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ESTADO E POLITICAS (PUBLICAS) SOCIAIS Exorsa pe Marros Horunc* RESUMO: Para melhor compreensio ¢ avaliagio das politicas puiblicas sociais implementadas por um governo, ¢ fundamental a compreensio da concepsao de Estado e de politica social que sustentam tais ages € programas de intervencio. Visées diferentes de sociedade, Estado, politica educacional geram projetos diferentes de intervencio nesta drea. Este texto objetiva trazer elementos que contribuam para a compreensio desta relagio, enfocando autores que se aproximam da abordagem marxista e da neoliberal sobre o tema Palavras-chave: Estado ¢ politica social; Politicas piiblicas e educagao; Politica Educacional. Para além da crescente sofisticasao na produgao de instrumentos de avaliagao de programas, projetos e mesmo de politicas puiblicas é fundamental se referir as chamadas “questées de fundo”, as quais infor- mam, basicamente, as decisées tomadas, as escolhas feitas, os caminhos de implementagao tragados ¢ 0s modelos de avaliagio aplicados, em rela ao a uma estratégia de intervengao governamental qualquer. E uma destas relagdes consideradas fundamentais é a que se estabe- lece entre Estado e politicas sociais, ou melhor, entre a concepgao de Estado ¢ a(s) politica(s) que este implementa, em uma determinada so- ciedade, em determinado perfodo histérico. Na anilise e avaliagdo de politicas implementadas por um governo, fatores de diferentes natureza ¢ determinagao sao importantes. Especialmente quando se focaliza as politicas sociais (usualmente entendidas como as de educagéo, satide, previdéncia, habitacio, sanea- * Professora Doutora do Departamento de Metodologia de Ensino (Deme) da Faculdade de Edu- cagio da Unicamp. E-mail: amcsl@obelix.unicamp.br 30 Cadernos Cedes, ano XXI, n° 55, novembro/2001 mento etc.) os fatores envolvidos para a aferigao de seu “sucesso” ou “fra- casso” sio complexos, variados, ¢ exigem grande esforgo de andlise. Estes diferentes aspectos devem estar sempre referidos a um contorno de Estado no interior do qual eles se movimentam. Torna-se importante aqui ressaltar a diferenciagao entre Estado e governo. Para se adotar uma compreensio sintética compativel com os objetivos deste texto, € possivel se considerar Estado como o conjunto de instituigées permanentes — como érgdos legislativos, tribunais, exército e outras que nio formam um bloco monolitico necessariamente — que possibilitam a agio do governo; e Governo, como o conjunto de programas ¢ projetos que parte da sociedade (politicos, técnicos, organismos da sociedade civil € outros) propde para a sociedade como um todo, configurando-se a orientasao politica de um determinado governo que assume e desempenha as fungdes de Estado por um determinado periodo. Politicas ptiblicas s4o aqui entendidas como o “Estado em ago” (Gobert, Muller, 1987); € 0 Estado implantando um projeto de governo, através de programas, de acdes voltadas para setores especificos da sociedade. Estado nao pode ser reduzido a burocracia ptiblica, aos organismos estatais que conceberiam ¢ implementariam as politicas ptiblicas. As politicas publicas so aqui compreendidas como as de responsabilidade do Estado — quanto 4 implementagdo ¢ manutengao a partir de um processo de tomada de decisdes que envolve érgaos puiblicos e diferentes organismos e agentes da sociedade relacionados a politica implementada. Neste sentido, politicas ptiblicas nao podem ser reduzidas a politicas estatais. E politicas sociais se referem a ages que determinam o padrao de protecao social implementado pelo Estado, voltadas, em principio, para a redistribuicao dos beneficios sociais visando a diminuigio das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeco- némico. As politicas sociais tém suas raizes nos movimentos populares do século XIX, voltadas aos conflitos surgidos entre capital ¢ trabalho, no desenvolvimento das primeiras revolugées industriais. Nestes termos, entendo educagdo como uma politica ptiblica social, uma politica publica de corte social, de responsabilidade do Estado = mas nfo pensada somente por seus organismos. As politicas sociais — e a educacao — se situam no interior de um tipo particular de Estado. Sao formas de interferéncia do Estado, visando a manutengao das relagées sociais de determinada formagio social. Cadernos Cedes, ano XXI, n° 55, novembro/2001 Portanto, assumem “feigées” diferentes em diferentes sociedades e diferentes concepgées de Estado. E impossivel pensar Estado fora de um projeto politico ¢ de uma teoria social para a sociedade como um todo. Pensando em termos concretos, minha reflexio sobre politica edu- cacional se insere no contexto do Estado Capitalista, entendido de maneira ampla, sem se considerar definigées mais apuradas do que seria este Estado: se democratico liberal, se social democrdtico etc., etc. Mais do que definir Estado e suas fungdes, pretendo focalizar, neste texto, como autores que se inscrevem em tradigées diferentes nas ciéncias sociais analisam o Estado Capitalista e como este pensa e concebe suas politicas sociais — e a politica educacional. Nao é uma simples questdo de abordagem: concepgdes meto- dolégicas implicam pressupostos, conceitos, posturas tedricas, sistema- tizagées intelectuais, proposigées politicas, enfim, concepgdes de mundo e sociedade diferentes. Sem a pretensdo de tratar a tematica com a profundidade que merece, pretendo focalizar, nos limites deste texto, dois autores que se inscrevem, respectivamente, na tradigéo' marxista e na liberal, especi- ficamente neoliberal: Claus Offe e Milton Friedman. Nunca é demais assinalar que o marxismo nao pode ser entendido como uma tinica abordagem, como Unico tratamento dado a qualquer tema. A tradigio marxista desdobra-se num amplo espectro de tendéncias e mesmo teorias — alids coerente com seus pressupostos referentes & construcao histérica de conceitos. Enraizadas nas cléssicas formulagées de Marx em relagéo ao Estado e as ages estatais — as quais estariam, em tiltima instancia, voltadas para garantir a producio ¢ reproducio de condigées favoraveis 4 acumulacao do capital e a0 desenvolvimento do capitalismo —, outras se desdobram na andlise da complexa questéo da autonomia ¢ possibilidade de acio do Estado capitalista frente as reivindicagGes e demandas dos trabalhadores ¢ dos setores nao beneficiados pelo desenvolvimento capitalista. Claus Offe, sociélogo alemao, é normalmente considerado um autor moderno no interior da tradigao marxista. Ressalto que, relacionada 4 propria heterogencidade de sua produgao, as posigées assumidas em relacao a possibilidades ¢ limites das ages do Estado Capitalista contemporaneo, também a “classificagio” deste autor é polémica. Na medida em que identifico nos textos de Offe a andlise do Estado a partir de uma perspectiva de classe, ¢ como uma esfera da sociedade que con- centra e manifesta as relagdes sociais de classe, onde conflitos ocorrem — 32 Cadernos Cedes, ano XI, n° 55, novembro/2001 jd que no interior do Estado estéo presentes interesses referentes & acumu- lagao do capital e as reivindicacées dos trabalhadores, quero reforgar a proximidade deste autor a tradigéo marxista. Compreendo que o autor se insere no debate atual que amplia a dimensio politica do Estado para a compreensio de suas fungées no capitalismo contemporaneo, contri- buindo para a ampliagao das teorias marxistas tradicionais em relagio a Estado ¢ mudangas sociais. Para a tematica aqui abordada, Offe traz interessante contribuica ao analisar as origens das politicas sociais tracadas pelo Estado Capitalista contemporaneo para a sociedade de classes. Para o autor, o Estado atua como regulador das relagSes sociais a servico da manutengéo das relagdes capitalista em seu conjunto, ¢ nao especificamente a servico dos interesses do capital — a despeito de reconhecer a dominasio deste nas relagées de classe. Essencialmente voltado para o contetido das ages do Estado, Offe tem desenvolvido argumentacées na perspectiva de responder as questées basicas que podem ser assim formuladas: como o Estado capitalista atua para preservar as relagées no conjunto da sociedade de classes? Quais as relages de interesses na determinagdo das agdes do Estado? Enfim, como se originam, a partir de que movimentos de interesses surge a politica social do Estado capitalista? No desenvolvimento do processo de acumulagao capitalista — ¢ nas crises do capitalismo — as formas de utilizag4o tradicionais da forca de trabalho se deterioram, séo até mesmo destrufdas, escapando & competéncia das préprios individuos a decisio quanto A sua utilizagio. Relacionado a isto, fungées tradicionalmente nao sujeitas ao controle estatal e circunscritas as esferas privadas da sociedade — inclusive a educagao = passam a ser desempenhadas pelo Estado. Em momentos de profunda assimetria nas relagées entre os proprietdrios de capital ¢ proprietdrios da forga de trabalho, o Estado atua como regulador a servico da manutengdo das relagdes capitalistas em seu conjunto. E esta fungao reguladora através da politica social claramente colocada por Offe: “(...) a politica social é a forma pela qual o Estado tenta resolver o problema da transformagao duradoura de trabalho nao assalariado em trabalho assalariado” (Lenhardt & Offe, 1984, p. 15). O Estado capitalista moderno cuidaria nao sé de qualificar permanentemente a mao-de-obra para o mercado, como também, através de tal politica e programas sociais, procuraria manter sob controle parcelas da populacao nao inseridas no proceso produtivo.’ Cadernos Cedes, ano XXI, n° 55, novembro/2001 33 O sistema de acumulagio capitalista engendra em seu desen- volvimento problemas estruturais relativos & constituigéo e reproducéo permanente da forca de trabalho e & socializacéo desta através do trabalho assalariado. O Estado deve “responder” a estes problemas, ou em outros termos, deve assegurar as condiges materiais de reprodugao da forga de trabalho — inclusive visando uma adequagio quantitativa entre a forca de trabalho ativa ¢ a forca de trabalho passiva — ¢ da reprodugdo da aceitagao desta condigio. Estas podem ser consideradas as fungGes tiltimas da politica social: como as distintas instituigdes sécio-politicas e estatais contribuem para a resolugo dos problemas acima, gerando intervengées do Estado que atingem a sociedade como um todo. E a partir de que referenciais estas agées s40 equacionadas? Offe & Lenhardt colocam em questao dois esquemas de argu- mentacao da ciéncia politica: a) a explicagio da génese da politica social estatal baseada na teoria dos interesses e das necessidades, a partir de exigéncias politicas dos trabalhadores assalariados organizados; b) a explicagéo da génese da politica social a partir dos imperativos do processo de produgao capitalista, das exigéncias funcionais da producio capitalista (Offe, 1984, p. 32-37). Ressaltando a dinamica e movimento préprio do Estado nas sociedades capitalistas modernas, os autores relacionam as origens da politica social a um processo de mediagdo — como estratégia estatal — entre interesses conflitivos: (...) defendemos aqui tese de que para a explicagio da trajetdria evolutiva da politica social, precisam ser levadas em conta como fatores causais concomitan- tes tanto exigéncias quanto necessidades, tanto problemas da integrasao social quanto problemas da integragao sistémica (Lockwood), tanto a elaboraczo politica de conflitas de classe quanto a elaboracio de crises do proceso de acumulagao. (Offe, op. cit. p. 36) A concorréncia de fatores advindos de diferentes esferas ¢ orga- nismos da sociedade em seu conjunto para a génese e desenvolvimento do Estado tem sido sistematicamente apontada por Offe em seus tra- balhos. Respondendo & uma pergunta sobre um “novo pacto social”, o autor assinala: 0s problemas de um pafs nao vio ser resolvidos apenas pela acéo do Estado ou do mercado. E preciso um novo pacto, que resolve o dever do Estado de dar condigées basicas de cidadania, garantaa liberdade do mercado e da competicao 34 Cadernos Cedes, ano XXI, n° 55, novembro/2001 econémica e, para evitar 0 conflito entre esses dois interesses, permita a influéncia de entidades comunitarias. (entrevista publicada em Veja, abril de 1998) Com referéncia a politica educacional, esta complexidade de fatores em seu delineamento € explicitada em texto que discute teoricamente resultados de pesquisas desenvolvidas na perspectiva de se avangar na “andlise marxista do Estado” e na “pesquisa politica marxista’ quanto & discussdo sobre a “fundamentagdo do conceito de Estado Capitalista”. Ressaltando que seria equivocado pensar nos objetivos da politica edu- cacional voltados estritamente para qualificagao da forca de trabalho con- forme interesses de determinadas indtistrias ou de determinadas formas de emprego, (...) parece ser mais fecundo interpretar a politica educacional estatal sob 0 ponto de vista estratégico de estabelecer um maximo de opgées de troca para o capital e para a forca de trabalho, de modo a maximizar a probabilidade de que membros de ambas as classes possam ingressar nas relagées de produséo capitalistas. (Offe, 1984, p. 128) As agées empreendidas pelo Estado nao se implementam auto- maticamente, tém movimento, tém contradigées e podem gerar resul- tados diferentes dos esperados. Especialmente por se voltar para ¢ dizer respeito a grupos diferentes, o impacto das polfticas sociais implemen- tadas pelo Estado capitalista sofrem o efeito de interesses diferentes exptessos nas relacées sociais de poder. ‘A concepgio neoliberal de sociedade ¢ de Estado se inscreve na — € retoma a — ttadigao do liberalismo cléssico, dos séculos XVIII ¢ XIX. Enquanto a obra A riqueza das nagées: Investigagdo sobre sua natureza ¢ suas causas, de Adam Smith (publicada em 1776), é identificada como © marco fundamental do liberalismo econdmico, O caminho da servidao, de Friedrich Hayek (publicado em 1944), é identificado como 0 marco do neoliberalismo. As formulagdes de Milton Friedman, economista da Escola de Chicago, sobre Estado e politicas sociais se identificam estrei- tamente com as formulagées de Hayek. Por ter desenvolvido de maneira mais explicita formulagées sobre politicas sociais — ¢ educacéo — em seus trabalhos, Friedman seré o autor focalizado neste texto como referéncia & abordagem neoliberal." Levando-se em consideraao a intensa produgao e publicagées recentes no Brasil sobre neoliberalismo, considero suficiente retomar, pata os propésitos deste texto, argumentagées destes autores citados que contribuam para a compreenséo da natureza da relagéo entre Estado ¢ politica educacional ¢ seus desdobramentos em programas de governo. Cadernos Cedes, ano XXI, n° 55, novembro/2001 As teorias politicas liberais concebem as fungées do Estado essen- cialmente voltadas para a garantia dos direitos individuais, sem inter- feréncia nas esferas da vida publica e, especificamente, na esfera econdmica da sociedade. Entre os direitos individuais, destacam-se a “propriedade privada como direito natural” (Locke, 1632-1704), assim como o direito a vida, 4 liberdade e aos bens necessétios para conservar ambas. Na medida em que o Estado, no capitalismo, nao institui, nao concede a propriedade privada, néo tem poder para interferir nela, Tem sim a fungéo de arbitrar — ¢ nao de regular - conflitos que possam surgir na sociedade civil, onde proprietérios ¢ trabalhadores estabelecem relagées de classe, realizam contratos, disputam interesses etc. Estas concepgées sao cla- ramente expressas em colocagées fundamentais de Adam Smith em A riqueza das nagées, voltadas para a critica ao mercantilismo ¢ as corporagées, como: (..) deixe-sea cada qual, enquanto néo violaras leis da justiga, perfeitaliberdade de ir em busca de seu préprio interesse, a seu proprio modo, e faca com que tanto seu trabalho como seu capital concorram com os de qualquer outra pessoa ou categoria de pessoas. (p. 47) (...) Assim é que os interesses e os sentimentos privados dos individuos os induzem a converter seu capital para as aplicages que, em casos ordindtios, sio as mais vantajosas para a sociedade. (p. 104) ‘As teses neoliberais, absorvendo 0 movimento ¢ as transformagées da histéria do capitalismo, retomam as teses cléssicas do liberalismo ¢ resumem na conhecida expressio “menos Estado e mais mercado” sua concepgio de Estado ¢ de governo. Voltadas fundamentalmente para a critica as teses de Keynes? (1883-1946), que inspiraram o Estado de Bem-Estar Social, defendem enfaticamente as liberdades individuais, criticam a intervengéo estatal e elogiam as virtudes reguladoras do mercado. Estas idéias ganharam forga ¢ visibilidade com a grande crise do capitalismo na década de 1970, apresentadas como possiveis saidas para a mesma. Estas teses podem ser destacadas em trechos do texto referéncia do neoliberalismo, O caminho da servidao de Hayek: (... © respeito pelo homer individual na qualidade de homem, isto é,aaceitagéo de seus gostos e opinises como sendo supremos dentro de sua esfera, por mais estritamente que isto se possa circunscrever, a convicgao de que é desejével 0 desenvolvimento dos dotes ¢ inclinacées individuais por parte de cada um. (p. 35) 36 Cadernos Cedes, ano XI, n? 55, novembro/2001 O respeito, a promocio e a protego do individuo, dos interesses e das relacdes que individualmente se estabelecem e se equilibram naturalmente na sociedade também sao destacados por Friedman em Capitalismo e liberdade: (...) os valores de uma sociedade, sua cultura, suas convengdes sociais, todos eles desenvolvem-se de idéntica maneira, através do intercambio voluntirio, da cooperag’o espontanea, da evolucao de uma estrutura complexa através de tentativas e erros... (p. 68). Assim, ressaltando os fundamentos do individualismo, os neo- liberais defendem a iniciativa individual como base da atividade econémica, justificando o mercado como regulador da riqueza e da renda. Friedman, especialmente em Capitalismo e liberdade, focaliza 0 capitalismo competitive — organizado através de empresas privadas, em regime de livre mercado — como um sistema que exercita a liberdade econémica. Atribui ao Estado o papel de promotor de condigées positivas 4 competitividade individual e aos contratos privados, chamando atensio para os riscos decorrentes da intervengao estatal nas esferas da vida em sociedade: (...) s6 ha dois meios de coordenar as atividades de milhées, Um éa direcéo central, utilizando a coersao ~ a técnica do Exército e do Estado totalitario moderno, O outro éa cooperagao voluntéria dos individuos — a técnica de mercado. (p. 87) Para os neoliberais, as polfticas (ptiblicas) sociais — ages do Estado na tentativa de regular os desequilibrios gerados pelo desenvolvimento da acumulagio capitalista — so consideradas um dos maiores entraves a este mesmo desenvolvimento e responsaveis, em grande medida, pela crise que atravessa a sociedade. A intervengao do Estado constituiria uma ameaga aos interesses ¢ liberdades individuais, inibindo a livre iniciativa, a concorréncia privada, e podendo bloquear os mecanismos que o préprio mercado é capaz de gerar com vistas a restabelecer o seu equilfbrio, Uma vez mais , o livre mercado é apontado pelos neoliberais como o grande equalizador das relagdes entre os individuos ¢ das oportunidades na estrutura ocupacional da sociedade. Coerentes com estes postulados, os neoliberais nao defendem a responsabilidade do Estado em relacéo ao oferecimento de educagao ptiblica a todo cidadao, em termos universalizantes, de maneira padro- nizada. Um sistema estatal de oferta de escolarizagio compromete, em tiltima instancia, as possibilidades de escolha por parte dos pais em relasio Cadernos Cedes, ano XXI, n° 55, novembro/2001 37 4 educagio desejada para seus filhos. Estendendo a légica do mercado para esta politica social, Friedman (1980) assinala que (...) em escolarizagéo, pais ¢ filhos so os consumidores, ¢ 0 mestre ¢ 0 administrador da escola, os produtores. A centralizacéo na escolaridade trouxe unidades maiores, redusao da capacidade dos consumidores de escolher ¢ aumento do poder dos produtores. Para ampliar o escopo de ofertas em relagio a orientagdes e modelos educacionais, e também pata aliviar os setores da sociedade que contri- buem através de impostos para o sistema puiblico de ensino sem utilizé- lo necessariamente, as teorias neoliberais propdem que o Estado divida = ou transfira — suas responsabilidades com o setor privado. Assim, além de possibilitar as familias 0 direito de livre escolha em relagao ao tipo de educagio desejada para seus filhos, este seria um caminho para estimular a competigao entre os servigos oferecidos no mercado, mantendo-se 0 padrio da qualidade dos mesmos. A proposta de participagio da verba piiblica para educagio — priméria e secundaria — seria através de “cupons’, oferecidos a quem os solicitasse, para “comprar” no mercado os servigos educacionais que mais se identificassem com suas expectativas ¢ neces- sidades, arcando as familias com o custo da diferenga de prego, caso este seja superior a0 cupom recebido. Para possibilitar este controle maior por parte dos pais ¢ o livre exercicio de escolha sobre a educagéo desejada, a estratégia de descentra- lizagdo adquire grande importancia. A transferéncia, por parte do Estado, da responsabilidade de execucéo das politicas sociais as esferas menos amplas, além de contribuir para os objetivos acima, ¢ entendida como uma forma de aumentar a eficiéncia administrativa e de reduzit os custos. Nestes termos, coerentes com a defesa e referéncia essencial aos principios da liberdade de escolha individual e do livre mercado, os neo- liberais postulam para a polftica educacional agdes do Estado descen- tralizadas, articuladas com a iniciativa privada, a fim de preservar a possi- bilidade de cada um se colocar, de acordo com seus préprios méritos possibilidades, em seu lugar adequado na estrutura social. Apés esta sintética exposigao das concepgées de Estado ¢ educagao dos autores acima focalizados, penso ser oportuno ressaltar algumas relagdes que podem ser estabelecidas entre estes temas. O processo de definigéo de polfticas puiblicas para uma sociedade reflete os conflitos de interesses, os arranjos feitos nas esferas de poder que perpassam as instituigdes do Estado e da sociedade como um todo. 38 Cadernos Cedes, ano XI, n? 55, novembro/2001 Um dos elementos importantes deste processo — hoje insisten- temente incorporado na andlise das politicas publicas — diz respeito aos fatores culturais, Aqueles que historicamente vio construindo processos diferenciados de representacGes, de aceitacéo, de rejeigao, de incorporagéo das conquistas sociais por parte de determinada sociedade. Com freqiién- cia, localiza-se af procedente explicagio quanto ao sucesso ou fracasso de uma politica ou programas elaborados; ¢ também quanto as diferentes solugées ¢ padrao adotados para agées publicas de intervencio. A telacao entre sociedade ¢ Estado, o grau de distanciamento ou aproximacao, as formas de utilizagio ou nao de canais de comunicagao entre os diferentes grupos da sociedade e os érgios piiblicos — que refletem € incorporam fatores culturais, como acima referidos — estabelecem contornos préprios para as politicas pensadas para uma sociedade. Indiscutivelmente, as formas de organizacao, o poder de pressao ¢ articu- lacdo de diferentes grupos sociais no processo de estabelecimento ¢ reivin- dicagao de demandas s4o fatores fundamentais na conquista de novos e mais amplos direitos sociais, incorporados ao exercicio da cidadania. Em um Estado de inspiragao neoliberal as agées estratégias sociais governamentais incidem essencialmente em politicas compensatérias, em programas focalizados, voltados aqueles que, em funcao de sua “capa- cidade e escolhas individuais”, nao usufruem do progresso social. Tais ages nao tém o poder — ¢ freqiientemente, nao se propdem a — de alte- rar as relagGes estabelecidas na sociedade. Pensando em politica educacional, ages pontuais voltadas para maior eficiéncia e eficdcia do processo de aprendizagem, da gestao escolar e da aplicagao de recursos sao insuficientes para caracterizar uma alteragao da fungo politica deste setor. Enquanto nao se ampliar efetivamente a participagéo dos envolvidos nas esferas de deciséo, de planejamento e de execugao da polftica educacional, estaremos alcangando {ndices positivos quanto & avaliagao dos resultados de programas da politica educacional, mas ndo quanto A avaliagao politica da educagdo. Penso que uma administrago ptiblica — informada por uma con- cepgao critica de Estado — que considere sua fungao atender a sociedade como um todo, nao privilegiando os interesses dos grupos detentores do poder econémico, deve estabelecer como prioritdrios programas de ago universalizantes, que possibilitem a incorporacio de conquistas sociais pelos grupos ¢ setores desfavorecidos, visando a reversio do desequilfbrio social. Cadernos Cedes, ano XXI, n° 55, novembro/2001 39 Mais do que oferecer “servicos” sociais — entre eles a educacao — as agées ptiblicas, articuladas com as demandas da sociedade, devem se voltar para a construgio de direitos sociais. Numa sociedade extremamente desigual ¢ heterogénea como a brasileira, a politica educacional deve desempenhar importante papel ao mesmo tempo em telacdo a democratizacgao da estrutura ocupacional que se estabeleceu, ¢ & formacao do cidadao, do sujeito em termos mais significativos do que torné-lo “competitivo frente 4 ordem mundial globalizada”. A frustragéo — ou nao — destas expectativas se coloca em relacio direta com os pressupostos e parametros adotados pelos érgios puiblicos ¢ organismos da sociedade civil com relagao ao que se concebe por Estado, Governo e Educagao Publica. Notas 1. Uso propositadamente esta idéia de estar “inscrito na tradi¢io” por considerar inadequada a classificacio precisa de autores no quadro de producio social do conhecimento nas ciéncias sociais, tum processo sempre multifacetado e multiditecional. 2. Utilizo, para estas reflexées, especialmente os artigos do autor reunidos em: “Problemas estruturais do Estado capitalista’ (1984) e “Trabalho ¢ sociedade: Problemas estruturais ¢ perspectivas para com 0 futuro da sociedade do trabalho” (1991). 3. Para aprofundar esta argumentacio ¢ os dois conceitos a cla relacionados ~ “proletarizagao passiva’ e "proletarizacio ativa”, ver especialmente o texto de Lenhardt & Offe intitulado “Teoria do Estado ¢ politica social; entativas de explicagées politico-sociolégicas para as fungGes e os processos inovadores da politica social’, p. 10-56 da coletinea de Offe, op. cit, 4, Usilizo pata este fim, especialmente os textos de Friedman, Capitalismo e liberdade (1977), de Hayek, O camino da servidao (1977). 5. Em sua obra Teoria Geral, de 1936, se referc, entre outros pontos, & presenga de um Estado interventor, capaz de instaurar uma base planejada de desenvolvimento, capaz de regular a oferta de investimentos ¢ de emprego (“pleno emprego”), um Estado com agGes redistributivistas, inclusive através de altos impostos. ‘STATE AND SOCIAL (PUBLIC) POLICIES ABSTRACT: To better understand and assess the social public policies implemented by a government, one needs to comprehend the conception of State and social policies underlying these actions and intervention programs, In this field, different visions of society, Stase and educational policy yield different intervention projects. Focusing on the Marxist and neoliberal approaches ofthe topic, this text seeks to bring forward elements that contri- bute to understand this relationship. Key-words: State and social policies; Public policies and education; Educational Policies. 40 Cadernos Cedes, ano XXI, n° 55, novembro/2001 Referéncias bibliogréficas FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. Sao Paulo: Arte Nova, 1977. HAYEK, Friedrich. O caminho da servidéo. Porto Alegre: Globo, 1977. OFFE, Claus. Algumas contradigées do Estado Social Moderno. Trabalho & Sociedade: Problemas estruturais ¢ perspectivas para 0 futuro da sociedade do trabalho, vol. 2, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991 OFFE, Claus. Problemas estruturais do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. SMITH, Adam. A riqueza das nagées — investigacao sobre sua natureza suas causas. Sao Paulo: Abril Cultural, 1983. Cadernos Cedes, ano XXI, n° 55, novembro/2001 4

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