You are on page 1of 4

doi: 10.1590/s0103-4014.2019.3395.

0023

Poesia brasileira do século XVIII ao XXI


Flávia Amparo I

O chin pela lírica brasileira, em especial


s percursos de Antonio Carlos Sec- de análise da poesia e, ao mesmo tempo,
conscientizando o leitor sobre a impos-
como crítico e como autor de poesia, são sibilidade de fixar esses parâmetros. A
conhecidos no meio literário e marcam aparente contradição na trajetória pro-
uma carreira dedicada ao estudo de im- posta pelo livro revela-nos que a poesia
portantes escritores canônicos e não ca- não será sumariamente domesticada pela
nônicos de nossa literatura e à retomada clausura da crítica, muito menos vislum-
criativa que, em sua obra poética, pro- brada no meio do caminho percorrido: te-
põe releituras desse importante legado. remos de buscá-la às margens do poema
Percursos da poesia brasileira consti- e expor-nos sempre ao iminente risco de
tui-se a partir de um acervo de artigos perdê-la nas veredas sinuosas da lingua-
que congrega uma boa parte da produ- gem:
ção crítica sobre poesia publicada por Há muitos modos de aprisionar o
Secchin entre os anos 1996 e 2014, transbordamento do mundo; não
propondo, conforme o autor denomi- queiramos que a poesia seja mais um.
na, uma “leitura seletiva da trajetória de Ela deve ser a palavra vigorosa diante
de todo arbítrio classificatório, a voz
nossa lírica” (p.5). Curiosamente, no li-
que não se pode perceber senão nas
miar do livro, no espaço que antecede margens. Por isso a poesia represen-
o corpo de artigos que o compõem, o ta a fulguração da desordem, o “mau
crítico e poeta seleciona textos lapidares caminho” do bom senso, o sangra-
que servirão de guia aos leitores nes- mento inestancável do corpo da lin-
sa caminhada pelas veredas do poéti- guagem, não prometendo nada além
co: “Poesia e desordem” e “Memórias de rituais para deus nenhum. (p.12)
de um leitor de poesia”. Essa antessala O crítico sustenta o pressuposto de
secchiniana, intitulada “Questões de que o reino da poesia não se apresenta
princípios”, apresenta-nos duas outras como um mundo ordenado e, por essa
faces de sua trajetória, que constituem as razão, é impossível guiar-se com preci-
bases de sua formação no universo das são pelo fio de Ariadne da crítica. Ao crí-
Letras – a do leitor e a do professor de tico, cabe iluminar o poema, ainda que
poesia. O uso do plural para a expressão seja para constatar, na deriva dos senti-
que nomeia essa primeira parte remete- dos, a pluralidade das vias pelas quais as
-nos aos princípios pelos quais a sua crí- palavras podem circular.
tica se fundamenta e, da mesma forma, O trabalho exegético do escritor
ao início do aprendizado poético, às suas configura-se em cada artigo por um
“memórias prévias” do tempo de escola. viés que costuma prestigiar as etapas de
Esses textos de abertura, além de análise do literário e cumprir um ciclo
fazerem parte de obras homônimas do hermenêutico pleno: contempla os co-
autor, representam os princípios nor- nhecimentos informativos, analíticos e
teadores que vão marcar a obra crítica interpretativos necessários a uma melhor
secchiniana, apontando os parâmetros apreensão das obras estudadas. Significa

ESTUDOS AVANÇADOS 33 (93), 2019 305


dizer que há uma preocupação em escla- O arremate do artigo sobre Gonzaga
recer vertentes do poético relacionadas à segue o percurso de análise que corres-
compreensão dos sentidos e dos aspec- ponde ao leitmotiv da crítica secchiniana,
tos da erudição, ao estudo da estrutura já previamente discutido na antessala do
e da técnica do poema e à análise crítica livro: o poético opera pelos princípios da
mais profunda, que estabelece os pon- ordem e da desordem, da tese e da an-
tos de contato entre a obra e uma rede títese. O escritor consegue estabelecer,
de conceitos intertextuais, associativos e assim, a síntese da ideia primordial do
simbólicos que a constituem. poema ao concretizá-la na simbologia
A título de exemplo, o estudo que dos elementos leite/veneno, inserindo o
abre a segunda parte do livro, dedicado pomo da discórdia nesse anódino Paraí-
a Tomás Antônio Gonzaga, destaca a te- so gonzaguiano.
mática do eu lírico e da musa, em Ma- A síntese constitui-se o ponto-chave
rília de Dirceu, para revelar como essa dos desfechos de cada artigo do livro,
proximidade entre ambos ecoa tanto nos momento de sublimação do poeta An-
sentidos do poema quanto na escolha tonio Carlos Secchin pelo viés do crítico
da pessoa verbal usada na interlocução – sua mania de beleza – no bom senti-
do eu lírico. De igual modo, observa do da transfiguração da linguagem em
que o número de estâncias dedicadas à busca do arremate perfeito. É admirável
amada corresponde numericamente às apreciar a fluência do autor e sua escolha
da Natureza, estabelecendo a simetria pela palavra precisa que, unida ao seu ca-
da construção do poema, em busca do ráter investigativo, traz ao leitor desco-
equilíbrio clássico e da valorização dos bertas histórico-críticas enfeixadas pelas
principais atributos da musa a partir de análises originais dos poemas.
seu espelhamento com o ambiente. Por Considerando essa questão, em
fim, num arremate que quebra os clichês “Gonçalves Dias: poesia e etnia”, vemos
interpretativos do arcadismo brasilei- uma combinação entre o estudo da obra
ro, o autor refuta uma visão unívoca da e do contexto histórico e memorialístico
obra para admitir que há uma dupla via do bardo maranhense, que inclui a lei-
poética, em que simetria e assimetria se tura de alguns poemas e de duas cartas,
conjugam na construção dos sentidos: além da análise de uma caricatura do poe-
O amor, portanto, não é apenas o ta, de autoria de Angelo Agostini. Ao re-
bem-comportado sentimento a rebo- compor a trajetória gonçalvina, Secchin
que de uma Natureza que, com re- traz elementos pouco conhecidos da
gularidade, fecunda, produz e gera, biografia do autor, como o necrológio
mas também o vetor que desestabi- publicado por engano no jornal (dois
liza o previsível ciclo da vida, intro-
anos antes de sua morte) e o caráter pre-
duz a assimetria, franqueia as portas
monitório de algumas cartas, em que
da loucura. O estudo dos processos
de recalque desse ímpeto entrópico, preconiza o mar como o túmulo digno
sublimado em tantos textos de Marí- de um trovador. O vaticínio efetivamen-
lia de Dirceu, talvez acrescente insus- te se confirma com o naufrágio do Ville
peitadas doses de veneno ao anódino de Boulogne, navio no qual retornava à
leite extraído do alegre e manso reba- terra natal com os manuscritos de “O
nho. (p.29) timbiras”, que foram perdidos no mar.

306 ESTUDOS AVANÇADOS 33 (95), 2019


Na construção do artigo sobre Gon- mente em Drummond, outros autores
çalves Dias, o crítico desdobra os senti- surgem na confraria dos poetas do livro
dos da palavra “naufrágio”, remetendo, – desde os conhecidos do cânone, como
na abertura do texto, ao juízo crítico de Álvares de Azevedo, Casimiro, Vare-
Agripino Grieco acerca do apagamento la, Castro Alves, Cruz e Sousa, Cecília,
da obra ao longo dos anos e, também, Vinícius, Quintana, Jorge de Lima; até
ao contexto biográfico que marcou o os mais esquecidos, como Mario Peder-
desfecho da vida do poeta e que, igual- neiras e Vitoriano Palhares. Há ainda os
mente, vai ilustrar o epílogo do artigo menos óbvios, como Euclides da Cunha
secchiniano. Assim sendo, o ato da escri- e Bernardo Guimarães, assim como os
ta do texto simboliza a recomposição da contemporâneos como Ferreira Gullar,
memória do escritor, como tentativa de Ivan Junqueira, Chico Buarque e Paulo
salvá-lo do duplo naufrágio, vaticinado Henriques Brito, além de outros escri-
pelo próprio poeta e pela crítica: “Es- tores que marcam o panorama poético
pero que, contrariando o desencantado brasileiro dos séculos XX e XXI, que se-
juízo de Agripino Grieco, aprendamos a rão nomeados em dois artigos mais ge-
mais querer o discurso poético de Gon- rais do livro: “Poesia e gênero literário:
çalves Dias, fazendo com que ele consiga alguns contemporâneos” e “Caminhos
soar e sobreviver a todos os naufrágios recentes da poesia brasileira”. Este últi-
da memória brasileira” (p.70). mo é uma excelente recomposição dos
Os dois artigos escolhidos foram aqui principais movimentos da lírica do Brasil
detalhados para ilustrar alguns dos pro- a partir da década de 1950, desde o sur-
cedimentos críticos do livro, de modo gimento do concretismo até os autores
a “dar a ver” as sutilezas que marcam a mais recentes.
exegese secchiniana e que vão ecoar no Torna-se tarefa difícil capturar o es-
contexto geral da obra sob variadas nu- sencial desses Percursos da poesia brasilei-
ances. O leitor de poesia apropria-se do ra, obra plural, de grande fôlego e erudi-
espaço da memória para redimensionar ção, de modo que poderíamos chamá-la
o olhar sobre cada obra – do arcadismo de “canto geral” da crítica de poesia no
ao romantismo, do simbolismo ao par- Brasil, uma vez que tão poeticamente se
nasianismo, do modernismo à poesia debruça sobre um legado de grande re-
contemporânea. Nos 42 artigos do livro levância literária. Podemos afirmar que
dedicados ao estudo sistemático de poe- Secchin apropria-se da matéria analisada
tas brasileiros, comparecem maciçamen- e, tal como a “Consideração do poema”,
te os poetas românticos (oito artigos), uma das primeiras composições de Drum-
seguidos pelos dois poetas preferidos do mond citadas no artigo “A rosa, o povo”,
crítico, Drummond e João Cabral, aos parece-nos dizer que “Estes poetas são
quais vai dedicar duas suítes, compostas meus. De todo o orgulho,/ de toda pre-
de oito e cinco artigos, respectivamen- cisão se incorporaram/ ao fatal meu lado
te, revelando a intensidade com que a esquerdo [...] / São todos meus irmãos,
melodia dos dois poetas acompanham, não são jornais / [...] é toda minha vida
ininterruptamente, esse fundo musical que joguei. // Estes poemas são meus.
do seu percurso crítico. É minha terra/ e é ainda mais do que ela
Embora concentrando-se particular- [...] (Andrade, 2008, p.21).

ESTUDOS AVANÇADOS 33 (93), 2019 307


O crítico define a literatura como @ – v.flavia@globo.com /
“espaço mágico, que é o mais solitário https://orcid.org/0000-0003-0614-6441
e, ao mesmo tempo, o mais povoado de Recebido em 18.10.2018 e aceito em
todos, espaço em que o indivíduo con- 20.11.2018.
segue transitar da solidão radical para a
solidariedade mais irrestrita” (p.216).
I
Instituto de Letras, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.
A definição ressignifica o leitmotiv da
obra secchiniana, uma vez que o autor
se coloca entre “a voz do texto e a escuta
do leitor” (p.15), entre a singularidade
de sua leitura e a pluralidade da poesia.
Como nas palavras do poeta Estácio, na
Divina comédia de Dante, direcionadas
ao mestre Virgílio, cabe ao crítico ser o
leitor primordial, a iluminar solidaria-
mente os caminhos da poesia para os que
acompanham, logo atrás, seus passos:
“Facesti come quei che va di notte, / che
porta il lume dietro e sé non giova, / ma
dopo se fá le persone dotte [Fizeste como
o caminhante noturno / que leva o seu
lume às costas e a si mesmo não bene-
ficia / mas faz sábio o que segue atrás
de si]” (Alighieri, 1998, p.145, tradução
nossa). O poeta há de sempre caminhar
solitariamente no fértil deserto do poé-
tico, enquanto seus leitores seguem-lhe
o percurso, saciando-se em suas fontes.

Referências
ALIGHIERI, D. A divina comédia. Pur-
gatório. Trad. Ítalo Eugênio Mauro. São
Paulo: Ed. 34, 1998.
ANDRADE, C. D. de. A rosa do povo. Rio
de Janeiro: Record, 2008.
SECCHIN, A. C. Percursos da poesia bra-
sileira. Do século XVIII ao XXI. Belo
Horizonte: Autêntica Editora; Editora
UFMG, 2018. 367p.

Flávia Amparo é professora associada de


literatura brasileira da Universidade Fede-
ral Fluminense e do Colégio Pedro II.

308 ESTUDOS AVANÇADOS 33 (95), 2019

You might also like