafora, afirmando que «no hé nada mais primitivo do que atri- dir um significado a uma doenga, uma vez. que tal significado seré inevitavelmente moralista. Um livro importante, que influenciou todos os estudos posteriores no campo da medi- cina social e da psicologia médica, «Uma re- feréncia obrigatéria», declara Rita Charon, diretora do curso de medicina narrativa da Universidade de Columbia, a revista The Lancet, «Assim como estamos habituados a fazer referéncia a Hipécrates ea Osler, agora devemos fazer referéncia também a Sontag» ‘Ao reconhecer o impacto social das re- presentagdes psicol6gicas da doenga, Sontag defende que sejam mantidas bem apartadas € que nto contagiem a realidade cientifica da icina. Tuberculose, cancer e aids foram e,em certa medida, continuam sendo met. foras culpabilizadoras de estilos de vida era. dos. Metiforas que ela conhece bem. Tinha cinco anos quando o pai morreu de tuber. culose. Tinha 45 quando foi diagnosticada ‘com um tumor no scio, ¢ depois no utero, dos quais se curou. Morreu de leucemia em 2004, fotografada no leito de morte pela amiga ¢ amante de uma vida, Annie Leibo- vitz, No inicio dos anos 1980, quando a aids apareceu como uma misteriosa epidemia que atingia as pessoas homossexuais (a ponto de inicialmente ser chamada de GRID, Gay-related Immune Deficiency, ou, mais impacientemente, «peste gay»), a perda de tantos amigos ¢ o clima social de segredos, mentiras e conde- nagées Ihe inspiraram um belissimo conto, Assim vivemos agora: E foi enquanto ele ainda estava em casa [J] que chegou a ma noticia a respeito de dois conhecidos distantes (..] Stephen ar- gumentava que era errado mentir para ele, que era to importante para ele viver com a verdade; aquela tinha sido uma de suas primeiras vit6rias, que ele era sincero, que ele estava até disposto a fazer piadas sobre adoenca, Em 1989, ela expande seu ensaio de 1978, Doenga como metéfira, para Aids e suas metéfiras. Pensei em Sontag ao ver 120 batidas por ‘minuto, de Robin Campillo, filme indispen- sdvel para compreender o impacto de um diagnéstico sobre o corpo ¢ a sexualidade, 24 25 sobre a politica ¢ as culturas, Toda doenga rompe com um equilibrio, De um individuo, de sta familia. A aids rompeu com o equi- brio do mundo. Quem viveu aqueles anos nao consegue esquecé-los. A morte irrompia no leito dos jovens de vinte anos, circulavam doengas oportunistas de nomes hipnéticos ¢ de efeitos cruéis: sarcoma de Kaposi, pneu- mocystis carinii, Eram os anos da azidotimi- dina, 0 42, dos impiedosos efeitos colaterais. Ainda era impensdvel o advento das terapias hodiernas que, pelo menos nos paises que podem se dar o luxo, minimizaram os efeitos indesejacos ¢ exaltaram os esperados, trans- formando uma doenga letal, que ainda con- tagia e A qual nfo convém baixar a guarda, em uma condigao soroldgica compativel com a vida, Foram anos em que lutar contra a aids significava tomar consciéneia dos limi- tes entre um corpo so e um corpo doente, cartografar suas dimens6es ¢ incertezas, seus sintomas ¢ terapias. Tornar-sc sujeitos de cuidado, nao somente objetos. O corpo era explorado cotidianamente. Anguistia ¢ es- peranga, medo ¢ conhecimento reuniam-se nas pontas dos dedos que se ditigiam para a parte de baixo das mandibulas e para dentro das axilas, para 0 pescogo ¢ para a virilha, 4 procura de glndulas inchadas. Com a aids, difundia-se um estigma historicamente associado ao céncer, mas entio agravado pelo fato de que, ao lado de cada um dos substantivos — culpa, segredo, vergonha -, se podia colocar 0 adjetivo sexual. A aids uma categoria sociomoral habj. i. tada por metaforas punitivas. Sontag nos alerta sobre o perigo de me. taforizar a doenga, mas, ao enderecar sey pensamento afiado a doengas muito diversas entre si, corre orisco de generalizar, Quando afirma que todas as doengas temidas e mis. teriosas sio sentidas como «moralmente, se nao literalmente, contagiosas», colhe uma verdade psicolégica sempre viva; mas, mesmo tendo escrito ha trinta anos, vai longe demais quando defende que Assim um niimero espantoso de pessoas com cancer se da conta de que parentes ¢ amigos as evitam e de que so objeto de pro- cedimentos de descontaminagao, levados a feito pela familia, como se o céncer, a exem- plo da tuberculose, fosse uma enfermicade contagiosa. No entanto, Sontag tem razdo quando diz que «os proprios nomes de tais doengas sio tidos como portadores de um poder ma- gico». No primeiro romance de Stendhal, ‘Armance, a mae do protagonista se recusa a pronunciar a palavra «tuberculose» porque, pronunciando-a, teme apressar 0 curso da doenga no filho. Armance se passa na época da Restauragdo, mas também no inicio dos anos 1980, quando minha mae adoeceu de cancer, muitos preferiam dizer que cla tinba «um problema muito ruin». As palavras, sabe-se, so habita fantasmas. Se procuramos as origens dos das de termos «cdineer» ou «carcinoma», do grego xaprivog ¢ do latim cancer, isto é, caranguejo, 0 velho dicionario Tommaseo nos remete a B_«canchero», com definigdes deste tipo: ‘Tumor ow tilcera de péssima condigao, ordinariamente de cor roxa; déi assaz, ¢ vai corroendo ou lentamente, ou rapidamente. E assim chamado porque costuma ser cir- cundado de varizes, dispostas como pernas de caranguejo, que se dizia também Cancro, De pessoa no s6 enferma, mas que, ‘mesmo com satide, se mostra inepta naqquilo sobre 0 que se discute, Hépolitcase acadénicos sgorduchos epresuucosos que sto também cdnceres. ‘Também a Pessoa tediosa incémoda € um efncer. Ouuos diciondrios da época mostram-se | ainda mais cruéis: Género de doenga grave e dolorosa, em forma de tumor ulcerado ¢ roxo, que ataca de preferéncia as partes do corpo dotadas de maior sensibi idade, como a lingua, os labios, os olhos, os mamilos etc. F assim de- nominado porque costuma ser circundado de veias tirgidas e varizes que parecem Pernas ¢ garras de caranguejo, ou mesmo Pelo fato de este animal ser tenaz. para com sua presa: uma vez que a prende com suas farras, nunca mais a abandona, | Nao surpreende que seja dificil pronun- Gar a palavra «edncer. As palavras evocam imagens e constrocm nossas representacies, {importante que se ajustem aos sucessos dla sneologia das iltimas décadas, que tester. * ham um erescimento nos indices de sobre. vvéncia, Segundo Umberto Veronesi, [..] a palavra edneer deveria ser elimi. nada devido a seu poder paralisante. Tumor melhor, Ou neoplasia. No 10, Instituto Europeu de Oncologia, quase nfo usamos a palavra carcinoma. Neoplasia é melhor do que cdncer por- que, em vez de evocar a imagem trauma- tica do caranguejo que pinga ¢ devora, nos aproxima da verdade cientifica da historica definigio dada, em 1935, pelo patologista australiano Rupert Allan Willis: [.J uma neoplasia ¢ uma massa de te- cido anormal cujo crescimento € excessivo ¢ descoordenado em relago ao do tecido normal, e que persiste com as mesmas mo- dalidades mesmo apés a interrupgao do es- timulo que provocou a mudanga. Além disso, a propria Sontag nos re- lembra que [..] Nao é, em si, o ato de nomear que € pejorative ou condenatério, mas sim o nome «cancer. Enquanto essa enfermidade em particular for tratada como um predador invencivel ¢ maligno, € no s6 como uma doenca, a maioria das pessoas com cancer & 29 se sentira de fato desmoralizada ao saber que doenga tem, soluglo nao pode estar em dei= xar de contara verdade para os pacientes de cincer, mas sim em retificar 0 conceito da doenga, desmitificé-la Isto nfo significa dar razio a Karl Men- ringer, um dos pais da psiquiatria norte-ame- ricana, quando afirma absurdos deste tipo: [] a propria palavra «cdncer» parece ter matado certos pacientes, os quais no teriam cedido (com tanta rapide) ao tumor maligno de que sofriam [...] Os pacientes que vém nos consultar por causa de seu so- frimento, anguistia ¢ deficiéncia tém todo o direito de se ofender se neles penduramos tum desastroso cracha. Verdade e discrigao adesastroso cracha» seria 0 diagnés- tico. FE tarefa do médico reveld-lo, néio escon- dé-lo. Ao realizar essa tarefa, deve ser capaz de servir contemporaneamente as razbes da objetividade médica, da psicologia indivi dual, do caso clinico e da histéria clinica. Deve ser capaz de compreender a tensao entre o dever de informar o doente (¢ seus entes queridos) ¢ o de consentir a ele a regulagem de suas esperangas, expectativas ¢ ilusdes. Se a vida psiquica nao tem papel algum na formagio € no desenvolvimento da doenga neoplistica, a atitude psicolégica do doente ede quem esta ao scu redor pode influenciag sua reacaio ao tratamento. E positivo que o médico tenha em mente o pensamento de Pascal, para quem [.-] nio basta afirmar o que é verda- deiro; ¢ igualmente necessdrio nao dizer tudo o que é verdadeiro; é preciso manifestar somente 0 que for itil, € no 0 que apenas feritia sem originar nenhum fruto; portanto, assim como a primeira regra é «falar com verdade», a segunda é «falar com discrigion. Em um livro dedicado a «medicina nar- rativa», o médico Giorgio Bert nos ajuda a lembrar as tantas, muitas vezes convenien- tes, posigdes ¢ identidades do paciente: sou aquele que quer saber 0 diagnéstico; sou aquele que nao quer saber o diagndstico; sou aquele que sabe, mas que no quer ou vir pronunciarem o nome; sou aquele que gostaria de ser acarinhado e consolado; sou também aquele que gostaria de ser tratado como adulto ¢ pessoa forte; sou aquele que gostaria que o médico decidisse por ele; sou também aquele que quer que 0 mé- dico respeite suas ideias ¢ convicgdes, € 0 trate de igual para igual. Bas tantas, igual- mente conviventes, posigdes ¢ identidades do médico: quero ser respeitado; quero ser cientifico ¢ objetivo; quero que o paciente confic em mim; quero ser simpatico com © paciente; nao quero que o paciente me faca perguntas demais; niio quero que este Paciente me faga perder tempo; nao quer 30 31 ser criticado; detesto ter que lidar com pacientes arrogantes ou pouco razoaveis; quero que os pacientes fagam 0 que cu digo sem discutir. Para o clinico, o diagndstico deve repre sentar «um tormento» ~ensina Karl Jaspers, psiquiatra e filésofo alemao do século pas- sado. Frase que repito aos meus alunos ¢ aos jovens colegas em supervisio, e que pode ser lida de muitas formas. Neste caso, eu diria que o tormento coincide com a capacidade do clinico de sustentar a posicao incémoda, por vezes a torgio, entre o impacto de um diagnéstico, como o relatério de um exame histolégico, por exemplo, ¢ a capacidade psi- cologica do paciente de conhecé-lo. Em 1989, Sontag esta em Nova York para apresentar seu livro; alguém do piblico Ihe pergunta como se pode viver sem metiforas, Responde, irritada: Vive-se. Vocé faz seu tratamento, tem esperanga. Metéfora 6 uma palavra cifrada para representagio, bobagem, ideia errada. ‘Sem metiforas as pessoas estariam melhor. Se o poder enganador das metaforas aplicadas as doengas diminuiu, foi também. gracas a Sontag. Mas as metaforas, mesmo quando nao nos agradam, fazem parte de nés. E dificil pensar no «mal sutil» da Dama das camélias, na aids de Foucault, na epilep- sia de Dostoiévski, na psicose de Van Gogh eno cancer de Terzani («A esta altura estou curioso por morrer. Lamento apenas porque nit poderei escrever a respeitos) sem g rastro de metiforas que esses cliagndsticgy levam consigo. E, mesmo tomando distin. cia da dimensio coletiv da metéfora, nig pexlemosfgnorar que as doengas so tam. bém metaforas e representagdes pessoais, Mas Sontag ¢inflenivel: nenhuma metatora, nenhuma mitologia, nenhuma psicologia, nenhnma interpretagao. O imagindrio de doenca, diz, 6 faz piorar a vida do doente emuitas vezes ¢ mais dificil de combater do que a propria doenga. Escreve: Fala-se de docngas como de algo que te di nova profundidade. Eu nio me sinto mais profinda. Me sinto achatada. Tornei-me obscura para mim mesma, Sontag tem todos os motivos para reclae mar uma postura cientifica e materialista Para com a doenga. Mas Robert Koch, que entendia de bactérias, dizia que na tubercu- lose hei mais do que a sua bactéria referia-se as causas sociais que favoreciam sua difusio, mas também, inevitavelmente, & sua aura metaférica. A doenca, muitas vezes mais forte do quea razao, resist & ideia racional de estar apartada das mitologias (pessoais © coletivas) que carrega consigo — e tem 0 iagndstico como nome de batismo, O recurso a psicologia e 4 cultura so- Cial, dia Sontag, ¢ punitivo ou sentimental, “nos leva a superdimensionar o significado da enfermidade, Porque uma doenga, cla Prossegue, no 6 nada senao uma doen¢a: Pe 33 um virus, uma bactéria, um erro genético. ‘azer dela uma metafora equivale a usd- -la de forma doente para culpabilizar 0 doente. Qualquer pensamento metaférico sobre a doenga deve ser evitado, Qualquer elemento seu de identificagao com a morte €atacado por Sontag, dado que significaria a exclusio da noco de cura como parte do conceito de doenga. Para mostrar o Apice dessa postura, cita a definig&io que Kafka atribui a tuberculose: «o germe da propria morte». Uma frase que deveria ser lida em seu contexto: [.-] passara a pensar que a tuberculos [..] nao é uma enfermidade especial, ou no € uma enfermidade que mereca um nome especial, mas apenas o germe da propria morte, concentrada, Kafka é assim, licido e visionario. Em uma carta ao amigo Felix Weltsch, ironiza as esperangas sugeridas pelos médicos: Pode ser que o médico [com suas pro- messas] tenha desejado esconder com seus argos ombros o anjo da morte atras dele, ¢ que agora esteja se afastando pouco a pouco. Um anjo com o qual 0 escritor de Praga havia tempos vinha lidando, ao qual estava pronto para se entregar. Sontag tem cancer Fi mesmo possivel, humanamente possi. ao conceito de morte? ¥ vel, exclu da doen! 0 palavra, nfo uma sen. Claro, «cancer é tengan ¢ nem (0 mas toda dong mento depressivo, i nao a morte, pelo menos a0 morrer, 4 cadu- rede? © que deveros fazer? Luar conta, negando? Langando mao do vitalismo, da mado? Declarar guerra & doenca, como Oriana Fallaci? uma das as doengas sao fatais, pio contém, talvez, um cle- cevitavelmente ligado, se Depois da operagio eu pel para velo, COlhando ripido, parecia uma bolinha de smarmore, in6cua, quase graciosa. Depois de alguns dias o exarinei no microsc6pio, € sme dei conta do que seria eapaz. caso conti ruasse se reproduzindo. Entendi que tinha tum inimigo dentro de minx: um alienigena, que invadiu meu corpo para destruflo ‘Agora temas uma relaco de guerra: ele quer ime matar, eu quero mati-lo. Quando Sontag fica doente pela terecira vez por causa de um tumor, urna forma grave de leucemia, decide tentar um transplante de medula éssea, Nao quer se ver vencida pela morte, Batalha. Diz.aos médicos que no esta interessada em qualidade de vida, mas em viver, Seus tiltimos meses so narraclos pelo filho em um livro de titulo inequivoco: Stein ‘ming in a Sea of Death (Nadando em um mar de morte). A mulher que, na vida ¢ na escrita, 35 soube encarar a doenga de forma tio hicida, agora esté assustada e reativa. Pede para co- nhecer a verdade, mas parece nao querer sa- ber, quer ser iludida. Lembra o filho, David Rie, que: Depois do transplante, quando os mé- dicos de Seattle Ihe disseram que a leuce- mia havia reaparecido, ficou sinceramente surpresa. Comegou a gritar: alsto significa cu estou para morrer!y [..] Eu me pergun- tava como ela poderia estar surpresa. Apés © transplante, ficara trés meses sem poder sair da cama, sofrendo de forma terrivel L..]. Creio piamente que ela tenha me pedido para realizar seu desejo. Antes do transplante, considerada a decisio que havia tomado, repetir que as estatisticas eram des- favoraveis teria sido apenas uma crueldade. E, apés o transplante, era tarde demais, Sontag nao conseguia Ppactuar com sua natureza mortal. «Nao levou a morte em leracdo até o diltimo més de sua vida, conclui majestosamente o filho David. «E mesmo entao...» Doente, passava boa Parte do tempo elaborando listas de restau- antes, livros, projetos de escrita e viagens. Bra seu modo de lutar até o fim «para mor- der um novo pedaco de futuro», Como muitas pessoas que sofrem com um tumor, também Sontag, a brilhante ted- rica da doenga racional, no fim percebeu-se flutuando entre consciéncia e ilusio, reco. uhecimento e negacio, pensamento magico ¢ racionalidade. Um estado psicoligico em, que dois nveis de funcionamento mental parecem alternar-se, ou talvez Coexistir, em continua relagao figura-fundo, © §, Iho, ainda: Nesta situagdo, vocé nao se permite nem mesmo dizer & pessoa que a ama, pelo menos no com o tom correto, Porque seria como dizerlhe que esté morrendo. Ha coisas que gostaria de ter perguntado a minha mae, ou- tras que gostaria de ter discutido com ela. No entanto, nao pude fazer nada disso. Ela se foi gritando contra a morte, como se morrer ¢ ser assassinado fosse a mesma coisa, Se a mie escreveu um livro funda- mental sobre doenga, 0 filho escreveu outro inesquecfvel sobre morrer. Voltemos a escritora. Sontag observa que as «metdforas-chave das descrigdes do cancer provém da linguagem bélica, militar, Por exemplo, nota como as células cancerigenas, mais do que se multiplica- rem, «invadem», «colonizam», instauram «pequenas bases avancadas (micrometds- tase)». Também os tratamentos, prossegue, tém algo de militar: metéforas da guerra quimica para a quimioterapia. E chega @ uma conclusao interessante: quando a lin- guagem terapéutica abandonar as metaforas militares de uma guerra agressiva em favor de metéforas centradas nas «defesas natu rais» do organismo (por exemplo, no lugar } 26 de «sistema imunodefensivo» poder-se-ia dizer «capacidade imunol6gica»), 37 [...] © cancer sera em parte desmitifi- cado; ¢ entao sera possivel comparar algo ao cdncer sem implicar nem um diagnéstico fatalista nem um clamor para lutar, com to dos 08 meios, contra algum inimigo mortal ¢ traigociro, Parece um apelo racionalidade e ao conhecimento para que se lide com a ma- nifestagio do inevitavel e desagradabilis- simo héspede e com ele seja possivel uma convivéncia pacata. $6 entdo, acrescenta Sontag, seré possivel «usar o cancer como metéforam. Mas a esta altura, conclui, mais ninguém o compararé a algo terrivel. Na doenga revelo todo o meu ser Nao penso decerto que a insurgéncia de uma doenca neoplstica seja reduzivel a fa- tores psiquicos (como ainda se Ié em alguns pretensiosos escritos de orientagio psicosso- mitica), nem considero as neoplasias doengas incuraveis e fatais. Temo, porém, que alguns dos argumentos usados por Sontag para despsicologizar a doenga, com a conviecao de que esta pode ser observada de modo puramente «objetivo, possam revelar-se um tiro no priprio pé. Junto com a Agua do banho, ou a explicagdo psicolégica da doenga, Sontag joga fora também a crianga, ou seja, a implicagao psicologica da doenca,! a n sidade de compreendé-a em relacio § may taldade ¢ ao limit, funesta ocasiao paye % conhecimento de ie uma possivel paisagen e passagem, transformadora, 8 No encontro com a doenga, nem todos andam de mios dadas com a racionalidac da evidéncia cientifica e com a laicidade de um pensamento nao metafirico, Nao sp trata, como diria Sontag, de separar maté- ria e espiito, mas de entender que, além da doenca, existe 0 doente, com sua histéria pes. soal ¢ social, suas metiforas e representagies, Existem Ivan Ilitch, de Tolstéi, e Nikolai Ste. panovich, de'Tchekhoy, cujo encontro coma doenga se torna ocasiéo para o despertar da vida e metafora da condigao humana. Se na édodoente que depende o éxito da doenga(a famosa «vontade de vives)? podem depen- der dele o percurso, a narrativa e a experién- cia. E 0 inevitével confronto subjetivo entre 0 humano cas suas doengas. Ficar doente é um ‘evento que aciona nosso sistema de defesas psiquicas, no somente imunitérias, Goloca em jogo nossa personalidade e nossos conhe- cimentos, nosso desenvolvimento psiquico ¢ 1. Buttare il bambino con Vacqua sporca é uma expresso usada na Italia para significar que 6 possivel se desfazer de algo importante (@ ‘rianga) quando se joga fora 0 que nao serve mais (a Agua suja do banho). IN. T] 2 Dolivrode Norman Cousins, A anatomia de ura doengai na lla, La volonta di guanie: anatoria acompanhada da desco- berta de «paises ignotos». «Um leve episédio de gripe» pode trazer & luz «ermos desertos da alma», «ama pequena elevagio da tempe- ratura» pode desvelar «precipicios ¢ clareiras salpicadas de vividas flores», a doenga pode arrancar de nés «antigos e obstinados car- valhos». E convida seus colegas escritores a nio negligenciar esse cotidiano «drama do corpo», as na solidiio da cama, tendo a mon, tg como contra o ataque da febre ou a chee melancolia. th Volta ase perguntar por que alte niio colocou a doenga no centro de sys oa vestgagio, Quase como eestendese para Sontag, responde a si mesma. que Bncarar essas coisas de frente exigrg a.coragem de um domador de ledes um filosofia robusta; uma razio enraizada nay entranhas da terra. Na falta disso, esse tons, tuo, 0 corpo, esse milagre, sua dor, logo fa. vo com que nos recolhamos ao mistcismo, ou com que nos elevemos, com ligeitas batidas de asas, aos arrebatamentos do transcendentalismo, E i

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