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WTTTCE a: LE TOS capitulo 5 Enzimas * Jo&o Roberto Oliveira do Nascimento * Beatriz Rosana Cordenunsi-Lysenko * Eduardo Purgatto 0 Ss Este capitulo tem por objetivo apresentar conceitos relativos as enzimas em alimentos. Algumas caracteristicas gerais, a importancia dos cofatores para a catélise, nocdes basicas de cinética enzimética bem como 0s principais fatores que afetam a atividade das enzimas sao discutidos. ‘S40 apresentados aqui os principais tipos de enzimas exégenas utilizadas para a modificacao de matérias-primas alimentares e também o controle da atividade de enzimas endégenas. Introducgao Enzimas so proteinas com a caracteristica intrinseca de promover a catilise de reagdes quimicas. A presenga de enzimas é uma caracteristica indissocidvel dos tecidos vivos, pois as reagdes que compdem o metabolismo se processam em condigdes fisiolégicas gracas a sua ago facilitadora sobre os reagent Uma vez que as matgrias-primas alimentares so basicamente orgaios, tecidos ou par- tes de animais e plantas, as enzimas sdo um importante componente dos alimentos e esto diretamente envolvidas em processos de deterioragao e de modificagdo de caracteristicas fisico-quimicas dos alimentos. As enzimas geralmente preservam suas fungdes cataliti- cas mesmo apés a perda da homeostase dos tecidos, depois do abate de animais ou da colheita de vegetais, trazendo consequéncias para a conservagao e para as propriedades organolépticas e nutricionais, Exemplos tipicos de alteragdes fisico-quimicas mediadas por enzimas so os processos de amadurecimento de frutas (Capitulo 12) e a reversio do rigor mortis em tecidy muscular apss v abate (Capitulo 13), fato de as enzimas poderem manter suas propriedades cataliticas mesmo depois da perda da homeostase dos tecidos de origem possibilita que elas sejam utilizadas inten- cionalmente para modificago dos alimentos. Enzimas podem ser extraidas de vegetais, animais ou de micro-organismos ¢ utilizadas sob condigdes controladas para promover modificagdes especificas em matérias-primas alimentares. Desse modo, enzimas exdge- nas representam um importante recurso para o processamento de alimentos. Qualquer que seja a origem, endégena ou exégena, é importante conhecer os fatores € condigdes que afetam a atividade enzimatica, pois isso torna possivel exercer algum controle sobre sua atuago, Desse modo, processos deteriorativos podem ser retardados 173 174 Enzimas ou minimizados, enquanto a aplicagao industrial pode ser efetuada de modo mais preciso. Isso faz com que 0 conhecimento a respeito das condigdes que favorecem ou prejudicam a catalise enzimatica seja extremamente relevante Uma medida da importancia das enzimas para a qualidade dos alimentos pode ser tomada pelo fato de que grande parcela da contribuiedo da biotecnologia moderna para a area de alimen- tos reside em intervengdes na expresso de genes de enzimas (Capitulo 10). O controle sobre processos deteriorativos ou a alteragdio dos niveis de nutrientes em matérias-primas vegetais pode ser alcangado por modificagdes genéticas envolvendo a manipulagao de enzimas das vias metabélicas. Do mesmo modo, a transferéncia de genes entre organismos possibilita que enzi- mas de interesse industrial sejam produzidas em grandes quantidades em organismos de facil crescimento, camo hactérias ¢ fimgos, on ainda que sejam abtidas versdes dessas enzimas cam propriedades cataliticas mais compativeis com a aplicacao industrial ‘Ao longo deste capitulo serdo discutidas algumas caracteristicas das enzimas bem como os principais fatores ambientais que podem afetar a sua atividade, seguida da apresentacdo do uso de enzimas exdgenas para a modificago dos principais macrocomponentes dos alimentos e, finalmente, comentarios sobre o controle da atividade enzimatica enddgena relacionada com processos deteriorativos, Caracteristicas gerais € classificagao Enzimas sao proteinas e, como tal, so produtos de genes contidos no genoma dos organismos de origem. Sao constituidas pelos mesmos aminodicidos utilizados na sintese das demais proteinas celulares, unidos por ligagdes peptidicas e compondo polimeros de variados tamanhos (Capitulo 4). Devido & complexidade de fungdes desempenhadas por essas moléculas, € comum que os organismos apresentem diferentes versdes de uma mesma enzima De modo geral, essa variabilidade de uma mesma enzima pode ser resultado da expresso de diferentes genes ou de modificagdes do polipeptideo depois da etapa de tradugao, como, por exemplo, remogaio proteolitica de parte da cadeia ou modificagdes das cadeias laterais dos resi- duos de aminoacidos. Essa multiplicidade de formas pode ser entendida como uma maneira de garantir a catalise mesmo na ocorréncia de mutagdes que podem resultar em versdes defeituosas ou inativas, ou, ainda, como forma de oferecer versdes com distintos graus de especificidade para substratos ou de eficiéncia catalitica adequada a determinada condigao fisiolégica As enzimas podem ser resultado da combinagao de mais de uma cadeia polipeptidica idéntica ou da associagao de cadeias diferentes. Podem, ainda, ter uma fragdo nao proteica labil ou forte- mente ligada, importante para a catilise ou para a solubilidade e localiza¢ao subcelular. Portanto, uma enzima pode ter um ion metalico associado sua cadeia polipeptidica e este ser essencial para a interag%o do substrato no sitio ativo, contribuindo para a catalise. Da mesma forma, a associagaio de uma cadeia sacaridica ou lipidica ao polipeptideo pode proporcionar solubilidade mais favoravel a interago com o seu substrato, como, por exemplo, com um lipideo. As enzimas so organizadas em seis classes principais, de acordo com o tipo de reagio quimica catalisada, e essa classificagdo serve de base para a sua nomenclatura. As principais clayses Ue enzimmay sa. 1) oniduredutases, 2) transferases, 3) hidiolases, 4) liases, 5) isome- rases; e 6) ligases. As oxidorredutases oxidam ou reduzem substratos pela transferéncia de hidrogénio ou elé- trons, ou, ainda, oxigénio, Exemplos tipicos dessa classe so a oxidase do acido ascérbico, pre~ sente em vegetais, e a catalase do leite. No segundo grupo, o das transferases, esto incluidas as enzimas que transferem grupos quimicos, que nao o hidrogénio ou proton, para moléculas aceptoras, que nao a agua. As transglutaminases, que transferem grupos acil de aminas primarias (Doador) para o grupo carboxiamida da glutamina (Aceptor) so exemplos dessa classe e, por se- rem capazes de promover a ligacao cruzada entre cadeias de proteinas, so utilizadas na indistria carnea e de laticinios na formulacdo de produtos constituidos de géis proteicos. Enzimas | 175 As hidrolases, que promovem a quebra de ligagdes quimicas do substrato, com a adigaio dos componentes da dgua, ou seja, H* e OH’, representam um grupo extremamente importante por sua aplicagao na industria. As varias amilases, lipases ¢ proteases, que so enzimas de ampla aplicago na industria alimenticia por promoverem modificagdes no amido, lipideos e proteinas, respectivamente, séo exemplos dessa classe enzimatica. O quarto grupo, o das liases, também engloba enzimas que promovem a quebra de ligacées quimicas do substrato sem, no entanto, envolver a participagao de agua. Desse modo, na quebra da ligagaio quimica no ocorre adigao de H* e OH nas extremidades, mas ha formagao de uma ligagdo dupla. A reagao catalisada pela pectina-liase, uma enzima que promove a quebra das ligagdes glicosidicas da pectina, polissaca- rideo presente em abundancia na casca na polpa das frutas ¢ importante na industria de sucos, é exemplo tipico desse tipo de atividade ‘A quinta classe de enzimas é constituida pelas isomerases, que promovem a conversaio de substratos em seus isémeros. Essa isomerizagdio pode envolver inversdo de grupos assimétricos, levando a produgdo de epimeros ou misturas racémicas, ou a transferéneia de grupos quimicos dentro da mesma molécula, recebendo a denominagao “mutase”, Enfim, as ligases compdem o sexto grupo de classificagaio de enzimas e, como o nome suge- re, sélo aquelas que promovem a ligagao covalente entre duas moléculas. Essa ligagio entre os substratos esta associada 4 quebra da ligago pirofosfato do ATP ou de outra molécula similar contendo também uma ligagdo trifosfato. Em razio da grande diversidade de enzimas ¢ das variantes que podem ser encontradas nos organismos, ¢ importante que elas sejam identificadas e classificadas de maneira inequivoca, sem ambiguidades, Por esse motivo, a nomenclatura das enzimas segue as diretrizes da “Interna- tional Union on Biochemistry and Molecular Biology”, por meio de sua “International Enzyme Comission” (EC), que atribui um nome sistematico, nomes triviais, mais breves, e um numero sistematico permanente “EC”, composto de varios algarismos, que permitem identificar precisa- mente a enzima e sua aco. ‘O niimero sistematico EC ¢ constituido de uma sequéncia de nuimeros separados por pontos, que indicam a classe da enzima, seguido da subclasse, da sub-subclasse e, finalmente, um nime- ro serial dentro dessa sub-subclasse. Portanto, a enzima o-amilase, por exemplo, recebe a iden- tificagdo EC 3.2.1.1, que corresponde a dizer que se trata de uma hidrolase (Primeiro numero, “3”), que atua sobre ligagdes glicosil (Segundo niimero, “2”), especificamente do tipo O-glicosil (Terceiro numero, “1”), sendo o primeiro elemento da série dentro dessa sub-subclasse (Quarto numero, “1”). €strutura € composicao das enzimas Cofatores: coenzimas, grupos prostéticos € ions metalicos Como mencionado anteriormente, enzimas sto proteinas que apresentam atividade catalitica, podendo ser constituidas por apenas um ou por mais de um tipo de cadeia polipeptidica, Embora, em muitos casos, a cadeia ou as cadeias polipeptidicas que compdem as enzimas sejam capazes de prover essa atividade de catdlise, muitas vezes isso depende da presenga de uma fragdo nao proteica labil ou covalentemente ligada Desse modo, muitas enzimas necessitam de fatores adicionais para manifestar sua atividade de catalisadores de reagdes quimicas. Esses elementos, denominados cofatores, podem ser mo- Iéculas organicas ou fons metilicos que contribuem para a ligagdo ou para a correta orientay do substrato no sitio ativo, ou, ainda, para a reago propriamente dita. As oxidorredutases so exemplos tipicos de enzimas que exigem a presenea de cofatores Entre as moléculas organicas que constituem cofatores enzimditicos, é importante diferenciar as que esto fortemente ligadas a cadeia peptidica daquelas que sao labeis. A primeira categoria é representada pelos grupos prostéticos de enzimas, como, por exemplo, nucleotideos da flavina (FMN, FAD), hemina e biotina, caracterizados pelo fato de nao se dissociarem facilmente e se 176. Enzimas apresentarem no mesmo estado quimico anterior & catdlise, apesar de tomarem parte no proces- so, Na maioria das vezes, enzimas com grupos prostéticos promovem reagdes que envolvem a participagao de dois substratos, fazendo com que a interagdo com a segunda molécula regenere © grupo prostético ao seu estado inicial ao final do ciclo catalitico. No caso dos cofatores orginicos denominados coenzimas, a ligagaio com a enzima € transi- toria, e essas moléculas so consumidas ou modificadas apés a reagdo, fazendo com que muitas vezes sejam tratadas como co-substratos ou substratos intermediarios. As coenzimas pirimidini- cas, como 0 NAD/NADP e 0 ATP, so exemplos de cofatores que sofrem modificago apds sua participago na catilise e se diferenciam dos substratos verdadeiros por serem regenerados em uma reago subsequente pela agdio de outra enzima. Os ions também sdo importantes cofatores de enzimas. ¢ o efeito de Anions é mais genérico que o de cations, estabilizando a estrutura proteica ou favorecendo a interagdo com o substrato, como ocorre com 0 cloreto, Por outro lado, os cations so destacados cofatores enzimaticos, sobretudo os metilicos, podendo tomar parte na composigdo ou conformagao do sitio ativo de enzimas ¢ serem componentes de grupos prostéticos. Além disso, podem ser parte do substrato verdadeiro, ou seja, a ago da enzima sobre o substrato depende da interagdo prévia deste com 0 ion metalico, formando um complexo. Exemplos de ions metélicos que constituem importantes cofatores enzimaticos sao: calcio, cobre, ferro, magnésio e zinco. Reac6es catalisadas por enzimas As enzimas sao proteinas com atividade catalitica sobre reagdes quimicas, ou seja, apresentam a caracteristica de facilitar a conversao de substratos em produtos por meio da ativagdo especifica dos reagentes com diminuigao da energia necessiria (Figura 5.1), Portanto, reagdes quimicas que espontaneamente ndo ocorreriam em condigdes brandas, ou apenas a velocidades muito baixas, a ponto de nao serem perceptiveis ou mensuraveis, podem se processar eficientemente na presenga de enzimas, Em comparagdo com catalisadores quimicos, as enzimas tém a grande vantagem de serem extremamente eficientes a baixas concentragdes e de serem capazes de converter quantidades expressivas de substratos em produtos antes de serem desnaturadas ou prejudicadas pelas con- digdes da reagao. Energia Progresso da reagao Figura 5.1 Representacdo esquematica das mudancas de energia de ativacao (Ea) associadas com a conversao de substrato (5) a produto (P) em presenca ou auséncia (Linha tracejada) de enzima (E). Enzimas (177 substrato enzimatico € uma molécula que apés interagir com a enzima softe uma modifi- cago quimica, sendo convertido em um produto, Essa interagio se da em um local especifico da enzima, denominado sitio ativo, podendo envolver a participagao de outras moléculas, como 0s cofatores. O sitio ativo de uma enzima resulta de sua sequéncia primaria de aminodcidos e da consequente conformacao da cadeia polipeptidica, de modo que é criado um microambiente favoravel a interago dos grupos reagentes, em orientagao, distdncia e conformagao propicias a ocorréncia da reagao. As condigdes particulares do sitio ativo fazem com que as enzimas, via de regra, sejam bastante especificas em relagdo ao tipo de reagao catalisada, ou seja, hd grande previsibilidade em relagao ao tipo de produto formado. Além disso, sao extremamente seletivas em relagao aos substratos utilizados. tendo um poder discriminatorio suficiente para nao reagir. ou reagir de modo muito menos eficiente, com moléculas bastante similares aos seus substratos. A especifi- cidade e a seletividade de enzimas sdo caracteristicas extremamente vantajosas se comparadas & obtengio de moléculas por outras vias, como, por exemplo, a sintese quimica, pois nesse caso € frequente a obtengdo de misturas complexas de diversos produtos. Quando se pensa no uso tecnoldgico de enzimas para a modificagao de alimentos ou maté- rias-primas alimentares, as caracteristicas mencionadas anteriormente, de catilise a condigdes relativamente brandas, especificidade da reagao e seletividade dos substratos so interessantes porque o processamento sob condigdes amenas favorece a preservagaio de nutrientes e minimiza a formagao de compostos indesejaveis, frequentemente associados ao uso de altas temperaturas. Além disso, a seletividade e a especificidade também garantem maior controle sobre a reagdio € a formagiio dos produtos de interesse Cinética das reacées catalisadas por enzimas A reaco catalisada por uma enzima pode ser representada pela Equagao 1, na qual E corres- ponde enzima; S, ao substrato; ES, ao complexo enzima-substrato; e P, ao produto da reacdo. E+S 2EPa@E+P Equagao 1 Quando toda a enzima esta saturada com substrato, ou seja, a concentragdo do complexo ES é a maior possivel, a velocidade da reagao catalisada por uma enzima é maxima, e a adigdo de mais substrato nao resulta em aumento da velocidade na mesma propor¢ao. Portanto, o estabelecimento do complexo ES é uma etapa limitante do processo ¢ 0 fato de ser necessaria a sua formagao antes da conversao do substrato em produto resulta em uma relagao hiperbolica entre a velocidade da reagdio e a quantidade de substrato disponivel, de acordo com o esquema abaixo (Figura 5.2) Em tempos de reago muito curtos, proximos a zero, mas em condigdes de equilibrio em que a velocidade de formagaio do complexo ES corresponde 4 sua velocidade de desaparecimento, a velocidade global da reaeao, tratada como velocidade inicial (V,), pode ser definida pela equagao de Michaelis-Menten (Equagio 2), que expressa essa relagao hiperbélica entre a velocidade e a concentragao de substrato. Equacéo 2 Dessa equagao surgem dois importantes pardmetros, a Va € 2 Ky, que So caracteristicos de cada enzima e podem ser de utilidade para prever e controlar o progresso de uma reagdio enzima- tica (Figura 5.3). A Vaux corresponde a maxima velocidade com que a reagdo de catalise pode se processar em condigdes étimas. Isso implica dizer que as reagdes catalisadas por enzimas, ainda que sejam extremamente eficientes e especificas, apresentam um maximo, além do qual a adigao de moléculas de substrato nao resulta na formagao adicional de produto de maneira proporcional. Desse modo, a V,.., é dependente da concentragao de enzima e, portanto, seu valor muda com a quantidade de enzima ativa presente. 178. Enzimas Velocidade Concentragao de substrato Figura 5.2 _Representacdo esquemitica da velocidade de uma reacdo enzimatica em fungao da con- centragao do substrato. Km s] Figura 5.3. Representacdo esquemitica da velocidade de uma reaco enzimética em funcao da con- centracao do substrato [S], mostrando a velocidade maxima (Vas) € a constante de Michaelis-Menten (k,)concentragao de substrato na qual se alcanca metade da velocidade maxima. Outro pardmetro cinético importante ¢ aK... que corresponde a concentracdo de substrato em que se alcanga a metade da velocidade maxima da reago, Se forem comparadas em igualdade de condigdes duas enzimas que catalisam a mesma reagdo e uma delas apresenta menor K,, que a outra, isso significa que a de menor K,, tem maior afinidade pelo substrato, pois ¢ capaz de alcangar a maxima velocidade com menor concentragiio deste. Os parimetros Via. € Ky, So caracteristicas importantes de uma enzima e seu conhecimento pode ser de interesse no estudo e caracterizagao de uma enzima implicada em processo deterio- rativo ou de uso industrial. Os valores de Vig. € Ky podem ser determinados a partir da equagdio de Michaelis-Menten, mas em condigdes experimentais eles podem ser mais facilmente obtidos pelo método de Lineweaver-Burk (Equago 3), que pela transformacao desses dados em valores Enzimas 179 ‘S] Figura 5.4 Representacao esquematica da determinacao da velocidade maxima (V,.,) € da constante de Michaelis-Menten (K,,),2 partir da equacao de Lineweaver-Burk. reciprocos, ou seja, 1/V e 1/S, estabelece uma relagdo linear entre essas variaveis (Figura 5.4), Portanto, o valor da K,, corresponde ao inverso do valor em que a reta intercepta 0 eixo 1/S, da mesma forma que a V.,., pode ser obtida a partir do valor da intersecgdo com 0 eixo y vy Ky omg van Equagéio 3 ‘Uma vantagem do método de Lineweaver-Burk é que nao é necessario realizar 0 ensaio de determinagao da velocidade da reagao em concentragdes muito elevadas de substrato, pois pode haver limitagdes experimentais para o uso de grandes quantidades, ou a enzima pode exibir com- portamento anémalo nessas condigdes. E importante destacar que nem todas as enzimas seguem a cinética de Michaelis-Menten, sendo este 0 modelo clissico e mais simples de apresentagao da cinética enzimatica. Enzimas que catalisam reagdes envolvendo mais de um substrato, por exemplo, podem apresentar comportamentos que seriam mais bem explicados por outros mode- los matematicos. Principais fatores que afetam a atividade enzimatica Na auséncia de uma enzima, as condigdes favordveis a ocorréncia da reagdo quimica teriam pro- babilidade muito baixa de existir, ou exigiriam 0 fornecimento adicional de energia ao sistema. No entanto, mesmo quando a enzima esta presente, a reagaio catalisada pode se processar a taxas variveis, ou seja, ha fatores que podem afetar a velocidade de consumo dos reagentes ou de formagao dos produtos O conhecimento a respeito do progresso da reagio catalisada por uma enzima, ou a possi- bilidade de prever seu andamento, ¢ uma condi¢do importante na area de alimentos. Quando se empregam enzimas exdgenas para a modificagao de alimentos ou matérias-primas, esse co- nhecimento ¢ critico para se alcangar maior eficiéncia e redugao de custos. Do mesmo modo, a velocidade de processos deteriorativos mediados por enzimas pode ser prevista, sendo ail para a tomada de medidas visando o seu controle O andamento de uma reagaio enzimatica ¢ dependente de varios fatores, inclusive ambientais. A concentragao de enzima no tecido ou meio reacional é 0 elemento mais obvio a contribuir para ., pois é de se esperar que quanto maior a quantidade presente mais rapidamente podera 180. Enzimas ocorrer a conversio do substrato em produto. Portanto, ha uma relagdo linear e diretamente pro- porcional entre a quantidade de enzima presente e a velocidade da reagdo. Como mencionado anteriormente, a concentragao de enzima esta diretamente relacionada com a Vix. da reagao. No entanto, podem existir condigdes que diminuem essa proporcionalidade entre a concen- tragdo de enzima e a velocidade da reagao, como, por exemplo, a remogao de um cofator, a presenca de um inibidor ou existirem limitagdes quanto a disponibilidade de substrato, seja pela baixa concentragdo, seja pela baixa solubilidade, Além disso, condigdes ambientais, como a temperatura e o pH, podem afetar bastante a reagdo enzimatica, mesmo quando as concentrages de enzimas ¢ reagentes so ideais. Desse modo, é oportuno discutir alguns dos principais fatores capazes de afetar a atividade das enzimas. Disponibilidade de substrato A limitagdo de substrato, fazendo com que nem toda a enzima disponivel esteja saturada ou encontre quantidades suficientes de substrato para interagir, ¢ um fator critico para o andamento da reagao enzimatica. Em geral, concentragdes de substrato muito acima da K,, da enzima sao suficientes para fazer com que a rea¢do enzimatica ocorra a V,,,,. No entanto, desvios podem ocorrer, com a observacao de atividade enzimatica maior ou menor do que o previsto, em razio de excesso de substrato Em algumas situagdes, pode haver também diminuigdo significativa da velocidade da reagdio em concentragdes elevadas do substrato, devido a inibigdo da enzima por ligagdo de uma segun- da molécula de substrato em um sitio regulatério que nao o catalitico. Do mesmo modo, podem existir enzimas em que a ligagdo de uma segunda molécula de substrato a um sitio regulatorio promova um efeito positivo, resultando na ativagéio enzimatica (Figura 5.5). Um exemplo de regulacao da atividade pela concentragao de substrato so as enzimas alos- téricas, que podem ser positiva ou negativamente afetadas. Essas enzimas apresentam um com- portamento que diverge do previsto pela equagdo de Michaelis-Menten, em que a relacdo da velocidade com a concentragao do substrato nao ¢ hiperbélica, mas sigmoidal (Figura 5.6) Esse efeito resulta do fato de essas enzimas serem constituidas de subunidades, cada uma com seu sitio de ligagao do substrato, mas que apresentam efeito cooperativo, ou seja, a interagao da molécula com a primeira subunidade afeta a interagdo da segunda com uma nova molécula, e assim por diante. Disso pode resultar um efeito de ativagao, ou de inibigdo, crescente com 0 aumento da concentragdio do substrato. Na maioria das vezes, as enzimas alostéricas so enzimas Inioigao) Km Is] igura 5.5 Representacao esquematica da velocidade de uma reacao enzimatica em fungdo da con- centracao do substrato [5], mostrando a ocorréncia de inibicao ou ativacao pelo substrato. Enzimas | 181 Vmax Michaelis-Menten Vmaxi2 | ~ Alostérica (s] Figura 5.6 Representacdo esquemética da velocidade de uma reaco enzimética em funcao da con- centracdo do substrato [5] para uma enzima que segue a cinética de Michaelis-Menten e uma enzima com ativaco alostérica pelo substrato. regulatorias de etapas bioquimicas importantes, e essa caracteristica faz com que elas sejam ex- tremamente sensiveis a pequenas concentragdes de substrato, Inibidores Inibidores so moléculas que interagem com as enzimas e afetam negativamente sua atividade catalitica, Compostos de natureza quimica diversa, de pequenas moleculas a macromoleculas, podem atuar como inibidores de enzimas e com frequéncia estao presentes nos alimentos, Alguns so especificos para determinadas enzimas, como 0s inibidores proteicos de c-ami- lase e de tripsina encontrados nas sementes de leguminosas, enquanto outros atuam de modo inespecifico, como compostos fendlicos ou quelantes, que podem interagir de modo nao seletivo com proteinas ou diminuir a disponibilidade de cofatores Os inibidores também podem ser do tipo reversivel ou irreversivel, e este iiltimo tipo inte- rage fortemente com as enzimas, frequentemente por ligagdo covalente, no sendo possivel a dissociagdo do complexo enzima-inibidor (EI), Por outro lado, os inibidores reversiveis, ainda que possam ser extremamente potentes, tém como caracteristica 0 fato de sua interago poder ser desfeita, por exemplo, pela diluigdo do meio de reagao. A inibigdo reversivel ocorre como resultado de um equilibrio entre a interagao da enzima com 6 inibidor e sua forma livre, ou seja, a formagio do complexo El ¢ governada por uma constante, denominada inibigao (K,), que revela o grau de afinidade da interagao. Quanto menor a constan- te, maior ¢ a concentragao de inibidor complexado em relago a forma livre, e, portanto, mais eficiente € o inibidor. A nnatureza da interago dos inibidores reversiveis com as enzimas possibilita dividi-los em trés categorias principais: inibidores competitivos, ndo competitivos e acompetitivos. Esses ini- bidores apresentam efeitos marcantes sobre o progresso das reagdes, sendo possivel diferencia -los com base nas mudangas causadas no aspecto das curvas de velocidade inicial Inibidores competitivos Os inibidores competitivos sao caracterizados por interagir com o sitio ativo, competindo assim com o substrato pela ligagdo com a enzima. Em razo desse tipo de ligagao, a interagdo compe- titiva pode ser desfeita em concentragdes elevadas de substrato, de modo que a probabilidade de 182, Enzimas interagao dessa molécula com o sitio ativo da enzima supere com larga vantagem a do inibidor. Como consequéncia, a velocidade maxima da reagao catalisada por uma enzima pode ser alcan- gada mesmo na presenga desse tipo de inibidor, mas a custa de mais substrato. Quando 0 progresso da reacdo catalitica ¢ avaliado com base na curva que relaciona a veloci- dade com a concentragao do substrato, esse efeito fica evidente pela mudanga da K,, aparente da enzima, sem haver, no entanto, alteragdo da Vj, (Figura 5.7). No caso do grafico de Linewea- ver-Burk, a mudanga fica evidenciada por uma alteragao na inclinagao da reta, com novo ponto de intersecgao do eixo x Inibidores nao competitivos Como 0 préprio nome indica, esse tipo de inibidor liza-se & enzima sem competir com o subs- trato, podendo interagir simultaneamente, de maneira independente, Pelo fato de o inibidor se ligar a outro sitio que no o catalitico, a interago pode ocorrer tanto com a enzima livre como com 0 complexo ES. Uma vez. que nao ha qualquer perturbac2o na interago da enzima com o substrato, 0 efeito do inibidor nao competitivo nao fica aparente pela K,,, mas pela Vis. (Figura 5.8). Portanto, no grafico dos reciprocos ocorre uma mudanga na inclinagdo da reta, com novo intercepto no eixo de 1/Vy. A presenga desse inibidor diminui a quantidade de enzima disponivel para a catilise, nao sendo possivel reverter seu efeito pela adigao de mais substrato Inibidores acompetitivos Esse & um tipo menos frequente de inibidor que apresenta a caracteristica de se ligar apenas ao complexo ES. Consequentemente, nao ha interagaio com a enzima livre, mas uma dependéncia da presenca do substrato, Nesse caso, 0 efeito & percebido no grifico de Lineweaver-Burk pela ma- nutengdo da inclinagdo da reta e alteragdo das intersecgdes dos eixos de 1/V, € 1/K., (Figura 5.9). €fcitos do pH A concentragao hidrogeniénica do meio, indicada pelo valor de pH, tem efeitos marcantes sobre a atividade das enzimas como consequéncia, sobretudo, da alterago no estado dos grupos ioni- zaveis das cadeias laterais dos residuos de aminoacidos que compdem o polipeptideo. Michaelis-Menten Lineweaver-Burk 41V0 Vmax | inibidor) (+ inibidor) (+ inibidor) inibidor) vmawz | 41Vmax Km Km’ Is] tk -11Km’ MS] Figura 5.7 _Representacdo esquemética da velocidade de uma reacdo enzimatica em fungao da con- centrago do substrato [S], em presenca ou auséncia de um inibidor “competitivo’ apresentada pelos gréficos de Michaelis-Menten e de Lineweaver-Burk. Enzimas | 183 ‘Michaelis-Menten Lineweaver-Burk 11V0 (+ inibidor) (+ inibidor) ( inibidor) Kim Is] aK 1S] Figura 5.8 Representacio esquemética da velocidade de uma reacao enzimatica em fungdo da con- centrago do substrato [5], em presenca ou auséncia de um inibidor ‘néo competitivo’ apresentada pe- los grafico de Michaelis-Menten e de Lineweaver-Burk. Michaelis-Menten Lineweaver-Burk 11V0 (inibidor) (+ iniider (+ inibidor) imax ( inibidor) — 11Vmax Km — Km’ Is] siKm -/Km 1S] Figura 5.9 Representacao esquemética da velocidade de uma reagao enzimatica em fungao da con- centracao do substrate [5], em presenca ou auséncia de um inibidor “acompetitivo’ apresentada pelos grficos de Michaelis-Menten e de Lineweaver-Burk. As mudangas na ionizagdo de grupos podem resultar em mudangas conformacionais que di- minuem a eficiéneia de catilise, podendo levar, em iltima instncia, a desnaturacdo irreversivel da enzima. Além disso, independentemente da extenso das mudangas de conformagdio promovi- das pelo pH, a fungao catalitica do sitio ativo pode depender da presenga de grupos ionizaveis es- pecificos, bastante sensiveis a mudangas discretas na coneentragao de protons no meio reacional. Dessas observagdes dos efeitos do pH sobre as enzimas, pode-se depreender a existéncia de duas caracteristicas desses catalisadores biolégicos. Primeiro, as enzimas nao sao estaveis ‘ou mantém sua conformagio adequada em todos os valores de pH, mas toleram uma pequena variagdo que define a faixa de pH de estabilidade. A segunda caracteristica importante ¢ que uma 184. Enzimas Atividade (%) pH Figura 5.10 Representacao esquematica do efeito do pH sobre a atividade de quatro enzimas hipo- téticas. enzima tem um valor de pH étimo para a atividade, no qual exibe méxima eficiéncia de conver- sdo de substrato em produto, Na Figura 5.10 so apresentadas curvas de atividade de enzimas hipotéticas em fungao do pH. A tolerancia das enzimas as variagdes de pH varia bastante, mas grande parte apresenta maior estabilidade e poder de catalise numa faixa intermediiria proxima da neutralidade. No entanto, existem aquelas que resistem e atuam em condigdes mais extremas, em meios fortemente dcidos ou alcalinos, como ocorre com as enzimas encontradas nos sucos digestivos de animais. Os efeitos do pH sobre as enzimas podem ser evidenciados pelo formato de sino que, na maioria das vezes, as curvas que relacionam a atividade com a faixa de pH exibem. Fica evidente pelo formato da curva que ha um valor de pH em que a atividade ¢ maxima, diminuindo signifi- cativamente em dirego aos extremos como reflexo de mudangas conformacionais e na ionizagao de grupos presentes no sitio ativo. E importante destacar que os efeitos do pH sobre as enzimas podem ser significativamente afetados pela presenga de outros elementos, como, por exemplo, substrato, cofatores, sais etc., fazendo com que a sensibilidade seja aumentada ou diminuida €feitos da temperatura Assim como o pH, a temperatura tem ago marcante sobre as reagdes enzimaticas, Isso resulta de miltiplos efeitos que envolvem a energia de ativagao para conversao de substratos em produtos, desnaturagao da enzima, ionizagao de grupos, solubilidade do substrato ete. Independentemente da multiplicidade de efeitos que explicam sua ago, o fato € que a tem- peratura e um parametro extremamente eficiente para 0 controle da atividade enzimatica e, por- tanto, para a conservagdo dos alimentos e modificagao de matérias-primas. O armazenamento a baixas temperaturas assim como o tratamento a temperaturas elevadas sdo bastante eficazes para retardar processos enzimaticos deteriorativos. Diante da importancia da temperatura para 0 controle da atividade de enzimas em alimentos € matérias-primas, é oportuno discutir mais detalhadamente alguns aspectos dessa relacao. €stabilidade térmica Enzimas sao proteinas e, portanto, constituidas de cadeias polipeptidicas que podem assumir ni- veis de organizagao estrutural secundario, terciario e quaternario (Capitulo 4). Isso possibilita Enzimas 185 100 Atividade (%) 2» 0 4 8 © ‘Temperatura (°C) Figura 5.11 Representacao esquematica do efeito da temperatura sobre a atividade de duas enzimas hipotéticas, com diferentes estabilidades térmicas. conformagdes propicias a catilise enzimatica, mas também sujeita as enzimas aos efeitos da des- naturagao térmica. O aumento da temperatura afeta as ligagdes intra e intermoleculares que estabi- lizam a estrutura proteica, induzindo modificagdes conformacionais que podem ser incompativeis com a agdo catalitica (Figura 5.11), Levadas a um nivel mais extremo pelo uso de temperaturas mais elevadas, essas alteragdes podem ser irreversiveis e promover a desnaturagdio da enzima, Portanto, as enzimas so geralmente estaveis a temperaturas mais baixas e desnaturadas pelo processamento térmico. A sensibilidade das enzimas @ temperatura varia, mas normalmente as de maior tamanho e também aquelas constituidas de subunidades so mais sensiveis. Do mes- mo modo, aquelas presentes em preparagSes mais puras ou menos complexas podem ser mais afetadas, como consequéncia da auséncia de cofatores, substratos ou outras macromoléculas que podem ter efeito estabilizador da estrutura enzimatica O conhecimento a respeito da estabilidade térmica das enzimas ¢ importante em processos de conservagdo de alimentos. Saber as condigdes necessirias para promover a desnaturagdo de en- zimas deteriorativas é essencial no s6 para garantir a eficiéncia do processamento térmico mas também para minimizar as consequéncias negativas do aquecimento sobre o valor nutricional e caracteristicas fisico-quimicas dos alimentos. Nesse contexto, conhecer © progresso da desnaturagio térmica das enzimas é importante. O fato de seguir uma cinética de primeira ordem, na qual a progress4o da desnaturagao independe da concentragao inicial do reagente, ou seja, da enzima presente, torna possivel conhecer a taxa ou constante de desnaturagao em uma determinada temperatura. Com isso, pode-se chegar ao calculo de valores de meia-vida para uma enzima a uma dada temperatura, ou ao valor D, que representa © tempo de incubagdo necessario para promover redugo de 90% nos niveis de atividade De tal modo, se 0 valor D de uma enzima a 60°C for igual a 10 minutos, isso significa dizer que apés dez minutos de incubag2o a essa temperatura a atividade remanescente sera 10% da inicial ao final do vigésimo minuto sera de 1%, ao final do trigésimo sera 0,1%, e assim por dian- te (Figura 5.12). Por outro lado, se a 100 °C 0 valor D for igual a 1 minuto, apés esse tempo de incubagdo a essa temperatura a atividade remanescente sera 10% da inicial, ao final do segundo minuto sera de 1%, ao final do terceiro sera 0,1%, e assim sucessivamente. O conhecimento do valor D possibilita definir com preciso 0 tempo necessario para alcangar o efeito desejado ou o mais baixo nivel de atividade aceitavel para obter a conservagao do alimento. 186 Enzimas (= timing coe 10 Valor D (minuto) oa o wo 8 m0 Temperatura (°C) jura 5.12 Representacao esquematica da desnaturacao térmica de enzimas a 90% de desnaturacao (Valor D). Temperatura 6tima Como as demais reagdes quimicas, aquelas catalisadas por enzimas também so afetadas pela temperatura, No entanto, essa relagdo nao é linear, havendo uma temperatura 6tima, na qual existe um maximo de dependéncia da atividade enzimatica em relagdo a temperatura. A existéncia de uma temperatura em que a eficiéncia catalitica de uma enzima é¢ maxima, com a maior taxa de conversdo de substrato em produto por unidade de tempo, é resultado da combinacdio de dois efeitos opostos da temperatura. A baixa temperatura, um incremento de temperatura estimula a atividade enzimatica por fornecer a energia de ativagdio necessiria ao processo. Isso ocorre até se aleangar a temperatura 6tima de catilise, a partir da qual a atividade comega a diminuir como consequéncia da inati- vagao da enzima, Como discutido anteriormente, o aumento da temperatura induz modificagdes conformacionais que prejudicam a ago catalitica e podem resultar na desnaturagao da enzima. Saber a temperatura em que se obtém a maxima acdio de uma enzima ¢ de extrema importn- cia tanto em processos tecnolégicos de modificagdo de matérias-primas alimentares quanto de conservagao. Se no primeiro caso isso deve ser buscado para que se obtenha a maior eficiéncia, no segundo é uma condigaio que deve ser evitada, a fim de minimizar a deterioragdio de natureza enzimatica. Efeitos da atividade de agua As enzimas normalmente atuam em meio aquoso e, portanto, pode-se esperar uma dependéncia entre a atividade enzimatica e a disponibilidade de agua. Enzimas que atuam em interfaces lipidi- cas, como aquelas presentes em membranas celulares ou matrizes lipidicas, so menos sensiveis, mas ainda assim sfo afetadas pela atividade de dgua. Ha correlagao positiva entre a atividade de 4gua e a enzimatica, ou seja, a maior disponibilida- de de dgua no meio favorece a catilise. Isso pode ser explicado tanto pela completa hidratagaio da molécula de enzima, favorecendo sua conformagao nativa, como pelos efeitos sobre o substrato, inclusive de facilidade de difusdio deste no meio reacional e de acesso ao sitio ativo da enzima A sensibilidade das enzimas atividade de gua varia, mas para que a atividade enzimitica seja totalmente suprimida € necessario, na maioria das vezes, que a atividade de agua seja dimi- nuida para niveis muito baixos, bastante proximos da monocamada de hidratag&o (Capitulo 1), Enzimas 187 Portanto, processos de remogo da 4gua para conservagao de alimentos podem ser bastante efi- cientes em diminuir as taxas de deterioragao de causa enzimatica, No entanto, é importante que a remogdo de agua se dé até esse nivel critico, caso contrario podera haver um efeito de concen- tragdo de substrato e de enzima que pode favorecer a ocorréncia da reagdo, De mesmo modo ao que foi dito para a secagem, o congelamento, como forma de minimizar aagdio deteriorante de enzimas, também deve ser entendido por seus efeitos em relagao ao tipo de gua presente na matriz.do alimento (Capitulo 1). Nao obstante 0 efeito geral negativo do conge- lamento para o progresso das reagdes quimicas e enziméticas, a formagio de gelo e a crescente deposigdio de moléculas de dgua na estrutura dos cristais promove um efeito de concentragiio dos solutos na fase aquosa ainda nao congelada, na qual podem ficar concentradas enzimas e seus substratos. favorecendo a ocorréncia de reacoes. Isso € especialmente verdadeiro a temperatura de congelamento ou um pouco abaixo, em que apesar da formacao de gelo ainda ha consideravel parcela de fase aquosa, mesmo que nao perce- bida como liquida. Nesse caso, 0 efeito positivo da concentragao dos reagentes se contrapie a0 efeito negativo da baixa temperatura, Portanto, para que se alcance maxima inibigdo da atividade enzimatica, é importante que 0 armazenamento se dé abaixo da temperatura de transigao vitrea, na qual a mobilidade molecular é minima e, portanto, ndo ocorre a difusdo do substrato e da enzima no meio Uso de enzimas exdgenas para a modificacao de matérias-primas alimentares €nzimas que atuam sobre carboidratos Os carboidratos sao abundantes, baratos representam uma parcela expressiva das matérias- primas alimentares, havendo um grande numero de enzimas que siio empregadas para promo- ver modificagdes de propriedades fisico-quimicas de importancia tecnoldgica, organoléptica ou nutricional, ‘As enzimas empregadas na modificagao de carboidratos sao hidrolases, e ainda que muitas de- Jas estejam naturalmente presentes nos tecidos vegetais, elas so obtidas principalmente de micro -organismos. Algumas das principais enzimas dessa classe so as amiloliticas, as que atuam sobre alguns agticares e aquelas que agem sobre as pectinas, apresentadas mais detalhadamente a seguir. €nzimas amiloliticas: c-amilase, P-amilase € glicoamilase © amido ¢ um polissacarideo abundante, de importancia nutricional e tecnolégica, contribuindo com parte expressiva das calorias da dieta humana e sendo amplamente utilizado na industria por suas propriedades fisico-quimicas, que possibilitam a formulago de géis, pastas, solugdes vis- cosas e 0 uso como espessante, para dar corpo aos alimentos (Capitulo 2). Além disso, o amido um componente importante de matérias-primas da industria cervejeira e de panificagao, fazendo com que as modificagdes enzimaticas desse polissacarideo sejam de interesse para a produgao de Paes, massas, biscoitos e cervejas. ‘As modificagdes enzimaticas do amido so efetuadas com a finalidade principal de obter dextrinas de diferentes graus de polimerizagao e xaropes com poder edulcorante, de acordo com 0 tipo de enzima e da extenstio da atividade degradativa ‘As ct-amilase e B-amilase sto duas importantes enzimas amiloliticas que se diferenciam pelo tipo de agao sobre as cadeias do amido e os produtos formados. Sao obtidas sobretudo de bacté- rias e leveduras, mas estdo presentes também no malte ou em cereais maltados ‘A ceamilase (EC 3.2.1.1) apresenta atividade do tipo “endo-hidrolitica”, ou seja, ataca 0 substrato aleatoriamente em posigdes internas da molécula, com manutencao da configura- ¢0 anomérica do carbono da extremidade. Portanto, ao atacar as ligagdes glicosidicas do tipo G-1->4, a extremidade redutora da cadeia liberada mantém a configuragio axial do grupo OH. Essa enzima apresenta termoestabilidade variada e depende da presenga de Ca* para atividade, 188. Enzimas produzindo como resultados de hidrélise dextrinas-limite com ramificagdes cl-1->6 e dextrinas ou oligossacarideos unidos por ligagdes 01-1->4 de diferentes graus de polimerizagao, podendo chegar ao dissacarideo a-maltose ‘AB-amilase (EC 3.2.1.2) é uma enzima com ado do tipo “exo-hidrolitica”, ou seja, atua so- bre as ligagdes do tipo o-1>4 a partir da extremidade nao redutora das cadeias polissacaridicas, com inversao da configuragao anomérica do grupo, liberando duas unidades glicosidicas. Como consequéncia, sua ago resulta na produgao de B-maltose e a permanéncia de dextrinas de alto grau de polimerizagao com ramificagées do tipo a-1->6 nas extremidades. No caso da enzima microbiana glicoamilase ou amiloglicosidase (EC 3.2.1.3) também ocorre acdo do tipo exo-hi- drolitica sobre as ligagdes o-1--4, a partir das extremidades nao redutoras das cadeias de amilose ede amilopectina Contudo, diferentemente da B-amilase, o produto liberado & a Prglicase e, além disso, essa enzima apresenta também atividade contra as ligages do tipo ct-1->6, Como resultado da agao sobre os dois tipos de ligagao glicosidica presentes no amido, a glicoamilase pode levar a completa despolimerizagao do amido, com produgao unicamente de glicose Invertase € lactase Aenzima B-D-frutofuranosidase (EC 3.2.1.26), ou invertase, promove a chamada inversaio da sa- carose, Esse processo vem a ser a completa hidrdlise desse dissacarideo, com a formagao de uma mistura dos monossacarideos glicose e frutose, em iguais proporgdes, resultando na inversdo da rotago éptica da solugdo. Enquanto a sacarose causa um desvio negativo da luz polarizada, a mistura de glicose e frutose, resultante da aco da invertase, resulta num angulo de desvio posi- tivo, O agiicar invertido tem aplicagao na fabricagdo de doces pelo fato de ter maior solubilidade € poder adogante do que a sacarose. A lactase ou B-D-galactosidase (EC 3.2.1.23) de origem fiingica ou de leveduras tem grande aplicagdo na industria de laticinios, para obtengdo de leite com baixos teores de lactose ou para diminuir a formagao de cristais de lactose em sorvetes. A produgao do leite com baixo teor de lactose visa a compensar a dificuldade que alguns individuos jovens ou adultos tém para digerir esse agiicar em fungao da deficiéncia na produgdo da lactase digestiva, levando a um quadro de intolerancia a lactose, com sintomas de diarreia e gases. O prévio tratamento do leite com a lactase microbiana converte o dissacarideo em seus mondmeros glicose e galactose, que podem ser prontamente absorvidos pelos individuos intolerantes a lactose Enzimas pécticas Essas enzimas atuam sobre as pectinas, que so polissacarideos encontrados na lamela média parede celular dos vegetais, constituidos de unidades de acido galacturdnico com diferentes graus de esterificagao. As cadeias desse polissacarideo podem se apresentar negativamente car- egadas e originar solugGes viscosas e géis ou, ainda, contribuir para a formagaio de particulas e agregados com participagao de outras macromoléculas (Capitulo 2) As enzimas pécticas sao importantes na produgao de derivados de frutas e vegetais, sobre- tudo na industria de sucos, pelo fato de facilitar a extragdo, promover clarificagao e diminuir a formago de agregados. Esses efeitos so obtidos pela diminuigo do tamanho das cadeias po- lissacaridicas ou pela desesterificagao dos grupos metoxilados. As principais enzimas que atuam sobre as pectinas s2o as poligalacturonases, as pectatoliases e as pectinesterases. ‘As poligalacturonases (EC 3.2.15) so enzimas endo-hidroliticas que atuam quebrando as ligagdes glicosidicas entre as unidades galactourdnicas das pectinas. Ainda que existam formas “exo”, as que atuam internamente as cadeias promovem efeitos mais marcantes sobre as pectinas e, consequentemente, sobre a viscosidade das solugdes ¢ a capacidade de formagao de géis. As pectatoliases (EC 4.2.2.2) também promovem despolimerizagdo das pectinas, contudo, tém agaio do tipo liase, em que nao ha participagao de moléculas de agua na quebra das ligagdes Enfim, as pectinesterases (EC 3.1.1.11) hidrolisam as ligagdes éster das unidades galacturéni- cas das pectinas, dando origem a grupamentos do tipo Acido carboxilico que podem se apresentar Enzimas 189 desprotonados. Portanto, a ago dessa enzima modifica as cargas da cadeia polissacaridiea, favo- recendo a ocorréncia de interagdes idnicas, o que pode ser interessante ou prejudicial dependendo da situagao. Na formulagao de géis com calcio ou na produgdo de vegetais em conserva isso pode ser benéfico por conferir maior firmeza. Por outro lado, pelo fato de facilitar a interagao com outras macromoléculas com carga positiva, como proteinas, pode favorecer a formagao de agregados que levam a turbidez de sucos de fruta, por exemplo, ou dificultam a extragao de sucos. €nzimas que atuam sobre lipideos Lipases (EC 3.1.1.3) e lipoxigenases (EC 1.13.11.12) sao os principais tipos de enzimas de uso tecnolégico com a finalidade de modificar lipideos de alimentos e matérias-primas, $40 enzimas mais aptas a atuar na interface 4gua-lipideo. em razdo da natureza de seus substratos. Embora frequentemente associadas a processos degradativos, sio empregadas na industria com a finali- dade especifica de melhorar atributos sensoriais dos alimentos, como o sabor e a cor. Upases As lipases promovem a hidrélise da ligagao éster de triacilglicerdis, liberando acidos graxos. Apresentam seletividade para o grupo acil-esterificado, com relagdo ao tamanho da cadeia e posigao relativa, bem como quanto ao numero de esterificagdes do glicerol, dentre outras caracteristicas As lipases microbianas so utilizadas na industria de laticinios para modificar o sabor de queijos pela liberagdo de acidos graxos de cadeia curta, ¢ também na panificagdo, melhorando as caracteristicas da massa e diminuindo a retrogradagao das cadeias do amido, A liberagao de mono- e diacilglicerdis facilita a incorporagao de ar e o crescimento da massa e interage com a amilose, retardando a reassociagao das cadeias do polissacarideo e, portanto, a retrogradagao. Uipoxigenases Essas enzimas catalisam a oxidagao de acidos graxos insaturados a mono-hidroperéxidos, prin- cipalmente acidos linolénico e linoleico, que contém o sistema 1-cis,4-cis-pentadieno. Esses monoperdxidos podem softer decomposigiio ¢ iniciar reagdes em cadeia com formagao de com- postos secundarios. As lipoxigenases podem ser especificas ou ndo quanto a posigaio de adiga0 do oxigénio mo- lecular na cadeia do acido graxo, As lipoxigenases no-especificas ocorrem em abundancia em sementes de leguminosas como a soja, justificando o uso da farinha dessa oleaginosa na indiistria de panificagao A farinha de soja pode ser empregada como melhorador ou branqueador de farinha de trigo, em consequéncia da ago das lipoxigenases endégenas. A atividade das lipoxigenases sobre os lipideos da farinha leva a formagao de espécies quimicas oxidantes, que afetam as pontes dissul- feto das proteinas do gluten, alterando as propriedades viscoelasticas da massa. Por outro lado, a agai oxidante introduzida pela farinha de soja promove a oxidagiio de pigmentos que podem estar presentes na farinha de trigo, como carotendides ou clorofila, tornando a farinha branca e a massa mais clara. €nzimas que atuam sobre proteinas Com relagao a aplicagao tecnoldgica, dois tipos de enzimas que atuam sobre proteinas merecem comentarios por promover efeitos antagdnicos sobre esses substratos. As peptidases diminuem 0 tamanho das cadeias peptidicas, enquanto as transglutaminases estabelecem ligagées intermole- culares, resultando em compostos de maior tamanho. Peptidases As enzimas que hidrolisam as ligagdes peptidicas entre os residuos de aminodcidos podem ser classificadas em exopeptidases e proteases. As exopeptidases promovem a liberago de ami- 190. Enzimas nodcidos ou dipeptideos a partir da extremidade da cadeia, configurando uma atividade do tipo exo-hidrolitica. Em contraposigdo, as proteases so endopeptidases, agindo sobre as ligagdes peptidicas internas da cadeia peptidica A renina ou quimosina é um exemplo classico de endopeptidase largamente utilizada na indistria de laticinios para a fabricagdo de queijos. Originalmente extraida do estmago de be- zerros, hoje em dia essa enzima ¢ de origem recombinante. Ao promover a hidrélise especifica da k-caseina do leite, essa enzima desestabiliza as micelas, levando a formagao de um coagulo empregado na fabricagao do queijo. Outro exemplo de uso de proteases na industria alimenticia diz respeito ao tratamento de car- nes ou derivados com a finalidade de modificar a firmeza ou textura. Carnes expostas a papaina, bromelina e ficina, que sto extraidas de mamoeiro, abacaxizeiro e figueira, respectivamente, podem se tornar extremamente macias apés breve tratamento com essas proteases. As proteases também podem ser utilizadas na industria cervejeira como forma de impedir a ocorréncia da turbidez. da bebida causada pelo frio. A turbidez se deve a diminuigo da solubi- lidade das proteinas induzida pela baixa temperatura, com formagao de aglomerados proteicos € outros componentes da cerveja. A acdo controlada das proteases vegetais sobre as proteinas diminui a agregagdo e mantém a bebida com aspecto limpido sob refrigeragao, Transglutaminases As transglutaminases sao enzimas que catalisam a transferéncia de acil-grupos de aminas pri- marias (grupo doador) para o grupo carboxiamida da glutamina (grupo aceptor). Como conse- quéncia, quando os grupos acima tomam parte em peptideos, pode haver o estabelecimento de ligagdes cruzadas entre as cadeias, Essas ligagGes cruzadas possibilitam o estabelecimento de uma rede de ligagdes intermole- culares, que € favoravel ao estabelecimento de géis proteicos mais estaveis. Por esse motivo, as transglutaminases podem ser empregadas na industria crea para a formulag’io de embutidos, na industria de laticinios para o preparo de queijos © iogurtes © também na punificagdo, para fortalecimento da massa. Controle da atividade de enzimas endégenas Como mencionado na introdugiio deste capitulo, pelo fato dos alimentos serem essencialmente originados de organismos vegetais ou animais, as enzimas fazem parte naturalmente das maté- rias-primas alimentares, mantendo quase sempre a sua atividade catalitica, Portanto, elas podem promover a catalise de reagdes fora do contexto da homeostase dos tecidos de origem, levando a consequéncias desejaveis ou indesejaveis nos alimentos O proceso de amadurecimento das frutas € um tipico exemplo em que as alteragdes fisico- quimicas observadas resultam da aco orquestrada de varias enzimas em um tecido vegetal que se mantém vivo mesmo apés a colheita (Capitulo 12), Em contraste, ocorre perda da homeostase no tecido muscular apés 0 abate de animais, mas isso ndo impede que as proteases end6genas atuem sobre as proteinas das miofibrinas, contribuindo para a reversdo do rigor mortis (Capitulo 13) Esses so exemplos de processos decorrentes da ago de enzimas endégenas, mas que, em razao da complexidade, foram discutidos em mais detalhes nos Capitulos 12 € 15, No entanto, algumas enzimas silo capazes de promover alteragOes significativas mesmo em matérias-primas que jd passaram por algum processo visando 4 conservagaio e que, por isso, merecem interven- ges visando seu controle como forma de impedir prejuizo para a qualidade Exemplos de enzimas desse tipo sao as lipoxigenases e as polifenol oxidases. As lipoxigena- ses foram mencionadas anteriormente por seu uso como agentes melhoradores e branqueadores da farinha de trigo. No entanto, pelo fato de catalisarem a oxidagao de acidos graxos insaturados, levando a formagao de hidroperéxidos, elas podem contribuir para a rancificagao de alimentos lipidicos, sobretudo sementes de leguminosas oleaginosas, como a soja, Portanto, € de interesse controlar e minimizar sua ago nesses alimentos a fim de impedir a deterioray Enzimas | 191 As polifenol oxidases catalisam a formagao de produtos que irdo resultar em compostos de cor, respondendo pelo processo conhecido como “escurecimento enzimiitico”. Dada a importan- cia desse fendmeno para a qualidade de varios alimentos, ¢ oportuno comentar mais detalhada- mente a respeito dessas enzimas e dos meios de controle de sua atividade Polifenol oxidases As polifenol oxidases esto presentes em micro-organismos, tecidos vegetais e animais, sendo en- contradas abundantemente em folhas de plantas, casca e polpa de frutas e cogumelos, dentre outros. Essas enzimas apresentam dois dtomos de cobre em seu sitio ativo e so capazes de catalisar a oxidagdio de difendis em o-quinonas (Figura 5.13). As polifenol oxidases com atividade de ca- tecol oxidase (EC 1.10.3.1) catalisam exclusivamente essa etapa. enquanto as polifenol oxidases com atividade de tirosinases (EC 1.14.18.1) podem catalisar uma primeira reagao de hidroxi- Jaco ou desidrogenagao de monofendis a o-difendis, seguida da oxidagao desses difendis em o-quinonas, Em ambas as reagdes, a participagdo do oxigénio molecular presente na atmosfera é essencial, sendo este considerado um co-substrato dessas enzimas. ‘As o-quinonas formadas pela reagao das polifenol oxidases nao tem cor, mas sto extrema- mente reativas, podendo sofrer reacdes de condensagdo entre si e também com outras moléculas, dando origem a compostos poliméricos de cor amarronzada. Portanto, a sucesso de reagdes sofridas pelas o-quinonas é que leva a formagdo dos pigmentos que justificam a denominagao “escurecimento enzimatico”, Controle da atividade de polifenol oxidase O fato de a atividade da polifenol oxidase levar ao desenvolvimento de cor tem impacto profun- do na qualidade dos alimentos, uma vez. que essa ¢ uma condigdo determinante para a aceitagao ou rejeigdo dos alimentos. Dependendo do contexto, a reagao da polifenol oxidase & desejavel, pois a cor amarronzada do alimento representa um de seus atributos de qualidade. Isso & espe- cialmente verdadeiro para folhas de cha, grdos de café e algumas frutas secas, como uvas-pas- sas, Em contraste, a atividade da polifenol oxidase ¢ extremamente deletéria em frutos do mar, cogumelos, vegetais e frutas frescas, ou produtos minimamente processados que silo vendidos descascados ou em pedagos. Dada a importincia dessa reagaio para a qualidade, 0 conhecimento a respeito dos fatores que a controlam € uma questo importante na area de alimentos. Como discutido anteriormente, o andamento de uma reagaio enzimatica & dependente de varios fatores, inclusive ambientais. Desse modo, € oportuno destacar alguns fatores envolvidos no controle da atividade da polifenol oxidase. A concentragiio de enzima no meio reacional, em que existe a possibilidade de interagao com © substrato, é 0 elemento mais dbvio a ser controlado, e pode ser efetivado pela preservagao da integridade celular. Enzimas e substratos celulares usualmente esto localizados em comparti- mentos celulares ou organelas distintas, mas danos fisicos causados aos tecidos por corte, com- pressio, choques mecénicos e outros podem colocar os reagentes em contato, O escurecimento que ocorre em frutas e vegetais submetidos 4 injiria ¢ resultado da reagao da polifenol oxidase sobre os compostos fendlicos presentes no tecido, facilitada ainda pela maior exposigao ao oxi- génio trazida pelo dano as barrciras celulares ¢ teciduais, OH oH ° PO +0, PO+0, Polimeros de cor R R77 0H R marrom Monofenol Difenol ‘o-Quinona Figura 5.13 ReagGes catalisadas por polifenol oxidases (PO) levando a formacao de polimeros de cor marrom da reacao de escurecimento enzimatico. 192. Enzimas Portanto, ao lado do controle da integridade celular, 0 acesso do oxigénio também é uma condigdio importante, ¢ esto frequentemente associadas, uma vez que 0 dano tecidual favorece a exposigdo a atmosfera. No entanto, em algumas situagdes, como no caso de frutas € vegetais mi- nimamente processados, 0 escurecimento deve ser evitado apesar da Sbvia lesdo tecidual trazida pela manipulagao. Isso pode ser conseguido pela restrigdo de acesso ao oxigénio, por exemplo, com 0 uso de filmes plasticos, embalagens com atmosfera modificada, ou pela adigao de com- postos que de alguma maneira prejudicam a atividade enzimatica. Além da restrigdo de acesso ao O,, métodos fisicos de conservagdo, como o controle da tem- peratura por tratamento térmico ou refrigeragdo e congelamento, podem ser eficazes. Contudo, podem implicar em alteragdes de textura e cor incompativeis com 0 esperado “frescor’ de alguns produtos. Por esse motivo. outras estratégias de controle da polifenol oxidase podem ser mais apropriadas para impedir 0 escurecimento enzimatico. Aatividade catalitica da polifenol oxidase é dependente da presenga de dois atomos de cobre em seu sitio ativo, que devem estar no estado Cu’. Portanto, a adigdo de compostos que intera- gem com esse cofator representa um eficiente modo de inibir a atividade enzimatica. Compostos com aeao quelante sobre metais, como 0 EDTA e acidos orgéinicos dicarboxili- cos, como 0 Acido oxallico, citrico e malico, sao capazes de se ligar aos atomos de cobre e preju- dicar a ago catalitica. ‘A mengao aos acids organicos é oportuna para destacar outra estratégia de controle da ativi- dade e que pode se efetuar de maneira relativamente simples. A adigao de acidulantes, como os cidos organicos ascérbico, malico ¢ citrico, dentre outros, isoladamente ou como componentes de sucos de frutas acidas, pode causar acidificagaio suficiente para distanciar 0 pH do meio rea- cional do pH étimo da enzima, ou mesmo promover sua desnaturagdo O acido ascérbico também pode ser um efetivo inibidor da reagao de escurecimento por sua ago como antioxidante, assim como 0s sulfitos e outros compostos sulfurados ou com grupos tiol. Esses compostos promovem a redugdo dos produtos das reagdes catalisadas pela polifenol oxidase, ou seja, a reconversio dos o-difendis em monofendis, e de o-quinonas em difendis. Contudo, pelo fato de esses antioxidantes serem consumidos no processo de redugdo, sua efeti- vidade ¢ limitada pelas concentragdes iniciais, pois podera haver desenvolvimento de cor caso a atividade da polifenol oxidase permanega apés seu esgotamento, Nao obstante, nao incomum que os agentes redutores também tenham ago negativa dire- tamente sobre a enzima, levando a sua inativagao. A interagdio dos compostos com os étomos de cobre do sitio ativo pode levar a perda de estabilidade de sua ligagao com a cadeia peptidica e consequente remogao da molécula, A perda desses cofatores metalicos resulta na inativacaio irreversivel da polifenol oxidase O conhecimento a respeito dos fatores que governam as reagGes catalisadas por enzimas ¢ tema de extrema relevancia para aqueles interessados na composi¢ao quimica dos alimentos, uma vez que da agéo enzimatica podem resultar alteragdes diretamente relacionadas com a qualidade sensorial e valor nutricional dos alimentos. Nesse sentido, o aleance das informa- ¢des vai do controle das enzimas endogenas implicadas em processos deteriorativos a0 uso das enzimas como adjuvantes tecnolégicos para a modificagdo de propriedades de alimentos ou matérias-primas alimentares. O conhecimento sobre as enzimas, seus pardmetros cinéti- cos € 0s efeitos de fatores ambientais, adquire importincia cada vez maior, sobretudo diante do potencial de uso das ferramentas da moderna biotecnologia para a modificagao da quali- dade dos alimentos, em que a perspectiva de intervengdo reside na manipulagao da atividade enzimatica endogena ou na obtengdo de novas enzimas para uso tecnolégico Enzimas | 193 © QUESTOES PARA ESTUDO Como as enzimas podem afetar a qualidade das matérias-primas alimentares? Como sdo constituidas as enzimas e 0 que sao cofatores enzimaticos? que difere uma coenzima de um grupo prostético? Que fatores tornam as enzimas catalisadores tao eficientes de reagdes quimicas liteis na industria de alimentos? 5.5. Como os parametros cinéticos Va. € K,, podem ser de utilidade para prever e con- trolar o progresso de uma reacdo enzimatica? 5.6. Por que o conhecimento dos fatores que afetam a atividade enzimatica é importante para a modificagao de alimentos ou matérias-primas? 5.7. Quais os principais fatores que afetam a atividade de enzimas ¢ que podem ser mani- pulados em condigdes industriais? 5.8. Quais os tipos de inibidores enzimaticos e como podem ser diferenciados com base nos grificos de Michaelis-Menten e de Lineweaver-Burk? 5.9. Qual a importincia das enzimas amiloliticas para a indistria de alimentos? 5.10. Que efeitos as lipases e lipoxigenases podem ter sobre a qualidade dos alimentos Ticos em gorduras? 5.11. Como a atividade de polifenol oxidases endogenas pode ser controlada de modo a impedir o escurecimento de matérias-primas vegetais? Referéncias bibliograficas 1. _Belitz HD, Grosch W, Schiberle P. Enzymes. In: Food Chemistry. Quarta edigtio em inglés, revisada e ampliada, Berlin, Garching 2009,93-245. 2, BRENDA (BRaunschweig ENzyme DAtabase, http://www.brenda-enzymes org) http://www brenda-en- zymes.org 3. 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