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OBRAS COMPLETAS DE Josué de Castro A OBRA CULTURAL BRASILEIRA MAIS DIFUNDIDA E COMENTADA NO MUNDO INTEIRO. ublicada no mundo nom tot de mois de 400.000 exempl Fremiada nos EULA. com o Prémio Franklin Deland: Rowell = 1952, Tradusida em 19 idiomas, Gonsigrada com o Prémio Totemacional da Paz — 1054, Selesonads nos EULA, pela orgeniztio do livro do més, do. Book Find Chi, Dustinguido um dos seus livos — a Goopolitien da Fome — pela Asso- eiisio Americana de Bibliotess, como um dos “lives. natively" do 1050, Conlensada » obra pelas publicgtes “Collis” © “Readers Digest Catholic, nos ELU.A, © por “Constellation” na Frangn, Preface ext suas eigbes estrngeias por persnalidades tavulgaes, tals como Lorde Boyel Or, Pent! Buck, do'Andké Mayer, Max Sone Carlo Levi e Pedro Escudero. Obra distingulda pela Assciacto Brae de Esertres com o Premio Pan Caligera. Obra consagrada pela Academia Brasileira de Letras com o Primo José Verisimo, Gonstituem as suas Obras Gotplotas os seguintes eolumes: I VOL, — Geografin da Fome I VOL. — Geopolitien da Fome (C parte) UI VOL. — Geopolitica da Fome (II parte) IV VOL. — Documentéria do Nordesto V VOL, — Bnsaiss de Geografia Humana VI VOL. — Ensaios de Biologia Social VII VOL. — 0 Livro Negro da Fome VII VOL. — Sete Palos de Terra e um Caixao ‘Um aspecto da realidade brasileira e o grande dratia do Mundo — a Fome — estudados por um cientista ¢ divulgados por um escritor de invulgar mérito literirio. A colegao que todo brasileiro deve possuir em sua estante. EDITORA BRASILIEN: BM TODAS AS LIVRARIAS 0} ia Bardo de Retin, (3 - LO REEMUOLSO POSTA\ Dec eos a ts Area Explosiva at Palmos de Terra SETE PALMOS DE TERRA E UM CAIXAO revisio oxtogeiliea Bextme Mexors pe ALMEIDs 4 JOSUE DE CASTRO . = SVE AREA EXPLOSIVA ENSAIO SOBRE 0 NORDE aa BNIDAO $4450 1401054450 WA EDITONA BRASHLIENSE sia Pauho tone Gowvém notar, de logo, que « citncis te um pont de pide que Jeay: Wan Pensamos que a obra do socilogs seni sempre uma sntevengi «que seri fengmar aos outros © jludir esi mes wtdade © a respomabilidade que cht conporta Castn.to Prise | | | DON FERNANDO DE OLIVEIRA. Vous oubliez que des millers, des millions, Drilersient pour Yéteraité en’ enfer, st les’ Espagaols © Jenr appostaient pas ly fi DON ALVARO Dapo: Mais des mills dEspaguols bedleront pour Iter ten enker, parce quits sexont alles au Nouveau Monde, DON BERNAL DE LA ENGINA: Comme si, bien avant Grenade, on ‘aimait pas Vor! DON ALVARO Dano. On aimalt oe parcce el donnait le pouvoie et qu'se ses Je pow on Fat de tas ees ate: sree cet OF on em fait de pees. Henry de Montherlant dlans Ia piee “Le Maitre de: Santing! EXPLICAGOES Este livro foi escrito entre outubro de 1962 fevereiro de 1964. Quando a 1. ° de abril déste ano um movimento militar depis 6 Presidente Goulart, estabelecenda um névo govérno no Brasil, 0s originais déste livro ja se encontravam nas mios do tradutor, que terminava a sna versio inglésa. O primeira impulso do’autor foi o de pedir a devolugao destes originals para actescentar ao livro um ndvo capitulo, concemente a éste recente episédio, tio ligado em suas origens e em sua expressio politica 4 Tata que se vem travando com intensidade eréscento ho Brasil, entre as forgas de emancipagio nacional ¢ as f6rcas de contengio do desenvolvimento econémico-social do pais. Mas, melhor refletindo, resolveu 0 autor deixar que o livro fesse publicada tal como fora concebido e redigido, antes do golpe militar de 1° de abril. Pesow sobremodo nesta sia de- ‘isio a conviceao de que nada poderia éle acrescentar ao livro que explicasse melhor os fatos recentemente ocorridos, do que 6 conhecimento dos autecedentes histéricos desta regiio explo- siva ¢ da sua interpretagio sociolégica, como tentara 0 autor apresentar neste livro, antes de si do © como poderia ocorrer a explosao. ‘Acrescentar qualquer coisa depois que suas previsbes j& comecam a se realizar seria tirar 0 possivel valor do livro como diagndstico © como prognéstico de wma situagiio histérico-cultural. Seria yeduzi-lo aum. simples in- ventitio das calamidades que o Brasil atravessa, Preferimos, pois, publicar 0 diagnéstico, ou sefa, uma interpretagio © nio tun inventii Devemos também explicar, que na elaboragio déste livro, contou © autor com a colaboragio do socidlogo. brasil Alberto Passos Guimaries, a quem se deve a fundamentagio dos capitulos dedicados ao estudo do feudalismo agrario brae sileiro © da sua evolugio socioligica. Contou, também, com spat ‘le varios amigos c eolegas do Nordeste, que The ‘rviaram informagoes ¢ dados recentes da situagio econdmico- “social da regiao durante 0 periodo de preparagao déste ensaio, pensado e escrito na Ewopa. A todos que prestaram generosa Imente sua contribuigio a realizagio déste livto, desejamos apresentar nossos.sincerosagradecimentos. Genebva, maio de 1964, INTRODUGAO © Nordeste do Brasil foi descoberto pelos portuguéses no ano de 1500 ¢ pelos nortoamenicanes no de 1960, As was des. cobertas foram feitas por engano. Em 1500 gracas a um érr0 de navegacio; em 1960 gracas a um érro de interpretacao. Os portuguéses erraram na geografias os norte-americanos na his- t6ria. Mas, nos dois casos, os desvias de rota — a distorciio da rota ocednica ou da rota sociolégica — contam decisivamente na Historia, Sdbre o primeiro engano — a descoberta casual feita por Pedro Alvares Cabral hd quase cinco séculos — existe ho) ‘uma literatura abundante. Sébre @ segunda descoberta, ai tao recente, «@ literatura é pobre. Pste loro pretende representar um documento desta se gunda descoberta: wna modesta contribuigio & historia da ri descoberta do Nordeste brasileiro, Uma espécie, mal compe- rando, de carta de Pero Vaz Caminha (1) das nassos dias, na qual as. coisas sejam mastradas como as coisas sao, em sua dura © crua. realidade, Mostrando-se sempre as was faces da mes datha: @ face boa ea face mi. A que nas enche de orgulho € @ que nos mata de vergonha. Evitaremos desta forma que acontega com 0 Nordeste 6 que eastuma acontecer em seguida ds grandes descobertas: a tendéncia @ disseminagio pelos qua- tro cantos da Terra de um mundo de tendas, em lugar de fatos, sercindo a formagio de wma falsa imagem da terra ¢ do povo descobertas. Isto 6 hoje tanto mais perigoso quando vicemos numa era de slogans. Dos slogans jorulisticos, que fentam re- duzir tda a terra esquemiticamente a um tabuleiro de_xadres, com os seus quadrados exatas ¢ com os exaias Timites das suas diferenies coloracées. Como todo tiero significa, em diltima andlise, wma expli- cago, pretende comecar por explicar éste licro, por explicar 2 Sew como eo seu parqué. Como 0 autor 0 conceben ¢ porque 1st assim 0 concebeu, Talves esta explicagéo preliminar, na qual © autor procura se explicar como autor, facilite ao leitor @ tax refa de aceitar as explicacdes do licro. Isto seria wna grande coisa, Seria alcancar praticamente todas os nossos objeticas que do sio outros sendo o de obter aliados conscientes para de- fender certas idéias que, a nosso ver, mesecem ser ardorosa- mente defendidas. Uina'das primelras coisas que me parece necessdrio explicar & que éste livro foi especialmente escrito @ pedido de uma editéra dos Estados Unides da América para © piiblico noste-americano. E que desta forma ndo se deve ailmi- rar 0 leitor brasileiro de néle encontrar muitas evisas que the parecertéo por demais sabidas, desite que éle as conhece como se fdssem tracos da pala de sua mao, mas que, no entonto, sto coisas totalmente ignoradas pelo leitor médio dos Estados Unidos, como se féssem tracas da outra face da Lua. Esorevendo para wm mundo tao diferente do nosso, tao distante de nossa realidade social, era preciso dar uma idéia precisa da regiao estudada, caracierizandona com o que cla tem de mais tipico, @, portanto, de mais conhecido no seu contexto social. Nao po- dia, pois, fugir 0 autor a esta enumeragdo de muita coisa que pode parecer demasiado terra a terra aos ollios dos habitantes da Terra ow dos estudiosos e dos eruditos, dos seus hdbitos ¢ costumes tradicionais. Mas, desta tela de funda bem conhecida em sew conjunto, © autor procura destacar numa perspective, que éle julga até certo ponto diferente, alguns trngos jndamentats jd conhecidos © outros, que até hoje tinkam passado desapercebidos da maio- ria, ¢ desta forma, 0 relrato que éle pretende tracar do Nor- deste talvez apresente alguma coisa do ndvo. Peto menos wt- quilo que no proprio Noideste também & nivo, como é 0 caso da revolugéo social que ui se processa em nossos dias. Arrisca-se déste modo 0 autor a ser julgado por uns como tum repetidor macante de coisas jd ditas ¢ por outros como 1m grande fantasista, que pinta uma reatidade da qual os outros autores ruined se tinkam dado conta. Tinhamos consciéncia destes riscos, quando empreendemas nosso projeto, © estamos hosso ver, parte integrante da nossa tarcfa. & que nao ten- cionamos escrever um livro neutro, Um livro com pretensies 1 ser uma fria e rigorosa andlise cientifica da realidade social do Nordesiv. Nao. Nao é éste um ensaio de sociologia clés. . rd sica, De uma sociologia acadlémiea, esportithada na cumisa de forga de uma metodologia que sempre tentou separar, na socié- logo, 0 investigador do homem, e limitando sempre a funcio do’ socidiogo, a de um simples inventariante de tudo aquilo que se apresenta aos seus ollics, teleguiados por métodos de trabalho ‘consagrados. O nosso estudo sociolégico € 0 oposto déste género de ensaio, ¥ um esiudo de sociologia participante ow comprometida(2). De uma sociologia que nao teme inter. ferir no processo da mudanca social com os seus achados ¢, por isto mesmo, ndo tem o menor interésse em encobrir as tages de uma realidade social, cuja revelacde posse acarretar pre- jnizos a determinados grupos ou classes dominantes, De tna sociologia. que estulando cientificamente « formato, « orga nizagdo ¢ @ transformagéo de uma sociedade em eias de desen- volvimento, compreende ¢ admite que os valores mais desejd- seis por esta sociedade sao os ligados a mudanca ¢ nao a esta- bilidade, e, por isto mesmo, se aplica em aprofundar ao mdximo 2 sew conhecimento cientifico do mecanismo destes: mudancas. Digo 0 conhecimento cientijico, porque, a mew ver, a socio- logia comprometida com 0 processo social nto detwa de ser cientifica, por éste seu engajamento, Ao contrério, ela é bem inais cientifica do que a antiga soviologia, que se presumta cien- lifica, mas nto passava em seu falso ciestificismo de wn ins- trumento de inconsciente mistifieagio da realidade social, cujo contacto direto ela sempre cvitava, preocupada pela fragitidade ddog sistemas em cigor € pelo reccio de que aa menor contecto tudo pudesse vir abaivo. No jundo, a antiga soviologia era mals utépica do que cientifica, e@ sua utopia consistia exatamente no seu inconsciente descjo de que 0 processo social se imo- bitizasse, para ser melhor folografado, ‘Desta forma, @ anliga sociologia era bem mais comprometida do que a sociologia nova, cuja validade cientifiea defendemos, Mas era compromettda com wma ideotogia do imobilismo, de uma imagem estética da sociedade, considerada como una coisa jé fetta, defi perfeita, enquanto a nova soctologia considera a estrutura social como un processo em constante e répida transformagio. Ade- ais, a verdadeira sociologia ciemtifica, como qualquer oxtro ramo da ciéncia contemporinea, 6 bem menos arrogante acén de suas vordades do que a soctologia cléssica, deste que hej se sabe muito bem como tddas as verdades sto relaticas, E que 0 que chamames de realidades cientificas, nfo sé no mundo [a5] da sociologia, mas mesmo no terreno mais sélido da naturesa fisica, sao sempre produtos da interagao entre os préprios fatos 2 0 alo de obsciear do pesquisador, e que na verdade nao exis tem realidades fora do campo de nossa obsercagao. [Hd apenas passibilidades. A transigdo do possivel ao real tem lugar sem pre durante o ato de obsesvar, como afirmou Heisenberz, pondo una nota de prudéncia na atitude wm tanto inprudente de certos tipos de cientistas intolerantes(3). As verdades cient. ficas si0, pots, sempre relativas, desde que estdo sempre na estrita dependéncia do momento da observagio ¢ da perspee- fica em que se colaca 0 observador. Nao é outro o sentido mais goral da teoria da selatividade de Kinsiein, através da qual se ‘chega a conclusdo inapeldvel de que o que nds descrevemos, em verdade, néo é a Naturcza tal qual ela é, mas ial qual ela se mostra na perspectica dos nossos métodos de obsercucda, BE esla insergiio inevitével do obsereadior sociolégico dentro. do processo social que, a nosso ver, toma impossivel a sua néo Participagao nos fendmenes que cle observa, incalidando a sua pretensio de obter uma imagem do veal que ndo seja defor: mada, jé ndo digo por sua ideotogia, mas por sua idealizagao, isto é, pelas imagens preconcebidas do sew conhecimento exis. tenclal(4). Se a reproducio das imagens «lo mundo natural é sempre elvada de certas deformacées, imagine-se como nao cres- com estas deformacdes, quando se observa 0 mundo dos fend. menos sociais: da vida humana associativa, @ qual o obsereador esta ligado por tacos de solidariedade ou de antagonismo, dos quais @ propria estrutura do sew pensamento ligico nao poderé jamais se liberter inteiramente(3) Ai esto as razdes porque nao acreditamas no que se chama de sociologia indepentdente, de sociotogia neutra sem outras ligagdes com os aspectos sociais que os de sua fria ¢ distunte absereacio. # dste 0 nosso conceito de sociologia, ¢ é esta a perspectiva sociolégica em que lecaremas a efeita este ensaio. Os fatos néle expostos decerdo ser tomadlos sempre como a eristalizacdo do que se esté passando no Nordeste do Brasil, na perspectca de um estudio dstes probes, mas que € a0 mesmo tempo um habitante desta regido, impregnado de corpo ¢ alma da vida desta terra e do sentimento de sua gente. Que embora este esiutioso tenha vivido em varios paises do mundo, nunca se libertou intciramente da crosta telirica que reeobre até hoje a sua pele ea sua alma, ¢ que dele faz, tum (30) eterno regionalista, embora com pretensdes de ser wm espirite universal, mas que poe sempre como térmo de comparagao ao set tniversalisme os valores regionais da terra onde nascou ¢ onde formou a sua mentalidade, Ne verdade 0 que queremos impor ao mundo, com éste licro, é um retrato do Novdeste como 0 vé um homem desta regiio, embora extremamente inte- essado pelo espeticulo do mundo. Retrato que, a nosso ver. tepresenta a realidade com menores deformucaes do que os retratos do Nordeste, tracados com 0 maior rigor ¢ probidade cientifica pela maioria dos estudiosas dos problemas sociais, hhabitantes: de outras terrax ow continentes. E isto porque as perspectivas dsses estudiosas, longe de ajudé-los, os conduzen frremediivelmente as grandes deformasées, Deformacaes tanto maiores quanto mais éles tentam penetrar nossa realidade, para superpé-la, através do método comparativo, as realidades sociais ‘om que estdo familiarizados em seus paises, transformando-se perigosamente naguilo que um socidlogo brasiletto chamou vam muita propredade de "transferidores de enltara Na verdade, foi nesta direedo que partimos. Na busca de um setrato socialdgica do Nordeste. Mas no caminho verifica- mos que o retrato assim pitado arriscava a apresentarse um unto incompleto: ser muito estilizado ou muito fotogrdfico. Duas deformacées que desejdcamos ecitar. Jai demos a enten- der que 0 nosso objetivo fundamental é 0 de mostrar 0 pro. e880 de transformagao social aeclerado que 0 Norieste esté vivendo, E mostié-lo, no contexto integral dle suas trégicas cone lwadigaes € dos dilacerantes antagonisinas de suas forcas sociais Sao as mudancus, os tacos eambiantes de sua palsagem hu nana, que desejamos apreender ¢ retratar: 0 complero pro. deme do sew desencoteimento econdmico ¢ social Provessd lo uma tal complexidade, pelo jégo dos miiltiplos fatires que deles participa, que torna’ dificil o sew approach através de um taque unilateral por meio das indagagées vdlidas que the possa qualquer disciplina cientifiea tsolada, mesmo. quando esta lisciplina ¢ a sociologia habituada « lidar com sistemas com- dlexos. A verdude é que os especialistas, se sentem submersos liante do mundo de varidceis que encobrem todo 0 seu horl- zonte de obsereaedo, quando procuram analisar 0 proceso de desenvoleimento. Como a caracteristica essencial da_ciéncia sempre foi a da simplificagao e da eliminagio das voridvets em busca de leis gerais, esta tentatica no campo do desenoolei- ta) mento social jamais poderd ser lovada a efeito por um 86 setor de especialistas: sejam les gedgrafos ow antropélogos, socié- logos ou economistas. “Na_prdtica, a complexidade do processo do desencotoi- mento, toma os especialistas ow o técnico auto-suficiente exire- mamente porigosos, ¢ isto porque nenhuma mentalidede iso- Jada & capaz de compreender, em sua totalidude, tédas as nuances de uma sociedade en transicao”, afirmou sm editoriax Tista do New Scientist(6). O assunto realmente extrapola os limites de qualquer disciplina ¢ éste tem sido um dos principais moticos dos seguidos fracassos dos planos de desenvolvimento elaborados no papel, por economistas renomados, que dispu- ham, enéretanto, apenas dé uma visio puramente ccondmica do problema, Para evitar o fracasso irremediével do retrato que finhamos cm mente tragar do Nordeste, fomos conducidos a necessidade de néo limitarmos 0 nosso ensaia dis fronteiras con- vencionais da sociologia, mesmo de wma sociologia libertada das peias do convencionalismo cléssico(7). Achamos que, para der a0 reirato um colorido que nao se distancie muito das nuan- ces vivas de sua reatidade, tinhamos que usar tintas de edrias origens, molhando aqui ¢ acolé 0 nosso pincel no campo da geografta, da economia, da antropotogia, da etnografia e de ede Tiasoutras disciplinas,. que tentam surpreender aspectos par ciais da vida coletiva. Foi desta forma que chegamos & con- elusdo que 0 nosso ensaio nao podia rigorosamente ser consi- derado como um ensaio sociolégico. B apenas um ensaio, to- mando-se a palavra na acepedo de tentatica: tentatica de pe- neta © porcdentro das cous, & exe wna fonatca de inter retacao desta regiae, considerada uma das dreas explosivas do Inundo dle nessoe dae. Into 6 como uma dren one as tensdes sociais, esto alcancando os limites do tolerdvel — limite em que 0s conjlitos Tatentes entram em combustiio vidlenta, proco- cando a explosio social. & esta uma das poneas obsercacées vélidas no contexto das lendas que hoje circulam no mundo sébre 0 Nordeste brasileiro. O Nordeste ¢ realmente wma érea explosiva, como procuraremos mostrar neste casaio, com ima carga explosiea bem maior do que as cargas existenies na mato- ia das supostas dreas explosioas da Africa e do Oriente: no Congo, na Africa do Sul, na India, no Vieinam. E se nessas zonas da Sjriea ¢ da Asia os sintomas de explosao se tem ma- nifestado com maior insisténcia, & que os fatdres capazes de de- Tis) tonar 0 processo tém sido ai bom mais ativo, e continuamente postas em agdo @ propaganda tdeoldgica a lideranca recolu- ciondria, Bem mais attcos do que no Nordeste do Brasil, onde 1 tensdo social explosiva nunea foi habilmente canalizade para 8 caminko dla recolugao. Foi, quando muito, estimuleda como instrumento de demagogia politica ow como arma de uta de tum grupo contra outro grupo de poderosos, nunca cono autén- tica forca de libertagdo através da explosio popular. Mas férca explosiva nao faite. O que tem faltado & 0 estopim, ou quem acenda 0 estopin, A andlise elucidativa desta situagio de. sus- pense social, na qual poderd de sepente se cristalizar uma nova férea detonante, capa de se propagar rdpidamente por téda 4 massa explosica mantida até hoje sob pressio, constitut un abjetico da mais alta importincia para 0 Norleste ¢ para 0 mundo, Para 0 Nordeste, porque 0 conhecimento exato da si- luagio poderé permitir que sejam essas forgas ou tensdes 30 ciais convenientemente dirigidas num sentido construtivo ¢ criador. E para 0 mundo, porque o problema das tensées sociais do Nordeste é, com algumas nuances que 0 singulariza, o mesmo problema das tensdes sociais reinantes em todo 0 mindo sub- desenvoluido, que representa em seu conjunto um dos pélos explosives do mundo atual. E claro que no esquema geral de nossos objetivos, no que diz respeito ao préprio Nordeste, no acreditamos que qualquer interpretagao de sua realidade, por mais licida que ela sejt, possa ter a cirlude mégica de muter 1 direcao da Historia ¢ de resolver da noite para o dia os angus- tiantes problemas da regido. Mas estamos certos de que a ani lise actirada dos fatdres subterrineos désse. drama sociolégico € a sua recclacio a consciéncia coletiva ajudardo 0 processo de conseientizagao(8) das masses nordestinas, que é 0 fenémeno mais caracteristico da dinémica social desta area nos nossos dias, ¢ através da qual essas masses fomam hoje consciéncia de seus angustiantes problemas ¢ procuram acelerar por todos 2 mcios as reagies sociais, necessdrias @ sua libertacto do eir- culo angustiante das privagaes que eriaram @ sua angistia ou neurose coletiva, A psicandilise desta neurose, causada por inti meros complexos de frustragio de um poco espoliado e opri- mido hd varios séculos, deve ser tevada a afeito com acuidade © com probidade. Nao apenas para resolver os conflitos psico- 6gicos que geram a propria neurose e que, desmontados, po- Aerio curé-la, provocando no entanto com a cura 0 esta: (97 mento de téda a energia criadora, indispensicel & vida, tanto des individuos como da coletividade. Nao apenas para realizar esta espécie de eastracdo, que é em certos casos o processo and- litico redutivo, quando em sut cura aparente extermina tam. bém a citalidede que dé sentido a prépria vida, mas sim para revelar tanto a natureza exata dos problemas, como os cumi- hos possiveis que poderdo ser enconteados, para se transpor 0s obsticulos aparentemente intransponiveis, £ dentro destes prin cipios da técnica construttea preserita por Jung(9), que julgo til levar a feito uma andlise da alma coletica do Nordeste, para que possa 0 seu poco consimar 0 processo de sua revoluciio social, com 0 minimo de sofrimento e com o minimo ite violencia, E para levé-la a efeito com a necesséria conviegio que € éste 0 tinico remédio para os seus males ¢ que éste re- édio esté ao seu aleance. E, quanto ao mundo, qual a. sua atitude diante déste drama regional? Que interésse ‘poderé tex para o mundo a sorte déstes nordestinos, devoradas por seu complexo de frustragto ¢ colocacos & margem da Histiria, da qual préiticamente nunca participaram? A nosso ver, o interésse do mundo por esta érea ja hoje é bem grande ¢ tende a eres. cer cada vez mais. E isto por varias razbes. As elites dirigentes dos paises lideres comecam hoje « se aperceber que un grande nimero de seus crros de fulgamento, de desastrosas conseqiién- cias para os seus interésses, foram produtos de sta quase que total tgnordncia da carta do mundo(10). Da carta do grande mundo e néo do pequeno mundo das suas preacupagdes mais imediatas, no qual se concentrara até a priheira guerra mtu. dial todo 0 interésse dos povos bem desencotvides: 0 chamado Mundo Ocidental. Até cific era como se sé 0 Ocidente exis- lisse (¢ 0 Ocidente exe apenas 0 conjunto dos paises colocados dos dois lados do Atlintico Norte), ¢ como se o resto do mundo fésse apenas uma eaga massa de terra sem maior interésse nem significado. Esta a imagem que nos evoca Toynbeo( 11) quan- do nos fata do Mundo ¢ do Ocidente: 0 Ocidente sujetto fabri- cante da Histéria, © 0 mundo, isto é, 0 resto, apenas como objeto desta Histéria, Esta é a histéria das agressées do Ocidente con- tra o mundo, que Toynbee descreve com tanta lucides. Mas, do prdprio encontro do Ocidente com o mundo, que o mesino Toynbee considera como o mais significativo acontecimento da histéria moderna, nasceu wma nova conseiéneia politica mune dial = @ consci¢ncia de que o mundo ji ndo € apenas 0 Oci- [201 Se dente. Que ndo hé apenas wn centro de gravitacado no mundo, que, de acdrdo com as historiadores da coméco do nosso século, estaca colocade no centro da Europa, considerado como 0 co- racdo da terra—the heartland sendo 0 resto uma espécie de ‘tha. A itha do mundo, de quo nos deixow um mapa expressive a eriador deste teoria to heartland, Halford Neckinder(12) Hoje, 0 centro do mundo esté por tada parte e a ilha do mando passow a fazer parte do continente da Histéria, poique por téda parte hoje se faz historia, e essa histdria repercute em tdda parte do mundo. Dai a preocupagdo mundial em nossos dias de co- nhecer melhor terras como estas do Nordeste, que até omem pareciam sem qualquer significaao para o mundo, mas que hoje se apresentam como um foco de grande interésse interna~ ional, pela carga de explosao social que encerran, podendo se converter, de repemte, no cendrio de profundas transformagaes historicas. £ constatando hoje a profunda verdade contida na frase de tum estadista do império britdnico, quando diz que “o custo da ignordncia geogrdfica tem sida incomenswrdvel”, « ndo querendlo ser tomado de surprésa pelos fatos histéricos em seu acclerado suceder que os divigentes do mundo de hofe estao tio interes- sados em atualizar a sua carta do mundo © em precisar nela os tracos mats significativos destas dreas de maior tensdo social donde as jorcas de transformagao ameacam romper os diques das orcas de contengao, alterando os desenhos da carta atual, O Nordesie brasileiro, & sem nenhuma ditvida, uma destas dreas. Dai o interésse do mundo em obter uma imagem mais exata de sua realidade social, una imagem isenta de preconceitos & de falsas nogdes. Em obter, numa palavra, uma carta atualizada da segito, Umm dos objetivos déste licro é 0 de fornecer elementos informativos seguros para o leeantamento desta caste. E de for- neeé=los principalmente aos Estados Unidos e a certos paises da Europa onde hoje tanto se fala do Nordeste, sem se dizer guase nada do verdadeiro Nordeste ¢ dos scus autenticos pro- blemas humanos. Foi esia « sazto principal que nos Tevou a aceitar @ proposta de uma editéra norte-americana para escre- ver éste pequeno licro. Livro no qual tentaremos dar uma ima- gem mais nitida da realidade social dessa regio onde vinte ¢ lrés mithdes de séres vivos tutam para abrir 6 caminho de su emaneipagdo, através do denso cépoal trancado pelas circunstin- fay cias histéricas adversas, produtos de erros ¢ omissoes, tanto da litica nacional como a politica internacional, éste 0 nosso principal objetivo, ao escrecermos éste livro: o de fazer pene- trar wm pouco de luz neste cipoal escuro, embora esteja 0 autor, certo de que esta Inz 36 chegaré aos olhos daqueles que real- mente quevem ensergéla, porgue os ouiros, aguéles que se ne- gm a tera coldénci, dante de Heros como tate, flcirdo ainda ‘inais eegos — cegos de raiva ou cogos de médo. NOTAS BIDLIOGRAFICAS sod 1— VAZ DE CAMINHA, PERO, Carta a ELRel D. Manuel, 1500. FERRAROTE, FRANCO, a Socialogie come Partecipasione, Tw rim, 1961 3 — HEISENBERG, W., Physique et Philosophie, Paris, 1951, f= WAIIL, JEAN, Science et Philosophic, in “Ciedtd dello Macchine Homa, n° 2, 1968, RTON, ROBERT K,, Sacial Theory andl Social Structure, Glens col, 1957. 6 — Baditorial World of Opportunity, in “New Scientist”, n.% 826, 14 de fevereiro do 1953, MACCLUNG LEE, A., Partecin Sociologia, in “Rassegom Italiana di Sociologia’ 1961 AVILA, FERNANDO BASTOS de, A Roalidude Brasileira em sua Dimensio Socioldzieg, tn “Sintese Politica, Feondmniea, Social”, Hio de Janeito, m2 14, 1962. 9 — MARTIN, P. W Experiment in Depth, Londres, 105% . 10 — MENDE, TIBOR, Regards sur Pilstre de Demat, Paris, 1954 Al — TOYNBEE, ARNOLD, The World and the West, Oxford, 1953. 12 — MACKINDER, HALFORD, Our Beoleing Civilization, an Intro- duction to Geopolitics, 1 19. so Nella Recerca janeira-margo de le ed An Capit A REIVINDICACAO DOS MORTOS Nenhum dos mortos daqut vem vestido de caisio, Portanto éles nia se entersam so. der Lod \Jos 0. eho, Joio Cannan pe Metta Nero em “Cemitézies Perambucanos M_ 1955, Joio Firmino, morsdor do Engenho Galiléia, fundava a primeira das Ligas Camponesas no Nordeste leiro, Nao fora seu objetivo principal, como muita gente pensa, o de melhorar as condigées de vida dos eam- poneses da regio agueareira, ow de defender os interésses désses hagagos humanos, esmagados pelt roda do destino, como a cana é esmagada pela moenda dos engenhos de agicar. O objetivo inicial das Ligas fora 0 de defender 5 interésses © os direitos dos mortos, nfo ox dos _vivos. Os interésses clos mortos de fome e de misérias; os direitos dos camponeses mortos na extrema miséria da bagaeeira, E para Ihes dar 0 direito de dispor de sete palmos de ter ra onde deseansar 0s sous o3s0s ¢ 0 de fazer deseer 0 seu corpo & sepultura dentro de um caixio de madeira de pro- priedade do morto, para com éle apodrecer_lentamente pela eternidade afora, Para isto é que foram fundada: Ligas Camponesas. De inicio, tinham assim muito mai Yer com a morte do que com a vida, mesmo porque com a nao havia muito o que fazer... S6 mesmo a resi hagio. A resignacio A fome, ao sofrimento ¢ A humilhagdo, Mas, se [4 nao havia interésse dessa gente em lutar pela vida — em lutar por uma vida melhor e mais deeente, por a JosU& DE CASTRO éste obstinado empenho em reivindicar direitos na toem vida! Por gue esta desvairada aspiragio de possuir, depois de morto, sete palmos de terra, por parte de suet na vida nao dispusera, de seu, nem de uma polegada de solo, pertencendo quase todos, aos imenso nate lbbes dos s -terra que povoam o Nordeste brasileiro? E ‘por que it rado, quando em vida ésses deserdados da iu foram proprietérios de nada — nem de terra, nam dao i nem mesmo do seu proprio corpo e de sua pearl 2 ey alugados a vida inteira aos senhores da terra? Por ce Fa ce © ee ee am Sa ned ca rar garantida. Um direito que ninguém Ihes tira ° Cana sia @ das injustigas da vida. Tudo mats € incerto, ine Re eae er eB ens coo ® eeasas “Sagrada Palavra eonsoladora para Bantles que hé muito j4 tinham perdido toda a esper ange quistar um Ingar decente nos reinos di Terra. jnurdarumt regime agrario de tipo feudal — ali implantado pel i. $9 Jonos portuguéses sob a forma do latifindio sacravocratss produtor de agitcar(1) — e a resistén elasinvanctve) # ate ‘regime em ceder a qualquer exigéncia ou reivi indieasto ace camponeses para melhorar um pouco suas trig ee gées de vida acabaram por dar a esta gente 2 be ene da inutilidade de qualquer esf6rgo para sair do ai ee a ‘A poesia popular, os a-bé-cés dos canta a PALMOS DE TERRA E UM CAIXAG a5 a tradicto e a Historia sempre se referiram as antigas revoltas camponesas como a “Balaiada”, “A Reptblica de Palmares”, “Canudos”, nas quais camponeses desesperados lutaram initilmente contra os senhores prepotentes. E verdade que, para sermos justos, néo podemos es quecer que os escravos deseendentes dos negros trazides da Africa pelos portuguéses tinham obtido em 1888 a sua li- bertagao. A libertagio de sua “igalé perpétua” de que fa lava Castro Alves, 0 poeta da Abolicao, Mas, ter-se-ia mes. mo libertado, os escravos, da eseravidiio? Ou apenas se tinham libertado do oprdbrio de serem chamados escravos, para continuarem os mesmos eseravos com 0 nome de mo. radores — de servos de seus antigos senhores feudais? ‘A verdade é que, escravos ou servos, moradores ou foreiros, © que Thes tocara até hoje fora sempre a mesma cota de sacrificios, de trabalhos forcados, de fome e de miséria: a mesma heranga que Ihes havia legado a eseravidao. Dele xando de serem eseravos de um dono, para serem eseravos de um sistema: eseravos do latifundio agucareiro. Para serem triturades como bagago pela engrenagem déste sistema econdmico, dos mais desumanos que ainda perduram na superficie da Terra, Mas que foi, sem ne- nhuma dévida, hé quatro séculos, o sistema que’ deu con. sisténcia politien © base econdmica ao pafs em formacao, Que permitin que se implantasse neste Nordeste a primei. 2a organizacho econdmica de além-mar, que daria no séeulo VI & metrépole portuguésa o monopélig de um produto nos mereados europeus: 0 monopdlio da plantagao da cana, da indistria e do coméreio acueareios, ‘Tudo isto feito % base do trabalho escravo. Da total escravidio do homem ¢ da terra, submetidos incondicionalmente a servigo da am- bigtio dos grandes senhores feudais de enriquecerem de. pressa, plantando sempre mais enna e produzindo sempre mais acticar. TE entregando-se de corpo e alma a esta au- @aciosa aventura acueareiva, sem medix suas conseqiién clas e sem atender a qualquer sentimentalismo, obedecendo apenas ao insaciiivel apetite do ouro e ao desadorado ape- tte da cana, objeto de sua adoracio. Ao feroz apetite desta planta, de dispor sempre de novas terras para serem en- Kolidas pelos canaviais ¢ de dispor sempre de mais bragos 6 JOSUE DE CASTRO humanos para seem quebrados ou esgotados, no eito, plan- tando, limpando e colhendo cana, ou, nas estradas, puxando fe empurrando os earros de cana, ou nas moendas, ou na estoira das usinas, ou nos cais, carregando ¢ desearregando bs sacos de actiear. Se com o tempo a paisagem da resifio parece ter mudado um pouco — a grande usina moderna fomando o lugar do velho engenho de agua ou de lenha, 0 palacete do dono da usina se erguendo no Iugar da casa. “grande do engenho — a paisagem humana permanecou ‘quase que a mesma.\Os antigos eseraves, que entio viviam na senzala, agora espalhados pelas chogas e pelos easebres no campo e nas aldeias, ou amontoados nas favelas dos ‘mocambos das cidades, verdadeiras senzalas remanescentes, fraecionadas em t6rno das novas easas-grandes, os palace- tes dos novos senhores da terra. Nenhuma forga fora eapaz de quebrar o sistema opressor do latifiindio, que vem pe- sando ha séculos, como uma fatalidade sobre a vida do camponés. (Os cantadores de feira, sempre exaltaram a coragem indémita dos lideres populares, sacrificados nas ondas vio- lentas da represséo, Mas de que serviu todo éste esforeo, toda esta violéncia? Nao serviu para nada, Nem a forea da bala dos eangaceiros, nem a forea da £6 dos misticos ¢ dos beatos deram fim ao sofrimento e & opressio, de que ‘até hoje padecem os camponeses. Nem Antonio Silvino & Lampiiio, heréis do banditismo, cantados pela poesia po- pular, nem o Padre Cicero de Juazeiro e seus misticos Adoradores, puderain mudar o rumo do destino dessa pobre gente, condenada por seu destino histérico a permanecer fempte no fundo do abismo. A se sentirem impotentes, como se 0 carro de seus destinos se tivesse atolado até 0 feixo no barro mole das estradas da cana, no massapé f6f0 @ pesajoso onde se atolam os carros de boi. E quanto mais forea se faz, mais 0 carro se atola, como se o diabo fou 0 destino, ou os dois juntos, agarrassem, de dentro do parro, os raios da roda do carro. Ou como se todos os companheiros de infortinio tivessem sido empurrados pelo mesmo destino, para dentro de um redemoinho, que fosse como um inferno d'Agua, com a forea da miséria puxando sempre, como a correnteza, mais para o fundo, O atoleiro SETE PALMOS DET RHA E UM CALXAO 37 da vida ow o redemoinho da fatalidade sto image pilares com que a gente do Nordeste exprime, ent sea hes suajar simples, a sua revelagio de um fendmeno social ‘que 03 cientistas de hoje, chamaram com Winslow de “pro. cesso elreular cumulativo”(2). Proceso social no qual uma constelagio de faldres negatives atuam de tal forma imbricados, que os grupos pobres fieam sempre cada ver mais pobres, enquanto os ricos cada vez enriguecem mais, E a mesma nogio do ehamado “efreulo vicioso da pobreza” de Nurkse(3), no qual a fome e a pobreza, agindo e rea xindo como dois fatéres de agio cumulativa, fazem com gue 03 famintos ndo possam comer porque ndo sao capa es de produzir © nio produzem porque so famintos. 0 hhomem do Novdeste ignora estas sutilezas, dos socidogos, stes brilhantes jogos de palavras nos quais se fala de ta. tores negativos agindo como causa e efeito dentro do pro. cesso social, mas sente na sua carne a realidade da miséria estagnante e vé sempre erescer diante dos seus olhos a ri queza descomunal dos que enriquecem eada ver mais A custa de sua fome. E é esta revelagéo que ihe fax dizer, sem exteriorizar a sua revolta, que é assim mesmo, que a Agua 6 corre para o mar. E correndo sempre para o mar, @ agua deixa na miséria a terra séea do sertao, e na an! wtistia, 2 alma vessequida do homem do Nordeste. Tao Tessequida que, de vez em quando, esta alma vira pedra — 8 alma ¢ 0 coragio de pedra dos eangaceltos, Nasu: visio fatalista do mundo, dstes séres primitivos cheram A conelusae de que nao ha berragens que possam estanear esta tendéneia inevitével do destino, que Ieva sempre a Sigua para o mar, onde menos falta ela faz, Um sentimento de total impoténeia e da propria desvulia se apoderou da alma do eamponés nordestino. Dai a sua humildade ¢ 0 seu aperente conformismo diante dessa eonspiragio invencivel as foreas naturais ¢ das 1orcas socials, assoeladas amis, 2 0 esmagarem em suas pretensées de obter qualquer melhovia de eondibes de dn, ee Oe obler aualauer nerNt?. foi, porianto, pensando em reivindieaedes dos fem para Tutar contra a exploracio do regime agrério reinante, que os humildes eamponeses do Engenho Ga- 28 JOSUB DE CASTRO liléia fundaram_as Ligas Camponesas, Nao se chamuva o sen engenho Galiléia? O mesmo nome da Terra Santa, onde o doce Jesus pregou pela primeira ver a doutrina da igualdade e da fraternidade humanas, doutrina revolucio- néria, que, durante dois mil anos, ainda ndo conseguiu penetrar de verdade na alma empedernida dos falsos eristios, que dominam uma grande parte do mundo? Por- tanto, quem melhor armado para entender o profeta da Galiléia do que essa pobre gente do Engenho Galiléia, nes- se Nordeste do Brasil? Pobres como os amou Cristo, que por éles se deixou erucificar para que o reino dos céus se estabelecesse na ‘Terra, Quem melhor para sentir os en: namentos e as ligdes de amor do grande profeta da Galiléia do que esta gente destituida de tudo, sem mafores ambi- des neste mundo? Apenas ambieionando um dia se apre- sentarem bem diante dos olhos de Deus. E foi neste ponto que as suas aspiragdes pareeeram um tanto excessivas aos olhos dos outros cristos, os eristaos proprietarios de ter. rras, donos de engenho, senhores do Nordeste, A aspiracéo dos’ associados da Liga era de se prepararem para sua apresentacao no juizo final, em condigdes que nao Thes f6s- sem totalmente desvantajosas, de forma a serem ouvidos pela Autoridade Suprema. ‘A primeira condicao seria, sem diivida, a de se apresentarem diante de Deus com as maos limpa’ de crimes e com a alma limpa de vieios, E isto nfo seria diffeil para a maioria déles Mas no sew en- tender simplista, seria também necessario se apresentarem com um minimo de decéneia, numa hora de tamanha im- portancia e de tanta solenidade: a hora do juizo final, E 6 ai que a stta extrema miséria nao Ihes permitia éste mi- nimo de decéncia. E um habito nessas terras miseraveis que os pobres lavradores, no térmo de suas vidas de misé- ria, sejam levados ao cemitério num eaixto “de earidade”, qué a Prefeitura empresta, mas que tem que ser restituido na béea da cova, para servir outros defuntos. Ora, ser enterrado desta forma, constitui a humilhagao suprema para essa pobre gente, euja vida nio passa de um rosério de humilhagdes. Mas'esta € a maior de todas, porque uma humilhagio que passaré para 0 outro lado da vida SEYE PALMOS DE TERRA E UM CAIXRO 39 — uma humilhagio que durard téda a eternidade. A Liga foi crinda para evitar esta suprema humilhacdo, Quando em 1960 um jornalista entrevistou um dos principais dirigentes da Liga, 0 velho José Francisco de Souza, e lhe perguntou o que tinha a Liga feito em bene- ficio dos pobres camponeses, dle respondeu trangiiilamente: “Veja, mogo. Antes da Liga, quando um de nés morria, 0 caixdo era emprestado pela Prefeitura. Depois que 0 corpo era Jevado A vala comum, o eaixio voltava para 0 depésito municipal. Hoje a Liga paga o entérro e 0 caixfo desce com o morto”. Ali estava o primeizo resultado patente da iniciativa que haviam tomado Joao Firmino e seus companheitos do Engenho Galiléia, 20 fundarem nessas terras de tanta po- breza, uma sociedade civil beneficente, de auxilio-mituo, para ajudar seus moradores a morrer com decéneia: com uma vela na mao, com os olhos fitos na chama desta vela, ue os ajudaria a orientar seus primeiros passos na eset ldo do além, e com a confortadora certeza de que dispu- ham dos seus sete palmos de terra onde pousar o sew caixio e néle esperar trangiiilo o juizo final. Esta insti- tuico beneficente foi denominada “Sociedade Agricola e Pecudria dos Plantadores de Pernambuco". Maso nome nfo pegou. O que pegou foi o apelido. B que logo em seguida a sua eriacao, comecaram a chamar a soeiedade de Liga. De Liga Camponesa. 0 apelido foi botado para des- fazer dela. Para dav-the uma origem considerada suspeita pelos eonservadores, com ocultas ligagdes com o movimento revolueionirio inieiado hé muitos anos noutros pontos do Nordeste, sob a forma de organizagdes camponesas, vinsan- do reunir os trabalhadores da cana numa espécie de sindi cato que thes desse forca politica suficiente para reclamar ¢ para reivindicar. B estas primeiras tentativas tinham sido chamadas de Ligas Camponesas, provavelmente sob a remo. ta inspiragdo das Ligas Camponesas da Tdade Média, eria- das pelo eampesinato europen como instrumento de luta dos servos da gleba contra a opressio intoleravel dos prin- Cipes e dos bardes feudais, Nao se pode esquecer que a co- lonizagéio brasileira se inieiou no Nordeste sob 0 signo do medievalismo feudal, no qual se inspirou Portugal, para 30 JOSUE DE stRo intyoduzir nestas terras o regime das Capitanias Heredi- térias, entregues de mao beijala aos Donos dos Feudos, os barées do Novo Mundo, B que, embora no eoméco do século XVI, quando o Brasil fol eolonizado, ja estivéssemos em plena Renascenea européia, a Peninsula Ybériea, des- viada da sua rota histérica por sua intermindvel luta com o Isla, e isolada geograficamente do resto da Buropa pela barreira dos Pirineus, continuava eneastelada no seu Leu- dalismo agririo, caracteristicamente medieval(4). 5 Por- tugal, ainda mais do que a Espanha, separado do grande mundo por téda a espéssa muralha da Meseta Castelhana, Este secular retardamento hist6rieo £82 com que a coloni- zacio ibérica no Novo Mundo se constituisse como uma emprésa de tipo medieval, como uma sobreviveneia das Gruzadas, impregnada de um espfrito ao mesmo tempo re- ligioso e guerreiro, mistico e de desenfreada cobica, Sob aste aspecto bem diferente da colonizacio inglésa da _Amé- rica, mais de indole burguesa e de espirito moderno, pés- ~renascentisia e pés-luterano. [Dentro do patriménio. me- dieval trazido pelos eolonos portuguéses, com seus habitos arraigados no complexo do latiftindio feudal, é bem possi- vel que tenham os camponeses do Nordeste, também, her- dado a tradicao das Ligas Camponesas do Medievo europen, que um dia iria repontar eom inesperada violéneia no pro: cesso da evolugio social do Nordeste. Como herdeivos pre- sumivels desta Lradiezo secular as 140 familias que habi- tavam as terras do Engenho Galiléia, eriaram a sua Liga Camponesa e depois de elegerem sua primeira diretoria, convidaram, num gesto de tradicional humildade do servo para com o'senhor, o préprio senhor do engenho para ser seu presidente de homa, E éle aceitou, E fése a sua posse com solenidade, com festas e com foguetes. B regis- tyou-se 0 estatuto da sociedade, no qual, além da ajuda funerdria, figuravam como objetivos mais remotos, a aqui- si¢do de sementes e de instrumentos agricolas e a possivel obienglo de uma ajuda governamental. Mas nfo durow muito esta lua de mel do senhor das terras com os seus servos, associados da Liga. £ que outros latifandiarios da redondeza, senhores de engenho como éle, se apressaram em alertélo da loueura que éle tinha feito em se deixar SETE PALMOS DE TERRA E UM CAIXAO 3h envolver por esta perigosa aventura, Em ter consentido a instalagao em suas terras déste perigoso instramento de agitacdo social, Desta espécie de cavalo de Tréia, intron duzido disfarcadamente dentro dos seus dominios de por. teiras fechadas, para abrir na calada da noite todas as por. teiras ao comunismo. E 0 homem assombrouse e no quis mais ser o presidente da sociedade. E exigiu mesmo o seu fechamento imediato. Foi ai que a historia mudou de rumo. A maioria dos eamponeses resistiu ao fechamento, © a partir déste momento, sob a pressfio dos acontecimen: tos, a sociedade mutualista funerdria virou mesmo uma Liga Camponesa para lutar pelos direitos dos eamponeses contra opressio dos mortos, ela iria agora se constitulr como instrumento de reivindieagho dos direitos dos vivos. Mas, nfo 6 mesmo morrendo que melhor se aprende a viver? Pelo menos no Nordeste brasileiro. Foi tratando dos problemas da morte que os camponeses do Engenho Galiléia abviram seus olhos para 2 vida, B viram melhor, € melhor compreenderam as injustigas da vida e quais cram os antores destas injusticas. Era a tomada de eons. cigneia da sua realidade social, fendmeno que vem ocor- rendo em nossos dias por todo o mundo ehamado sub- desenvolvido — mundo escravizado e espoliado — ¢ que naquele dia se cristalizava como uma foxga nova na sociedade fechada e primitiva dos moradores do Engenho Galiléia. E com esta forea éles enfrentaram o palrao, Nilo re submeteram como faziam até eulio, com sua costa. meira docilidade, &8 suas ordens absurdas. Contam que 0 senhor do engenho, como revide a obstinacio do grupo em néio querer fechar a Liga, determinou a suspensio de uma ordem que tinha dedo para que fésse retirada de suas matas a madeira necesséria 2 construgio de uma capela. Os camponeses protestaram contra esta suspensio e 0 pas trfio os ameagou com a polieia, sob o pretexto de que éles bretendiam devastar as suas matas. Seguem-se as intima- 02s, as chamadas & Delegacia e as ameagas dos eapanga: Mas, diante de tudo isto, aumentou eada vez mais a hos lilidade dos eamponeses. 'Surgem entio os processes judi- iérios eontra os mais responsiveis, responsabilizados como agitadores ¢ terroristas. E finalmente apareeeram as agdes JOSUB DE CASTRO de despejo, a expulsio suméria dos camponeses da terra ‘onde sempre viveram, feita em nome da lei, Nesta altura da luta, os camponeses finearam 0 pé. Nao sairiam em paz da terra onde nasceram, onde sofreram todas as agruras da vida © onde esperavam ver enterrados os seus 0580s, E que nenhum povo do mundo se mostra mais enraizado 3 terra, mais profundamente ligado ao seu solo natal do que © povo do Nordeste. Sondando a alma complexa e singu- lar do povo chinés, 0 qual, embora sofrendo ha milénios as agruras periddicas de todos os tipos de cataclismos na- turais, com que Ihes brinda sua terra martirizante — as séoas, as inundagdes, os terremotos, as muvens de gafanho- tos — se mostram sempre fo indissoliwvelmente ligados a esta terra, Keyserling(5) escreveu as seuintes palavras: “Nao hé outro camponés no mundo que dé tal impr de identificacio total com a terra. De partieipar tio tensamente da vida da terra, Tudo na China — toda a vida e téda a morte — se desenrola na terra herdad © homem que pertence a terra, nfo a terra que pertence 20 homem”. Mas hé. Ha outro camponés no mundo, tio iden- tificado com a terra quanto o chinés: 6 o camponés do Nordeste brasileiro, que Keyserling nunca conheceu e do qual 0 mundo inteiro sempre teve bem poueo conhecimento, vivendo 0 Nordeste & margem do mundo, relegado em sua obseuridade e em sua solidao. Mas por isto mesmo, por sua solidao forgada, o homem do Nordeste, abandonado do resto do pais e do mundo, se voltou para 'a sua paisagem cireundante e nela fincou as raizes de sua alma, Mesmo 0 homem do sertéo semi-Arido, que vive uma vida de semi- nomade, escorragado de vez em quando pelo cataclismo das séeas, @ extremamente apegado A sua terra e a ela aspira voltar, sempre que 0 cataclismo passa. Até os seus nomes siio nomes da terra — dos lugares, das aldeias, dos povoa- dos, onde nasceram: Antonio Pedro do Juazeiro, Juca da Serra Talhada, Manoel Jodo da Lagoa Grande... nomes de homens e de terra, eomo na Idade Média, afirma eom certo orgulho 0 eseritor sertanejo Luis da Camara Caseudo(6). ste desadorado amor & terra que sempre Ihe fé% softer, faz com que 0 homem do Nordeste a defenda sempre, até © extremo limite de suas forcas e tenha sempre desta ter- PALMOS DE TERRA E UM CAIXAO 33 ra um chime tio intenso, como se ela fésse uma mulher, E como se éle nao pudesse viver longe dela, exiludo déste amor. E se agora, no meio desta luta intensa, queriam ex- pulsar de suas terras os moradores do Engenho Galiléia em nome da Jei, usando contra éles os subterfiigios da lei, que éles candidamente ignoravam, era necessério, para que éles pudessem se defender e resistir, que fosse consultado um advogado, versado na lei. Mas advogado eusta muito dinheiro e a caixa da Liga estava bem poueo provida de reoursos. Pressionados pelas circunsténeias, proewraram: os dirigentes da Liga um advorada modesto, até entio obsenro, mas que ja havia aceito defender outras eausas de camponeses eseorragados pelos donos de latifiindios nou- tras terras: éste advogado se chamava Franciseo Julia. Aceitando patrocinar a sua causa, Juliéio deu inicio & Inta judiciaria pela permanéncia dos eamponeses na Galiléia, Seu instrumento de luta era o Cédigo Civil, que éle edo ve- rificou ser uma arma de pouca serventia para defender os direitos dos pobres, tendo sido elaborada para defender os interésses dos ricos, enquanto o Cédligo é que fora conce- bido para ser aplieado aos pobres(7). Perdendo terreno ha arena judicidria, Juliio apelou para outro campo de luta, usando, ao lado da tribuna do Péro, a tribuna poli ca, aproveitando a cireunstdncia de dispor de um mandato de Deputado Estadual na Assembléia do Estado de Per hambuco. E foi assim que o advogado Julifio se foj trans. formande poneo a pouco om ngitador social, Em denun- ciador piblico dos crimes hediondos do latifundiarismo, E foi assim que as Ligus Camponesas comegaram a se espa Ihar por toda a regido, com a eriagao de novos niieleos, que Se constituiram sob a pressio das cireunstincias — da violdneia ¢ da opressiio desbragadas do latifundiarismo — num instrumento de agio politica libertadora, esgrimindo a ideologia, © proseletismo, a doutrinagio, Nesta fase de ‘acesa Tuta, a imprensa eomecou a tomar conheeimento das escaramucas mais importantes, relatadas sempre com vio- lentos ataques aos “terroristas” na pagina policial dos jor. nais. Depois o assunto passou para a piina polities, for- hecendo matéria para os artigos de fundo, E as Ligas camponesas foram assim tomando corpo e ganhando nova a JOSUB DE CASTRO alma. Comecaram a assustar sériamente 9 Nordeste intei- xo, como se féssem uma espécie de dragio ameagando en- golir téda a terra dos grandes proprictavios do Nordeste e destruir a paz, a ordem e a riqueza de que sempre go- zaram ésses proprietirios tio amantes da ordem. Nessa onda de violéneias, de mistificacdes ¢ de falsas interpret des no choque entre as aspiragdes populares e as resistén- cias conservadoras, ambas radiealizadas ao extremo, as Li gas foram erlando raizes, projetanda a sombra de suas ver- des esperancas e de suas negras ameacas, pelo pais inteiro, Falava-se delas como se fosse 0 proprio Apocalipse e de Julide, como se fosse o anticristo, Foi neste momento que os Estados Unidos da Amériea redescobriram 0 Nordeste, E esta descoberla se deve em grande parte ao obseuro ¢ ineipiente movimento das Ligas Camponesas. Em fins de 1960, com 0 seu povo extremamente sensivel aos perigos da revolugao comunista de Fidel Castro em Cuba e a sua possivel propagaedio para o continente, a imprensa norte- americana se laneou com um dramatico interésse sobre 0 Nordeste brasileiro explosivo e ameacador. E os Estados Unidos que tinham descoberto vagamente 0 Noreste bra- sileiro durante a segunda guerra mundial, quando os avides de transporte, em viagem para a Africa e a Huropa faziam pouso na regifo, principalmente no aeroporto de Natal, que se transformou na époea no maior aeroporto do mundo, voltaram a descobrir, desta vez com atdnita e perplexa curiosidade, essa terra ignota, Bsse estranho mundo que pareeia uma nova Cuba em formacao: a Cuba continental. Como Cuba, miserdvel e revoltado, Como Cuba possuin- do um lider considerado um marxista, conduzindo & revo- Iuefio, essa massa de deserdados e fanatizados, dispostos a tudo, como foi mostrado em varias reportagens, publicadas nos grandes jornais dos Estados Unidos, e mostrado em imagens de um colorido impressionante, num filme apre- sentado numa grande eadeia de televisio. Era o Nordeste na ordem do dia como vedete, eomo uma espécie de novo For-avest, a acender a imaginagio de milhoes de individuos que poucos dias antes ignoravam mesmo a sua existéneia geogratfica (8) SETE PALMOS DET RRA E UM CAIXAO 35 Esta inesperada revelagfio de um mundo tio estranho & mentalidade do norte-americano médio, levada pela im- prensa sem a menor preparacio ou apresentago no seu piblico, criou uma grande perplexidade e certa confusio hos Estados Unidos. De um lado, um sentimento de pi- nico pelos perigos desta nova explosio social to amen. gadora, ¢ de outro Indo, um grande desejo de ajudar, de fa- zer alguma coisa para evitar explosio. Mas a falta de uma serena visfio dos fatos, 9 desconhecimento total da realidade social do Nordeste e dias raizes historicas que tinham dado origem a essa aberracao social, tornavam bem dificil um approach vazoével e deformante, ou o da fantasmagoria historica das manehetes apocalipticas. E assim, 0 Nordes- te, deseoberto quando ajudava os Estados Unidos na tiltima guerra e agora redescoberto, quando parecia ajudar os inimigos dos Estados Unidos no continente, continuou, na verdade, como um desconhecido dos Estados Unidos TE por que nio dizer a verdade como um desconhecido do mundo, Embora no cartaz, 0 que déle se apresenta por tOda parte é, em geral, uma falsa imagem do seu papel his- térieo, tanto no passado como no futuro, Falsa imagem tanto das suas possibilidades, como das suas defieiéneias © Gificuldades. Do que é possivel se fazer de bem pelo Nor- deste, como do que & possivel que o Nordeste venha a fazer de mal go mundo: & sta seguranga e & sua trangtlilidade. Se dedieamos ao estudo das Ligas Camponesas 0 pri- meiro capitulo déste livro, foi com @ premeditada intengao de mostrar, como uma iniciativa brotada das tradiedes do feudalismo agririo, af vemante, com objetivos humanita. rios e paeifieos, pode-se transformax num instrumento re. yolueiondrio, de explosiva agitagio social, em face da cega ineompreenséo ¢ da obstinada resisténcia da prépria es- trutura feudal, E mostrar, também como pode um fendme- no social ser totalmente distoreido em sna realidade pelas falsas interpretagées do jornalismo tendencioso ou sensa- Cionalista, De fato, a imagem das Ligas Camponesas difun- dida pela imprensa de certos paises, eomo sendo um instru- mento do comunismo internacional, fabrieado em Moscou implantado no Nordeste brasileiro, para repetir nessa Area © episddio de Cuba e comunizar o continente inteiro, é uma 36 JOSVE DK CastTHO imagem totalmente falsa, que nfo resiste a uma anilise fria dos fatos. Uma andilise que ponha em linha de conta, como estamos tentando fazer, os principais personagens ¢ os episédios centrais das origens désse_ movimento, Criadas dentro do esp ianismo primitivo, que até hoje impregna a alma coletiva da populagio nor. destina, as Ligas Camponesas foram mesmo, em certa fa- se, mal vistas ¢ tenazmente combatidas pelos lideres mar- xistas da regio. E, se posteriormente se aliaram as Li gas aos comunistas, na hita comum pela emaneipagio da massa eamponesa, nfo quer isto dizer que a sua inspiragio brotara da doutrina de Marx ou da acao politica de Lenine ou de Fidel Castro, mas na experiéncia vivida e sofrida por essa massa humana em sua luta desigual por um mi nimo de aspiracdes, em face ao maximo de resisténcia dos seus opressores feudais. ‘Tem téda razio 0 jornalista Ro- bert Coughlan da revista Life, quando afirma com excep- cional lucider que atribuir o'descontentamento social da América Latina “a um conplot forjado em Moscou, como fazem muitos, ¢ ser perigosamente ingénuo. Suas raizes mergulham fundo no seu passado, que conta, eomo ingre- dientes, a conquista, a exploragio, a fome e a extrema Outra razdo da prioridade dada as Ligas Camponesas no plano déste livro deriva do fato ineontestavel de que foram elas que projetaram o Nordeste na imprensa norte- -americana, provoeando a redescoberta cesta rogiaio ¢ de- terminando em grande parte a criagao da “Alianca para 0 Progresso” como uma tentativa dos E.U.A, de evitar a su- posta bolchevizagio do continente. Antes de terminar éste capitulo, julgamos indispen- savel deixar bem claro que, a nosso ver, as Ligas Campo- nesas nunca aleangaram uma importaneia polities desta cada: uma estruturacdo funcional e uma lideranga sufi- cientemente vigorosa para desencadearem um verdadeiro proceso revoluciondrio. Longe disto. Sempre foram, como instrumento revoluciondrio, uma arma quase infantil. B se esta arma de brinquedo assustou tanto aos grandes se- nhores feudais ¢ seus assoclados, 6 que éles se encontram hé muito tempo num estado de pavor permanente, Pavor mismo das m SETE PALMOS DE TERIA B UM CAIXRO 37 tue 08 leva a ver no menor esto ou atitude de inconfor- as espoliadas, um perigo tremendo para a dos seus privilégios. O perigo das lirieas Li- '5 sempre fora pequeno, o médo delas é que era grande e continua crescendo cada vez mais. NOTAS BIBLIOCRAFICAS ~ PRADO JR, CAIO, Mistirla Beowimicn do Brasil, 1946. ~ WINSLOW, EA, The Cost of Sickuese andl the Price of Health, Gonebea, 1051 = NURKSE, RAGNAR, Some Aspects of Capital Accumulation in Underdeceloped Countries, Cairo, 1952. — SANCHEZ ALBORNOZ, CLAUDIO, La Edad Media y la Em- press de America, La Plats, 1994 — KEYSERLING, HERMANN, Jounal de Voyage dun Philosophe 1952. — CASCUDO, LUIS DA CAMARA, Viajendo pelo Serti. = JULIO, FRANCISCO, Que sio as Liges Camponesas, Kio de Janine, 1962, = HIRSCHMANN, ALFRED, Journey Toward Progress, Nova Torque 1963. CAPITULO It SEISCENTAS MIL MILHAS QUADRADAS DE SOFRIMENTO TRACO mais marcante da carta ou fisionomia do Nor- deste 6 0 sofrimento. E nfo apenas 0 sofrimento do homem, mas também o sofrimento da terra, Terra ¢ ho- mem, martirizados hé séeulos por uma espécie de complot cas adversas: de foreas naturals e de forgas cultu- zais, 0 sofrimento, ou melhor, as marcas da sua presenca, sio to constantes na paisagem nordestina, que dio a impresso A gente de que toda a terra do Nordeste néo passa de um cenario especialmente montado para néle ser representada uma grande tragédia, E no fundo, é isto que € 0 Nordeste: um imenso eenario de eérea de 600 mil mi- Ihas quadradas de supertieie, exibindo, por toda parte, o8 nais inconfundiveis de sew'sofrimento eésmieo. ‘Terra de softimento, o Nordeste se estende do Estado do Maranhao ao Estado 'de Alagoas, eompreendendo uma tal varledade de paisagem que, na verdade, dentro do con- ceito cientitico da area geogritica, ndo se pode falar de uma drea do Nordeste, mas de varias Areas naturais di- ferentes, compondo a regiao do Nordeste. Areas distintas por seu clima, seu tipo de solo, seu revestimento vegetal € mesmo por sua organizacko econdmico-social, Procurando esquematizar ao méximo estas nuances geogrficas, po- demos considerar o grande Nordeste como compost menos de dois nordestes:(O Nordeste Oriental ou Ma @ 0 Nordeste Ocidental oit Central, So éstes dois nordes. tes tradieionalmente mais conheeidos como 0 Nordeste do fagiicar e 0 Nordeste das séeas, porque se num déles tudo sempre girou em tdrno da economia da cana, noutro 0 SETE PALMOS DE TERRA E UM GAIXAO 39 que sempre mareou sua existéncia foi 9 tremendo drama de suas seas periddieas, a trégica historia do seu elima in. certo e inclemente,) A verdade 6 que foi realmente o clima que delimitou os dois nordestes. Enquanto no Nordeste Oriental, préximo da costa maritima, o clima é timido, com uma grande abundancia e regularidade de chuvas, no Nor- deste Central, o clima ¢ séeo, as chuvas sio eseassas e, prineipalmente, muito irregulares, imprimindo um facies semi-drido & regio, Foi esta marcante diferenga dos dois climas que determinou o mareante contraste entre as pai. sagens naturais das suas Areas: uma frea téda ela reco. berta de verde — outrora o verde das suas matas, e hoje 0 verde dos infindos canaviais — e outra sirea toda em tons acinzentados, com a sua terra séca, quase sempre nua de vegetacho, ou apenas revestida em pontos limitados por tufos isolados de uma vegetacdo rasteira, coberta de poei ra e ericada de espinhos: vegetagio formada de bromeli cease de cacticeas, plantas adaptadas ao extremo a con- digfo de seeura do'meio ambiente. Uma area de solo es- pesso, poroso, permedvel, embebido da agua das chuvas bundantes — o famoso massapé de extrema fertilidade — € a outra area, de solo duro, de tipo arenoso, rico em seixos rolados e pobre em elementos nutritivos, quase mais pedra do que solo. O Nordeste 6 este contraste vivo estam- pado nas duas paisayens: na paisagem acolhedora, envol- vente, da area da mata, com sua gradagio de verdes, as suas manchas d'égua, as suas sombras frescas, e na paisa- gem rispida, séea, do sertao, com as suas planicies des. eampadas, 0 seu solo pedregoso, o seu eéu sempre sem mu vens ¢ 0 seu sol de foxo. Nestes dois quadros naturais {20 diferentes se formaram também duas sociedades distintas, embora complementares, tanto em sua economia como em sua historia. B a histéria econdmico-soefal dessas duas co- munidades contfguas representa o patrimdnio histérico de toda a regio do Nordeste. Embora o passado tivesse acumulado nessa regifio uma grande reserva de tradigées e uma aprecitivel riqueza cul- tural de sabor tipieo e original, o que mais se acumulou en- tretanto nesta zona, como jd afirmamos, foi mesmo o Sofrimento, £ 0 softimenta a grande heranga cultural do 40 JOSUE DE GasTRO Nordeste. Realmente que terra poder dar maior impressio de sofrimento do que essa terra do sertio nordestino, com seu solo curtido e roido pelos rigores do clima? pele do seu solo magro, mal eneobrindo o seu esqueleto de granite e de calcareo, dilacerada em varios pontos, rom- pida pelas pontas das rochas mais duras que irrompem no meio da paisagem em brancos blocos esearpados, como se fossem mesmo os ossos da terra descarnada. E como se revela como uma dor pungente, como uma expressio de de- solador sofrimento, essa terra téda aberta de fundas feri- das, de grandes bréchas, rompidas no seu corpo pela vio- lengia das grandes torrentes erosivas! Outro traco do s frimento teliirico da paisagem, que nos chama a atengio que oprime o nosso espirito, é o da prépria secura da te em certas épocas do ano. Da terra toda crestada, toda rachada, eomo se fosse um pedaco de couro velho deixado a0 Sol. Nao € menor o sofvimento da terra que foi devo- rada pela cana, Da terra que a monocultura da cana-de- clicar, introdtizida nessa regio, devorou em poucos anos, com um apetite insaciavel, consumindo todo o sew hiimus, engolindo todo 0 seu solo, Mas a histéria dessa cultura autofigiea da cana-de-aetiear, que acaba por devorar sua prépria economia, € ums historia que merece ser analisada mais adiante, em maiores detalhes, para bem mostrar como focorret: o processo dessa aventura mercantil, que dew ori- em ai sociedade do Nordeste: a explorago monocultora ¢ lntifundifria da eana-de-acdcar. Nesse fundo einzento do sofrimento da terra — da terra traida pelo clima, ofendida pela séea, deyradada a extremo pela exploracdo colonial — se destaca gritante a permanéneia invaridvel do sofrimento do homem. ‘No Nordeste, as marcas mais fundas da presenca do homem parecem niio ser as marcas de sua vida, mas as mareas de sua morte. A presenca da morte se manifesta com uma tal forea que parece sobrepujar na regio A pré- pria forga da vida. A morte é uma tal constante, um fator social de tamanha importineia na vida da regiao, que em certas cidades do interior, parece que 0 que mais prospera ‘os cemitérios, apresentando-se como os reeantos mais floreseentes dessas pequenas cidades: sempre murados. SETE PALAtOs TERRA UM CAIXRO 4 ajardinados e urbanizad lado so as vézes simp ordem sem hi Bnquanto as cidades a0 seu ies enovelaclos de s6rdidas ruclas, sem ne, som o minima . onforto, B como se 08 vivos nfio existissem na paisayem. $6 existissem mesmo, a reclamar cuidados, 09 mortos. BE um posta do Nordeste, num poema em que fala dést ot poemia em que fala déstes ce- mitérios, se inquietow diante dos muros que os sepavam das cidades, que isokim ésses cemitérios do resto da pa auger ne ¢ fambém {80 morta, que @le @ ehama de por foi talvex por isto que “Pov que todo éste murat Por gue izolar estas lambas do outro ossirio mais gevai que € a puisuyem defuntar a) A pasigem defunta 6 esta paisugem impregnada da presenga constante da morte, da expectativa da morte, dat fraternal promiseuidade dessa gente com a morte, B que os indices de mortalidade nestas tervas silo extremamente altos, dos mais altos do mundo, principalmente os da mor- talidade infantil. Morre tanta erianca no Nordeste que chega a parecer que morre mais gente do que nasee, ¢ Isto prineipalmente porque so nasee diseretamente, enquante & morte impliew serspre na eerimonia publica do entero, que chama tanto a uteneio, De fato, o entérro € wim dos {eseas asia vivoe @ mle rosmntos no paissiem eoelth do Nordeste, conn ocorre na Sie, como oer nt Chinay entim, em todos os povos muito ligndes & terra, que far tum unite alvord” no vollarem uo seio desta torte, B verdade que a maior parte déles volta cede, logo nos brie meiros meses de vida, como se se tivesse arrependide de ter naseido numa terfa t40 pobre, ou como se nao tives: som vindo preparados para uma viazem mais longa. O fa to 6 quo as criungas nascem mais para morrer do que pa iver. Mais para povour os edus como anjos, na consola- dlora erenea dos seus pais, do que para povoar a terra eomo omens. HA cidades do Nordeste onde a mortalidade ine fant) aleanca a easa de 609 por 1000, o que quer dizer que metade dos que nascem apenas espiam a vida um breve ins- 2 JOSUB DE CASTRO tante e antes de um ano ja se foram para debaixo da terra, # éste um dos tracos mais caracteristieos das dveas de reogratia da fome, como 6 0 easo desta drea do Nordeste — desta (estranha geografia, onde nfo é a terra que dé de-comer #0 homem, & antes o homem que nasce apenas para dar de-comer & terra.) Para alimentar esta terra-co- mitério, que engorda com su matéria organiea, B que, quando acontecer eseapar, 6 para sobreviver sempre assus- tado desta presenga da morte, sentindo sempre o seu bafo frio como uma constante ameaca. Qual a causa desta tio desadorada mortalidade do Nordesie? A explieacio es no fato de ser o Nordeste realmente uma area subdes volvida. E que o subdesenvolvimento impde sempre a exis tencia de altos indices de mortalidade, como também de altos indices de natalidade. Os do Novdeste sio os mais elevados do Brasil, Bsse tipo de evoluedio demogriifica, chamado de antiecondmico porque néle nasce muita gente € também morre muita gente, constitu uma das curacter‘ ticas fundamentais do subdesenvolvimento, o que expliea, alids, que apesar de téda esta mortalidade tervivel, as re- gides subdesenvolvidas mantenham suas populagdes num ritmo de crescimento explosivo, ameagando explodir a sua miséria, Ha quem acredite que esta explosio da capaci- dade reprodutora seja uma forma de defesa da espécie ameagada, que, para lutar contra a forea impiedosa da morte, joga na arena da luta os sews excessos de criangas, para serem sterifieadas, dizimadas, em sua maioria, ma sobrando sempre algumas para manterem a sobreviven- cia da espécie, Na verdade, é através de um complexo me- canismo bio-social que o subdesenvolvimento entretém éstes to altos indices de natalidade e de mortalidade. No que diz respeito & alta natalidade nas regides de fome e de mi- séria, j4 tentei expliear o fendmeno em outro livro e nao pretendo voltar ao assunto neste ensaio, porque o julgo aqui supérfluo, Desnecessaria a explicacio tanto para os estudiosos do assunto, como para os habitantes do N deste, Para os estudiosos basta o fato indiscutivel, © deneiado através da elogiiéneia dos niimeros, Dos extra- ordindrios, indices de natalidade das regiges subdensenvol- vidas, Pata os habitantes do Nordeste, no ha necessidade E PALMOS DE Th ERRA E UM CAIXAO 43 de explicagdes, porque, na verdade, muito antes de nés, éles jd se tinham apereebido do fendmeno quando repetiam o ditado popular: “A mesa do pobre & escassa, mas o leito da miséria é feeundo”. Se ndo vamos insistir em explicar porque so tio alfos os coeficientes de natalidade, deseja- mos entretanto explicar em detalhes porque séo também to altos os coeficientes de mortalidade. De que morre tan- ta gente no Nordeste? Morre-se de tudo, mas prineipal- mente de fome. 1 a fome em seus variados e miiltiplos disfarces, 9 mais ativo dos cavaleiros do Apocalipse que arrasa as populagdes nordestinas, Em sua faina destruis dora, a forme mata como doengn — como a mais grave & generalizada das doeneas de massa das regides subdesen- volvidas — e como fator preparatério do terreno para a acdo nefasta de outras doengas, Principalmente das doengas infectuosas, parasitdrias, que atuam endémicamen. te nessas dreas, em’ combinagao com a fome, tendo a mes- ma preparado o terreno para a sua acéo deletéria. N&o encontramos em téda a area do Nordeste um s6 e mesmo tipo de fome dizimando as suas populagées! Enquanto na area do Nordeste acucareiro, grassa um tipo de fome er6- niea e endémiea, o que nés encontramos no sertio sio as epidemias de fome aguda, que aparecem nos perfodos de séea, Mas, para que se compreenda bem como se insta- lou no Nerdeste o reino da fome, como esses diferentes ma- nifestagdes da doenca se apresentam nas duas areas no1 destinas, & preciso que se conheca melhor a estrutura ect némico-social destas areas, determinante, em ditima ané- lise, déste estado de fome. __ Quando se estudam as condigdes de alimentacio da fea do agticar, 0 que logo surpreende o investigador € 0 contraste mareante entre as possibilidades geograficas existentes e a extrema exigitidade dos recursos alimenta- res da regio, Que uma regio rida como o Saara soja uma zona de fome, que a regifo amazdnica com suas florestas impenetriveis sofra também o flagelo da fome, sio fené. menos que se explicam naturalmente, A fome nessas zonas pode decorrer principalmente de fatéres naturais, da po- breza natural do meio ambiente. J4 no Nordeste, o fend- meno da fome é bem mais chocante, porque nao se pode e Bre JOSUE DE CASTRO plied-to & base de razées naturais, Tanto as eondigses de solo, como as do clima regional, sempre foram das mais propicias ao eultivo eerto © rendoso de uma infinidade de produtos alimentares, que poderiam permitir a organizac; de uma dicta alimentar satisfatéria. O em suia maior parte do tipo ma cura, gorda @ pegajosa, que recobre em espéssa camada porosa os xistos angilosos e 08 caledreos do ereticeo — 6 de uma magnifica fertilidade. E um solo de qualidades fisico-quiraicas privi- legiadas, eom grande riqueza de hiimns e sais minerais. O clima tropieal, sem o exeesso de agua de outras regides tro- pieais, com um resrime ce chuva de estagées bem definidas, lambém contribut favoravelmente pars o cultivo féeil ¢ seguro de uma grande variedade de cereais, frutas, legum ede verduras. A propria floresta nativa dispunha de excepeional abundancia de srvores frutiferas, e outras arvores, transplantadas de continentes distantes, se acll- mataram tao bem no Nordeste como se estivessem em su areas naturais, Eo caso da fruta-pio, trazida das distan- tes ithas da Oceania, do eco, da manga e da jaca, trazidos pelos colonizadores do Oriente longinguo. Todas essas plan- tas, integradas na paisagem nordestina, produziam frutos excepeionalmente valiosos para a alimentagso humana, Tu. do brotava com tamanho impeto e produzia com tanta exu- beraneia nessas manchas de terra gorda do Nordeste, que nao se pode acusar de deseabido exagéro a famosa frase do eseritor Pero Vaz de Caminha, autor da primeira earta Sbre estas terras do Brasil, de que “a terra ¢ em tal ma neira dadivosa, que, em se quevendo aproveitar, dar-se-4 nela tudo"(2),” Infelizmente, nao se quiz. Nao’ o quis 0 colonizador portugués. De nada valeram as grandes pos- sibilidades naturais que a terra oferecia, pois que foram malbaratadas e inteiramente desaproveitadas em sua ea paeidade poteneial de forneeer alimentos as populacdes re- ional Deseobrindo cedo que as terras do Nordeste se pres. tavam maravilhosamente ao cultivo da cana-de-actiear, 03 colonizadores suerificaram tédas as outvas possibilidades da terra ao exelusivo cultivo dessa planta. Aos interésses de sua monocultura intempestiva, destruindo quase qut SEIE PALMOS DE TERRA E UM CAIXIo 45 eiramente 0 revestimento vivo, vegetal e animal da re- gidio, subvertendo por eompleto 0 equilibrio ecolégico da paisagem e entravando, por todos os meios, quaisquer ten- tativas de cultivo de outras plantas alimentaves, degradan. do desta forma ao méximo, os recursos alimentares da regido. Wsta influéneia nefasta da cana sobre as condigdes da alimentagio regional nao se féz principalmente pola ago direta da eana sébre o solo, mas sim, por sua agio in- direta, através do sistema de exploragdo da terra, que a economia agueareira impos: o sistema da exploracio mo- nocultora ¢ Tatifundidtia, Trazendo a cana-de-acuear para as terras do Brasil, jd 0 portugués conhecia bem esta planta, com as suas esigéneias especifieas, desde que ha: utilizado as ilhas atlantieas da Madeira ¢ do Cabo Verde, como verdadeiras estagdes experimentais para o seu cul, tivo. E conhecia também os segredos do coméreio agueas reiro, que se apresentava no momento 0 mais promissor do mmdo, Com esta experiéneia da agricultura e do comér- cio do agticar o portugues sabia que este produto $6 se po- deria constituir como uma atividade econémica compen. sadora, se produzido em grande eseala, com terra st ficiente para o cultivo extensive da planta com mio de ‘obra abundante ¢ barata para o trabalho agricola e com capitais suficientes para 0 estabelecimento de sua indiistria, em bases de um verdadeiro monopélio do produto. Por isso organizou éle a sua emprésa com os mais abundantes capi. fais até entiy Wrazidos para estas bandas e impulsionou a vinda dos escravos da costa da Africa e se assenhoreou de terra boa e suficiente ao empreendimento ousado. Lancado na aventura agucareiza, o colonizador portugués sabia que se tinha que entregar de corpo e alma & cana-de-acicar, sob pena de fracassar em sua emprésa Ea cana se mos. trou realmente capaz de dar muito Incro, mas de exigir também muita coisa em compensagio. De exigir, como ja dissemos, uma eseravidio tremendamente dura, nio s6 do homem mas também da terra ao seu servigo. Homem e ter- Ya que tiveram de se despojar de intimeras prerrogativas para satisfazer o apetite desadorado da eana: 0 seu apeti te Insacidvel de boas terras, bem preparadas e bem drena- Gas para 0 crescimento da planta, Jé afirmou alguém, com 46 JOSUB DE CASTRO razo, que a exploragio da cana-de-agiicar se processa sem- pre num regime de autofagia: a cana devorando tudo em t6rno de si, engolindo terras © mais terras, consumindo o himus do solo, aniquilando as pequenas culturas indefesas € 0 préprio capital humano que servin de base A sua vida. E é a pura verdade. A historia da economia canavieira xo Nordeste, como em outras zonas de monocultura da cana, no mundo, tem sido sempre uma demonstracio ca- tegérica desta eapacidade que tem a eana de dar muito no prinefpio, para devorar tudo depois autofagicamente. Don- de a caracierizactio inconfundivel das diferentes 4 graficas do actienr, com seu ciclo econdmieo tipico, com uma répida fase de ascengio e de esplendor transitério, € uma fase seguinte de irremediavel deeadéneia, Ciclo, éste, que se processa tanto mais rapidamente quanto menores forem os recursos de terra disponivels. Daf a semelhanca de aspectos entre as diferentes areas geogrificas do acti- car no mundo, entre esta do Nordeste do Brasil e Cuba, Haiti, Java, Porto Rieo, Barbados. A ilha de Bar- bados, por sua limitada extensio, representou uma espé- cie de laboratério de soeiolozia experimental, onde se pro- cessaram com impressionante nitider as sucessivas fases do ciclo da economia monocultora da cana, permitinde ao in- vestigador analisar a fundo as reacdes-sociais intempesti- vas, que a introduedo do eultivo da eana provoeou na socie- dade local. Vincent Harlow(8), que estudou a fundo a historia desta tha, mostra-nos como a prinefpio a coloni- zago de Barbados se fizera & base da policultura, divi- dindo as suas terras em pequenas propriedades produto- ras de algodao, tabaco, frutas cftricas, rado vacum e sui no € outros produtos de sustentacio. Que, nessa primeira fase da sua historia, compreendida entre 1625 ¢ 1645, as condicées de vida eram bem favordveis na ilha, € a po- pulagio de raca inglésa erescera bastante, subindo nas seguintes proporcdes: 1.400 habitantes em 1628, 6.000 em 1636 e 37.000 em 1643. Com o desenvolvimento da canade-agiicar, que se processou a partir dos meacos do século XVII, ai transplantada pelos holandéses fugidos do Nordeste do Brasil, a policultura foi sendo asfixiada, as pequenas propriedades agricolas engolidas pelo latiftindio SETE PALMOS DI RA UM CAINKO 47 agueareiro e as reservas alimentares da ilha ficando cada vez mais limitadas, Esta evolugdo econémica, to desfavo- vvel, provocou o éxodo em massa para outras terras, dos habitantes da raga branea. Comecou entio a descida da curva demogrifiea: em 1667 36 havia 20.000 braneos na ha, em 1786, 16.000, em 1807, 15.500, ¢ atualmente eérea de 15.000. 0’ braco eser: passando a constitiir a base do trabalho agrario. As desenvolyeu em Barbados esta economia Iatifun cravoerata, com esplendor fugaz, que durou de 1650-2 1685, entrando logo a seguir em deeadéncia, Ja nesta épo- ca, estava a ilha praticamente esgotada. Suas florestas, gue a principio eram tao densas que fora dificil achar es paco para a fundacio da colénia(4), estavam inteiramente Gevastadas, com tédas as culturas de sustentacao estagna- das eo actear econdmicamente arruinado, por nao ser mais possivel produzi-lo a precos capazes de agiientar a terrivel coneorr Esta 6a histéria do transitério cielo do agtear em Bar- bados, contada por Harlow e confirmada em seus tragos mais caracteristicos por outros historiadores iddneos. Bm Jamaica, em Trinidad, em Cuba, ¢ noutras antilhas agu- careiras, 0 processo seguin as mesmas diretrizes, apenas num ritmo menos acelerado, como se pode verificar atra- vés estudos dos historiadores da colonizagio inglésa e es- panhola do Mar das Caraibas(5). Fizemos esta digressio acérea do processo_ evolutivo da economia xeucareira em outras zonas, para por em evie Géneia 0 fato de que a fraqueza do colono portugues diante do impeto avassalador da cana do Nordeste brasileiro no foi especifiea déste colonizador, Nenhum outro colono, nem © inglés de Barbados, nem o franeés do Haiti, nem 'o es panhol de Cuba, pode eseapar A sua esmagadora prepo- léncia. Ao contrario, deixaram-se todos dominar, sob cer- tos aspectos, mais ainda do que o portugués do Nordeste, Porque, se na luta para adaptar-se ao meio tropical, o por- tugués ‘ceden com bastante plasticidade as contingéneias de certas foreas naturais, soube também, por outro lado, escapar tenicamente a muitas delas, através do uso inte- ligente de certos fatores de aclimatagio, que os colonos

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