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RUA 7 DE SETEMBRO, 97 - RIO DE JANEIRO - GB > Georg Lukacs Carta Sdbre o Stalinismo Em 1966, depots do XXII Congreso do Partido Comunista da Unido Soviética, a revista Nuovi ARGOMENTI, dirigida por Alberto Carésio, publi- cou wm inguéria sdbre o problema do stalinisimo e das transfor:nacces verificadas wa uRSS depois da deniincia do sistema conhecido como “do culto @ personalidade”. Esie trabatho € a contribuicho do filésofo hingara Georg Lukdcs dquele debate, Siren eerie sires reenter geral sdbre todos os problemas a que se referem as suas oito perguntas, pois néles sc acha concentrado tudo aquilo que hé anos ocupa ¢ interessa a mui- tos de nés. Infelizmente, as circunstincias cm gue me encontro obrigam me a renunciar a esta intencéo. Contudo, como nao The quero ocultar completamente as minhas idéias a propésito das ques- Wes abordadas nas perguntas, limito-me a enviar-the uma simptes carla particular. que nfo pode ter mesmo a pretensio de tratar de maneira sistemdtica tdas as questdes essenci Comego pela expressio “culto da personalidade”. E claro que entendo ser absurdo reduzir o conteddo e a problematica de um pe- riodo tio importante da histéria do mundo ao carter particular de um individue. Quando cu cra cstudante, ensinava-se nas universi- dades alemas: “Minner machen die Geschichte” (As personalidades marcantes fazem a histéria). Mas ja © meu sociologismo simmetia- no ou maxweberiano de entio bastava para fazer-me sortir ante tais declaragGes retéricas. Que nao direi agora, depois de dectnios de cducagio marxista? - Minha primcira reagéo em fase do XX Congresso, quase pu- ramente imediata, refletiu uma preocupagio, mais do que com a pessoa, com a organizagdo: com o aparelho que tinha produzido o “culto da personalidade" ¢ o fixara depois numa espécie de inces- sante reprodugdo ampliada. Identificava em Stalin o vértice de uma pirimide que, alargandose sempre na diregio da base, compunha-se de “pequenos Stalins", os quais, vistos de cima, eram os objetos e, vistos de baixo, cram os produtores ¢ mantenedores do “culio da personalidade”. Scm o funcionamento regular déste mecanismo, © “culto da personalidade” n&o terig passado de um sonho subjet vo, de um aciderte patolégico, ¢ jamais teria podido atingir aquela efic&cia social que exerceu durante atgumas décadas. N&o foi preciso reflctir muito pata compreender que aquela imagem imediata, sem scr falsa, dava apenas uma idéia fragmenté- rin e superficial acérea das origens, do cardter e dos efeitos de um periodo histérico importante. Para os homens que pensam ¢ que séo verdadeiramente dedicados 2 causa do progresso, colocava-se neces: sariamente a questo da génese social do fendmeno; ¢ foi Togliatti quem formulou o problema pela primeira yez de maneira justa, di- zendo que era preciso estudar as condig&es sociais cm que surgira ¢ se consolidara © “culto da personalidad’, naturalmente com base na dinamica interna da Revolugio Rutssa. Togliatti acrescentava em seguida, também com razio, que esta tarefa competia antes de tudo aos soviéticos, E claro que ndo se tralia de um problema sdmente historiogréfico, porque a pesquisa histérica deverd levar a uma cri- tica da tcoria e da atividade pratica que se determinaram naquelas condigdes. E uma indagagao aprofundada’ deverd tornar claro tudo aquilo que existe de falso na idcologia ligada ao culto da personali- dade, Dar-se-ia com os estudiosos historiadores o que sc deu com a senhora Alving na pega Os Espectros, de Ibsen: “Eu queria apenas desfazer um né, mas quando o conscgui, foi téda a minha historia que se desatou entre as minhas maos. E agora percebo que ela esta- va costurada a maquina”. E um resultado que nao depende da ati- 30 ee tude daqueles que enfrentam o problema: trata-se de uma conse- qiéncia organica do material tratado. ‘A pesquisa de que falo continua a scr, hoje, um postulado para © verdadeiro marxismo. Nio se pode esperar de mim, que nao sou um especialista neste campo, sequer uma mera tentativa de solugao; ainda mais em uma casta que, inevitavelmente, ter4 um carater ai mais subjetivo ¢ fragmentirio do que um ensaio dedicado ao tema, De quatquer modo, hé de ficar claro para téda pessoa inteligente que 0 ponto de partida sO pode ser a situagdo interna e internacional em que se processou a revolu¢do proletéria russe de 1917, De um ponto de vista objetivo, é necessirio Jembrar as devastagées da guerra, 0 atraso industrial, 0 relativo atraso cultural da RGssia (anal- fabetismo, etc.), 2 série de gucrras civis, as intervengdes estrangciras. etc. Como clemento subjetivo (que é freqlientemente desprezado), & necessério recordar a posicio de Lénin em face da possibilidade de pdr em pratica as suas justas teorias. Hoje — ja que naqueles anos as suas decisées acabaram sempre por se impor — tende-se a esquecer as resisténcias que Lénin teye de superar internamente, no partido. Quem conhece, ainda que apenas em parte, os fatos que antecederam o 7 de novembr3, a paz de Brest-Litovski, a NEP (Nova Politica Econémica), sabe do que estou falando, (Circulava mais tarde um relato sdbre Stélin, segundo o qual éste haveria dito, no tempo das discussdes internas a respeito da paz de Brest: “A ta- refa mais importante é assegurar para Lénin uma maioria segura no Comité Central”.) Apés a morte de Lénin, terminara © periodo das guerras civis ¢ das intervengdes estrangeiras, mas, especialmente no que concerne a estas ultimas, nio havia a menor garantia de que nio recomega- riam de uma hora para outra, O atraso econémico e cultural apare- cia como obsticulo dificil de ser superado numa reconsirugéo do pais que devia ser, a0 mesmo tempo, edificagio do socialismo e pro- tego contra qualquer tentativa de restauracio capitalista, Com a morte de Lénin, naturalmente, as dificuldades internas no partido aumentaram bastante. Ja que a onda revolucionaria que se tinha desencadeado em 1917 passara sem instaurar uma ditadura do pro- Ietariado estavel também em outros paises, cra preciso enfren- tar resolutamente o problema da construgéo do socialismo em um sé pais (que cra um pais atrasado), Neste periodo Stalin se re- velou um estadista notével e que via longe. Sus! enérgica defesa da nova teoria leninista quanto & possibilidade do socialismo em um s6 Fais, contra os ataques sobretudo de Trotski, representou, como nao se pode deixar de reconhecer hoje, a salvasio da revolucio soviéti- 3I ca, B impossivel fazer justica histérica a Stalin sem considerar déste ponto de vista a Juta de tendéncias havida no partido comunista. Kruschev tratou devidamente déste problema por ocasiéo do XX Congresso. Permitam-me uma breve digressio sre o significado das rea- bilitagdes. Sem divida todos aquéles que, nos anos trinta ¢ mais tarde, foram injustamente perseguidos, condenados ¢ assassinados por Stélin, devem ser reabilitados quanto as “acusagSes” inventadas contra éles (espionagem, sabotagem, ctc.), © que nio implica que devam scr “reabilitados” também os seus erros politicos ¢ as suas perspectivas falsas. Sobretudo no caso de Trotski, que foi o princi- pal defensor tedrico da tese de que a construgio do socialismo em um sé pais era impossivel. A histéria refutou, faz tempo, a sua teo- rla, Porém se nos transportamos & época que se seguiu imediatamen- te & morte de Lénin, vemos que tal ponto de vista gerava necessi- riamente a alternative: ampliar a base do socialismo através da “guerra reyolucionaria” ou retornar A situacdo social anterior a 7 de novembro — o dilema do aventureiritmo ou capitulagéo. E aqui a histéria nao consente de modo algum em uma reabilitagio, No que concerne aos problemas estratégicos entio decisivos, Stalin teve plenamente razio contra Trotski. « Por outro Jado, parece-me injustificada a lenda defendida no Ocidente de que se Trotski tivessc tomado o poder teria havido um desenvolvimento mais democriético do que sob Stélin, Basta pensar Nas discussdes realizadas cm 1921 sdbre os sindicatos para comprecn- der que se trata de pura lenda. Trotski sustentava entio, contra Lénin, a tese de que era preciso estatizar os sindicatos pata incre- metiar de mancira mais eficaz a producdo, o que significava que objetivamente os sindicatos deviam deixar de ser organizagécs de massa com umia vida propria. Lénin, que partia do exame da situa- go concreta ¢ defendia o sentido da democracia proletéria nas re- laces dos sindicatos com o partido, e 0 poder central, empreendia a defcsa dos interésses materiais e espirituais dos trabalhadores onde quer que essa defesa se fizesse necessiria, e mesmo“em face de um Estado burocratizado. Nao quero e néo posso aqui abordar téda a questo, mas 6 certo que Stdlin, nos anos que se seguiram, prosse- guiu de fato (ainda que n&o na argumentagio) na linha de Trotski ¢ nao na linha de Lénin. Assim, se mais tarde Troiski acusou Stélin de ter-se aproprindo do seu programa, pode-se dizer que neste ponto, em muitos aspectos, éle tinha razio. Aquilo que hoje consideramos despdtico ¢ antidemocratico na época staliniana tem ligagSes estraté- gicas bastante estreitas com as idéias de Trotski, Uma sociedade so- 32 cialista ditigida por Trotski seria pelo menos tio pouco democriti- ca quanto a staliniana ¢ ainda se teria orientado estratégicamente & base do dilema politica catastréfica ou capitulagéo, afastando-se da teso substancialmente justa defendida por Stélin acérea do socialis- mo em um s6 pais. “A impressio que live do meu cncontro com Trotski, em 1921, deixou-me a convicgio de que éle, como indi- viduo, seria levado ao “oulio da personalidade” em forma pior do que Stalin). Quanto a reabilitagio de Bukharin, julgo intitil esten- der-me: pela metade dos anos vinte, quando a posigio déle nao cra atacada por ninguém, ja eu fazia observar o quanto era discutivel 0 Set marxismo, precisamente em seus fundamentos tedricos. + Voltemos ao tema principal. As merecidas’ vitérias obtidas nas discusses da década de vinte nao fizeram seniio aumentar as difi- culdades para a posicio de Stélin, O problema central, objetiva- mente consistente na obtengao de um ritmo acelerado de industriali- zagio, era com (6da probabilidade dificil de ser resolvido nos quadros da democracia proletéria normal. Seria vio perguntar, hoje, se ¢ em que medida Lénin teria sabido encontrar uma saida, Retrospectiva- mente, vemos que de um Jado existiam as dificuldades da situagio objetiva e, de outro, que Stdlir® para dominé-las, superou cada vez mais com © passar do tempo, os limites do estritamente necessério, Tornar claras as proporgées éxatas em que isto ocorren é a tarefa aquela pesquisa que Togliatti afirmou dever-se esperar da ciéncia soviética, 4 Liga intimamente a éste problema (sem, no entanto, identifi- carse com éle) o da posigio de Stélin dentro do partido. B certo que le montou pouco a pouco, durante a apés o periodo das dis- cussdes, aqucla piramide de que eu falava ha pouco. Mas nao basta construir semelhante mecanismo, € preciso mant@lo sempre em fun- cionamento; em face dos problemas cotidianos de téda cspécic, Ele deve reagir segundo se @spera, sem possibilidade de surprésa. Foi preciso elaborar, assim, gradualmente, aquéle principio que agora estd sendo chamado de “culto da personalidade”. E também no que tange a esta elaboragéo, a Histéria precisaré ser reexaminada a fundo pelos estudiosos soviéticos, levando-se a cabo uma anélise competcnte de todo o material existente ¢ inclusive do material inédito até o pre- sente. © que se podia constatar, de fora, era a liquidacao sisteméti- ca das discusses internas no partido, o acréscimo das medidas or- ganizativas contra os opositores c, em scguida, a passagem das me- didas organizativas a procedimentos de carater judicial c estatal-ad- ministrative. Tais fendmenos repercutiram: no curso da segunda fase do processo acima referido, © tradicional humorismo da inteligén- 33 cia russa agia, ainda. Perguntava-se: “Qual é a diferenga entre Hegel ¢ Stalin?” E vinha a resposta; “Em Hegel, ha a tese, a antilese ¢ a sintese; em Stalin, ha o informe, « critica do informe e a tomada imediata de medidas organizativas”. Keuschey deu uma justa indi- cagio no XX Congreso para o julgamento histérico do fendmeno, 3 quando definiu os grandes processos judiciais dos anos trinta como politicamente supérfluos, de vez que a forga efetiva de tédas as opo- sigdes j& tinha sido entéo completamente aniquilada. Nio me considero competente para descrever a atuagio das féreas motrizes déste desenvolvimento, Do ponto de vista tcérico, mesmo, scria necessfrio mostrar de que maneira Stélin, que, na déca- da de vinte, defendia com habilidade ¢ inteligéncia e heranga de Lé- nin, passou & oposi¢ao a éste no que concerne a tantos problemas im- portantes, (Circunstincia que nao é alterada pela adesda verbal sem- pre mantida as doutrinas de L&nin.) Tendo logrado. ser tido como legitimo herdeiro ¢ intérprete sempre autorizado de Lénin, a ponto de ser reconhecido como o quarto cléssico do marxismo. Stélin péde chegar a consolidar cada vez mais o fatal preconceito da a identidade entre 2 teoria especificarpente staliniana e 0s princfpios fundamentais do marxismo. Repito que nao pretendo analisar cicn- tificamente as origens desta situagdo; ,fomo-a tal como cla se apre- p senta na realidade, como um fato, e procuro nas paginas que se sc- guem fixar-lhe as conseqiiéncias tedricas © culturais, pondo a nu o método imanente. 3 situagio que 2s produziu, através do arrolamen- to de alguns fatos importantes ¢ de alguns pontos nodais. Nio me interessa saber alé que ponto determinadas teorias comentadas de- verfio ser positivamente atribuidas ao proprio Stélin; na centraliza- go espiritual criada por éle cra impossivel que uma teoria qualquer se firmasse de maneira estével sem por éle ter sido menos autorizada, do que decorre que a sua responsabilidade quanto a elas é, em qual- quer caso, evidente. ‘ . ‘Comego por uma questo de método, aparcntemente muito abs- trata: a tendéncia staliniana € sempre a de abolir, quanto possivel, tédas as mediagdes, e a de instituir uma conexio imediata entre os - fatos mais crus € as posigdes tedricas mais gerais, Precisamente aqui, aparece claramente o contraste entre Lénin ¢ Stalin. Lénin distin- guia com clareza entre a teoria, a csiratégia ¢ a (atica, estudando-as sempre com o maior cuidado ¢ levando em conta tédas as mediagdes existentes cnire clas ¢ que freqiientemente as relacionam de modo muito contraditério, Nao posso, naturalmente, em uma simples carta (se bem que ela se venha alongando), discorrer sobre éste procedi- mento tedrico habitual de Lénin ¢ fazer-Ihe a demonstragdo, Limi- 34 to-me a tomar um tnico exemplo; 0 conceito to importante para Lénin do recuo 1ético. E uma regra metodol6gica de fato Sbvia a de que a necessidade ¢ utiJidade de um recuo s6 podem ser estabeleci- das & base das relagdes de fora concretamenie existentes em cada situagio dada — ¢ nao & base dos principios tedricos mais gerais. Os prineipios teéricos gerais determinam (de maneira mais ou menos mediata) 0s objetivos, cte., da aio atual; e tem uma grande impor- Uineia para o recuo na medida em que contribuem para determinar- Ihe 0 modo, a medida, ete., a fim de que 0 recuo no se torne obs- ticulo para um névo avango. Que a realizagio clastica do recuo exige 0 conhecimento de todo um sistema bastante complexo de me- diagdes, é uma coisa clara, que nao precisa ser explicada, A autori- dade pessoal de Lénin resultara das grandes agdes ¢ importantes rea- lizagies tedricas a tle devidas, tornando-se algo que chamariamos de “natural”; Stdlin, que nfio dispunha da mesma autoridade que Lénin, achou um modo de dar uma justificagio imediatamente evi- dente de rAdas as suas medidas, apresentando-as como a conseqtién- cia direta ¢ necessiria da doutrina marxista-leninista, Para conse- auir isso, precisou suprimir tSdas as mediagdes e estabelecer ligagdcs imediatas entre a teoria € a pratica, Por esta razHo, tantas categorias de Lénin desaparecem do hortvonte de Stélin; 0 préprio recuo apa- rece neste como um avango. A falta de escriipulos de Stélin chega ao ponto de alterar, se necessirio, a prépria teoria, a fim de utiliz-la como suporte para a sua autoridade insegura. O que se manifesta de modo particular mente grotesco na questdo chinesa, onde o grotesco nasce do fato de que Stalin, na ocasiio, do ponto de vista tético, estava com téda razio. (Mesmo a critica mais severa nao deve jamais fazer esquecer que Stélin foi uma figura politica de primeira ordem.) Trotski seus scguidores defendiam a tese de que, jf que na China predomi- navam relagdes asidticas tipicas de produgo, estudadas tedricamen- te por Marx, uma revolticfo democrStico-burguesa (correspondente & passagem do feudalismo ao capitalismo ma Europa) cra supérflua, devendo adotar-se 0 programa imediato de uma revolugio proleté- ria, Stélin compreendeu bem a falsidade e periculosidade polftica” desta posigao, Mas, em lugar de refutd-la com uma anflise concreta da situagdo chinesa contemporanca ¢ dos objetivos taticos pela mesma exigidos, deduziu sic er simpliciter a partir dos principios getais da ncia a estrutura das relagdes asidticas de producdo ¢ estabeleceu a existéncia de um feudalismo chints e asidtico em geral. Em segui- @a, téda a orientalistica na Unido Soviética foi chamada a situa 35 uma formagio inexistentc (o “feudalismo asiético") na base das suas Pesquisas. A mesma metodologia aparece em outro caso de modo ainda mais nitido: refiro-me ao pacio de Stélin com Hiller em 1939, Ainda aqui, a meu ver, Stalin adotou uma decisio substancialmente just, do ponto de vista tético; porém ela teve conseqiiéncias tragicas, por- que, ao invés de tratac como tal o recuo tatico impdsto pelas circuns- tncias concretas, Stélin féz da sua medida critétio de principio da estratégia internacional do proletariado. Nao devo aqui abordar o di ficit né problematico das vantagens e desvantagens (de carater pol: tico ¢ moral) ligadas ao pacto de 1939. Seu sentido imediato foi o de afastar a ameaga iminente de um atague hitlerista que provavel- mente seria apoiado, ostensiva ou ocultamente, por Chamberlain © Daladier, A perspectiva tatica ulterior era a de que, se Hitler — como de fato aconteceu — aproveitasse o pacto com a Unido So- viélica como ocasiio favordvel para uma ofensiva contra o Ociden- te, mais tarde, no caso de uma guerra entre a Alemanba e a Uniao Soviética, uma alianga desta ultima com as democracias ocidentais (jd tentada ao tempo de Munique) seria extremamente provavel. Também neste ponto os fatos confirinaram a previsio de Stalin, Fatais para todo 0 movimento gperrio revoluciondrio foram, isso sim, as conseqiiéncias de cardter hist6rico-estratégico provocadas por Stélin. Declarou-se que a guerra entre a Alemanha de Hitler ¢ as poténcias européias era uma guerra imperialista, ja! como a Pri- meira, As formulas estratégicas de Lénin, justas para as condigdes da “Primeira Guerra” (“o verdadeiro inimigo est& dentro do teu pais", “transformemos a guerra imperialista em uma guerra civil”) deviam yaler como normas de acéo imutdveis para os paises que queriam se defender comira a dominagéo do fascismo_hitlerista. Basta ler 0 primciro volume do ciclo Os comunistas, de um cscritor ortodoxo como Aragon, para ver claramefite quais foram as conse- qliéncias desasirosas desta “generalizagdo stalinista” de uma medi- da tética, As conseqiiéncias mais nefastas ainda transcendem os casos particulares, por maiores que sejam éstes. A grande autoridade do marxismo no tempo de Lénin se baseava no fato de que a unidacte dialética do fundamentagao tedrica, estabilidade de principios e elas- ticidade tética era percebida por todos. A nova “metodologi de Stalin f€z com qve amplos circulos, nem sempre a priori hostis 20 marxismO, passassem a nao ver nas afitmagées teéricas de Stalin senio “justificagées" amitide sofisticas e em muitos casos pseudo- tedricas, de medidas puramente taticas ¢ de validade bastante con- tigente. Stélin vinha de encontro assim aos ansejos tedricos de mi 36 pensadores burgueses, parn os quais 0 marxismo seria apenas uma “jdeologia” politica, como qualquer outra. Se, nos nossos dias, for- mulagdes justas e profundas de’ Kruschev, como a da evitabilidade da guerra imperialista e a da necessidade da coexisténcia pacifica, jo interpretadas, em muitos aspectos, de maneira aniloga, também neste caso estamos diante de um fruto da heranga stalinista, Uma liquidagdo radical e de principio de ta! metodologia — © nao sd- a mente dos cquivocos encarados na sua singularidade — ¢, assim, exigéncia do nosso tempo, mesmo no sentido prdtico mais urgénte. Qs erros aqui alinhados sio naturalmenie casos exiremos, po- rém os seus princfpios foram universalmente aplicados na praxis co- tidiana, Tal aplicago nao nos deve fazer esquecer que boa parte da velha inteligéncia dentro do partido ficou em oposigio a Stélin (0 que n&o significa, por sua vez, que tal oposic¢ao representasse um ponto de vista metodolégica e objetivamente justo). Stélin tinha ne- cessidade de uma exectigio precisa das suas decisGes por parte do aparetho ¢, ainda, se possivel, da aprovacio das amplas massas; tam- bém por isso simplificou radicalmente as suas formulagdes tcéricas. A supressio das meditagdes, @ bigaco dircta entre os principios mais - gerais € as exigéncias concretas da atividade prdtica cotidiana, neste sentido, apareciam como mieics bastante idéneos. Também aqui, nao se concretizou a teoria aplicando-a @ pratica, mas, a0 contrrio, sim- plificando © vulgatizando os prinefpios segundo as exigéncias (comu- mente apenas presumidas) da pratica, Li ticularmente epressivo, conquanto pudesse alinhat jo-me a um exemplo par- intimeros outros: na sua Gltima obra econdmica, Stilin “descobriu” aquilo que tinha isto € que téda formagio eco- a qual pode ser sintetizada “escapado” a Marx, Engels e Lénin, némica possui uma “lei fundamental numa proposicéo simples. Uma proposigio tio simples que até o mais limitado ¢ inculto qos funcionirios a compreende logo, fican- do, assim, em condigées para, utilizando-a, condenar em seus des- 7 vios de “direita” ou de “esquerda” qualquer trabalho de ciéncia eco- | némica, mesmo que no entenda objetivamente nada da matéria. Marx, Engels e¢ Lénin sabiam que as-formagoes econémicas cons- : tituem sistemas méveis ¢ complexos, cuja esséncia s6 pode ser defi- nida mediante uma consideragio exata de tédas as suas determina- cécs importantes, das duas interagdes reciprocas, proporgées, etc, As is fundamentais” de Stalin, por sun vez, enunciam meras banali- des, no esclarecem coisa alguma, porém @4o a certos circulos a jo de saberem (tudo antecipadamente. Nessa direcio, da vulga- ilu rizagio através da supressio dos térmos médios, situa-se a enuncia- gio de Stélin no seu ensaio sdbro a Lingtifstica, segundo o qual a 37 decomposigio de uma formagio econémica determina também a de- compasigao da sua ideologia. Os diversos momentos do métodu stalinista formam ‘uma unidade sistemitica dentro da qual étes sc imbricam uns nos outros. J4 foi observado o subjetivismo que se manifesta na posi¢ao'de Stélin. O subjetivismo, efetivamente, constitui um momento fundamental na- quele sistema, por&m assume a sua forma pura na concepsio stali- nista do partidarismo. Tratase de vm importante elemento da con- cepgio tedrica de Lénin; jé em seus trabathos de juventude, éste for- mulou-lhe os momentos subjetivo € objetivo. O momento subjeti- vo € claro e simples: uma tomada de posigio resoluta na lute de classes, Quando Lénin critica o “objetivismo” dos cstudiosos bur- gueses, contudo, nio nega 0 momento objetivo: refere se a certo tipo de determinismo que pode degenerar facilmente numa apologia dos fatos entendidos como necessdrios. JA que 0 partidarismo materia- lista pesquisa os acontecimentos de modo mais profundo e concreto, a partir das suas forcas motrizes reais, éle € mais rigorosamente ob- Jetivo do que o “objetivismo" ¢ valoriza mais profunda € concreta- mente a objetividade. Com Stilin, todavia, o segundo momento cai por terra; ¢ toda preocupagado com 4 objetividade é rétulada como “objetivismo" ¢ declarada desprezivel, Sendo Stalin um homem inte- ligemte, surpreendeu-se, um dia, quandu percebeu em tdrno déle as conseqiiéncias do subjetivismo que desencadeara. Percebeu-o, por exemplo, na Economia. Mas nio podia e nem efetivamente queria eliminé-lo com eficécia, pois se tratava de uma atitude enraizada no método que éle préprio introduzira, Como queria manter a qualquer custo a continuidade “citacio. nal" com a obra de Lénin, Stalin nao se limitou a deformar os fatos, mas deformou até mesmo textos Ieninistas. O exemplo mais eviden- te € 0 de um artigo de Lénin escrito ¢m 1905, no qual éste se pro- punha a estabelecer uma ceria ordem, nasenovas condigdes de lega- lidade, para a atividade do partido no setor de impressio ¢ editorial. Sob Stélin, aquéle artigo tornou-se pouca a pouco a biblia do parti- darismo, em todos os campos da cultura e sobretudo em uma peca do grande mecanismo. Apesar de N. Krupskain — espdsa e colubo- radora fatima de Lénin — ter chamado a atencdo, numa carta. para fato de que o artigo de Lénin ndo se referia absoluiamente & lite- ratura, éo desapareceram ainda hoje as tendéncias no sentido de que a Biblia continue a ser... Biblia Algo semelhante aconteceu com Hegel no tempo da Segunda Guerra Mundial, quando, por exigéncias propagandisticas da luta contra a Alemanha de Hitler, 0 filésofo foi aprtscntado como o 38 idedtogo da oposigho reaciondsia que combateu a Revalugia France- sa, Prescindindo do contraste existente entre esta tese e a interpreta gio de‘ Hegel fcita por Marx, Engels e Lénin, & bastante cémico re- cordar que, neste mesmo periodo, por analogas exigéncias da propa- ganda, © general tzarisa Suvorov passou a ser apresentado como um revoluciondrio. Que Suvoroy tenha dirigido campanhas militares contra a Revolugo Francesa, enquanto Hegel a defendcra entusias- ticamente até o fim da sua vida, eram coisas que nio perturbavam em absoluto o partidarisino stalinista, O reconhecimento dos fatos seria prova de “objetivismo”. © ponto culminante desta tendéncia est representado pela His- t6ria do Partido, difundida em muitos milhées de exemplares. Aqui, © partidarismo do funcionério supremo aparece como um demiurgo que cria ou suprime os fatos de acérdo com as exigéncias, confe- tindo ser e valor a0s homens e aos acontecimentos — ou anulan- do os, E uma histéria de lutas entre correntes, mas as aposigées sio andnimas, no sio representadas ou defendidas por homens. E uma histéria onde (& parte Lénin, bem entendido) s6 Stélin possui uma existéncia conereta, Na primeira edigao, ainda havia uma excegao: Ezov, 0 organizador dos primbiros grandes processos judicial parado a “o nosso Marat"; depois que caiu em desgraga, também o seu nome foi suprimido, Em tudo isso, se revela um outro aspecto metodolégico. Para os clissicos do marxismo era ébvio que a ciéncia fornecia o material os pontos de vista com base nos quais cram tomadas as decisdes politicas, Propaganda e agitacio recebiam o seu material da ciéncia, da praxis cientificamente elaborada; Stalin inverteu esta relagio, Para @le, em nome do partidarismo, a agitagio 4orna-se 0 momento pri mirio. As exigéncias da agitacdo determinam (como j4 mostrei com base em alguns excmplos) aquilo que a ciéncia deve dizer ¢ até mesmo 0 modo conto deve dizé-lo. Um exemplo pode esclare- cer tal situacio, No célebre capitulo IV da Histéria do Partido, Stélin define a esséncia do matcrialismo dialético ¢ a do materialis- mo histérico. Tratando-se de um Jivro popular, para um pGblico de massa, ninguém ha de reprovar a Stalin o haver reduzido as consi- deragdes sttis e complexas dos cléssicos do marxismo sdbre 0 assun- to a umas poucas definicées alinhadas uma em seguida A outra, de forma esquemitica ¢ manualistica. Mas o destino das ciéncias filo- séficas a partir da publicacdo desta obra revela que se trata de uma metodologia consciente ¢ de uma politica cultural deliberada, exata- mente no sentido a que me referi acima. As simplificagSes ¢ vulga- rizagdes propagandisticas de Stélin tornaram-se de repente a norma 39 iinica, imperativa, o limite insuperdvel da indagacio filoséfica. Quem ousasse, com apoio por exemplo nas anotagées filosdficas de Lénin, atilhar caminhos diversos dos seguidos pelas definigdes do capitulo 1V, corria o risco de uma condcnacéo ideolégica depois da qual nao poderia publicar suas pesquisas, Nao foi por acaso, ulids, que Ilitchev consiatou no XX Congresso terem ficado estagnadas nos Ultimos de- cénios a Filosofia, a oriografia © a Economia soviéticas. Tais formas de subordinagio nfo se limitariam ao capitulo 1V e A Filosofia. Téda a ciéncia ¢ téda a literatura deviam servir exclu- sivamente &% exigéncias propagandisticas formuladas pela alta dire» cao, quer dizer, por Stélin. A compreensio ¢ elaboragio auténoma da realidade através da literatura era cada vez mais erradicada. A literatura “pactidaria” j& no deve refletir criadoramente a realida- de objetiva, mas ilustrar de forma literéria as“decisdes do partido. E um fato que honra o critico literario Usevitch o ter éle tomado po- sigho, ainda nos anos trinta, contra a obrigatoriedade da literatura ilustrativa. Em seu discurso no XXII Congresso, 0 poeta Tvardovski prosseguiu nesta luta que ainda hoje continua a ser necessiria. Tra- ta-se de um problema crucial da literature. A literatura s6 pode che- gar a uma representago auténtica $e parte de problemas reais de homens reais e se respeita a dialética interna da evolugéo que sc processa com base em tais premissas:"a obrigatoriedade da ilustra- ¢G0 coloca na base da obra uma verdade geral abstrata (admitindo que sc trate de uma verdade) ¢ estabelece a adcquacio a qualquer custo dos homens e de seus destinos & tese que deve ser ilustrada, Tédas estas coisas, naturalmente, nio constituiam fins em si mesinas; resultavam da posigao de Statin, da sua necessidade de uma autoridade indiscutida. Repito que nelas s6 pesquisas aprofundadas do estudiosos competentes poderio esclarecer 0 que s¢ deveu as di- ficuldades objetivas © o que se deveu a reagées inadequadas de Stalin. Na década de 30, ocorreu, sem diivida, um agravamento objetivo da situagdo; internamente, a partir da industrislizagio acelerada, a coletivizagao da agricultura; na politica externa, a ascensio de Hi- Wer ao poder e a ameaca de um ataque da Alemanha fascisia contra a URSS. Se em meio 4s dificuldades econdémicas operou-se ou nfo um agravamento decisivo da luta de classe no pais, é um problema que deverd ser resolvido através de observagdes competentes por es- tudiosos da materia. Stalin, entretanto, recorreu logo & palavra-de-or- dem da simplificago-generalizag3o _propagand! 0 incessante agravamento da lita de classes € necessétio na ditadura do proteta- ado. (Eu in dizendo: é a sua “lei fundamental”.) 40 Através desta tese, cuja falsidade jé foi desmascarada pelo XX Congresso, chegames a algumas das conseqliéncias mais nefastas do método staliniano, pois cla suscita uma atmosfera de continua des- confianga miitua, de vigilancia de todos contra todos, em um per- manonte clima de estado de sitio. Limito-me a recordar aqui, breve ¢ fragmentariamente, algumas conseqiiéncias secundérins: 0 médo excessive ¢ ilimitado de inimigos, espides e sabotadores, bem como um sistema de segredos obsessive por tudo aquilo que tivesse quat- quer coisa a ver com politica. Assim, por cxemplo, a Estatistica se torna uma cléncia “rigorosamente secreta”, cujos resultados sé eram acessiveis a um grupo de “cleitos™ constituido de pessoas da mais absoluta confianca, . © quadro do método statinisia adquire assim um trago comple- mentar que ainda Ihe faltava: tudo aquilo que € objetivamente ine- vitével em uma situagdo revolucionaria aguda, na qual esta cm jogo © ser ou nado de uma sociedade, foi arbitrariamente erigido por Stalin cm fundamento da praxis cotidiana soviética. Nao quero me deter aqui a falar dos grandes processos judiciais; até agora, foi éste © tema amplamente tratado: ¢,Chelepin, no seu discurso ante o XXII Congresso, j4 analisou de mancira bastante correta as conse- qliéneias que éles tiveram pare, 0 Direito sovittico e a jurisprudén cia, socialista. Chamarei a ateng#o apenas para algumas conseqiién- cias de ordem cultural. J4 a supressio das mediagdes contém nela mesma a tendéncia para iraiar como um bloco monolitico todos os fenémenos da vida, A permanéncia da siluagdo revoluciondria aguda intensifica, ulteriormente, esta tendéncia. Cada cxisténcia, cada in- dividuo, cada ato, se dissolve sem deixar residuo na fung3o que mo- mentaneamente desenvolve (ou que se pretenda que desenvolve). Tomemos um exemplo da légica dos processos: jd que Bukharin em 1928 se opés 20 plano stajiniano da coletivizagio, ¢ certo que em 1918 @le participou de uma conspiracéo para assassinar Lénin, Bo método de Vichinski nos grandes processos politicos, E a mesma metodotogia se estende a apreciagéo da Histéria, da ciéncia, da arte. Aqui, também, é muito instrutivo comparar 0 método de Lénin com © de Stalin. Lénin, por exemplo, criticou dura ¢ asperamente a po- litica de Plekhanov em 1905 e em 1917. Mas, ao mesmo tempo — ¢ éste “20 mesmo tempo” nao implica em contradigao alguma para Lénin — insistia em-que era preciso utilizar a obra teérica de Plekha- nov na difusdo ¢ aprofundamento da cultura marxista, c isso nao obs- tante Lénin Ievantasse varias e importantes objegées contra Plekhanov. mesmo no plano da teoria. 41 Etcétera, etcétera, devia escrever, neste ponto, porque de” fato ndo esgotei o argumento. Mas estas notas breves ¢ fragmentarias bastam para mostrar que, no caso de Stalin, nao se trata de erros particulares e ocasionajs (como alguns tentaram apresenté-los) ¢ sim de um falso sistema de idéias gradualmente montado, um siste- ma cujos efeitos nocivos se fazem sentir tanto mais dolorosamente quanto menos as condigdcs sociais atuais so semelhantes as condi- gdes em que apartceu o sistema stalinista ¢ das quais 0 mesmo foi o teflexo deformado e deformante. Também no que concerne a-esta transformacao, os fatos deci- sivos sio do conhecimento geral. Limito-me a enuncid-los com bre- vidade; os acontecimentos que se seguiram a Scgunda Guerra Mun- dial tornaram 0 socialismo num s6 pais ¢ o atraso econémico ¢ cul- tural da URSS uma reminiscéncia do passado; a propria possibilida- de do cérco capitalista a socialismo passou a pertencer também 20 passado. A ésses fatos, hi de se acrescentar a vitoriosa emancipagdo dos povos cotoniais ¢ a radical transformacdo da técnica de guerra com a introdugao dos engenhos termonucleares, Por todos éstes mo- tivos, a guerra imperialista deixou de ser inevitdvel. Constitui um grande mérito do XX e do XXII Congressos a constatagio franca desia noya situagdo e o ter tirado dela as principais conse teéricas © praticas. Naturalmente, os,animos se acham divididos, so- bretudo, segundo as atitudes em face da guerra e da paz; em 1érno desta questio, agugam-se ao maximo os problemas ideoldgicos, Sem poder aqui sequcr aflorar os problemas politicos fundamentais do nosso tempo, observo que, no campo cultural, a enfatizacio do pe- rigo de guerra € a subestimacio do péso das for¢as que operam a favor da coexisténcia pacifica derivam, na maior parte dos casos, antes de razdes internas do que de razdes externas; isto é; visam mais a conservar ou a fazer surgir uma atmosfera de guerra do que a preparar ou desencadear efetivamente uma guerra. O que mosira como evidente a sobrevivéncia de tendéncias stalinistas nos ambien- tes de sectarismo declarado ou disfargado. Poucos defenderiam hoje, com as mesmas palavras, a tcse sta- linista de agravamento fatal da luta de classes na ditadura do pro- Ietariado. Para conservar uma situagio stalinista internamente, basta invocar, por ora, a todo instante, elementos que indiquem a existén- cia de tal agravamento ¢, através déles, manter um estado de tensio aguda, com a qual, inclusive, se justifique o contréle centralizado de 1édas as manifestagSes culturais. Esta, alias, ¢ a base da alianga de facto que existe presentemente entre as tendéncias extremistas do ca- pitalismo e do socialismo. Juntas, elas querem, em ultima anilise. 42 ‘ consérvar inalterados os métodos stalinistas. Os idedlogos burgueses, porque um marxismo reduzido a Stalin possui uma férga de atragao bem menor sdbre as massas do que o marxismo genuino; os que se pretendem socialistas, porque é muito mais cémodo governar com 0s métodos stalinistas do que com os métodos de Marx, Engels ¢ Lénin. Por isso, Enver Hodja e Salvador Madariaga agem hoje (pa- radoxalmente, & primeira vista) no mesmo sentido: batem-se, juntos, afinal de contas, em favor da integridade do sistema stalinista, Por outro lado, a coexisténcia implica necessariamente uma in- tensificagao das relagSes culturais entre o capitalismo e 0 socialismo ¢, portanto, implica um desafio para a cultura socialista no sentido de que cla saia vitoriosa de uma competi¢éo viva com a cultura ca- pitalista. © sectarismo faz tudo nao apenas para enfraquccer as con- digdes para uma concorréncia vitoriosa como para mascarar a situa- cdo real; no entanto, a situagdo real, hoje, é€ bem mais favoravel do que a situagdo existente na década de vinte, em que os métodos sta- linianos ainda nfo se tinham aperfeigoado e nem cram aplicados & produgao cultural. O critico alemio (da Alemanha Ocidental) Walter Jens descreveu nestas palavras 0 que se passou com a literatura ale- ma nos anos vinte: “Ninguém quvidard, afinal, que tenha sido mes- mo, em altima anilise, justificado o interésse pela Unido Soviética despertado pela arte dos anos winte, que nos viramos levados a im- portar”. E assim se exprime acérca dos efeitos do stalinismo triun- fante: “Os intelectuais se haviam tornado, para sempre, sem patria”. A grande tarcfa da cultura socialista, hoje, € a de tornar-se, para os in- telectuais, 1amo como pira as massas, uma pétria espiritual. Nos anos vinte, politica e econémicamente tao dificcis, isso j4 fora con- seguido em larga medida. Um filrhe como A Balada do Soldado de Tchukhrai mostra cla- ramente que © regime stalinista péde nao s6 limitar mas até extin- guir encrgias criadoras, es quais, contudo, logo ressurgem quando se eliminam as condigées desfavoriveis ao seu desenvolvimento. Com esta afirmagio, nao quero subestimar as dificuldades do periodo de transigio. Os aparelhos culturais dos paises socialistas ainda se acham, cm ampla medida, nas mios de discipulos dogméticos de Stalin (que no melhor dos casos consentem em adaptar-sc exteriormente & “novidade”). Boa parte dos novos quadros ainda € cducada e for- mada no cspirito stalinista. O sistema staliniano é um paraiso para todos os destitufdos de talento, que nfo abrem mao déle com facili- dade. Muitos dos elementos mais bem dotados nao conseguiram re- sistir as pressdes durante tanto tempo ¢ ressentiram-se gravemente quanto & capacidade e 20 cardter. Por tudo isso, penso que a passa- 43 gem para uma situagdo cultural que ‘promova realmente a ciéncia e a arte seré, provavelmente, contraditéria, dificil, ¢ cheia de recaidas. No XX Congreso foram feitos importantes informes acérca da situagio atual. J4 citei alguns déles. Mas 0 gue nos interessa mais, NO nosso tempo, nio é aquilo que se rejaciona diretamente com o campo da cultura; sio as medidas econémicas ¢ politicas que intro duzem na reaiidade social uma democratizagio geral de sentido ¢co- munista. Trata-se de um plano onde a necessidade de reforma € mais imediata € imperiosa do que no plano cultural. Com todos os seus erros, a indusirializagio staliniana soube eriar as condicdes e requi- sitos técnicos para a viléria na guerra contra a Alemanha de Hitler. Mas a nova situagdo mundial coloca a Unido Soviética, no campo econémico, em face de tarcfas complementares novas, tais como a de criar uma economia que supere em todos os setores da vida a do capitalismo mais desenvolvido (a dos Estados Unidos), a de elevar © nivel de vida do povo soviético a um nivel superior ao do povo rorte-americano e a de poder prestar uma ajuda ccondmica de téda espécic, sistemdtica € permanente, tanto aos demais paises so- listas quanto aos povos subdesenvolvidos ora em vias de emar agdo. Para tais objctivos, sfio nectssérios métodos novos, mais de- mocraticos, menos burocraticamente centralizados do que aquéles que se desenvolveram até o presente." XXII Congreso j4 indicou um conjunto grandioso ¢ malliplo de reformas, Limito-me a recor- dar aqui uma deliheragéo de extremo interésse ¢ da maior importan- cia: nas cleigées para a diresio do partido, 25% dos velhos di gentes nao poderao ser reelcitos. O renascimento cultural dentro do socialismo exige uma renovagéo democrética que se faca sentir em téda a vida social e que se constitua em uma base saudavel para élc. A resisténcia a uma critica radical e de principio do perfodo Stalinista ainda € muito forte. Nela sao invocados os motives mais dis- paratados. H4, por cxemplo, os ingénuog e bem intencionados que temem que a dendncia desapiedada dos erros do sistema stalinista resulte numa perda de prestigio para 0 comunismo, Esics esquecem que € exatamente nisso que se afirma a férca irresistivel do comu- nismo; os movimentos histéricos que chegam a amadurecer nfo podem ser indefinidamente retardados por medidas desfavoraveis, se- jam elas quais forem, A expansio e 0 raio de agio de tais movimen- fos podcriam ser momentancamente atingidos, mas nfo o scu avan- go geral. E ainda se hd de observar o scguinte: uma reflexdo im- parcial: niio poderd descuidar-se de levar cm’ conta o que houve de positivo na atividade de Stélin; eu mesmo recordaret aqui alguns désses aspectos positives e poderia recordar outros. Mas a exigéncia 44 do nosso tempo & que o socialismo se liberie das cadeins dos mé- todos stalinianos. Quando Stalin pertencer integralmente i Hist6ria © ao pasado e no fér, como ainda & hoje, © principal obstacuto para uma evolugio futura, entdo serd possivel, sem maior dificuldade, fermutar sébre éle um julgamento justo, Pessoulmente, tenho pro- curado contribuir para esta avaliagéo histérica equinime. Porém a exigéneia dela nfo deve estorvar o irabalho de reforma, que é tio importante. Trata-sc de Jiberlar as forgas que estio contidas no justo método de Marx, de Engels ¢ de Lénin, Em seu discurso de Bucareste, Krus- chev realgou a oposigio que exisic entre o auténlico método leni- nista ¢ as afirmacdes dogmaticas ¢ contingentcs de tipo stalinista com a feliz imagem de que Lénin hoje nao daria ouvidos aos que quiscs- sem servir-se de citagdes, de seus escritos ou discursos para procla- mar a inevitabilidade da guerra nas condigdes presentes. O retérno ao verdadeiro método dos classicos do marxismo € sobretudo um acérto de contas com o presente ¢ com o futuro. A Gitima pesquisa original marxista no campo econémico, o Imperialismo de Lénin, apareceu em 1915; a iiltima no campo filoséfico, a andlise de Hegel por Lénin, foi eserita em 1915/1916 © publicada nos anos trinta. Se a nossa tcoria sofreu um enrijecimento, um eslancamento, contu- do, © mundo no parou, O ret§rno 20s métodos dos classicos serve exatamente para colhermos o presente & mancira marxista, desven- dando o tal como éle é na realidade ¢ formulando os critérios de conduta, de acio, de criagio e de pesquisa a partir da realidade con- creta conhecida ¢ nao a partir de uma esquemélica “citatolégica”. Naturalmente, trata-se de um processo que nio tem nada de simples, ainda que prescindamos dos obstdculos criados pelas instincias bu- rocriticas, Faz parte da esséncia da indagagio cicntifica — como da criacio artistica — que nfo se possa alcangar um maximo de aproximagio da realidade sendo através de erros e peripécias miilti- plas. Como no periodo staliniano a instancia central devia ser infa- livel, deviam ser infaliveis também as aplicagGes das decisdes efe- tuadas pelos “pequenos Stélins"; chegava-se assim a uma “perfecti- lidade” de execugdo que devia coroar o sistema. Outra caracteris- tica daquele periodo, alids, era que, embora se colocasse muito acima do cfémero ¢ se afirmasse como “definitiva”, cada “perfeigdo” nao tardava a ser condenada como “desyio". Ainda aqui, h& um’ porme- nor humoristico que documenta © estado de espii Tussa nos anos trinta, Saia entio, a cada ano, um volume da Enci- clopédia Literdria, sempre redigido no sentido da mais rigorosa “per 45 feico"; antes que o texto acabasse de rodar, contudo, quase tédas as verdades dogmaticamente cstabelecidas se haviam dogmiticamen- te transformado em erros, Todos passaram a se referir a pubsicagao como a “Enciclopédia dos Desvios". Renunciar a esta “definitividade” burocr: discutir aberta ¢ piblicamente as divergéncias efetivas na ciéncia ¢ na arte seria imprimir internamente ao marxismo um avango supe- rior a qualquer previséo e (ao contrario do que pensa a burocracia cultural stalinista) scria aumentar externamente a autoridade dos es- tudiosos ¢ dos artistas marxistas verdadeiramente capazes, Em 1789, durante uma discussio sdbre mudancas constitucio- nais em Wiirltemberg, 0 jovem Hegel escrevew: “Se deve haver al- guma mudanga, é porque alguma coisa deve ser mudada". Suas pa- lavras se aplicam muito bem A situagao atual e permitem distinguir com clareza duas posigdes diversas em face das mudangas, Com o XXII Congreso, passou a ser impossivel evitar completamente, ago- ra, a criti¢a ao periodo stalinista, A critica, entdo, passou a ser geral, Mas hf os que dizem: “E verdade, sim, havia coisas erradas; mas a ciéncia e a arte jA se acham em plena recuperagio". EF hd os que dizem, por sua vez: “Estamos apenas comecando a critica do pas- sado; cumpre-nos criar, 4 base da critica que esta sendo empreendi- da, as bases racionais ¢ de organizeao para o desenvolvimento fu- tuo, £ claro que os primeiros querem uma “mudanga” na qual ne- nhuma coisa seja mudada; querem apenas pespegar etiquétas novas nas coisas velhas inalicradas. E, no segundo caso, naturalmente nao se quer dizer que seja necessdrio tevar a cabo um trabalho de refor- ma cujos resultados s6 se veréo rio final do caminho. Nao. Um tra- balho sincero de reforma pode produzir resultados novos na ciéncia ¢ na arte jf mo curso da luta pela elaboragio dos furdamentos da nova fase, embora se trate de um processo longo, complicado ¢ con traditério. % (Tradugio de L. K.)

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