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CAPITULO 4 O CASO MOURAD ah ees tem dois anos e meio quando o recebo pela primeira vez. E um belo menino de rosto imével, um semblante de sorriso preso nos cantos dos labios. A mae jé estava gravida dele quando chegou & Fran- ga. No entanto, parece nao manter nenhum lago com a mulher cabila que era anteriormente; declara sé falar francés com Mourad, ainda mais que 0 pai do menino néo quer que falem cabila com o filho. © menino parece ser surdo, Nao responde a nada, nao emite nenhum chamado. Limita-se a0 grito da necessidade ao qual a mae responde no siléncio, como se nao hou- vesse entre eles nenhuma separagdo. De vez em quando, Mourad parece interessar-se por certos objetos, mas durante seus fréquentes fechamentos autisticos torna-se perfeitamente inacessivel. Esses momentos sao por vezes acompanhados de um balanceio do corpo e da emissao de sons, cataloga- dos como ruidos autisticos antes mesmo de meu encontro com ele (pois, no inicio, devo ter para cle menos existéncia que os méveis da sala). De um casamento anterior, a mae teve um primeiro filho que ficou na Cabilia. Ela sé 0 evoca se Ihe falo dele e, mesmo assim, com uma voz monocérdia e sem afeto, como se essa histéria ndo lhe dissesse respeito pessoalmente. Gragas a presenga de um observador, a Dra. Martine Bey, numa das trés sess6es semanais, dispomos de uma transcri¢ao relativamente fiel do 80 RUMO A FALA que foi dito. Essa transcrigao nos foi necesséria nfo s6 para a decifracao dos enunciados em cabila, mas também porque, durante muito tempo — durante todo o periodo que chamarei de pré-histéria de Mourad -, as sequéncias de condutas do menino pareciam inteiramente incoerentes ¢ os sons que ele proferia, quando havia, efetivamente autisticos, isto é, sem nenhuma intengao de comunicar, sem nenhuma relac4o com o que se dizia ou se passava A sua volta. A posteriori, quando relermos as notas das sess6es, ficard claro que esses sons podiam remeter a bagacos de palavras, mais tarde, a palavras. A pRE-HISTORIA DE Mourap UMa DAS PRIMEIRAS ENTREVISTAS MAE-FILHO Estamos em julho, ea entrevista precede a interrupgdo das férias de verao. Como Mourad pée um lipis na boca, a mae me diz que, em casa, nao o deixa fazer isso, e acrescenta, mostrando sua garganta: “Pois wma vex ele engoliu até aqui”. Pergunto-lhe se cla tinha 0 mesmo medo com o filho mais velho. Mas antes que ela tenha tempo de me responder Mourad joga todos os lépis no chao, depois vai dar um & mae, que nao percebe. Ele pré- prio cai no chao e comega.a gemer aos nossos pés, olhando 0 teto. Digo-lhe que, quando falamos de seu irmao Amar, ele se joga no chao, como se es- tivesse sendo largado por mame que pensa na Argélia. A mae declara que pensa muito menos em Amar depois que teve Mourad. Observo & mie: “Amar pegou de volta o lapis que ele lhe deu”, sem eu nem mesma ter percebido meu lapso. Mourad tenta juntar dois vagées de um trem de plastico que ele nao consegue encaixar; como mostra sinais de irtitagao, digo a ele: “Quer que os juntemos, Amar?”. Desta vez, ougo meu lapso e dirijo-me & mie para observar-lhe isso; ao que cla me retruca que ja &a segunda vez. E, como cometo ainda uma terceira vez 0 mesmo lapso, comento: “Com Amar eu ndo poderia falar em francés; se ele estivesse aqui, seria preciso falar com ele em cabila”. Como a questiono sobre uma eventual semelhanga entre os irmaos, a mae responde que, com efeito, os dois meninos se parecem muito, mas © CASO MouRAD que um tem cabelos pretos ¢ 0 outro, castanhos. Enquanto ela fala, Mou- rad a olha sorrindo. Digo, entao, a0 menino que, para a Sra. Laznik, seria mais facil se Amar estivesse ali; um estaria na sala do consultério, 0 outro na sala de espera, e eu nao os misturaria o tempo todo na minha cabeca. Enquanto falo, Mourad continua a olhar a mae muito atentamente; de- pois, volta a mexer no trem, Como sei que 0 pai dela era chefe de estacéo na aldcia onde viviam, pergunto-lhe como se diz tem em cabila; ela me responde, mas incapaz de escrever a palavra. Explica-me que a Argélia é contra a escrita da lingua cabila, que é proibido ensiné-la, que o racismo dos arabes contra os cabilas é virulento. Nesse momento, Mourad comega achorar ca gritar muito forte; serd simplesmente porque os vagoes do trem se separaram de novo? Como ele roda um carrinho na direcao de um enorme trailer cujas portas se abrem, tento verbalizar relagdes entre uma maméde-carro, um be- bé-carro © um papai-trem. Mas essa proposta de cendrios fantasmaticos', que costuma ter efeitos sobre criangas pequenas, deixa Mourad totalmente indiferente. A isso vou no entanto voltar em outras sessdes, quando ele colocar novamente esses trés objetos uns nos outros; mas serd sempre com © mesmo fracasso. Como se 0 que eu pudesse dizer a esse tespeito nao pas- sasse sequer pelo muro de seus ouvidos, tornados novamente surdos nesta ocasiao. Por outro lado, quando no fim dessa mesma entrevista, vendo-o de novo gemer e bater com o pé, e querendo chamé-lo, cometo uma quar- ta vez 0 mesmo lapso chamando-o de Amar, ele ouve bem, me olha e me sori. Nos tratamentos de autistas, rapidamente percebemos se estamos fora do assunto: a intervengao cai num vazio absolut. Em compensacéo, quando tocamos em algo verdadeiro, mesmo apenas no aparelho psiquico da me, a crianga se mostra extremamente atenta. Um pouco como no jogo de chicotinho-queimado, as reagdes da crianga permitem saber se estd quente ou se esté frio. E. por isso que 0 choro de Mourad no momento em que a mae evocava os problemas dos cabilas nao me pareceu ser pura coincidéncia. Mais tarde, quando pedirei ao pai autorizacio para falar ca- ' Proposta introduzida por Melanie Klein a respeito do “caso Dick”. Ver “importance de la formation du symbole dans le développement du moi”, in Essais de peychanabse, trad, franc. M. Derrida, Paris, Payot, 1968, pp. 263-278. 81 Po) RUMO A FALA bila com 0 menino, ficarei sabendo que ele sé queria Ihe falar em francés ara esquecer 2 Argélia. Por ter sido ele mesmo crianga durante a guerra, 9 pai havia softido muito, ainda mais que seu préprio pai morava entao na Franga, ea mae ficara, com os filhos, sob o encargo de um tio que nao Parecia muito feliz com aquilo. Ele deixou a Cabilia na idade de doze anos, sua chegada na Franca, conforme ele mesmo diz, “fizera um buraco”, uma caverna em seu pulmao. Ele nao devia mais retornar a seu pais, a ndo ser para seus dois sucessivos casamentos, uma vez que o primeiro fracassara. No final da entrevista, no momento em que escolhemos os horérios para a volta das férias, a mae me informa que, nesse ano ainda, nas férias, ela no ird & Cabilia, Quanto a Amar, ele visitard os avés maternos na aldeia, acrescenta cla, como que para me tranquilizar a seu respeito. Nao SEGUNDA SESSAO DE SETEMBRO. Mourad vai buscar o carrinho, ¢ a mae se lembra com prazer de que ha a mamée-trailer, 0 Papai-trem e o bebé-carro. Ele nao manifesta inte- esse pelo que dizemos. Por outro lado, a0 colocar o bebé-carro dentro do trailer, emite um u uu prolongado que faz seguir do ruido de um beijo, mas enderesado a ninguém. Essa série de vogais Ihe ¢ propria, ¢ a mie a considera um ruido que nao quer dizer nada. No entanto, no contexto, Pareco ouvir o resto de uma mensagem que teria perdido seu enderego. Pergunto, entio, & mae como se diz beijo em cabila? “Azuzena’, ela me responde. Enquanto conversamos, Mourad me traz o bebé-carro dizendo de novo: “Uw w”. Pergunto-lhe quem ele esté chamando, ¢ lhe proponho varios nomes; mas ele nao parece ouvir nada. Tem um ar triste, suspira, es- conde os olhos. Refaz o barulho de um beijo. A mae diz que sé na véspera € que ele comegou a dar beijos. Mourad continua a rodar o carro-bebé, primeiro no trailer-mamie, depois sobre a mesa, de onde cai. A mae exclama: “Ah sim! Bebé-carro © Caso Mourad 83 eaiu!’, Nesse momento, Mourad abre um verdadeiro sorriso; a mensagem parece recebida. Pergunto a mae como se diz bebé em cabila; ela me explica que ¢ costume dizer a7ni, palavra que seria como um meu pequeno (na ver- dade, parece ser mais préximo de um meu). De repente, ela pede ao filho Para cantar as marionetezinhas* com ela. Enquanto ela canta, ele executa os gestos mecanicamente, Em seguida, ela the canta uma cancao em cabila, Mourad fica feliz, o que observo & mae. Entéo, de repente, ela se lembra de que ha trés dias vem sentindo dor de dentes** ¢ que marcou consulta para arrancé-lo, Durante esse tempo, Mourad continua a manipular 0 bebé-carro, ouvimo-lo emitir: “new neu”, depois cai num fechamento autistico, Ao me aproximar dele, dirijo-me ao carrinho: “Oi bebé! Ele nao responde? Ah, alba elel’. Ao contrétio das outras vezes em que eu havia tentado me apro- ximar dele, Mourad nao me rejeita, olha-me ¢ diz distintamente: “bu-bu”, Interrogo a mae, ela me responde que aquilo nao quer dizer nada. Nesse momento, Mourad emite uma série de m m m, enquanto balanca bem devagar, de novo encolhido. Mas quando grita suavemente: “ddddd’,a mae ouve a palavra dedéi e a repete. Mourad vai, entao, em sua direcao, the mostra um mintisculo dodéi no dedo ¢ Ihe sorri. Logo depois, vai cair Aovamente num fechamento autistico. No final da sesso, recomega a brincar com 0 carrinho emitindo um de seus ruidos caracteristicos: “brrr, brrr, brrr”. Era um barulho que ele costumaya fazer em casa e que voltaré com frequéncia nas sessdes seguin- tes. No inicio, imaginei que ele estava imitando um barulho de moton como se achasse que era ele mesmo um carro, mas a sequéncia mostrard que esse fonema englobava outra familia de significagoes. ComeEntArios Quando a mae se queixa da dor de dente e me diz que vao arran- cé-lo, logo penso na sessao anterior, em que me explicou como lhe haviam * Cantiga infantil francesa acompanhada de gestos das méos. (N.T) *" Hid homofonia entre mal de dent (dot de dentes] e mal dedans [dor dentro]. (N.T. 84 RUMO A FALA tirado o filho mais velho. No mesmo tom sem afeto, incapaz de exprimir uma dor, ela contaraa seguinte histéria: segundo a tradi¢ao, o pai escolhera para ela um marido, um primo em primeiro grau. Um filho nascera; mas © casamento havia fracassado, 0 pai exigiu que ela se divorciasse e decidiu ue, €m troca, a familia do ex-marido ficaria com 0 filho. As coisas foram concluidas assim, sem que a mie pudesse dizer nada. Ely viveu dois anos na casa do pai, nao longe da aldeia onde estava o filho, mas sem poder revé-lo, exceto na véspeta de sua partida para a Franga, depois de ter sido casada novamente com outro primo em primeizo grau. Como este vivia na Franca, ela tinha de deixar a Cabilia para acom panhé-lo. Uma tinica marca de emogao veio pontuar esse Primeiro relato quase impessoal: “De qualquer modo néo posso ter raiva do men pai, ele havia dado ‘ua palavra?, Também acrescentou que, tendo ficado muito sé em Paris, andava pelas ruas sem objetivo preciso, em pseudopasseios que a conduziam com fequéncia a esplanada da Défense. Como falava ng singular, precisei de Hanes? tempo para compreender que Mourad ia com ela no cattinhs ao longo de suas errancias. Ocorreu-me, entio, que ela talvex no conversasse com ele. De fato, em nossas primeiras entrevistas, ela nao the dirigia es- Pontaneamente a palavra, nem mesmo no francés que dizia usar com ele. Em minhas notas da €poca, escrevi: “Parece uma relagdo cujo som teria sido cortado”. Hoje, seis anos mais tarde, pergunto-me se, durante seus passeios, essa mulher néo mantinha, com efcito, um soliléquio interior; daqueles em que s6 os lébios se mexem, sem que nenhum som saia. O que me permite formular essa hipdtese é um roteiro que seu filho, agora com oito anos, me pediu para tepresentar varias vezes nestes ultimos tempos. Fago o papel de uma apresentadora de televisao que conta um filme a tele-espectadores que, é claro, ela nao vé, mas aos quais dirige um sorriso de circunstancia. O importante, explica-me ele, é que ela deve falar num microfone cujo som foi cortado. Mourad é um bom diretoy decenae me dé indicagées precisas sobre a maneira como devo representar. Se tento mexer lentamente os ldbios Para que possa ler neles palavras, ele se irrita, me explica que devo mexer os Idbios de tal maneira que o espectador nao consiga saber nada. Existe uma variante para esse jogo: devo ser uma miss, Me passcia de um lado para 0 outro, ditigindo esse mesmo sorriso fixo a © CASO Mourad um ptiblico que ela nunca vé. Ele faz 0 Papel do puiblico. Nao sabe me di zet como lhe vieram essas cenas, mas experimenta uma satisfacéo artistica quando conseguimos representé-las do modo mais corteto possivel. Voltemos ao menino autista que ele era seis anos antes ¢ Aquilo que sua mae considerava como ruidos dele — rufdos autisticos, poderiamos dizer, embora a palavra nao fosse Pronunciada. Quando releio as notas telativas @ segunda sessio de setembro €xposta mais acima, encontro toda minha petplexidade diante dos enunciados desse menino, $6 apés varios meses de trabalho é que a seguinte leitura tornou-se para nés’ possivel. No que se tefere ao uuu prolongado, mais tarde vor se diz azuzena, uu saber que, se um bejjo em cabila um beijoca se diz azuzu, ; A tespeito dos m mm que, como as vogais precedentes, voltardo com frequéncia, encontramos, meses mais tarde, no diciondrio, que mimmi que- tia dizer meu filbo, o i final remetendo, como em outras linguas semifticas, & Primera pessoa do singular’, Para entender o que se segue, devo dizer aqui tte ~ sem que isso tome, no entanto, o caréter de verdadeira descarga de lapsos como na primeira entrevista — ainda me aconteceu chamar Mourad Pelo nome do itmao. Até o dia em que a mae me declarou: “No inicio, quando ele era bem pequeno, eu tinha a impresstio de que era Amar, eu achava enbre que era Amar”. Seré que, nesse periodo, ela lhe ditigia a palavra? E, entao, em que lingua? A prépria mae nos diz depois que, quando Mourad era pequeno, ela Ihe dizia: “Aammam azuzu”, 0 que, segundo ela, poderia ser traduzido por meu bebezinho querido. Logo, ele ouviu palavras ternas, proferidas em cabila, ainda que essas palavras fossem enderecadas a Amar, Assim, podemos pensar que # 4%, mm m jd constitufam a retomada pelo menino do contorno do enunciado materno mammam azuzu. Mas esse enunciado remetido pelo menino « da escuta de uma mde inteiramente ocupada pelo filho mais velho cuja per- da ela recusava e que devia estar ina objeto de tipo melancélico, *Digo “nds”, aqui, pois a Dra. Martine Bey, nossa observadora, ativo no trabalho de decifracao das notas tomadas em sessao. *A lingua cabila € uma lingua semitica, as palavras provém, portanto, de raizes Sonsonanticas. Entretanto, ela € escrita em alfabeto latino, 0 que nos permitiu fazer algumas pesquisas no diciondrio, teve um papel muito 86 RUMO A FALA FRAGMENTOS DE SESSGES DE MEADOS DE SETEMBRO. Mourad, enquanto roda um caminhao sobre a mesa, diaz “Arrafa”. Como a mae ouve garrafa, vou buscar uma e dou-a a seu filho. Ela me ob- Serva que se trata de uma mamadeira, 0 que Mourad nao conhece, ja que, como é habito em seu pais, ela Ihe deu o Seio até que ele fosse capaz de beber num copo. Enquanto peco & mie que me file dessa época, 0 menino se aproxima dela e Ihe faz um carinho, Digo que ele esté contente que en- fim falemos um pouco dele. Depois, Pergunto & mae como se diz seio em cabila. Ela me responde: “Bubu. Agora, ele eiquecen. Quando era pequeno, ele sabia bubu, eu the dizia”. Nese momento, 0 menino balanga sobre si mesmo ¢ se tranca num fechamento autistico, Chamo-o pelo nome, pelo sobrenome, depois pelo do itmao, Ele nao responde diretamente — nunca o fez -, mas resmunga uma série de m mm m e vai buscar o bebé-carro na caixa de brinquedos. A mie esté me falando da escolha do nome Amar, quando ouvimos: “A... an oto”. Fico muito espantada, ainda mais que a mae confirma que, na Cabilia, a pala- vra € igualmente automdvel. Diante de meu olhar admirado, Mourad fica Por sua vez muito espantado; olha cada uma de nés muito intensamente, depois vem me trazer 0 bebé-carro que ele aproxima de minha boca para que eu lhe dé um beijinho. O que fago. UMa SEMANA Mars TARDE Mourad esconde o bebé-carro num canto do armario e diz: “Bubu”. Digo a mae que a palavra me Parece conhecida, mas que nao me lembro mais, Enquanto o filho, que subiu no colo da mie, toca em seu peito, ela me responde, desta vez ainda, que nao sabe, que aquilo nao quer dizer nada, Acrescenta que ele passou o dia anterior inteiro repetindo: “Neu neu neu”, mas que ela tampouco vé a que isso pode se referir. Mais tarde, nessa mesma sessao, Mourad parece de novo sair um Pouco de seu fechamento autistico quando o chamo, de Propésito, pelo nome do irmao, uma vez que nao obtive nenhuma reacao com seu préprio nome. © CASO MouRAD 87 QUINZE DIAS MIs TARDE Num momento em que ele estd particularmente trancado e ausente, deitado debaixo da mesa, olho para cle e digo: “Ah, mas é Mourad A. quem estd ail’. Como ele nao parece registrar nem que fosse 0 som de minha vor, digo: “Entdo, ¢ Amar quem estd ai. Onde voce estd, Amar?”. Ele entao se levanta e, de olhos fechados, os bracos estendidos para frente, feito um cego, avanga na minha direc, até me tocar, Pela primeira vez, esse meni- no responde a uma chamada! Por sorte, a Dra. Bey, nossa observadora, est4 presente, caso contrdrio eu teria achado que estava sonhando, SESSAO SEGUINTE A mie chega transtornada pelos acontecimentos transmitidos pela imprensa sobre a Argélia. Houve mais manifestagdes ¢ ela teme represilias contra os cabilas. Comeca a falar espontaneamente de Amar. Conta seu Primeiro encontro com ele depois da separacao: ele estava muito magro, triste, Depois, s6 0 revi uma vez, “Eu o revi um més depois, mas havia aceitado, falou-me com carinho, antes de vir para a Franca”. Pela primeira vez, queixa-se do marido, que no quer mais voltar para a Cabilia. Dias mais tarde, por ocasido de um novo lapso de minha parte que me obriga a reconhecer uma vez mais 0 quanto os‘dois irmaos permane- ciam confundidos em minha mente, ser4 af que a mae poderd, enfim, me dizer que, pot varios meses, ela havia tomado Mourad pot Amar, Durante todo o primeiro perfodo do tratamento, que chamo de pré-histéria de Mourad, nada do que eu lhe disse relativo a te parecia atravessar 0 muro de sua surdez, nem mesmo se tanto, quando eu caia justamente em algo relativo aos aco: simbolizados em sua mae — ele pessoalmen- u nome. No en- ntecimentos néo ea perda de Amar era um exemplo tipico disso ~ ele safa de seu mundo emparedado e voltava seus olhos para meus labios, O leitor deve ter achado espantoso a m: significa, uma semana depois de ter dado ela to, ao se ler, de nao saber mais 0 que bubu propria a traducao. Com efei- isso salta aos olhos. Mas é forcoso constatar que 0 enunciado 88 RUMO A FALA de uma crianga autista tem esse efeito caracteristico de fazer pensar que ela nao € portadora de nenhuma mensagem. “liso ndo quer dizer nada”, tepete a mie, embora até 0 filho, no colo, toque precisamente em seu seio. Mas € preciso notar que um recalque andlogo acontece com a analista. Para a observadora, mais & distancia dos efeitos transferenciais, a cena parece ainda mais surpreendente, pois ela podia ver, do lugar onde estava, que o menino que acabava de pér seu carrinho no armério olhava a mamadei- ra enunciando bubu. Foi s6 depois que, ao relermos as notas das sesses, percebemos que, uma semana antes, 0 menino jd havia enunciado esse significante bubu © que a mae ja havia respondido que aquilo nao queria dizer nada. Assim, consultamos o diciondrio, que nos ensinou que aquilo também significava peru. Polissemia que lembra a equacao simbélica de Freud: seio = pénis = fezes... A palavra bubu nesse menino autista era um significante? Tinha nele valor polissémico? $6 posso responder de maneira afirmativa antecipando © que se segue, isto é, contando uma cena que ocorreu um més depois. O Dr. Bérouti*, que éa um sé tempo médico e diretor do centro, um dia lhe empresta a caneta esferogrifica. Mourad poe a caneta no armdrio, na ca- sa-carro, em tudo que é lugar. A tampa cai, 0 que nao percebo. O menino entra num grande desamparo e grita: “Bubu!". Dou-lhe a mamadeira, mas em vio. Como ele volta a carga, ¢ desta vez chamando: “Mamie! Bubuf | acabamos ouvindo; e é a mae quem encontra a tampa perdida. Mourad esta radiante. Nossas descobertas relativas & polissemia de bubu nos conduziram a buscar no dicionario se new new neu também nao teria uma significagéo, ainda mais que essa série fonematica voltava quase a cada sessio quea mie dizia que cle as vezes a repetia o dia inteiro. Descobrimos que nau se traduz por triste, e que neuneu, aneié podia ser ouvido como queda, cai. O dicionério fornecia até um exemplo que foi muito “falante” para a mae’: “Wi k-yess nejnin?” (Quem te deixou triste2). Fla havia com frequencia *O médico que o atendia teve papel muito importante nessa cura, * Costumévamos buscar palavras no diciondtio com a mie, que sentia certo prazer em compreender melhor a estrutura da prépria lingua. Com ela, aprendi o quanto é dificil entender 0 recorte ¢, portanto, a sintaxe de palavras que nao conhecemos sob uma forma escrita. O CASO MouRAD, ouvido ¢ até empregado essa frase. Ora, esse new neu sempre surgia em Mourad em momentos de tristeza, de acabrunhamento. Durante esse periodo “pré-histérico”, Mourad, como as outras criangas autistas, nado pedia nada, nao chamava. Quando precisava de alguma coisa, pegava a mao da mae, que fancionava, entéo, com toda evidéncia, como um continuum de seu proprio corpo. Em minha sala hé uma pia. Mourad usava a mao da mae quando queria beber. Eu tentei bem cedo introduzir um corte entre eles, pedi & mae que esperasse uma chamada, ou mesmo um simples olhar do menino, antes de seguir o que ele a mandava fazer com a mao. Mas sé vieram gritos ¢ sofrimento. Até uma cena traumitica e resolutiva ocorrer entre nés na Ultima sesso antes das férias de Natal. Ua ExPERIENCIA TRAUMATICA: 0 SURGIMENTO DE UM TERCEIRO Durante a sesso, a mae me conta que decidiu ir & Cabilia nas é tias de verao. Ser a primeira vez ¢ Id vai rever o filho mais velho. Mas faz questio de acrescentar: “Se vou ld, nao é apenas por ele; é verdad, ele é importante, mas néo hd sé ele”. Prossegue explicando-me que nao escreve diretamente para o filho mais velho na casa do primeiro matido, “pois 0 pai deste aqui poderia sentir cittmes”, acrescenta designando Mourad com 0 dedo. Diante da evocacio inteiramente inabitual desse pai como ciumen- to, Mourad comeca a puxar com muita insisténcia a mao da mae para que essa mao lhe abra a torneira, sem evidentemente olhé-la nem formular o menor apelo articulado. Falo com Mourad para lembrar-lhe que, se deseja alguma coisa, pode olhar a mae ou entio proferir um som, Ele entao come- sa asoltar gritos to fortes que cobrem minha voz e que ressoam no prédio inteiro. Apesar de minhas tentativas de Ihe falar, ele faz um tal alvorogo que ninguém consegue mais dizer uma palavra na sala. Mesmo assim nao cedo: ainda mais que Mourad jé se mostrou capaz de chamar em circunstancias andlogas — vimos um exemplo mais acima. Mas essa cena teve um tal efeito traumatico sobre mim que mandei cortar a alimentagao da torneira de minha sala para nao ter de passar por outra. 90 RUMO A FALA VOLTA EM JANEIRO: 0 ROTEIRO DA MARIONETE Na volta das férias escolares, nao estou totalmente recuperada do traumatismo da ultima sessao, Mourad, este, parece em boa forma. Vai instaurar um roteiro que me deixaré por um bom tempo muito perplexa. Pega a mio da mae, sem olhé-la, para levicla até o armério de brinquedos de minha sala. Lembro aos dois que Mourad deve enderecar um pedido a mae quando quiser algo e lhe repito que essa mao que ele segura nao é ele. Ao contratio da sesso anterior, Mourad aceita sem problema: “Mame”, diz ele, enquanto a puxa até o armario, Ele Pega, entao, uma marionete due representa um animal peludo cuja boca grande pode abrir ¢ fechar. Ea Primera vez que ele toca numa marionete. Como me olha, me aproximo, Ele pée, entao, a marionete em minha mao e me diz: “IM IM?. A mae Ouve izim, que quer dizer edo em cabila, Mourad me mostra Por gestos e rufdos que, enquanto sua mae ten- ta juntar-se a ele no interior do armério, a marionete deve fazer uma voz grossa ¢ morder suas maos ¢ as de sua mae reunidas. Aceito executar 0 roteiro. Quando a boca grande do bicho mor de as duas méos separando-as, ele nfo manifesta nenhuma angistia. Ao contrdrio, fica muito contente ¢ me pede para recomecar, Depois, sai do sppanigevSin pcealjolbiclolna méovei ol heyj/enat eens | mie esta surpresa: é a primeira vez na vida de Mourad que um beijo encontra um enderego! Esse roteiro que me deixaré por muito tempo espantada vai se prolongar durante algumas sess6es, antes de desaparecer em seguida definitivamente. Quanto a mim, tenho a impressao penosa de ter sido destinada a desempenhar o papel de um supereu obsceno. Nas sessées seguintes, vou mesmo assim aceitar refazer a cena a seu pedido, Mourad me agradecer com um beijo sonoro, o primeiro de sua parte a um ser humano. E incon- testavel que o menino franspés um limite, Do traumatismo do arranca- mento até essa cena em que se efetuaré uma Separacdo entre sua mao ea de sua mde, hé um mundo: aquele da possibilidade de encenar, de representar © proprio corte, E como se o traumatismo da Ultima sesséo tivesse operado uma mutag¢ao, © CASO MouraD A QUESTAO DO TRAUMATICO NA FUNDAGAO DO SUJEITO DO INCONSCIENTE Na crianca autista, nao h4, em todo caso, de inicio, nenhum sujei- to que responda ao chamamento de seu nome. Ela nao articula nenhum chamado, menos ainda qualquer pedido. Ainda estamos diante do grito da necessidade, ao qual, em geral, a me se apressa em dar uma resposta que recoloca rapidamente a situacdo em estado de equilibrio, Estamos confron- tados com um sistema de defesa que pede, sobretudo, para ser estavel; tudo é feito para afastar as excitagdes suscetiveis de perturbar essa estabi- lidade. Quando um terceiro intervém para pedir 4 mae para nao atender imediatamente & suposta necessidade, 0 menino tem uma célera violenta. Se ninguém trouxer uma resposta répida a seus gritos, vemos instalar-se nele um softimento real, sofrimento aquém da diferenciagao entre o psi quico ¢ o fisico ¢ que s6 faz reforcar o isolamento autistico, E como se a crianga autista constituisse um caso particular de para- sitismo nao do corpo da mae (uma vez que essas criangas jadesmamaram), mas do inconsciente materno. Uma prova desse parasitismo é que a crian- Sa, que permanece impassivel seja qual for a interpretacéo que lhe seja en- derecada, reage e retoma vida, dirigindo seu olhar interrogador para nossa boca t4o logo damos uma interpretagao justa 4 mae quanto a seu prdprio funcionamento mental. E uma experiéncia muito particular e que indica, a meu ver due os encontramos aquém do surgimento de um sujeito di- ferenciado, no nivel de um eu primitivo englobando, se nao a mae inteira, pelo menos partes do corpo materno ¢ partes de seu inconsciente. Nessas condi¢oes, 0 que se pode esperar de uma cura analitica? Pre- cisamente, 0 nascimento do sujeito do inconsciente, isto é do sujeito de um descjo, de uma fantasia pessoal. E por isso que a pratica de curas de criangas ainda autistas nao deixa de lembrar certos ritos de iniciag4o ou de passagem. Ela leva o analista a interrogar o estatuto desse tempo do trauma — que ele vai, assim, aguardar, um pouco como aguardamos, numa cura classica, que transferéncia se instaure. O tempo que chamei de pré-histérico Parece, portanto, marcado pela instalacdo de um trauma, isto é, de uma experiéncia necessdria de perda de algo que funciona como parte do corpo para a crianga, ¢ colocando a a 92 RUMO A FALA questao de um vivido doloroso, ainda que essa experiéncia 4 posteriori se afigure necessiria & divisdo que permite 0 nascimento do sujeito. Em Inibigdo, sintoma e angistia, nogao de traumatismo ganha na teoria freudiana da angistia um valor maior. O sinal de angistia permi- tiria ao eu [moi] evitar 0 transbordamento por uma sobrecarga do afluxo de excitacio, afluxo que define a situagdo traumatica propriamente dita. Assim, Freud atribui a sedimentos de acontecimentos traumaticos muito antigos um papel de simbolo mnésico eficaz. Para ele, 0 acontecimento traumatico precoce tem um papel de necessidade na estrutura, ¢ esse simbolo teria sido — diz ele — de qualquer modo criado*. Ele fala, entao, do recalque origindrio: “Estamos ‘ainda muito pouco informados sobre esses planos de fundo, sobre esses estédios prévios do recalque”. Em se- guida, sublinha que “a angtistia de morte [...] deve ser concebida como andloga 4 angtistia de castragao”. O que cle entende por isso? Trata-se, precisamente, da questao da perda de uma parte de corpo, da queda, da separagéo de uma parte do eu [moi] primitivo. Freud parte primei- ramente da experiéncia cotidiana da perda do contetide intestinal para logo passar — © que indica bem que se trata de algo da mesma ordem ~& perda do seio materno experimentada no desmame. Segundo ele, o nas- cimento representaria uma castracéo para a mae, uma vez que a crianga é para ela 0 equivalente do falo. Essa experiéncia, traumatica para a mae, constituiria um simbolo de separagao. Freud sublinha que, para a crianga, o nascimento nfo é vivido subjetivamente como separacao da mae, pois esta é, enquanto objeto, completamente desconhecida do feto (integral- mente narcisico, pensa ele). No estado de desamparo (Hilflosigheit), 2 angistia estaria ligada, para o bebé, auséncia do objeto. Essa angiistia seria semelhante & angiistia de castragao pelo fato de que esse objeto, tido em alta estima, é vivido como wma parte de seu eu (moi da qual a crianga se sente separada, Segundo 0 texto freudiano, o trauma primordial esta ligado, portanto, a uma experiéncia da perda de uma parte destacdvel vivida como se pertencesse ao eu [oi]. 6S. Freud, Inhibition, symptéme et angotsse, trad. franc. M. Tort, Paris, pur, 1968, p. 10. 7 Ibid., pp. 53 € segs Bs © caso Mourad 93 DIVISAO COMO NECESSARIA A CONSTITUIGAO SUJEITO EM LACAN Como vimos, Lacan também concebe a diviséo ou refenda do su- como instaurando-se pela identificagio do sujeito com uma parte erdida. De um grande Todo primordial cai uma parte destacivel; ¢ é dali jue se origina o sujeito desejante. E a propésito da circuncisdo que Lacan, em seu seminério sobre angiistia, faz do pedacinho de corpo que cai o prototipo do objeto a. Embora a circunciséo seja um modelo desse corte, ela nao é 0 tinico. Para ele, assim como para Freud, o corte instaurado pelo nascimento nao é a *paracao entre a crianga e a mae. Desse ponto de vista, Lacan observa que corte ocorreria mais entre a crianga e 0 envelope placentdrio, cuja origem embrioldgica atesta ser ele um tecido de mesma natureza que a prépria crianca. Essa primeira separacdo de uma parte destacdvel nem por isso instaura um sujeito. Lacan também busca do lado do seio. Pergunta-se de que lado se en- contra 0 corte: entre a mae e o seio, ou entre a crianga e 0 seio? O desma- me nao é o detonador do processo de subjetivacio, mas antes a prova de automutilagao: 0 jogo do carretel com o fort-da é seu exemplo princeps; é 0 momento de separacao sujeito/objeto ¢ do acessa ao simbélico, linguagem. © autismo nos confronta com um sujeito mitico, j& que cle ainda nao existe, nem sequer enquanto sujeito do enunciado. Logo, trata-se de uma clinica que permite assistir ao processo de subjetivagéo enquanto ral. Segundo Lacan, é no préprio lugar desse objeto cafdo que a crianca poderd ulteriormente designar-se como sujeito'. Ora, 0 objeto caido sé pode vir representar 0 sujeito se for investido libidinalmente, isto é, se nao for puro dejeto. E 0 que chamo o papel fundador do olbar do Outro primordia? que faz com que a crianga seja um objeto de investimento libidinal. Lembremos que esse objeto pequeno a nio é especularizdvel, ele € justamente aquilo que a crianga nao encontra na imagem de seu corpo. “Logo, para que uma crianga possa vir designar-se nesse lugar de objeto 2, é preciso que ela seja previamente constituida no genitor. Cf M.-C. Launik, La Pychanalye a Vépreuve de... op. cit 94 RUMO A FALA S6 no olhar de amor do Outro teal € que a crianca pode reencontrar seu Proprio valor de objeto causa do desejo" Vamos encontrar na clinica essa articulag4o entre, de um lado, 0 spisddio traumatico a introduzir um Corte no grande Todo primordial e, do outro, a constituicéo de um objeto caido, no entanto marcado pelo investimento libidinal. O joc0 po perxar CAIR OU JOGO DO BRBK Como vimos no material clinico de setembro, Mourad apresen- tou-se, jd no inicio de seu {ratamento, com aquilo que comumente chama- fi un aio lebestico: ere sassal ca plicarse ticki Spats primeiro me fizera pensar que podia se tratar da imitagao do ruido de um motor de carro, e que o garoto talvez se identificasse com essa maquina. $6 mais tarde, inicio de dezembro, é que esse som me Pareceu merecer uma atencio mais particular. Ao retrabalharmos nossas notas, verificamos que o menino © emitia em momentos de desamparo, de desabamento interior que prece- ebrex temete a desmoronar, cair; bru pode ser traduzido Por desprender, lar- Sar; de-briy-ak seria antes nao se ocupar; enquanto que yebra, proveniente da mesma raiz, seria mandar ‘passear, largar tudo, talver até divorciar-se, Para ‘erminar, berru é a propria agao de largar, 0 repiidio. Foi s6 depois dessa decifracao que 0 jogo de cair (476B) instalou-se de fato. Eis um exemplo bem completo da forma, totalmente repetitiva, que essa cena tomou no fim do ano. Mourad tira da caixa de brinquedos o be- bé-carro que ele faz rodar até a beirada da mesa; entao, enquanto me olha intensamente, finge deixé-lo cair no abismo delimitado por essa beirada, Quando digo: “Cuidado bebé-carro, tu vais cain?” e faco 0 gesto de Proteger o bebé-carro com minhas maos, Mourad comega a tir, Repete o mesmo jogo varias vezes. Depois, no fim, deixa-se ele préptio cair no chao, eo " Ibid. Desenvolvo aqui como o objeto Pegiteno a, por nio ser especularizavel, nao é énconttado pela crianca em sua imagem do corpo. © CASO MouraD 95 Se eu pudesse ter tido alguma diwvida esse objeto que cai — 0 designa, ele, Allids, é 0 que lhe verbalizo, Esse jogo se repete quase que a cada sessao, Algum tempo mais tarde, uma condicéo vai se adicionar para quie o juibilo de Mourad possa desenca- dear-se. Serd preciso que eu acrescente: “Néo quero que 0 bebé-carro caia’. Um segundo aspecto do mesmo juanto ao fato de que esse bebé-carro Mourad, pois bem, ele o poe em cena! ip roteiro vai durar meses: tio logo Mourad se joga no chio ¢ tenho que dizer: “Estds - Ele entao se coloca em situagao de por exemplo, deixando os dedos bem perto de uma porta que pode se abrir a qualquer momento ele se machuque. O jogo se repete vari alegria de sua parte, ~€ devo dizer que nao quero que ‘as vezes, entrecortado por risos de €s6 entao é que ele pode entrar comigo na sala. Podemos resumir 0 que esté eni tao em jogo entre o menino e sua analista dizendo que 0 ndo deixar cair vem materializar o investimento libidinal pelo Outro. “Segurar pela mao para nao deixar cair éum ele- mento bem essencial da relacio do sujeito com algo como sendo para cle um pequeno a’, diz Lacan em seu semindtio sobre a angtistia", Ele ali actescenta a seguinte nogao clinica: “Se algo da ordem de uma mae falica fem um sentido, seria o de pensar que ela seré cruelmente tentada a nao Segurar em sua queda o objeto mais Precioso”. Seria, por exemplo, o caso de Orestes! » que a mae inexplicavelmente teria deixado cait. Lacan, nesse semindrio, comenta 0 caso da jovem homossexual" de Freud e observa que cla se sente rejeitada, jogada fora no olhar do pais poderamos nas que cla nao tem ou nao tem mais, a seus olhos, valor de objeto causa de desejo. Entio, a tinica coisa que pode mostrar é que, ao se deixar cair por cima da murada da estrada de ferro, ela Propria passa a ser subitamente esse objeto @ enquanto caido. Por nao té-lo, ela o é; ela se reduz a uma identificagao ~absoluta com esse pequeno a. O jogo do brbh tambérn & vs ma monstragéo © se nao passa a ser acting out, € por ocorrer no quadro da transferéncia NJ. Lacan, “LAngoisse”, seminéri Na versio de Giraudoux, bracos o bebé Orestes. P85. Freud, “Sur la psychos psychose et perversion, io inédito, aula de 23 de janeiro de 1963. Electra acusa a mae Clitemnestta de ter deixado cair dos Benése d'un cas d’homosexualité feminine” (1920), in Névrose, trad. franc. J. Laplanche, Patis, pup, 1973, pp, 245-270, RUMO A FALA em que a analista, em lugar de Outro primordial, pode recebé-lo ¢ a isso responder. Poderfamos pensar que Mourad, por nao estar muito seguro de ter, do ponto de vista do Outro materno, um valor de objeto capaz de causar 0 desejo, identifica-se com esse objeto a. Ele € 0 objeto caido. No registro pré-especular em que ainda se encontra, as probleméticas do ser ¢ do ter ainda nao estao diferenciadas. Da MUTILAGAO QUE NADA INSCREVE NA PRIVACAO SIMBOL{GENA Voltemos agora ao que ocorre do lado da mae. Como ela prdpria diz com franqueza, ela pensava que Mourad era Amar. Logo, nao houvera perda, pelo menos enquanto péde durar a iluso. Ela em seguida se encon- trou “em lugar nenhum’”, presa no funil de uma depressao™ cuja existéncia ela nao reconhecia, assim como estava obrigada a desconhecer boa parte de si mesma para sobreviver 4 perda do filho, de todas as suas referéncias habituais e de seu ambiente familiar. No trabalho que fizemos juntas, ela p6de reencontrar a importancia da avé materna, bem como o medo de nao mais revé-la antes de sua morte. Essa avé foi provavelmente a tinica figura materna a té-la investido libidi- nalmente como neta, pois aos olhos da propria mae parece que ela jamais contou muito. Com efeito, a mae vivera quinze partos. Era dificil fazer a conta dos filhos, pois havia nessa familia um habito curioso: cada crianga nova que morria era substituida pela seguinte & qual era dado 0 mesmo nome, Devia-se, por exemplo, contar em dobro uma pequena Laila viva, mas que substitufa uma morta? Esse sistema, em todo caso, tornava a falta nula e a contagem impossivel. Por isso, a mae de Mourad nao podia saber se era o terceiro ou quarto filho de sua mae. Se o corte vivido por Mourad durante a tltima sessao antes das fé- rias de Natal havia inscrito um trawmatismo — no sentido freudiano de um stmbolo necessirio que, de qualquer modo, deve ser criado —, nao é apenas 0 termo “depressio” talvez nao seja adequado. Trata-se, antes, da relagao com um certo tipo de objeto melancélico, como vimos anteriormente. © CASO MouraD ge Porque o menino pudera viver paralelamente, com sua analista, a experi- éncia de uma encenagao da queda de uma parte eminentemente Preciosa, © que chamei o jogo do brbk; também & gracas ao trabalho efetuado pela Inde, na sessfo anterior, em particular sobre sua capacidade de poder no- mear 0 que cla havia perdido, além do filho, no divércio com o primeiro marido, Este apresentava episédios delirantes pelos quais fora hospitaliza- do antes mesmo de se casar. A familia de sua mae fora enganada a respeito dele. O pai desta quis anular 0 casamento antes mesmo de ela ficar gravida de Amar; foi ela quem recusou, pensando que era capaz de curar o marido € sentindo-se também mais livre na aldeia da familia do marido do que trancada na casa do pai. Mas 0 que se podia ouvir, sem que ela propria o formulasse claramente, era a fascinacao que esse homem, doenga, havia exercido sobre ela. O fato é que era muito ligada a ele, o due parece nao ter particularmente agradado & sogra. Esta teria negociado a separacao do casal a pretexto de um novo episddio delirante do filho. Teria até conseguido proibir sua casa & ex- sequer ver o filho. talvez até sua nora, que nao péde, portanto, Esses elementos com certeza fazem compreender melhor 0 eventual citime por parte do pai de Mourad em relacio 20 primeiro marido, citime Cuja evocagéo desencadeara a cena dos berros junto a pia. Gracas & restauragdo da lingua materna e, por ai mesmo, das lem- brangas, lembrancas daquilo que pudera causar seu desejo, essa mulher, dirigindo-se ao filho, pudera revelar-se uma mae marcada pela perda. As- sim, ela comegou a sair de sua falta de falta, o que liberou a situacao, A teoria do lugar estrutural da falta como constitutivo do desejo é uma das contribuigées lacanianas titeis para trabalhar a clinica do autismo, O eircurto putstonaL Na cena do érés, 0 menino vinha enquanto objeto se fazer deixar air, para que um outro ~ a analista, no caso em questéo — fosse o sujeito desse deixar cair (“tu me mostras que eu te deixo cair”, tiso que juntos partilhévamos indicava bem que nos encontrévamos nao mais no registro do principio do Prazer, enquanto evitamento do desprazer » eu disse a ele). Eo 98 RUMO A FALA (0 que nos autistas esté sempre bem préximo da homeostase), mas no registro do gozo. No mesmo perfodo e de modo paralelo, Mourad comecon com a ic 0 jogo do i530 queima. Esse jogo, inteiramente em cabila, construiu-se a medida que a mie encontrava lembrangas de frases ouvidas na propria infancia. Mourad aproxima o dedinho da kimpada que esté acesa, corren- do de fato o risco de se queimar; a mae deve entio vir em seu socorro gri- tando: “Cuidado! Estd quente! Esta quente! Esta quentel’, Deve em seguida soprar o dedinho, bem perto da boca. Quando 0 roteiro funciona, Mourad fica feliz, a mae também. Mas para isso é preciso que ela o faca de cora- $405 0 enunciado nao basta, é preciso a enunciasao, Em outras palavras, é Preciso que a mae faca com que ele sinta que ela quer protegé-lo. Ora, isso nem sempre é facil, pois Mourad tende a escolher momentos de auséncia Psiquica da mae para por em cena esse jogo, como se precisasse se queimar para reanimé-la pulsionalmente. O roteiro do bicho grande que morde também pode ser ouvido na dimensio pulsional. Mourad vinha ser mordido. E Possivel que 0 que me fornava esse roteiro tao dificil de suportar fosse justamente o gozo que eu supostamente devia tirar disso enquanto Outro. Nao hé registro pulsional sem que a questo do gozo do Outro venha se colocar. "Fao aqui referéncia aos erés tempos desctitos por Freud em seu texto Pubions et destin tes pions, 1915, in Metapsychologie, trad. J. Laplanche e J -B. Pontalis, Paris, Gallimard, 1968.

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