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1. QUE QUER DIZER TUDO ISTO? Thomss Nagel 2. A ARTE DE ARGUMENTAR “Antony Weston 3. MENTE, HOMEM E MAQUINA Post T. 4. DICIONARIO DB FILOSOFIA Simon Blackburn 5. ELEMENTOS BASICOS DE FILOSOFIA [Nigel Warburton 6. LOGICA: UM CURSO INTRODUTORIO WHE Newton Smith 7. SERA QUE DEUS EXISTE? Richard Swinburne 8. ALTIMA PALAVRA, Thomas Nagel 9. BTICA PRATICA Peter Singer 10. PENSE: UMA INTRODUCAO A FILOSOFIA Simon Blackburn 1, ENCICLOPEDIA DE TERMOS LOGICO-FILOSOFICOS (04g de odo Brarguinke Desdrio Murcho 20 ‘ADO DAS COISAS A.C. Grayling 13, ELEMENTOS DE FILOSOFIA MORAL James Rachel 6 MUNDO: A ETICA DA GLOBALIZACAO er Singer {ODUGAO A FILOSOFIA POLITICA if JAMES RACHELS | PROBLEMAS DA FILOSOFIA ‘TRADUGAO PEDRO GALVAO (Cento pe FiLosos1a Da Univexsipans be Liseo) REvISAO CIENTIAICA ‘AIRES ALMEIDA (Cosmo De FLosorta DA UNIVERSIOADE Die Listoa) gradiva Titulo original: Problems from Philosophy © The McGraw-Hill Companies, Inc., 2005 Todos os diteitos reservados ‘Traducio: © Gradiva Publicagées, $. A., 2009 ‘Todos os direitos reservados Tradugio: Pedro Galvito Revisio cientifica: Aires Almeida Reviséo de texto: Ana Parga Capa: foto: © Corbis/VMI design gréfico: Armando Lopes Fotocomposicéo: Gradioa © acabamento: Grifica Manuel Barbosa & Filhos, L# jadlos os direitos para a lingua portuguesa por: Gr © Sousa, 21 ~ r/c esq. — 1399-041 Lisboa 21 397 40 67/8 —Fax 21.395 3471 ‘Maio de 2009 io: Outubro de 2010 legal n.° 318 161/2010 ISBN: 978-989-616-317-4 Colecsao coordenada por AIRES ALMEIDA (Como ve Fitosona Da UNIvERSDADE De Liss0x) gradiva Editor: Guilherme Valente Indice Sobre 0 autor... Prefacio .. - O legado de Sécrates.... LLL. Por que razio Sécrates foi condenado? srr.nnenun 1.2, Por que razio Sécrates acreditou que tinha de mor- rer? ——a ote Deus e a origem do universo 24, O argumento da causa primeira a 25. A ideia de que Deus é um ser necessério ... O problema do'mal.... 3:1. Por que razao as pessoas boas sofrem? 3.2. Deus e 0 mal 33. Livre-arbitrio e 53 53 mo 56 ez PROBLEMAS DA. FILOSOFIA 4, Sobrevivemos & morte? ... = ai 4.1, A ideia de alma im “ Seeeeg 4.2. Existirio provas crediveis de uma vida no além? 76 43. O argumento de Hume contra os milagres 0 5. O problema da identidade pessoal 93 5.1. 0 problema... peetieed it ae ea ga) 522. Continuidade corporal. 96 53. Meméria s 5A. A Teoria do Fee oon cose 104, 6. Corpo € MeMte renee ese rea es aer IL der. uma méquina pensar? .... 7 P2-Un aumento «favor ds pom Cérebros e computadore nas pensarem, 138 feste de TUPNG rn facasso do Teste de Turing, 149) 1, O ataque ao livre-arbitrio . 155 1. As pessoas serio responsdveis pelo que fazem?!. 155 BS. Decerminieing onto 159 83. ogia 163 BA, Genes € comportamento ncn ale 10. O nosso conhecimento do mundo que nos rodeia 205 205 ~ 208 216 224 228 10.1. O cérebro numa cuba .. 10.2. 0 problema de Descartes 103. Tres outras tentativas de resolver o problemi 104. A visio € 0 cérebr0 wenn 105. A teoria natural 11. Etica e objectividade ... de Trastmaco « 235 apenas uma questo de _ 237 244 TTA. A importéneia dos interesses humanos 255 12. Por que razao haveremos de ser morais? 259 12.1. O anel de Giges 259 12.2. Btica e religiao 262 + 12.3. O contrato social 266 12.4. Moralidade e benevoléncia Lan 5 O sentido da vida... jlema do ponto de vista 13.2, Felicidade 135.0 sentido de vidas particulares.. ‘Apenilice: Como avaliar argumentos Sugestoes de leitura .. Notas sobre as fontes. Sobre o autor James Rachels (1941-2003) foi professor université- tio de filosofia na Universidade do Alabama, em Birmingham. Escreveu The End of Life: Euthanasia and ity (1986), Created from Animals: The Moral Implications of Darwinism (1990), Can Ethics Provide Answers? (1997) e Elementos de Filosofia Moral (2004), Publicado nesta coleccao. Prefacio Este livro é uma introdugao a alguns dos proble- amas principais da filosofia — Deus, a mente, a liberda- de, 0 conhecimento e a ética. Os capitulos podem ser lidos isoladamente, mas contam uma histéria mais ou menos continua se forem lidos pela sua ordem. Come- camos com algumas reflexdes sobre o legado de Sécrates e avangamos depois para a existéncia dg Deus, que é, talvez, a questao filos6fica mais basica de todas, dado que a resposta que Ihe dermos influenciara a& nossas respostag a todas as outras. Esta questio con- duz naturalmente a uma discussdo acerca da morte e da alma, e depois a ideias mais modernas sobre a natureza das pessoas. Os tiltimos capitulos incidem na possibilidade de obtermos conhecimento objectivo na ciéncia ou na ética. O facto de se considerar frequentemente que estes, problemas nao passam de questdes de opiniao pessoal constitui uma fraqueza da cultura contemporanea. Afinal, diz-se, ninguém pode provar que Deus existe ou que nao existe, nem que a vida tem sentido ou que nao tem. No entanto, melhor entender estes prod WL mas como questdes de investigacao racional. Ainda que os problemas sejam tao complexos que nao pode- mos ter a expectativa de chegar a um acordo a seu respeito, devemos perguntar no que é mais razodvel acreditar em vez de agarrarmos as ideias que nos pa- recam mais atraentes, sejam elas quais forem. Como qualquer outra investigagéo humana responsdvel, a filosofia 6, do principio ao fim, um exercicio da razao. As ideias que devem prevalecer so aquelas que tive. rem as melhores razoes do seu lado. Alguns fildsofos acreditam que a filosofia é uma investigacao «pura» que pode ser desenvolvida a margem das ciéncias. Nao partilho esta ideia. A me- Ihor forma de abordar os problemas da filosofia é usar todos os recursos disponiveis. W. V. Quine observou uma vez que «O universo nao é a universidade». A diviséo da investigacéo humana em disciplinas dis- tintas pode ser ttil para organizar os departamentos académicos, mas tem pouco interesse quando estamos a tentar descobrir como é 0 mundo. Neste livro ird encontrar referencias a biologia, a psicologia, A hist6- ria e até as descobertas do Espantoso Randi*, Tudo isto faz. parte de um tnico projecto—a tentativa hu- mana de compreender 0 mundo e o lugar que nele ocupamos. Algumas partes deste livro foram escritas durante a Primavera de 2002, quando estive na Universidade de Richmond como professor visitante. E com prazer que agradeco ao meu velho amigo James Hall e aos seus colegas a sua hospitalidade e apoio maravilhosos. "James Randi, The Amazing Randi, € um mégico e ilusionista canadiano, conhecido pelo seu combate contra a pseudociéncia, (N. do T.) 12 1 O legado de Sécrates ‘Mas, meu caro Criton, por que haveremos de prestar tanta atengao aquilo que «a maior parte das pessoas» pensa? Sockares, no didlogo Criton, de Platao (390. C) 1.1. Por que razao Sécrates foi condenado? No Museu Britanico ha uma estatua de Socrates que pode ter sido esculpida em 330 a. C., apenas sessenta , © nove anos apés a sua morte. Sécrates é retratado ‘como um homem baixo, musculado e careca, com barba eum nariz largo e achatado. Estes detalhes s40 compa- tiveis com aquilo que Plato nos diz sobre a sua apa- réncia. Sécrates nada escreveu, pelo que quase tudo 0 que sabemos a seu respeito provém de Platao, que era seu discfpulo. Nos didlogos de Platio, encontramos Sécrates nos lugares piiblicos de Atenas a discutir as ‘ 2B PROBLEMAS DA FILOSOFIA grandes questdes da verdade e da justica com os jo- vens da cidade. Mas vemo-lo também ser acusado de corromper esses jovens — e depois julgado e conde- nado a morte. A razao pela qual isso aconteceu é um” pouco misteriosa. Os atenienses eram democratas, orgulhosos dog seus feitos e liberdade intelectuais. Por que haveriam de condenar um fildsofo a morte por causa daquilo que ele ensinava? De acordo com Plato, Socrates foi acusado de «cor- romper a juventude» e de «impiedade para com os deu: A primeira seat € vaga e nao nos sio dados detalhes. O préprio Sécrates sugeriu, talvez de forma enganadora, que estava a ser acusado apenas de ensinar os jovens a colocar questdes. A segunda acusa- glo também parece forcada. Sécrates nao era anti-reli- gioso, € no seu julgamento alegou ser fiel nas suas religiosas. Porém, aparentemente tinha opi- que nao eram ortodoxas. O estudioso classico Gregory Vlastos sugere que, embora ter ideias nao onvencionais sobre os deuses nao fosse suficiente para eonduzira problemas com a justica, «empurré-las para ‘as ruas de Atenas», como Sécrates sem dtivida fizera, poderia levé-lo facilmente a meter-se em dificuldades. Ainda assim, a descri¢ao de Platao faz-nos interrogar fe esta seré a hist6ria toda. Por que raz8o, entao, Socrates foi condenado? Pode sor litil recordar que Sécrates, embora tenha sido Ve- nerado pelas geracées posteriores, no era uma figura popular na sua época. (Ble proprio sugere que-as acu- fides resultaram do facto de as pessoas ndo gostarem de si.) O Oréculo de Delfos dissera-Ihe que ele era 0 m ibio dos homens, e Sécrates aceitou o elogio, m uma qualificagao peculiar. Disse que era s4~ orque tinha compreendido como era ignorante. irmagao parece agradavelmente modesta. O problema foi Sécrates ter considerado que a sua «mis- “4 © LEGADO_DE SOCRATES sao divina» era mostrar aos outros que também eles eram ignorantes. Numa t{pica conversa socratica, Sécrates mostrava aos seus interlocutores, para mani- festo desagrado destes, que todas as suas opiniGes eram erradas. Isto pode ter contribuido para que as pessoas tivessem vontade de o ver em apuros, mesmo que nao justifique a sua condenacio 4 morte. ‘A politica também pode ter contribuido. Os atenien- ses tinham orgulho das suas instituigdes democréticas, mas S6crates nao partilhava esse sentimento. Segundo Platao, era o critico mais feroz da democracia. Objec- tava que a democracia colocava os homens em posicao de autoridade nao por causa da sua sabedoria ou do seu talento para governar, mas devido a sua capaci- dade de influenciar as massas com ret6rica vazia. \Numa democracia, aquilo que interessava nao era a “verdade, mas as relacées ee existiam espe- cialistas nessa rea em Atenas. O5 professores mais influentes da altura eram os sofistas, que ensinavam a arte da persuasdo e eram abertamente cépticos quanto a «verdade». Se tivessem vivido 2400 anos depois, teriam sido spin-doctors, consultores de media ou espe- cialistas de opiniao publica. Se a democracia ateniense fosse estével, a hostilida: dé de Socrates poderia ter sido ignorada, do mesmo _modo que hoje-as-democracias ocidentais toleram_a critica, Mas essa democracia nao era estavel; tinha sofrido- uma série-de-ataques. traumaticos. © tltimo deles ocorrera apenas cinco.anos antes do julgamento de Sécrates, quando um grupo conhecido por «Trinta Tiranos» — liderado por Critias, que fora um dos dis- cipulos de Sécrates— organizou um golpe sangrento. No seu julgamento, que ocorreu depois de a democra- Gia ter sido restaurada, Socrates censurou vivamente 08 Trinta Tiranos, chamando-lhes «perversos». Ainda assim, é facil imaginar que 0s lideres de Atenas pudes- sem sentir-se mais confortdveis com Sécrates fora do “horizonte. Tentar éxplicar um acontecimento que ocorreu 2400 anos é uma tarefa frustrante, teza ainda maior pelo facto de as diversas pessoas nele envolvidas terem os seus proprios motivos. Quem sabe por que razao 03 mais de quinhentos jurados votaram como votaram? Platéo nao ajuda: apresenta-nos o dis- curso de Sécrates, mas nao o dos acusadores. Seja como for, Sécrates foi julgado, considerado culpado e conde-) nado A morte, A sentenca parece excessiva, mas em certa medida Sécrates foi responsavel por ela. Depois| de ter sido considerado culpado, permitiram-lIhe, em conformidade.com_as regras-do tribunal, que propu- sesse 0 seu proprio castigo. Em vez de sugerir algo razodvel, propés que Ihe dessem uma pensio vitalicia pelos servicos prestados ao Estado — os «servigos» eram as actividades pelas quais acabara de ser conde- nado. $6 depois de 0 seus amigos terem intervindo é que Sécrates se disp6s a pagar uma pequena multa. Nao € surpreendente que os jurados tenham aceite a proposta alternativa dos seus acusadores. No entanto, a sentenga nao foi assim tao dura, jé que ninguém esperava que Sécrates morresse efectiva- mente. O exflio era uma alternativa informal. Enquan- to aguardava a execucio, deram-lhe meios para fugir. Varias cidades estavam dispostas a recebé-lo.e.chega- ram emissérios com dinheiro. Plato faz-nos perceber que ninguém teria impedido Socrates de fugir. Os seus inimigos queriam forg4-lo a partir e os seus amigos estavam prontos para se despedir de si. Mas Sécrates nao partiu. Em vez disso, comecou a examinar as raz6es para fugir @ para nao-o fazer. De- fendera sempre que a nossa conduta se deve guiar pela razdo. Em qualquer situacao, afirmou, devemos fazer aquilo que tem as melhores razdes do Seu lado. 16 Aqui estava, entao, o teste decisivo ao seu compromis- so com essa ideia. Enquanto a carruagem aguardava, disse a Criton que partiria se os melhores argumentos fossem para partir, mas que ficaria se os melhores argumenigs fossem para ficar. Depois, tendo exami- nado a questio de todas as perspectivas, Sécrates concluiu que no poderia justificar a desobediéncia 4 ordem do tribunal. Por isso ficou, bebeu a cicuta —o veneno prescrito pelo tribunal — e morreu. ‘Talvez pressentisse que 0 seu acto torné-lo-ia uma figura memordvel para as geracGes futuras. Avisou os atenien- ses de que nao era a sua reputagao, mas a deles, que ficaria manchada pela sua morte. 12. Por que raz&o Sécrates acreditou que tinha de morrer? Socrates ndo foi «o primeiro filésofo» — tradicio- nalmente, esse titulo é reservado para Tales, que viveu um século antes. (Porqué Tales? Porque Aristoteles © listou em primeiro lugar.) Ainda assim, os toriadores costumam designar Tales e os outros fi I6sofos anteriores a Sécrates por «pré-socraticos», sugerindo assim que eles pertencem a uma espécie de pré-historia filosofica e que Sécrates assinala o verda- deiro comeco. Aquilo que colocou Sécrates em destaque foi o seu método, ¢ nao tanto as suas doutrinas. Sécrates basea- va-se na argumentagao, tindo que s6 se descobre a verdade pelo uso da razao..O seu legado reside so- bretudo na sua conviccao inabalavel de que mesmo as ‘questées mais abstractas admitem uma anélise tacio- nal. O que é a justica? Ser que a alma ¢ imortal? Po- derd alguma vez ser certo maltratar alguém? Sera 7. PROBLEMAS DA FILOSOFIA Possivel saber 0 que é certo fazer e, ainda assim, pro- er de outro modo? Sécrates pensava que estes pro- ‘as ndo'eram meras questées de opiniao. Existem ‘spostas verdadeiras para eles, que podemos des- rir se pensarmos de uma forma suficientemente ss disse a Criton, era a de saber se tinha a obri- facto de obedecer as leis de Atenas. As leis tinham-lhe tO uma exigéncia. Teria de Ihes obedecer? A sua vio foi a primeira investigagio filos6fica sobre a a da obrigagio politica O argumento da destruigao do Estado. Sécrates. Higeve que trés argumentos 0 compeliama beber a uta, O primeiro deles era o de que estaria-a destruir ok se desobedecesse lei. Sécrates explica-nos tado nao pode existir se as pessoas nao obe- as suas leis: ie, enquanto nos preparamos para fugir da- im que se deve descrever esse acto), as Leis. tuigiio de Atenas aparecem-nos e confrontam- cando esta questo: «Sécrates, 0 que plancias oderds negar que, com esse acto que estas a con- pretendes, na medida das tuas possibilidades, ir-nos a nds, as Leis, bem como todo o Estado? que uma cidade pode continuar a existir, ¢ "rubada, se as sentencas.promulgadas pelos wo tiverem qualquer forca e forem anuladas las por pessoas privadas?» 22 © LEGADO DE SOCRATES Deste modo, diz-nos o argumento, ao desobedecer a lei destruimos o Estado. Sécrates acrescenta que, depois de ter beneficiado tanto «das Leis e da Consti- tuigéo», retribuir com um mal revelaria unt grande ingratidao. E surpreendente que Sécrates estivesse disposto a fazer a sua vida depender destes pensamentos. Seré que este é um argumento s6lido? Um problema ébvio €0 de que nao é realista pensar que 0 acto de desobe- diéncia de Sécrates tivesse efectivamente as consequén- cias prejudiciais que descreve. Caso fosse para 0 exilio, ‘Atenas no seria «derrubada». Atenas continuaria a subsistir quase como antes. Como ¢ dbvio, se as pessoas. ignorarem habitualmente a lei, resultaria daf 0 caos; mas se elas desobedecerem apenas ocasionalmente, em circunstancias extremas, o Estado nao seré prejudicado. No entanto, podemos sentir que o argumento pro- poe uma ideia legitima. As consideracoes aduzidas provam algo, ainda que ndo provem tanto como Sécrates pensava. Mostram-nos que temos uma obri- gacdo ampla, mas nao ilimitada, de obedecer lei. Po- demos entdo apresentar 0 argumento nesta forma modificada, mas mais defensavel: : 1. Se, regra geral, no obedecermos a lei (admitin- do apenas raras excepcies), 0 Estado nao pode existir. ; 2. Seria desastroso se o Estado nao existisse, jé que neste caso ficariamos todos numa situagio muito pior. 3. Logo, regra geral, devemos obedecer 4 tindo apenas raras excepcoes). (admi- O raciocinio original de Sécrates, embora seja fraco, sugere este argumento modificado, que € muito me- Ihor. Contudo, deste argumento modificado nao se 19, Segue que Socrates tivesse de ficar ¢ beber a cjcuta, Alina esta poderia ser a «rara excepgao» que jus casse a desobediéncia 8 Nossa relacdo com 0 Estado e a nossa relagio com os 08508 pais. Os nossos pais tornaram possivel a noses vida — conceberam-nos, criaram-nos ¢ educaram nos Temos, portanto, a obrigagio de os respeitar e de Ihe obedecer. O Estado também torna possivel a nosse vida, proporcionando um ambiente social que nos eria ¢ sustenta. Por isso, temos uma obrigacdo similar de Rspeitar e de obedecer ao-Estado, Uma vez mais, Socrates imagina que «as Leis e a Constituigdo de Ate. nas» estéo a falar: * ‘Descle que nasceste ¢ foste criado e educado, poderds Para comecar, que tanto tu como os teus ascen, ® foram nossos filhos e servos? [..] E seras tio sabio ke esqueceste de que, comparado com 0 teu pai, a razoaveis? Nao compreendes que tens uma obri. d peitar-e de suportar a fiiria Pais do-que a ftiria do teu pai?» 7 0S NOsS0S pais, jé que, fo adultos, ndo temos a obrigagao de obedacer 20 05 nossos pais. Temos de obedecer aos nossos pais quando somos muito novos, porque nessa altura néo temos discernimento. A medida que amadurecemos, no entanto, aprendemos a pensar por nés proprios ¢ a nossa relacéo com eles muda. Embora possamos con- tinuar a dever gratidao e respeito aos nossos pais, jé nao lhes devemos obediéncia. Um adulto que ainda «obedece aos seus pais» como se tivesse doze anos é um caso triste. Por isso, este argumento também ¢ fraco. Até agora, entio, néo encontramos qualquer boa Tazo para pensar que Sécrates tinha de beber a cicuta. Nem o argumento da destruicéo do Estado, nem o argumento da analogia entre o Estado e os pais, nos compelem a chegar a essa concluséo. Porém, importa considerar outra linha de raciocinio. -O.argumento do contrato social. O terceiro argumento de Socrates € 0 mais importante. Enquanto reflecte sobre rigacdo de obedecer lei, a ideia-de-contrato social, posteriormente colocada em destaque por figu- ras como Hobbes e Rousseau, surge pela primeira vez. A ideia central do contrato social €a de que a socie- dade assenta num acordo implicito que os seus mem- ‘bros estabelecem entre.si. A vida em sociedade é um empreendimento cooperative no qual cada um de nés obtém.enormes. beneficios;-e-em troca-concordamos apoiar as instituigdes eas praticas que tornam poss{- veis-esses-ben¢ 10s. Quais sfio ao certo os beneficios da vida em socie- dade? Se trabalharmos juntos para manter uma ordem social estavel, podemos ter industria, educacao, artes, comércio, agricultura, medicina e muito mais. Pode. mos viver em paz, ter amigos, ir a jogos de futebol e @ concertos. Os beneficios sao infindaveis. Mas esas, coisas boas s6 poderao existir se as pessoas coopera- rem na preservagio do sistema que as produz. Se néo 21 PROBLEMAS DA FILOSOFIA 6 fizerem, tudo se desintegraré e, como Hobbes disse 4 vida sera «solitéria, pobre, s6rdida, rude e curta». Sécrates invoca contrato social quando sustenta ie, a0 aceitar os: beneficios da cidadania ateniense, prometeu obedecer as suas leis. Quando fala, Sécrates ‘assume o ponto de vista das préprias leis: «{Qlualquer ateniense, ao atingir a maturidade e ao ver por si préprio a organizagio politica do Estado, ¢ dusim as suas leis, tem o dieito, caso nao estejasatisfeito connosco, de pegar naquilo que possui e de partir para desejar. [..] Por outro lado, se qualquer um de vés escolhe ficar quando pode ver como administramos a justiga e o resto da nossa organizacéo piiblica, entende- Ios que, a0 proceder assim, se dispés efectivamente a udo 0 que Ihe dissermos.» [..1 «fi entao um facto», diriam fas Leis e a Constituigao} tis a quebrar os acordos e compromissos que es- leceste connosco, ainda que no os tenhas estabele~ ib compulsao ou falta de informagao. E nao foste o a decidir-te num prazo limitado: durante setenta foste livre de deixar o pais se nao estavas satisfeito \S que a Organizacao era injusta. [..] __ Socrates conch, assim, que tem de respeitar 0 seu ‘cordo, mesmo que isso implique a sua propria morte. que este argumento é solido? O contrato social 6 explcacto nfo rligios da obrigagto politica main e que alguma vez se concebeu. Todavia, os triticos colacaram-he diversas objeccoes. A acusacdo P @ a de que o «contrato» nao passa de uma Hiegdo. Poucos de nés comesam a fazer parte da orga- ) social através de um acordo. Os imigrantes, 1 respeitar a lei quando obtém a cdadania, ‘excepcéo. Todos os outros pura e simplesmente 22 © LEGADO_DE SOCRATES nascem dentro do sistema. Dado que nunca pedimos para fazer parte dele, podemos muito bem interrogo reps acerca da natureza do «acordo» que Sécrates tanto enfatiza. (© que se pode dizer em resposta? Para se defender a ideia de contrato social, precisamos da ideia de uma promessa implicita — uma promessa que nao é profe- Pia, mas que ainda assim decorre da nossa conduta. © argumento de Sécrates invoca este tipo de promess” implicita, Assumimos as obrigagbes de cidadania, diz- ong, ndo ao fazer um juramento, mas ao aceitar volun, caenente os seus beneficios e ao usar 0 sistema social para os nosso fins. Porém, existe outro problema. Precisamos de per- guntar, como fizemos em ‘conex4o com o argumento Be destruicao do Estado, qual ¢ 0 alcance da obrigacio que este angumento apoia, Seré que o apelo a0 contrat speial apoia a concluséo de que temos de obedecer Sempre a ei, ou apoia apenas 2 ideia de que geralment® devemos obedecer-the? Vale a pena salientar que 0s contratos nunca S80 jnteiramente vinculativos — exis- tem sempre circunstancias sob as quais os contratan er earinm livres das suas obrigagoes. Por exemplo, se eu fizer um acordo consigo, mas o leitor nao cum: prir a sua parte daquilo que foi acordado, ev co livre Ea obrigagio de cumprir a minha parte, Nenhuma pes: Soa razpavel acredita que o dever de respeitar os nos- ‘sos contratos se mantém em todas as circunstancias. "A questo do destino de Socrates fica novamente em aberto a partir do momento em que admitimos oi, Podemos aceitar que temos uma obrigacso geral de obedecer as regras sociais ¢ que essa obrigacao se baceia no acordo muituo de estabelecer as regras e de ne observar. Mas suponha-se que uma pessoa inocente fol condenada a morte e que, enquanto aguarda a exe cucto, tem a hipotese de fugir. Seré que agiré errada- 5 23 mente se aproveitar a oportunidade? (Podemos pen- sar tanto em O Fugitive como em Sécrates.) £ dificil perceber como a fuga seria condenavel em termos contratuais. Se o facto de o Estado estar a tentar ma- tar-nos nao nos liberta do nosso acordo, 0 que poderia fazé-lo? Afinal, admite-se que o Estado deve proteger- ~nos de ameacas injustas Deste modo, nenhum dos argumentos prova que Socrates tinha de beber a cicuta. Mas isto deixa-nos com uma questéo embaracosa: como péde Sécrates ter cometido um erro tao desastroso? Como é possivel que nao tenha visto que os argumentos eram inconclusivos? Parte da resposta pode residir no facto de estas questées serem novas ¢ invulgares quando Socrates as discutiu. A natureza da obrigacao politica pode ser um assunto antigo para nés, mas ha 2400 anos S6crates estava a explora-lo pela primeira vez. Outra parte da resposta pode ser que os argumentos ‘Ocrates — especialmente o primeiro e o terceiro — io assim tao maus. Revelam muito das razdes Pelas quais devemos obedecer a lei. O erro de Sécrates foi nio ter distinguido-a)-a de-que-geralmente devemos obedecer a lei b) da ideia de que-temos-de obedecer sempre. lei, Os seus argumentos apoiam a primeira ideia, mas Socrates julgou erradamente que apoiavam a segunda. Hé uma razdo para Sécrates nao ter estabelecido esta distincao ou, pelo menos, para nao a ter levado a sério. Tinha uma concepgio da sua relagdo com Ate- nas e as suas leis que era-profundamente diferente daquilo que podemos sentir ser a nossa relagio com «o governo». A semelhanca de outros gregos, Sécrates sentia-se profundamente ligado a sua cidade: nao con- seguia imaginar-se fora dela. A ideia de violar a sua relagéo com Atenas deve ter-Ihe parecido impensavel. No Criton ficamos a saber que ao longo dos seus seten. 24 ta anos, excluindo algumas campanhas militares, Sécrates nunca saiu da cidade. Bra ateniense de uma forma tao profunda como Sao Paulo foi cristao. Quanto & morte, Sécrates nao a temia. Acreditava que, apés a morte do séu corpo,.a sua alma partiria para outro mundo em que as suas questes encontra- iam por fim uma resposta. Muitas pessoas dizem que acreditam no Paraiso, mas tém relutancia em ir para 14. Sécrates néo era uma dessas pessoas. Como Alcibiades diz no Banquete: «Ele é absolutamente Gni- co; ndo existe mais ninguém como ele, e nao creio que 25 2 Deus e a origem do universo Se Deus cessasse a sua co-operagio, tudo ‘© que ele criou ficaria logo reduzido a nada, jd que antes de as coisas terem sido criadas, antes de Deus ter facultado a sua ‘co-operacio, elas nada eram. Rent Descartes, Carta (1641) 2.1. Sera razodvel acreditar em Deus? Em 2002, 0 Pew Center, uma empresa de opihiao piiblica sedeada em Washington, perguntou a pessoas de 44 paises em que medida a religido era importante Nos Estados Unidos, 59 por cento disseram iio desempenhava um papel «muito impor- .a sua vida. Esta percentagem é invulgarmente ferra, apenas 33 por cento disseram que importante. Noutros paises, as percenta- ‘5 seguintes: 27 por cento em Itélia, 21 por tha, 12 por cento no Japao e 11 por 27 cento em Franca. No entanto, as percentagens relati- vas 4 Bolivia, 4 Venezuela e ao México foram seme- Ihantes a dos Estados Unidos, o que levou os analistas @ concluir, de forma pouco generosa, que as atitudes norte-americanas «estio mais proximas das atitudes das pessoas das nacdes em vias de desenvolvimento do que das pessoas das nacées desenvolvidas». Entretanto, na sondagem Gallup International Millennium Survey, perguntou-se a pessoas de 60 Paises se acreditavam em Deus. Apenas 45 por cento disseram acreditar num Deus «pessoal», a0 passo que outros 30 por cento disseram acreditar «numa espécie de espirito ou forca vital». A sondagem Gallup mos- trou no s6 que a crenca religiosa é mais forte nos mais velhos e nos que tém menos educagio, mas tam. bém que o indice de crenga € mais elevado na Africa Ocidental, onde o predomina o Islao. Ai, 99 por cento acreditam num Deus pessoal. Nos Estados Unidos, 86 Por cento tem essa crenca, enquanto os europeus, con. dla a Sondagem, «sio 0s mais agnésticos». religiao costumava desempenhar um importante na vida das pessoas. O que erolicn declinio? A ex ‘guramente complicada e meee historia toda, Um factor, pelo ises desenvol Jos ode ser resti- Bio da ei€ncia e o predominio crescente da visie cons {fica do mundo. Outro factor pode ser a menor impor. Wincla da vida familiar e das tradigbes sociais em geral Porém, seja qual for a causa, parece claro que mesmo DS aS pessoas e as instituicdes reli- hoje numa posicao diferente da que esta- a ha pouco tempo. Beneficiam de uma forte social e politica, sem diivida, mas a religiao é entre muitas forcas que competem pela aten- nao define a visio da sociedade. Quando os eres politicos invocam as suas crengas religiosas para justificar politicas pitblicas, \s pessoas ficam irri- tadas. No entanto, néo queremos apenas saber no que acre- ditam as pessoas — queremos saber se as crencas reli- giosas sao verdadeiras. Qual sera a forma mais razoavel de entender como é 0 mundo? Existiré alguma boa razAo para acreditar que o mundo foi criado por uma divindade todo-poderosa? Obviamente, pode dizer-se que esta crenga ¢ uma questao de fé, para a qual a razao ¢ irrelevante. Pode considerar-se que as declara- Ges das Escrituras ou da Igreja ttm uma autoridade ue nao exige confirmagao por argumentos racionais. tentador deixar a questo por aqui — alguns esco- them acreditar, outros nao, e nada mais ha para dizer. Porém, antes de chegarmos a esta conclusao, devemos investigar as provas disponiveis. Sera possivel apre- sentar boas razdes que apoiem a crenga em Deus? Nao podemos dizer que a crenga religiosa é «apenas» uma questao de fé antes de estarmos certos da impossibili- dade de encontrar argumentos racionais. 2.2. O argument do designio problema, como é evidente, 60 facto de Deus nao ser acessivel por qualquer meio de investigacao co- mum. Nao pode ser visto, ouvido ou tocado, e os ins- trumentos cientificos so intiteis. Algumas pessoas dizem que conseguem sentir a sua presenga, mas ou- tras nao a sentem. Isto sugere que a crenca em Deus pode ser apenas uma questao de convicgao interna. Ainda assim, os pensadores religiosos ofereceram di- versos argumentos em defesa da crenca em Deus. Entre eles, 0 mais marcante é 0 Argumento do Desfgnio. A ideia basica do Argumento do Designio é a de que podemos inferir que Deus existe a partir da natureza do 29 teligente parece a alternativa dbvia. O olho e fhas.da natureza podem ter sido cria- r Deus-Obtemos assim o argu: mento da «nega- lo acaso»: : _ as maravilhas da natureza ocorreram aleato- riamente, por acaso, ou so 0 produto de um io inteligente. odem ter ocorrido por acaso. gumento apela a ideia de que as provas f,sle © universo foi concebido por um criador gente sdo as mesmas de que outras coi a2, on tomoveis 4 a troduziu uma das mais da ciéncia: a analogia do ontramos um relégio no chao. speceionarmos, concluiremos inevitavelmente que de ncebido por um ser inteligente. ido por muitas pequenas m conjuntamente ao servico de um. | As provas de que foi concebido para dizer ho adoras. Como diz Paley, «as suas tao dispostas e reunidas para um formadas e ajustadas de modo a vimento esta regulado [A] inferéncia que julga- de que 0 rel6gio tem de ter ‘odo, podemos inferir justificada- de um relojoeiro a partir da existén- nao temos exactamente as mesmas HM DO UNIVERSO também consiste em «partes dis- postas e reunidas para um propésito». O argumento da Idade de provas» é, entio, o seguinte: 1. Concluimos correctamente que objectos como os reldgios foram feitos por criadores inteligentes porque tém partes que funcionam conjuntamen- te ao servico de um propésito. 2. Temos as mesmas provas de que 0 universo foi feito por um criador inteligente: 0 universo tam- ‘bém & composto de partes que funcionam con- juntamente ao servico de um propésito. 3. Logo, podemos concluir justificadamente que 0 universo foi feito por um criador inteligente. As objeccdes de Hume. Estes argumentos sao im- pressionantes, mas serdo s6lidos? Seria agradavel se fossem s6lidos, jé que dariam um apoio racional a uma forma antiga e reconfortante de entender 0 universo. Infelizmente, estes argumentos estdo sujeitos a diver- sas objecg6es que os enfraquecem, Para comecar, podemos salientar que 0 Argumento do Desfgnio é uma tentativa de inferir 0 que causa uma coisa a partir de informagao sobre a propria coisa. Por outras palavras, estamos a inferir uma causa a partir dos seus efeitos: a partir da observacao de fenémenos, © argumento infere 0 que tem de ter causado esses fenémenos. As inferéncias deste tipo sao comuns, mas estdo justificadas apenas quando dispomos de uma certa informagio de fundo. Por exemplo, suponha-se que nos mostravam um pacient DA e nos perguntavam o que causou asua do Responderiamos, com alguma confianga, gue cle na ciéncia ser a causa. Mi 33 a LOSOFIA. mundo que nos rodeia — 0 mundo est repleto de ma- ravilhas que s6 podemos explicar se supusermos que elas so obra dé um criador inteligente. Como vamos ver, esta ideia pode ser elaborada de diversas maneiras, As maravilhas da natureza.O mundo esta cheio de coisas que tomamos por garantidas, mas que sao incri- veis quando paramos para pensar. Considere-se o olho humano, por exemplo. E feito de partes que funcio- nam conjuntamente de formas intrincadas e comple- xas. Q olho tem uma abertura pela qual entra a luz, € existe um mecanismo que torna automaticamente a abertura maior ou menor em fungio da quantidade de luz disponivel. A luz atravessa depois uma lente que a foca numa superficie sensivel, que por sua vez trans- forma os padrdes em sindis, os quais podem ser trans- Imitidos ao cérebro através do nervo dptico, Se algum detalhe for alterado, tudo deixa de funcionar. Imagi- “se que ndo havia nenhuma abertura a frente do lobo ocular, ou nenhuma lente, ou nenhum nervo que 4 ligase a0 cérebro — entao tudo o resto seria iniitil Poder-se-ia dar intimeros outros exemplos. As plan- {a8 € 08 animais que povoam a Terra sio compostos de fancionam extremamente bem em conjun- S apoiam-se mutuamente, de tal forma que uns proporcionam a comida de que outros precisam Conjuntamente, formam um ecossistema delicado, mas vidvel. Além disso, a prépria Terra esté perfeitamente ajustada a existéncia de vida, pois esta a distancia apropriada do Sol ¢ tem a temperatura, a 4gua ea atmosfera apropriadas. Considerando todos estes as- Pectos, podemos muito bem perguntar se tudo isto Poderia ter surgido por acaso. Tuclo parece antes ser obra de um criador inteligente. Esta ideia ocorreu a muitas pessoas, mas foi William Paley (1743-1805), um clérign anglicano e professor na 30 DO _UNIVERSO. DEUS BA Universidade de Cambridge, quem a desenvolveu da forma mais memordvel. Paley escreveu dois livros — Uma Perspectiva das Provas do Cristianismo (1794) e Teologia Natural: ou Provas da Existéncia e dos Atributos de Deus (1802) — nos quais sustentou que a existéncia de Deus pode ser inferida dos factos da Criacao. olho era um dos exemplos favoritos de Paley, que defendeu que temos «precisamente a mesma pro- va» de que o olho foi produzido por um criador inte- ligente e de que objectos como 0s telescépios resultam da inteligéncia. Afinal, «sao feitos dos mesmos princi- pios, estando ambos ajustados as leis que regulam a transmissao e a reflexao dos raios de luz». Sao os de- talhes, no entanto, que tornam o argumento convin- cente. Como Paley observou, ha muito mais indicios de que o olho foi concebido e colocado no seu lugar conscientemente. Esquecamos por um momento a sua engenhosa configuracao interna e consideremos ape- nas como este se situa na cabeca. Para sua proteccao, © olho esté alojado numa cavidade éssea profunda, dentro da qual est protegido por gordura. Ha glan- dulas que produzem constantemente um Iiquido para manter o olho htimido, sem o qual, uma vez mais, todo o 6rgao seria intitil Mas, poderemos perguntar, e depois? Depois de se assinalar estes factos notaveis, pode-se desenvolver 0 argumento de duas formas. O argumento da negacio do acaso. Em primeiro lugar, podemos observar que as maravilhas da nature- za precisam de algum tipo de explicagao. De que modo @ a que as varias partes do oho comegaram exacta- mente a existir? Uma possibilidade é tudo ter aconte- cido por acaso —a lente, 0 nervo éptico, a palpebra e iudo © resto pura e simplesmente surgiu ao mesmo tempo. Que sorte a nossa! |’orém, é dificil acreditar 31 inferéncia justificadamente? Por causa da nossa expe riéncia passada. No passado encontrémos imensds casos em qué o VIH ea SIDA estavam ligados, Os mé- dicos trataram muitos pacientes com SIDA, e em cada caso o virus estava presente. Além disso, os estudds identificaram o mecanismo que conecta o VIH a SIDA. Excluiram-se outras causas possiveis. Invocamos este conhecimento de fundo quando somos confrontadi com um novo caso da doenga. Sabemos o que geral mente causa a SIDA e aplicamos esse conhecimento & novos casos. | Poderemos inferir, da mesma forma, que um acto de criagdo divina causou 0 universo? O problema & que no possuimos 0 tipo de conhecimento de fundo que autorizaria esta inferéncia. Se tivéssemos observa- do Deus a criar univérsos muitas vezes no passado, ¢ nunca tivéssemos visto um universo que nao tivesse sido criado por Ele, poderiamos inferir justificadamente que Ble teve de ter criado o nosso universo. Mas, na menor ideia do que causa a amos familiarizados ape- observimos a sua causa e as com um universo, {sto 6 tudo o que . O caso do relogio é completamente diferente. Quan- do examinamos 0 reldgio que esté no chao, dispomos de muita informagio de fundo relevante. Jé vimos relégios antes e sabemos que sao feitos por relojociros. Podemos visitar as fabricas e as oficinas em que so Produzidos, conhecemos os nomes das empresas que os fabricam e sabemos que podemos compré-los em lojas. E por isso que podemos afirmar com tanta con- fianca que um certo rel6gio tem de ter sido feito por um relojociro. Isto significa que o argumento da igual- dade de provas esta fatalmente errado. No que respei- {a a causas, temos muito mais dados sobre relégios do que sobre universos. 34 UNIVERSO _ Mas suponha-se que ignorévamos este aspecto tentavamos inferir como © mundo comegou a existir. Se fizéssemos isso seriamente, 0 que concluirfamos? Que conjectura pat is razodvel? A ideia de que 0 mundo foi criado por uma tinica divindade omnipotente ¢ sumamente boa nao seria muito plau- sivel. Afinal, o mundo nao é perfeito. Ainda que seja impressionante, 0 corpo humano é fraco e vulneravel a doencas. Algumas pessoas sofrem de lepra ou de distrofia muscular. Se os nossos olhos fossem perfei- tos, nao haveria tanta gente a precisar de éculos — para nao falar, obviamente, do facto de alguns de nés serem cegos. Tendo isto em conta, poderia ser mais razoavel conjecturar que 0 mundo foi feito por um criador de mundos um pouco inepto ou malicioso, ou que fomos feitos por um aprendiz de criador de mun- dos que ainda nao dominava a sua arte. Além disso, podemos observar que 0 mundo contém elementos que esto em conflito — 05 seres humanos lutam para so- breviver num ambiente que frequentemente thes é hostil. Isto poderia levar-nos a especular que o mundo foi concebido por uma comissao de criadores de mun- dos a trabalharem cada um para seu lado. Como 6 Obvio, ninguém acredita nestas coisas, mas aquilo que interessa € que estas conjecturas seriam pelo menos tao razoaveis como a ideia de que o mundo foi criado por um Deus perfeito, se estivéssemos a tentar inferir seriamente a natureza do Criador a partir da natureza da Criacao, Todas estas ideias foram avancadas por David Hume (1711-1776), 0 maior fildsofo de lingua inglesa do periodo moderno, no seu livro Didlogos sobre a Religido Natural. Hume era céptico quanto & religiao numa época em que 0 cepticismo nao podia ser admi- tido publicamente. Assim, nos seus estudos sobre religido, nunca professou a descrenca. Em vez disso, PROBLEMAS DA FH atacou os fundamentos da crenga, expondo as fraque- as de varios argumentos teistas. Nao permitiu que os ilogos sobre a Religito Natural fossem publicados ‘te a sua vida; estes foram publicados postuma- em 1779. 2.3. Evolucao e designio inteligente ulo xix comecou, as objecgdes de Hume » do Designio eram bem conhecidas, endo eram consideradas decisivas. Pelo ivros de Paley eram mais admirados e décadas que se seguiram, os livros ‘os de Hume, eram leitura obrigatéria Dritanicas. A razdo disto ¢ 6bvia. jee da criagao divina proporcionava uma ma- i as maravilhas da natureza. Hume e, mas nada tinha de substancial lugar. Por que razdo as pessoas de entender 0 er, a hipotese no podia deixar oferecer uma explicacio alterna- xplicagao esteve disponivel até s Darwin formulow a Teoria da a seleccio natural. Muitas pessoas oi a primeira pessoa a apresen- 0, mas isto nao é verdade. No ¢ sabia que a Terra era mi rentes de plantas e de a cas diferentes. Muitas pessoas recimento e o desaparecimento poderiam explicar-se pela evo- ncia com .modificagéo», como jucao porque ninguém conséBuia imaginar como wma espécie se transformar noutra. Qual poderia ser O mecanismo? Aceitaram antes a teoria do catastrofismo, segundo a qual ocorreram ao longo da historia varios grandes desastres —sendo 0 ultimo deles, talve2, © diltivio de Noé — em que as es} entao existentes foram destrufdas e depois substituidas num novo acto de criagéo divina. Hoje o catastrofismo pode pare: Cer absurdo, mas no inicio do século xx era a melhor teoria disponivel e muitos cientistas aceitavam-na. Depois Darwin mudou tudo ao propor uma teoria vidvel sobre como a evolucdo podia ocorrer. A Teo- tia da Seleccdo Natural, exposta no seu livro A Origem das Espécies (1859), apresentava 0 mecanismo necessé- rio para explicar como as espécies podem evoluir a0 longo do tempo. A genialidade de Darwin esteve em ter compreen- dido que trés factos bem conhecidos, considerados con- juntamente, podiam explicar a mudanca evolutiva, Em primeiro lugar, temos © aumento geométrico das popula. goes. Os organismos reproduzem-se tanto que os men bros de qualquer espécie depressa cobririam toda a Terra se nao sofressem algum controlo. (Comegando com apenas alguns coelhos, depressa existiriam milhées, que por sua ver. produziriam milhoes de milhOes, até Sstarmos afogados em coelhos.) Em segundo lugar, temos a here de caracteristicas. OS descenden- endem a assemelhar-se-Ihe: cada racteristicas dos seus progenito- war, temos a variagao. Embora os melhem aos seus progenitores, néo mo eles. Existen pequenas diferen- 7 AS DA FILOSOFIA Reunindo estes trés factos, Darwin argumentou da seguinte maneira: 1. Os organismos tendem a reproduzir-se tanto. que,, se todos sobrevivessem e também se reproduzis:| sem, os membros de qualquer espécie cobririam, toda a Terra. Isto nao acontece (endo pode acon-| tecer). Nenhuma espécie pode continuar a mul. iplicar-se desenfreadamente. Cada populacio. atinge uma certa dimensio maxima e depois 0 seu crescimento para. Segue-se daqui que uma grande percentagem de organismos tem de morrer antes de ser capaz de se reproduzir. Logo, haveré uma «luta pela exis- téncia» para determinar que individuos vivem e que individuos morrem. O que determina o resul- tado desta luta? O que faz certos individuos vive- em e outros morrerem? Existem duas possi xie resultar de causas aleat6rias ou lacionada com as diferencas 08 individuos. Por vezes a razao pela qual um » sobrevive até se reproduzir, mas outro atribuivel a causas que nada as suas caracteristicas particula- Por exemplo, um individuo pode ser aniqui- lado por um raio, mas outro no — e isto pode acontecer por pura sorte. Contudo, por vezes 0 facto de um individuo sobreviver até se repro- duzir, mas outro nao, dever-se-A as suas caracte- risticas diferentes. Isto funciona assim: * Existem diferencas («variagées») entre os membros de uma espécie. Darwin nao sabia como ou por que raz3o surgiam essas varia- Ges, mas hoje sabemos que isso esté relacio- nado com mutagées genéticas. s DEUS EA INIVERSO, + Algumas dessas dife irdo afectar a rela- ao do organismo com o seu ambiente de for- mas que beneficiam ou prejudicam as suas hipoteses de_sobrevivencia. Logo;tlevido as suas caracteristicas particula- res, alguns individuos terdo mais hipéteses de sobreviver (e de se reproduzir) do que outros. Consideremos dois exemplos simples de como isto acontece. Suponha-se que os lobos vivem num ambiente que esté a ficar cada vex mais frio. Nesse caso, os lobos que tiverem uma pelagem mais espessa terdo melhores hipéteses de sobre- viver e de se reproduzir. A pelagem mais espessa nao surge em resposta ao ambiente frio— nao passa de uma variagio aleatéria. Ainda assim, beneficia os lobos no ambiente alterado. Ou suponha-se que os tentilhdes migram para uma rea em que a comida disponivel consiste em nozes. Entéo, da mesma forma, os tentilhées com bicos mais duros terdo mais hipéteses de sobreviver e de se reproduzir. Terao uma vanta- gem na competicio pela quantidade limitada de comida, pelo que tenderdo a deixar mais descen- dentes. Os organismos transmitem as suas caracteristi- cas aos seus descendentes. Darwin também nao sabia-exactamente como isto ocorre, mas é evi- dente que ocorre: a descendéncia de um organis- mo tera a maior parte das suas caracteristicas particulares. Hoje também sabemos que isto esté relacionado com os genes. sao transmitidas e tendem a estar mais representadas nas gesacées futuras, ao passo que outras caracteristicas tendem a ser eliminadas da 39 espessa e bicos mais dyyos. 5. Desta maneira, tima espécie sera modificada — os descendentes dos individuos originais terdo caracteristicas diferentes das dos seus ascenden- tes — e, quando se acumulam modificacies su- ficientes deste tipo, chamamos ao resultado uma nova espécie. A Teoria da Selecc’o Natural tornou plausivel a evolugio, ¢ depressa substituiu o catastrofismo ‘enquanto explicaco dominante para o facto de espé- tes diferentes terem vivido em épocas diferentes. ‘Tombém proporcionava uma alternativa a hipstese do dlesignio inteligente. Agora, em vez de se entender as eza como obras de Deus, era pos- resultado da selecgdo natural. da década de 1820, todos os estu- aller a Teologia Natural, de Paley. escreveu na sua Autobiografia que wwencido com essa longa linha ssa altura, o jovem Darwin pre- Abandonou esta ambigao de- ma viagem a volta do mundo lecgdo Natural. Depois de ter des- ural, Darwin jé nao estava en- io de Paley. Via a Teoria da uma sul ‘ao da ideia de lares da natureza tinham sido mente. «O velho argumento do ran, disse, «que antes me parecia ) UNTVERSO m que nao conseguimos expli- car 6rgaos complexos como o olho enquanto resulta- dos da seleccdo natural. Este debate substituiu em grande medida 0 velho debate entre evolucionistas Griacionistas, no qual os segundos defendiam a ver- dade literal do Génesis. Nas décadas de 1970 e de 1980, ‘a «ciéncia da criagao» estava em voga nos Estados Uni- dos. Tentava oferecer principios para explicar coisas lersidade ea distribuicao geografica da vida, tas religiosos organizaram uma campanha para que a ciéneia da criagao fosse ensinada nas esco- las piblicas como alternativa & evolucéo, mas fracas- saram porque era demasiado dbvio que a ciéncia da criagéo nao era ciéncia. Hoje a campanha deslocou-se para uma pretensiio mais modesta, nomeadamente a de que o «designio inteligente» seja ensinado como alternativa @ evoluco na explicagdo da origem das espécies. Em 1996, Michael J. Behe, um bioquimico cristao, publicou um livro intitulado Darwin's Black Box: The Biochemical Challenge to Evolution, em que susten que alguns sistemas biol6gicos nao podem ser o resul- lado da seleccao natural porque sao «irredutivelmente complexos». O designio inteligente, disse Behe, é uma explicagao mais plausivel desses sistemas, ¢ 0s activistas fizeram desta ideia a sua nova bandeira. A revista C ity Today nomeou Darwin's Black Box para seu «Livro do Ano». Por que razao se supde que a seleccio natural é inadequada? Os defensores do «designio inteligente» salientam que os érgaos complexos, como 0 olho, sao \s por intimeras partes, parecendo cada uma excepto quando funciona com as outras. mos de conceber a evolucéio de todas estas 41 partes? Deveremos imaginar um olho rudimentar, um saco lacrimal rudimentar, uma pélpebra rudimentar e tudo 0 resto 'a desenvolver-se lado a lado? A Teoria da Seleccaio Natural diz que estes érgaos complexos s40 © resultado de pequenas variagdes que «perfazem» 0 6rgio maduro depois de muitas geraces de modifica- a0 evolutiva. No entanto, mesmo que seja facil perce- ber que o olho inteiramente desenvolvido é itil ao seu possuidor, que utilidade teria um meio-olho que ainda tivesse de percorrer muitas geracées até ficar con- cluido? Por que razéo um meio-olho haveria de ser «seleccionado» e preservado para posterior melhora- mento? Estes problemas, dizem os criticos, sao insupe- raveis. "| Porém, este problema nao é novo. O préprio Darwin estava consciente dele. Para o enfrentar, avancou duas as. Em primeiro lugar, sublinhou que um pequeno trago anatomico pode ser preservado originalmente Pela selecgio natural porque serve um propésito @ que acabara por servir. ‘atémico pode desem- estrutura complexa sim- estar presente. A natu- ma estrutura complexa a partir jenha a mao, sejam eles quais forem. lugar, Darwin chamou a atengéo para ilo que os teGricos actuais designam por intensifica- sao da fungao. Nos estédios mais avancados do seu desenvolvimento, uma estrutura biol6gica pode con- ferir um beneficio que, nos seus estédios anteriores, conferia num grau muito menor. Para explicar o olho, Darwin apelou a ambas as ideias: vos inimitaveis para ajustar 0 foco a distancias diferentes, Para admitir quantidades diferentes de luz e para corr’. 2 gir a anom: mado pela absurdo no me que, caso se px -m intime- ras gradacoes, ecomplexoa um muito ido cada uma delas titil a sua uldade de acreditar que um © complexo pode ter sido formado pela seleccao natural, ainda que insuperavel pela nossa ima- ginacio, dificilmente pode ser considerada real. Basta imaginar que um nervo apenas ligeiramente sensivel 4 luz confere uma pequena vantage a um. organismo na competicao pela sobrevivéncia, Podere- mos entao compreender o surgimento do primeiro olho rudimentar. Os nossos olhos complexos acabarao por se desenvolver a partir desse objecto simples. Nos corpos vivos, a variagdo iré causar as ligeiras alteracées, a geracio multiplicé-las-4 quase infinitamente, © a seleccio natural escolherd cada melhoria com uma el. Deixemos este proceso decorrer a0 longo de milhoes 8 tipos. Nao podere- ‘mos acreditar entdo que um instrumento 6ptico vivo se pode formar assim, sendo superior a um feito de vidro do mesmo modo que as obras do Criador séo superiores as do homem? Seo olho em si se pode formar deste modo, o mes- mo se pode dizer dos sacos lacrimais, das pélpebras, do o8s0 e do resto. Considere-se a palpebra, por exem- plo. Imagine-se que se formou um olho rudimentar e que, em alguns organismos, uma ligeira variagdo re- sultou numa fina camada de pele que de algum modo © protege. A pele nao esta la de modo a proteger o olho. Desenvolveu-se originalmente porque conferia uma 43 PROBLEMAS DA habitual. A analise de Darwin resistiu ao teste do tempo. Hoje constitui ainda a base do pensamento cient sobre estas questées. Os cientistas nao estéo impr nados com os desafios dos criticos re josos. Depois de Darwin, o argumento da «negagao do acaso» foi finalmente refutado. Hume e os outros criti- cos filos6ficos do argumento do designio assinalaram suas deficiéncias légicas, mas nao podiam oferecer a forma melhor de entender o aparente designio natureza. Depois de terem afastado a explicacéo designio, nada deixaram no seu lugar, Nao é sur- preendente, pois, que no comeco do século xix, mesmo soas mais brilhantes continuassem a acreditar ignio. Mas Darwin fez 0 que Hume nao pode ofereceu uma altemnativa, dando as pessoas algo fe em que podiam acreditar. O argumento da 10 do acaso» dizia-nos que sé existem duas \s de explicar as maravilhas da natureza: 0 acaso esignio. Depois de Darwin, havia uma terceira 24. O argumento da causa primeira Hoje sabemos — ou pelo menos julgamos saber — © universo comecou com um «Big Bang» ha cerca catorze mil milhées de anos e que a Terra se for- cerca de nove mil milhdes de anos depois disso. podemos perguntar, 0 que causou o Big Bang? que explica o facto de haver um universo em vez le nada? Esta questao exige algum tipo de resposta, ¢ lui, uma vez mais, pode-se sugerir que a hipotese da iacdo divina proporciona aquilo de que precisamos 44 IGEM_DO_UNIVERSO Podemos do univer Tamb a ideia pode ser desenvolvida de varias maneiras. O Argumento da Causa Primeira pode assu~ mir pelo menos trés formas. wrar que Deus foi a «causa primeira» A ideia de que Deus foi a primeira causa numa longa cadeia causal. Uma linha de raciocfnio, por exemplo, apela ao princfpio de que tudo o que existe tem de ter uma causa. O meu relégio foi feito por relojoeiros que trabalharam com metais extraidos da Terra. De onde vieram os relojoeiros e os metais? Os reloj vieram dos seus pais, ao passo que os processos geo- logicos explicam como surgiram os metais. Podemos fazer recuar ainda mais a cadeia causal: esses pais descenderam de outras pessoas, que por sua vez des- cenderam de outras pessoas, a propria Terra formou- -se a partir de matéria que se movia pelo espaco, ¢ assim por diante. Se recuarmos suficiente, acabare- mos por chegar ao Big Bang, que por sua vez tem de ter sido causado por algo. Mas, poder-se-4 dizer, a cadeia causal tem de parar em algum lado. Temos de acabar por chegar a uma Causa Primeira de Tudo..E assim obtemos este argumento: 1. Tudo o que existe tem de ter uma causa. 2. A cadeia causal nao pode recuar indefinidamente. Em algum ponto, temos de chegar a uma Causa Primeira. nio esta acassa se 0 objectivo for & crenga em Deu jo ser autocontradi- tudo tem de ter uma 45 Afinal, 0 Big Bang 6 0 acontecimenta mais remoto a AMC a ciéncia consegue chegar, e por isso Parece umn lugar tdo bom para parar quanto fe Pode desejar, | A ideia de que Deus dew origem 4 existéncia do eaten eo “como um todor. Existe uma forma de evitar sstes problemas. Podemos pensar em Deut no como ¢ a0 Big Bang. Mas agora queremos expli- Por que razao 0 universo existe? 4 lida apenas com causas Ho do universo, e assim nenhuma ciéscie Poder dizer-nos por que razto o Préprio universo existe, Para isso, precisamos da religigo, Deste inode, uma forma diferente do argumento Por que razao existe? 5. A Unica explicacgo plausivel é a de que Deus é a causa do universo, 4. Logo, para explicar a existéncia do universo, 6 tazoavel acreditar em Deus 46 i Todavia, esta linha de pensamento tem os seus proble- mas. Assemelha-se muito ao Argumento do Designio, JA que € uma tentativa de inferir a causa do universe a partir da existéncia do proprio universo. O universe existe — dissa.nio Mi davida — e somos convidados a inferir qual terd sido a sua causa. Dada a nossa tradi Sto religiosa, podemos estar dispostos a dizer que Deus fem de o ter originado. Mas também aqui as observa. es de Hume sao relevantes. Para inferir a causa de Je rolse: precisamos de um certo tipo de informacao de fundo, (Para inferir a causa de um relogio, precisa, mos de informacio geral sobre 0 que deu origem a Gristencia dos relégios.) Contudo, no temos o tipo de informacio de fundo relevante sobre universos, Nao sabemos 0 que originou a sua existéncia e a pretensao, de que temos esse conhecimento ¢ infundada Algumas pessoas quiseram chamar «Deus» aquilo aie originou 0 universo, seja isso 0 que for. Mas, mesmo que aceitemos isto, nao teremos proporcionado assim qualquer razao para pensar que «Deus» 6a divin. dade omnipotente e benevolente do teismo tradicie, nal. 4 palavra «Deus» pode agora (tanto quanto sabe. mos) nomear um ponto incrivelmente denso de massa € de energia que precedeu 0 Big Bang. Quando com- Preendemos esta ideia, torna-se claro que nao hi qual- quer razdo para usar a palavra «Deus» desta forma Fazé-lo s6 cria confusao. O Argumento da Causa Primeira 6 como muitos Outros argumentos filos6ficos: partimos de uma idein Promissora — neste caso, de que a criagdo divina pode explicar a origem do universo —, mas metemo-nos em Problemas quanto tentamos formulé-la numa cadeia de raciocinio explicita: Podtmos ter agora a tentacao Ge abandonar a ideia inicial, concluindo qug, alinal, Nao era uma boa ideia. Porém, antes de desistirmos, devemos coi ir outra linha de pensamento, 47. PROBLEMAS DA FILOSOFIA 2.5. A ideia de que Deus é um ser necessario Peter van. Inwagen 6 um distinto filésofo contem- pordneo que se converteu ao cristianismo em adulto, ois de ter desenvolvidd um trabalho consideravel primeira categotia em filosofia. Van Inwagen escre- depois de $e ter tornado cristo, o mundo Ihe um lugar rhuito diferente. Sobre 0 perfodo que a sua conversio, d -nos 0 seguinte: «Con- isico, como uma coisa auto-subsistente, como plesmente est4 af e nao precisa de expli- agora van Inwagen jé nao consegue pen- 9 mundo desta maneira: ida trazer a imagem A mente (julgo que é a ‘ociada & convicgao sentida de que nao é auto-subsistente e tem de isa, de algo que néo esté represen- ir aspecto da imagem e que tem de ser, cexperiéncia deixa indeterminada, de diferente daquilo que a imagem consigo representar 0 mundo para mim. dependente. «auto-subsistente», entio nao Tem de ser sustentado por outra Je «outra coisa» podera sustentar ‘em de ser algo que seja auto-sub- lato dbvio para algo que tem Segundo o pensamento r suficiente. E a causa de tudo nao tem causa. tudo o resto e, no entanto, nao )_UNIVERSO. precisar de caus (0 parece muito misterioso. Mas, segundo alguns filosofos, ha um tipo de ser que pode ter todas estas caracteristicas, nomeadamente um ser necessdrio. Um ser necessario é um ser que, pela sua propria natureza, no poderia deixar de existir. Se aceitarmos esta distingao entre a) coisas que existem, mas cuja existéncia depende de outra coisa, ¢ b) coisas que existem necessariamente, entao podemos formular uma versio final do Argumento da Causa Primeira. Esse argumento € o seguinte: 1. O universo é uma coisa dependente. Nao pode existir por si; pode existir apenas se for susten- tado por algo que nao seja dependente. 2. Deus, um ser necessério, é a tinica coisa que nao 6 dependente. 3. Logo, o universo é sustentado por Deus. Seré que este argumento nos dé uma boa razao para acreditar que Deus existe? Nao hé diivida de que esté repleto de nogdes enigmaticas. A razo pela qual o universo tem de ser dependente é enigmatica. Por que razao nao poderd existir sem ser sustentado por outra- coisa? Mas o aspecto mais enigmatico é a nocao de um ser cuja existéncia é necesséria. Como se poder com- preender isto? A ideia de Deus como «um ser necessario» remonta pelo menos a Santo Anselmo (1033-1109), 0 monge inglés a quem chamam por vezes o pai do escolasti- mo medieval. Anselmo sugeriu Je © em todos 05 outros aspectos ‘orné-lo melhor de alguma forma ¢ Anselmo sustentou que isto 49 PROBLEMAS DA FILOSOFIA 6 verdadeiro por defini¢do — tentar imaginar Deus com mperfeigéo € como tentar imaginar um solteiro im triangulo com cinco lados. Podemos alguma perfeicio, mas nesse caso nao estare- \sar em Deus. O conceito de Deus é 0 con- ° um ser perfeito, tal como 0 conceito de golteiro & © conceito de um homem nao casado ou o konceito de tridngulo é 0 conceito de uma figura com \o reparou que algo notavel parece se- no dlisto: se um ser 6 perfeito por definicao, entéo for tem de existir. Afinal, se nao existisse, nao (Os seres que nao existem sao, pelo feriores aos seres que existem.) eta razio, ¢ impossivel que Deus nao exista e que ve entende por um «ser necessdrio». Um ser rio @ um ser que ndo poderia deixar de existir. essérios, j4 que poderfamos ivesse corrido de outra © Argumento Ontol6gico difere do Argu- Argumento da Causa Primei ocorrem frequentemente a intes. Qualquer pessoa refle- avilhas da natureza e a ori- . de se perguntar se a hipé- 0 sera necessaria para as Ontoldgico, pelo contrario, Jésofo. Como podera a seguir-se da sua simples nento Ontolégico persuadi Descartes (1596-1650), que M_DO_UNIVERSO_ voltaremos a encontrar neste livro, ¢ Gottfried Wilhelm Leibniz. (1646-1716), 0 cientista filésofo que descobriu 0 cilculo a par de Newton, acreditavam que o Argu- mento Ontolégico era s6lido. Porém, outros pensaraiit que nao passava de um truque. ‘Na época do proprio Anselmo, um monge chamado Gaunilo sustentou que, se este argumento provava que Deus existia, provava também a existéncia de uma ilha perfeita, Vamos supor que «Ilhandia» ¢ 0 nome para ‘© nosso conceito de ilha perfeita. Por definicao, Hhan- dia é perfeita — nio pode ser melhorada, Segue-se, entéo, que Ilhandia tem de existir, pois nao seria per feita se nao existisse. Pelo mesmo método, pod mos provar que existe uma banana perfeita ou que existe um homem perfeito. Mas isto, observou Gau- nilo, 6 absurdo. Logo, 0 argumento ontolégico nao pode ser sdlido. © raciocinio de Gaunilo mostra que 0 Argumento Ontol6gico ¢ errado, mas nao explica a natureza do erro, Esta tarefa ficou para Immanuel Kant (1724-1804), que muitos consideram 0 maior filésofo do periodo moderno. Kant observou que a perfeigao de uma coisa depende das suas propriedades — a perfeicio de uma itha, por exemplo, depende do’ seu tamanho, clima, beleza natural ¢ assim por diante. Porém, a existéncia nao é uma propriedade neste sentido. Se uma tal ilha existe ou nao é a questéo de se saber se ha no mindo alguma coisa que tenha essas propriedades. Deste modo, nao podemos provar que a ilha — ou qualquer se nos limitarmos a estipular que Ge «Deus» diz-nos apenas que se existisse. Saber se existe ou 51 | Conclusio. Toda a actividade de procurar «argu- | mentos» a favor da existéncia de Deus pode ser vista com suspeita. As pessoas raramente acreditam em Deus | por causa de argumentos. Em vez disso, limitam-se a | saceitar 08 ensinamentos da sua cultura ou acreditam | | devido a uma convicgao interna imperiosa. Os argu- | mentos parecem irrelevantes. Porém, os argumentos nao sao irrelevantes se que- remos saber no que é razoavel acteditar. Uma crenca | € razoavel apenas se existem provas da sua verdade. Os argumentos que examindmos sio as tentativas mais marcantes ja realizadas de reunir essas provas. Visam oferecer razées que qualquer pessoa reflexiva deva | aceitar. Porém, nenhum destes argumentos 6 bem su- cedido. Todos contém erros e, por isso, tem de ser considerados um fracasso. O facto de estes argumentos fracassarem nao signi- que Deus nao possa existir — significa apenas que estes argumentos particulares nao provam que exista. Podem existir outros argumentos, ainda por descobrir, jue tenham mais sucesso. Entretanto, a ideia de que us criou © universo pode continuar a desempenhar uum papel importante no pensamento dos crentes reli- giosos. A criagio divina pode ser aceite como parte de uma visio gratificante do mundo, ainda que ndo seja necessdria. A semelhanca de van Inwagen, muitas pessoas reflexivas podem mesmo considerar irresistivel esta maneira de pensar. No en- tanto, pelo menos por agora, essas crencas tém de ser vistas como uma questo de convicedo interna, ¢ ndo como algo que todas as pessoas razodveis tenham de aceitar. Esta conclusio nao surpreendera as pessoas religiosas que, em todo o caso, viram sempre as suas conviccSes como uma questao de f6, e nao de logica 52 3 O problema do mal A miséria é 0 rio do mundo. ‘Tow Wars, Blood Money (2002) 3.1. Por que razo as pessoas boas sofrem? Job era um homem préspero. Possufa terras e gado e tinha uma familia que inclufa dez filhos, aos quais ele era dedicado. Ele era um bom homem, generoso para os seus vizinhos e lider da vida religiosa da sua comunidade. Esta combinacao de riqueza e virtude faziam dele 0 homem mais admirado da regido. De- pois tudo correu mal. As suas terras foram invadidas por estrangeiros, que mataram os seus criados ¢ leva- ram a maior parte do seu gado. Um incéndio destruiu © resto, deixando-o na pobreza. Pouco depois, uma tempestade fez a sua’casa desabar, matando todos os seus filhos. De seguida, 0 proprio Job contraiu uma doenca que o deixou coberto de chagas, tao desfigura- do que as pessoas nao conseguiam reconhecé-lo. sua piedade depressa se transformou em acusagao. Eles exam pessoas devotas e ndo podianracreditar que Job nada fizera para merecer os séus infortinios. Segura- mente, pensaram, Deus nao permitiria que Job sofres- se caso ele néo b merecesse. «Sera que Deus perverte a justiga», perguntou um deles. «Deus nao iria rejei- tar um homem inocente, nem tomar partido pelos mal feitores.» Outro disse-Ihe: «Fica a saber que Deus co- bra de ti menos do que a tua culpa exigiria>» Mas Job sabia estar inocente. Ainda assim, no conseguia ex- plicar por que razao Deus 0 tinha abandonado. fa historia € narrada no Livro de Job, um antigo judaico que faz parte da Biblia crista. E o docu- » mais antigo em que © problema do mal é colo- clareza. Obviamente, a existéncia do mal 4 um «problema» se assumirmos uma perspec- josa do mundo. A partir de um ponto de lar, nao é dificil explicar por que ocorrem iss fond ica 0 resto, De um ponto ar, no ha aqui qualquer mistério, pois espera de que 0 mundo seja justo. Os m oS virtuosos e os perversos da mes- 08 nao gostar que as coisas corram sa vida é assim. pensamos quejoimundo> Existe uma tensao entre de um ser perfeita- como Deus, ¢ \l@NUMser perfeitamentelbom \contecessermeGisasimas. Nao dese- jari terramoto: pudesse fazé-lo. Além disso, um ser omnipotente seria capaz de impedir a ocorréncia dessas’coisas. Mas elas ocorrem. Como se pode explicar isto? 5 filsofos distinguem por vezes 0 problema légico do mal do problema probatério do mal. O problema Iogico consiste em Deus e 0 mal parecerem incompa- Liveis: se o mal existe, entio um Deus omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom nao pode existir. Mas € possfvel responder que nao hé aqui qualquer contra- que Deus pode ter uma boa razio para permi- tir o mal. (Nao precisamos sequer de dizer que razio 6 essa, pois pode ser uma razao que nos ultrapassa.) Isto resolveria problema l6gico. Mostraria que a renga em Deus nao ¢ logicamente discrepante do reco- nhecimento da existéncia do mal. No entanto, 0 problema probatério continuaria a colocar-se. O problema probatério é que, mesmo que Deus e o mal sejam logicamente compativeis, ainda assim a existéncia do mal constitui uma prova de que Deus nao existe. Vamos supor que encontramos as im- pressdes digitais de uma certa pessoa numa arma que foi usada para cometer um crime — isso constitui uma forte prova de que foi ela quem cometeu o crime, embora seja logicamente possivel que ela tenha caido numa cilada. Nao havendo desenvolvimentos na in- vestigacdo, as impressées digitais tornam muito pro- vavel qi Ja a assassina. As impressdes apontam na sua Da mesma forma, a existéncia do mal 55 moderna ver formas mais seculares de lemente da religiao. am ligadas no espi- sem dois aspectos do mesmo 'e dos filésofos nao estabelece ofos véem a filosofia como uum assunto independente fd cerca de quarenta anos, no ent: - ar gs cinta ano pa fices. Alvin Plantinga, um filésofo cristdo que ensing hoje na Universidade de Notre Dame, foi un dos me meiros lideres deste movimento. PI inga Pena dois tipos de resposta teista ao problema do mal: tens defesa e uma teodiceia. Uma defesa é uma de que a existénci vel com a existénci i demonstracio de Deus € logicamente compati- ia do mal. Uma defesa nao pretende 56 revelar 0 verdadei © homem», explicando 0 lugar do mal no verdadeiro plano que Deus tem para 0 mundo. Plantinga nao acredita que possamos oferecer uma teodiceia, jé que nao conhecemos a mente de Deus e, além disso, julgar ter esse conhecimento seria presuncoso. Porém, diz Plantinga, nao € necesséria uma teodiceia. Precisamos apenas de uma defesa para permitir que as pessoas religiosas mantenham a sua fé. © problema desta distingao é que uma defesa nao exige 0 suficiente e uma teodiceia exige demasiado. Como vimos, é facil oferecer uma defesa: podemos sim- plesmente observar que Deus pode ter uma razao para permitir 0 mal, ainda que essa razao nos ultrapasse. Poder ser apropriado ficar por aqui se estivermos in- teressados apenas em defender a crenga religiosa da acusacio de inconsisténcia. Mas também estamos inte- ressados na questéo mais ampla de saber no que é razoavel acreditar. Seré que a existéncia de tanto mal faz com que no seja razodvel acreditar em Deus? Sera que a existéncia do mal constitui uma prova de que essa crenca é falsa? Para resolver este problema, nao basta uma simples «defesa», no sentido de Plantinga, mas também nao precisamos de uma teodiceia com- pleta. Precisamos antes de algo que se situa entre uma ‘acio plausivel que nos diga por que razdo um Deus omnipo- tente e perfeitamente bom pode razoavelmente permi- tir o mal, mesmo que nao possamos ter a certeza de que essa seja a razdo de Deus para 0 permi Na verdade, ja se propuseram explicacdes deste tipo, Apresentaram-se cinco ideias principais para explicar 37 | | | | | PROULEMAS DA FILOSOFIA por que razdo Deus pode permitir a existéncia do mal. Vamos examina-las uma a uma. de que a dor é necessdria enquanto parte ema de alerta do corpo. A nogio de «mal» pa- rece misteriosa ¢ pode ser 1 dizer com exactidao mal. Mas é fécil apresentar exemplos que Gbvio é a dor. A dor fisicn — especialmente a dor intensa e prolongada — piores coisas da vida, e os torturado- em deliberadamente, estao entre as despreziveis. Mas seré que Deus € um torluradores? Considere-se um bebé que nasceu epidermélise bothosa, uma doenga de pele gené- que provoca bolhas por todo 0 corpo, de tal forma © bebé nio pode ser agarrado ou mesmo ficar jo de costas sem sentir dor. Se Deus criou 0 ilo © tudo nele existe, entao criou a € permitiu que os bebés estejam ta doenga. Que justificacao poderd se 0 que aconteceria se nao r dor. Quando pomos acidental- S experiéncias desagradaveis, ido leva-nos a afastar-nos do perigo. .cido, é bom ter medo. Portanto, s deu-nos a capacidade de sentir proprio bem. nto é persuasivo até certo ponto, mas nao resolve 0 nosso problema. A dificuldade é que a dor ¢ o medo si mecanismos imperfeitos para evitar © perigo. Nao parecem ter sido concebidos para este fim por um Deus perfeito. Por vezes precisamos de ‘as nao ha qualquer dor. O envenenamento por mon6xido de carbono pode afectar-nos sem aviso. ‘As pessoas com peso a mais estariam muito melhor se, depois de terem atingido os cem quilos, comer gelado se tornasse doloroso. Noutras ocasibes, as pessoas sofrem terrivelmente, embora nada possam fazer para melhorar a situagao. A dor que acompanha 0 can ‘cao do es6fago pode dizer-nos que se passa algo de errado, mas a informacao nao nos traz qualquer bene- ficio —-ndo 6 como um forno a escaldar ou um urso enfurecido, dos quais podemos afastar-nos —, ¢ assim a vitima sofre desnecessariamente. Ainda noutras oca- sides, a dor pode ser to intensa que se torna debili- tante, caso em que poderd impedir-nos de fugir do perigo em vez. de nos ajudar: um caminhante solitério que parte uma perna na floresta pode morrer Por nao conseguir arrastar-se com o membro quebrado até & CGvilizagio. Estes factos ndo encaixam na hipétese de que Deus criou a dor para nos proteger. A dor parece mais um resultado de um proceso evolutivo cego do que uma obra de um criador perfeito. Por fim, mesmo que poder sentir dor seja bom, isso nao explica por que razdo Deus criou fontes de dor como a epidermélise bolhosa, Uma mae que pergunte 40 Deus permite que o seu bebé sofra desta nente encontrara uma resposta se The a dor faz, parte do sistema de alerta do bebé. Aquilo que importa saber ¢ a razio pela qual o bebé esta a ser atacado de uma forma tao 59 - Santo Agostinho obser- vou que, se nada de mau acontecesse alguma vez, nao poderiamos conhecer e apreciar o bem. Esta ob: vacdo € parcialmente l6égica e parcialmente psicol6- gica. Logicamente, na auséncia do conceito de mal do poderia haver uma concepgao do bem, tal como nao poderia haver uma nogao de alto na auséncia de uma nogio de baixo. Nao poderiamos sequer saber o que é 9 bem se nio tivéssemos o mal para servir de compa- ragio. Além disso, psicologicamente, se nunca sofrés- Semos, tomarfamos as coisas boas por garantidas ¢ nao as desfrutariamos tanto, Como poderfamos reco- nhecer ¢ desfrutar,a satide se nao existisse doenca? Portanto, desejar um mundo que contenha apenas coisas boas € uma tolice! precisar que nos acon- vez, em quando, apenas ‘omos tao afortuna- razao ha tanto mal ssdrio para se apreciar 0 bem. mero das pessoas que morrem > por ano fosse reduzido para metade, isso nda suficiente para nos fazer apreciar a satide. E, como jé temos de lidar com o cancro, nio precisamos realmente da epidermélise bolhosa, e ainda menos da SIDA, da distrofia muscular, da paralisia cerebral, da espinha bifida, da difteria, do Ebola, das doencas car- diacas, da doenga de Alzheimer e da peste bubsnica amigos de Job acreditavam que ele devia ter feito ja que um Deus 69 justo «ndo rejeitari concluiram, Job devia A ideia de que que Ihe acontecera. castigo pela conduta ia da Criagdo do Génesis, que te 05 seres humanos habitavam um mundo sem mal. Mas os primeiros seres humanos, Adao e Eva, rebelaram-se contra Deus e, por essa ra- zo, foram expulsos do Paraiso. A ideia que esta his- toria exprime nao é a de que nés estamos ainda a ser castigados pela conduta imoral de Adao ¢ Eva. Isso seria obviamente injusto. A ideia é que todos nés so- mos pecadores e que a nossa existéncia num mundo ‘com mal se explica de algum modo por esse facto. Sofremos porque fizemos algo para o merecer. O que haveremos de fazer com esta ideia? Ela faria sentido se existisse alguma correlacao entre 0 nosso carécter moral e a nossa sorte na vida. Se o mal é um castigo pelo pecado, deveriamos esperar que os piores pecadores sofressem os piores desastres. Mas nao existe tal correlacao. O desastre atinge os virtuosos e os per- versos da mesma forma, sem qualquer consideracéo manifesta pela sua virtude. Algumas das melhores pessoas desenvolvem cancro, enquanto algumas das piores pessoas passam pela vida sem-problemas. E 0 que dizer dos bebés inocentes, que por vezes sofrem de doencas terriveis e morrem de forma horri- vel? A doutrina do pecado original foi introdi pensamento cristo em parte para lidar com este pro- blema. Segundo esta teoria, todos nés nascemos em pecado, pelo que mesmo os bebés sio pecadores Porém, se com isto se pretende dizer que um bebé recém-nascido merece sofrer de epidermélise bolhosa, podemos apenas admirar-nos com a obtusidade moral que levaria alguém a pensar tal coisa O problema profundo de usar 0 conceito de pecado desta maneira é que, assim, ser pecaminoso nao é algo 61 PROBLEMAS DA_FILOSOFIA que esteja ligado aquilo que uma pessoa pensa ou faz efectivamente. No sentido moral comum, aquilo que tima pessoa merece depende do seu comparjamefto Seo leitor merece um mal, deve ter feito algo para © mmerecer, Nao hé drivida de que todos nés nos compor- t4mos mal uma Vez ou outra, pelo que talvez cada um erto grau de retribuicio. Mas ndo srecemos contrair uma doenca horrivel caso nao shamos feito algo bastante horroroso, € um bebé nada de mal. Logo, embora esta concepcao de «pecado» a ter alguma importancia religiosa, pouco tem & + com 0 mérito moral. Como Job sabia, ¢ falso que as idades sejam sempre merecidas. .-arbitrio e carécter moral As trés ideias que examindmos até agora — que 4 dor faz parte do sistema de alerta do corpo, que e que o mal é pela conduta imoral — nao sao convincen- ‘duas outras ideias so mais promisso- inte, formam a resposta tefsta mais plausivel ao problema do mal. de que 0 mal resulta do livre-grbitrio hu- que Deus poderia ter feito o mundo sem poderia ter sido um lugar belo, com plantas € animais, e Deus poderia, do satisfeito com ele. Mas Deus deu ‘scolheu incluir-nos também no ca fez isso? Os seres humanos nao I. Os seres humanos ‘entes morais, capazes de escolher ‘e serao, ¢ sdo responsaveis pelas ‘apazes de desenvolver 0 amor € 2 projectar ¢ realizar grandes ee seres humanos o mundo Fr por esta Tazo que 2 ‘de Deus — ou, pelo \ razao para Deus ter amizade, bem como de coisas. Assim, na ausene seria um lugar mais pobre. humanidade fez. parte do pla menos, isto constitui uma eacolhido criar os seres humanos ‘Mas ha um problema: gentes sig, € NAO Meros robbs; No entanto, qui So dar-nos o poder de fazer anes trr ia Deus teve de deixar em aberto & Per -othas més. Ele ndo Sibilidade de fazermos por vezes esc poder ter-nos dado livre-arbitrig © 90 ‘mesmo tempo, Podemterminado que nunca podemos air de forma rer da nesse caso, poderiamos parecer fer ivre-arbf- : jamos realmente. \ — nos | € 08 sere: 1 e, infelizmen' or isso, a par da comy ggenerosidade e do herofsmo, também ao mund’ guerra’ be g que somos. Deus € responsivel ‘pela concepcao glo | bato mundo e par nos ter criado. A Sua criahe €boa. + Ik nossa contribuicio para ela, no entanto, nem sempre € boa. "Esta linha de pensamento € conhecida por Defesa) qdolivrespabitrio, um terme introduzido por Planting? ed efesa do Livre-Arbitrio mostra que 6 possivel que » melhor mundo que Deus poderia ter criado pode, que o melhor mundo sinda assim, incluir o mal, e possivel inclui eriaturas com re-arbitrio. Compare- -se 0 seguinte: sm seres humanos que nao inclu a) Um mundo'se vmds que as pessoas fazem, qualquer das coisas 63 ‘i mas que também nao incluiria qualquer dos re- sultados da consciéncia moral, da criatividade ¢ da virtude humanas 4) Um mundo com seres humanos que incluiria a perversidade humana, mas também as coisas boas que a humanidade traz consigo. Se julgarmos que b) é melhor do que a), isso mostra gue o melhor mundo que Deus poderia ter criado ainda assim inclui o mal. Isto vindica a perfeita bondade de Deus. Afinal, nao poderiamos esperar mais da Sua Parte do que a criacio do melhor mundo possivel. Ainda assim, isto nao resolve completamente o Problema, Precisamos de distinguir dois tipos de mak, @ mal moral e o mal natural. O mal moral é 0 mal que as Pessoas causam com’ as suas préprias acgoes—— essassinios, violacdes, guerras e assim por diante. O mal natural, pelo contrario, € © mal que os seres humanos nao causam — doencas, terramotos, secas, cheias e outros desastres naturais. Os seres humanon ‘veis pela existéncia de bebés que mas nao sao responsaveis iscem com epidermélise bolhosa. Assim, embora a Defesa do Livre-Arbitrio Possa explicar por que razo Deus permite o mal moral, nada contribui para explicar porque ele ctiou o mal natural. Logo, pode ser apenas uma explicacdo in- completa |. Suponha-se que Deus de- Cidiu criar um mundo que inclui seres humanos, com todas as capacidades de pensar e agir que fazem de nés as criaturas distintas que somos. Esta restrigéo i- mitaria 0 tipo de mundo que Deus poderia criar, dado que esse mundo teria de proporcionar um ambiente of apropriado para criaturas como nds. Que tipo de mundo seria esse? Que tipo de ambiente nos permiti ria crescer e evoluir como seres humanos? Imagine-se que 0 mundo era «perfeito» no sentido comum do termo. Neste mundo perfeita, teriainos uns agraddveis 22°C de temperatura ao longo do ano e nada de mau aconteceria alguma vez — nao ocorreri- am terramotos, cheias ou incéndios destrutivos, nem existiriam doencas. Também nao existiriam predado- res perigosos. Além disso, nao haveria fome. Todas as drvores dariam fruta em abundancia e nos rios corre- tia leite e Agua. Todos viveriam até uma idade avan- sada com uma satide perfeita, ¢ todos desfrutariam a vida porque o ambiente seria téo belo que nunca nin- guém se cansaria dele. Isto parece maravilhoso. Se Deus € perfeitamente bom, poderemos perguntar por que razéo nao criou um ambiente desse género para nés? A resposta é que, se vivéssemos num ambiente desse género, nao seria- ‘mos o tipo de criaturas que somos. Num mundo «per- feito» nao existiriam problemas para superar e, assim, nao existiriam oportunidades para desenvolver o cardcter moral. Nao poderia haver algo como a cora- gem, pois nao existiriam perigos para enfrentar. Nao poderia haver algo como a prestabilidade ou a genero- sidade, ja que ninguém precisaria de ajuda. Todas as outras virtudes — como a benevoléncia, a compaixao, a perseveranga ¢ a criatividade — também ficariam esquecidas, pois s6 desenvolvemos estas qualidades quando nos esforgamos por lidar com a adversidade Se vivéssemos num ambiente perfeito, nao haveria trabalho para fazer. Seriamos lesmas — lesmas que desfrutariam a vida, mas lesmas. ‘Temos assim uma explicacao plausivel para o mal natural: de modo a criar seres humanos que fossem criaturas com caracter moral, Deus teve a necessidade PROBLEMAS DA FILOSOFIA Nos colocar num ambiente em que essas qualidades lease desenvolver-se — um ambiente com proble- er, com males para enfrentar e superar. explicagao completa? A resposta mais plausi- Jem do mal combina a Defesa do Livre- 0m al ideia de que o mal é necessério num ‘em ghe os seres humanos possam desen- © flordscer. A primeira explica 0 mal moral; ‘expli¢a o mal natural. Conjuntamente, pare uma explicagio mais ou menos completa que enfrentamos. Explicam por que razio perfeltamente bom e omnipotente pode ter 0 aquele em que vivemos. nsao de que essa explicagao ‘ido forte que Plantinga Deus tenha efectivamente is nao estamos conscien- mal, methorar a imagem acrescentando outra da tradicio nomeadamente a ideia como a conhecemos, nio , Peter van Inwag im futuro eterno (¢, logo, a futuro eterno). Estamos a viver mgo do passado arqueologica- iberragao tempordria da historia inita de um ‘ou qualquer outro tipo de mal. A «idade do mab» aca~ recordada como um espécie de «sopro» pas- no inicio da hist6ria humana. Se o mal que nos afecta for, na verdade, apenas um «sopro passageiro» na histéria humana, entéo 0 pro- blema deixa de parecer assim téo premente. Deveremos satisfazer-nos com isto e concluir que 0 problema do mal foi superado? Isto no € 0 mesmo que perguntar se haveremos de acreditar em Deus. Recorde-se que nao estamos a discutir se Deus existe efectivamente. Estamos a discutir se a existéncia do mal é uma prova de que a crenca em Deus ¢ falsa. Se, na verdade, for posstvel acomodar satisfatoriamente 0 mal num enquadramento tefsta razoavel, entao 0 pro- blema do mal ficaré resolvido, independentemente de acreditarmos na imagem teista. Todavia, hé dois problemas que interferem nesta conclusio. O primeiro deles esta relacionado com a quartidade de mal que existe efectivamente. A necessi- dade de desenvolver o caracter moral pode explicar a razao por que tem de haver algum mal no mundo; mas ha muito mais mal do que o necessario para esse efeito: ha um mal atordoante e opressivo que esmaga a vida das pessoas. Se ja temos a SIDA, a distrofia muscular, a paralisia cerebral e a espinha bifida, por que haveremos de precisar também do Ebola? Se os habitantes da Guatemala jé sao pobres e passam fome, por que hao-de precisar ainda de um, terramoto? Na explicacdo oferecida, ignora-se esta questao cri ‘ambém pode ser titil imaginar que a explicagao se dirigia a um home) Certo estava a brincar no quintal. Depois de almoco, quando 1e conduzia um camiao. 67 PROBLEMAS DA_FILOSOFIA ele saltou para o seu volante ¢ fez marcha-atrés, no Teparou que ela estava a brincar atras do camiao. A filha | morreu esmagada pelas grandes rodas duplas. Se eontasSem a este homem a histéria do livre-arbi- trio e do desenvolvimento do caracter, ele poderia considerar tudo muito pouco convincente, nao s6 por | estar cego pelo pesar e pela culpa, mas também por- que a histéria pura e simplesmente ¢ inadequada para explicar por que razao, além de todos os outros pro- blemas que nos afectam, uma coisa deste tipo tem de ocorrer. Mesmo que Deus considerasse necessario per- mitir a existéncia de algum mal para atingir os seus fins, nao hé qualquer para acreditar que cle teria a necessidade de permitjr tanto mal. Se dois tercos do mal que hé no mundo fossem eliminados, continuaria mais mal do que aquele com que consegui- ‘ia humanas sao apenas uma pequena parte da natureza e da sua histéria Incontaveis animais sofreram terrivelmente durante os milhdes de anos que precederam a emergéncia do Homo sapiens, e nenhuma das ideias que examinamos atende ao seu sofrimento. Os animais nao sio pecadores, nao tem «livre-arbitrio», ndo desenvolvem um caracter moral e ndo vo para o céu. O que dizer deles? Charles Darwin, que nunca esquecia como era importante con- siderar toda a historia natural, avangou esta ideia vi- vidamente: Ninguém contesta que hé muito sofrimento no mund No que respeita ao homem, alguns tentaram explicar ist imaginando que o sofrimento serve para o seu desenvol- 68 vimento moral. Mas,o niimero d mundo nada € comparado com 0 ntimero de todos os outros seres sencient tensamente sem qu moral. Um ser to poderoso e com tanto conhecimento como Deus, que péde criar o universo, que é omnipotente e omnisciente para as nossas mentes finitas — e supor que a sua benevoléncia nao ¢ ilimitada repugna ao nosso entendimento. Mas que vantagem poder haver no sofri- mento de milhées de animais inferiores a0 longo de um periodo de tempo quase infindavel? Ficamos, ento, com esta conclusao. O nosso exame das ideias para reconciliar Deus com o mal revelou diversas linhas de pensamento que podem ser titeis, mas nenhuma delas é suficiente para afastar a suspei- ta de que, em tiltima analise, Deus e o mal podem nao ser reconcilidveis. A quantidade de mal gratuito ¢ vio que existe no mundo, além de colocar um problema sGrio ao crente, constitui também uma razdo para que uma pessoa séria que pondera aceitar essa crenga se decida a nao o fazer. 69 4 Sobrevivemos a morte? Ninguém pode provar que isso néo iré acon- tecer. Mas é facil ver que € muito improvével que acontesa. BurrRano Russet, Do We Survive Denth? (1936) 4.1, A ideia de alma imortal No dia em que ia ser executado, Sécrates teve uma longa discussao sobre a imortalidade da alma com os seus amigos. Eles estavam abalados com a iminéncia da sua morte, mas Sécrates disse-Ihes para nao se preo- cuparem. Afinal, recordou-lhes: Nao entendemos por «morte» simplesmente o facto de a alma se separar do corpo? Estar morto consiste — no € verdade? — em o corpo se ter separado da alma comegado a existir por si e em a alma se ter separado do corpo, comecando a existir por si. Poderé a morte ser outra coisa que nao isto? . _\Dado que a alma continua a existir, o que ha a | xecear? Na verdade, diz, Sécrates, a alma de um fil6- sofo ficaré melhor quando separada do seu corpo, pois © corpo é um obstaculo A procura da verdade. Socrates estava confiante de que iria viver num es tado desincorporado e ansiava por saber como seria isso. Embora a ideia de alma seja hoje uma nogao reli- giosa, nao o era para Socrates. Ele pensava que era um facto, independente da religido, que cada ser humano era composto de um corpo fisico e de uma alma nao fisica. Similarmente, acreditava com fundamentos ra- | clonais que a alma — a nossa parte que percepciona, pensa e sente — era imortal. Socrates sabia que esta iiltima perspectiva admitia diividas e que eram precisos argumentos que a apoias- sem. Como Cebes the disse: As pessoas irdo considerar a tua visio da alma muil diffcil de aceitar. Suspeitam que esta deixa de ex simplesmente, quando abandona o corpo. No dia em q um homem morre, a sua alma 6 destruida e aniquilada. Logo apés a sua partida, a sua safda, dispersa-se como um sopro ou fumo, desvanecendo-se em ar rarefeito deixando entéo de existir seja onde for. Em resposta, Sécrates apresentou varios argumen- tos concebidos para mostrar que a alma néo pode ser destruida. ‘O seu argumento mais plausivel apela ao principio da simplicidade da alma Destruir uma coisa, diz. Sécrates, significa desfazé- -la, reduzindo-a as suas partes componentes. Por exem- plo, podemos destruir uma camisa rasgando-a em pedacos, de tal modo que sobrem apenas farrapos. Mas a alma nao se pode fazer algo desse género. A alma ndo € composta. E simples. Nao tem partes que Ppos- 72 sam ser separadas umas das outras. Além disso, dado que nao é uma coisa fisica, a alma nao pode ser quei- ‘mada, esmagada ou mutilada. Por isso, ndo pode ser destrufda. Este argumento tem uma certa plausibilidade fhici- al eos amigos de Sécrates disseram ter ficado conven- cidos com ele. Mas, infelizmente, nao prova tanto como Socrates pensava. O problema dbvio é que deixar de nao tem de implicar ficar separado em partes. iz Cebes, a alma pode «desvanecer-se em ar a semelhanga das notas de uma sinfonia de a orquestra ter arrumado os instrumentos ¢ ‘ido. ‘No entanto, seja qual for a forga (ow a fraqueza) dos argumentos de Sécrates, a sua concepcao de uma alma imorial exerceu uma influéncia enorme. Foi adoptada pelos pensadores cristéos e, numa forma modificada, chegou-nos através dos ensinamentos da Igreja. Por causa disto, muitas pessoas acreditam que a alma imortal é uma doutrina biblica. Ficam surpreendidas quando descobrem que a Biblia nao ensina tal coisa. Em vez disso, a Biblia — ou, pelo menos, 0 Antigo Testamento — afirma a esperanca de que Deus nos faca regressar a vida algum tempo apés a nossa morte, Estas duas noges séo bastante diferentes. Segundo Socrates, sobreviveremos a morte porque existe algo em nds que é indestrutfvel. Para sobrevivermos, nao preci- saremos que nos ressuscitem — nao precisaremos do Poder sustentador de Deus ou de algo do género. A Rossa alma é imortal por si, na sua propria natureza Segundo a perspectiva de S40 Paulo, no entanto, nao iste em nés algo de indestrutivel. Quando morrer. estaremos bem e inteiramente mortos. A nossa ‘nica esperanga é que Deus nos faca regressar a vida, Tessuscitando-nos, tal como Jesus foi ressuscitado Além disso, na Biblia nao se sugere que existiremos 73 PROBLEMAS DA FILOSOFIA a vez num estado desincorporado. Em vez de PRsinar a vida apésainerie como ua dominio pure. tual, Sao Paulo diz. que nos seré dado um le corpo. o ambiente intelectual é diferente do da Ate- Sécrates e, embora a esperanca religiosa da ress ico possa estar ainda connosco, os argumen- los especulatives a favor da imortalidade da alma jé Vio sio muito convincentes. Isto acontece porque, de iras, a ciéncia moderna vai contra a ideia de ‘Boerates. rimeiro lugar, a ideia de «alma» desapareceu julise inteiramente do estudo cientffico dos seres hu- nos, Na ciéncia moderna, (a'ideia de que cada um “We nos 6 um corpo com alma foi substituida por teo- ‘fia que incidem na relacao entre o pensamento e 0 cGrebro.JOs psicdlogos falam com frequéncia de com- nto, de emogoes, de capacidades cognitivas, de sistemas perceptivos, de genética, do ambiente, da selecgio natural e do cérebro — mas a «alma» nao ‘entra na imagem, excepto, talvez, de passagem, quan- do os tas fazem exposigies popularizadas do E mesmo ai a palavra estar entre aspas. Obviamente, podemos entender «a alma» apenas pre wm nome antiquado que designa aquela parte de nds m ay ¢ tem pensamentos e emogdes. Se entender- 10 pelo termo, ento a alma existe seguramente, ria ento de outro nome para a mente e pode- {éntica ao cérebro./Mas quando falamos podemos querer referir-nos, pelo contrario, a fsica. Se quisermos ia de uma alma sera wel. As pessoas podem continuar a acreditar {as terdo de se apoiar na autoridade religiosa, e ciéncia ou na razao. ” SOBREVIVEMOS A MORTE? Em segundo lugar, ha muitos dados que sugerem quea consciéncia s6 € possivel se o cérebro da pessoa estiver a funcionar correctamente. Vemos isto cons- tantemente: se formos atingidos na cabeca, isto poderé afectar 0 nosso cérebro de tal modo que nos fara per- der a consciéncia; se 0 nosso cérebro deixar de receber oxigénio, perderemos a consciéncia; se 0 anestesista nos «puser a dormir», perderemos a consciéncia. Em cada um destes casos, recuperamos a consciéncia apenas quando o nosso cérebro volta a funcionar normalmente. A partir disto, podemos inferir com naturalidade que, quando morrermos e 0 nosso cérebro deixar de funcio- nar de vez, perderemos permanentemente a conscién- cia. As luzes apagam-se e nao ha forma de as acender de novo. Como é ébvio, isto nao demonstra que nao haja qualquer forma imagindvel de retomar a conscién- cia, mas apoia fortemente essa hipétese. ‘Ainda assim, hd lugar para a esperanca. As grandes, igides ensinam que sobrevivemos & morte e a cién- cia nado prova que essa sobrevivéncia seja impossfvel. Muitos crentes ficam satisfeitos em deixar 0 assunto por aqui, vendo-o como uma questdo de fé. Outros, no, entanto, querem mais do que esperanga religiosa. Pro- curam provas factuais para contrapor ao frio pessi- mismo da ciéncia. Seré que essas provas existem? Os artigos de jornal e os programas de televisao dao-nos frequentemente a impressio de que existem fortes provas empiricas da sobrevivéncia. As alegadas pro- vas sao de trés tipos: experiéncias dé quase-morte, ~exemplos de reencarnacao e médiuns que comunicam ‘gadas provas sio pseudociéncia, e a0 exami ficar com uma ideia da diferenga entr Gia a fingir e ciéncia genuina. 75

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