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Violência de Gênero
Violência de Gênero
Lúcia Vânia
Rosilene Guimarães
Juliana Caiado
Organizadores
Larissa Lopes
Heloísa de Castro
Ludmila Guimarães
Sergei Cruvinel
ISBN: 978650006401-8
APRESENTAÇÃO 2
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 61
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APRESENTAÇÃO
Você sabia que uma em cada três mulheres já sofreu agressão física ou
sexual ao redor do mundo? É isso que nos conta a Organização Mundial da
Saúde (OMS), em uma estimativa realizada em 2019. Ainda, dados do Ministério
da Mulher agrupados no último ano apontam uma tendência: a maior parte dos
episódios de violência acontecem dentro de casa.
O fenômeno da violência de gênero é complexo, cotidiano e se constitui
como uma das principais formas de violação dos Direitos Humanos, atingindo o
direito à vida, à saúde e à integridade. Ele se expressa em agressões,
negligências, humilhações ou outras ações violentas que foram geradas em um
sistema patriarcal, incluindo a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Nesse sentido, é de suma importância que a atuação socioassistencial possua
como princípio norteador a redução dessa desigualdade.
E, diante desse cenário, faz-se necessário elaborar e efetivar estratégias de
enfrentamento e atendimento. Aqui serão apresentados conceitos importantes
para essa construção, dialogando-se sobre métodos eficazes para o combate à
violência de gênero. O texto se organizará do seguinte modo:
1) Aspectos sócio-históricos do gênero, onde abordaremos a constituição social
da desigualdade de gênero ao longo do tempo;
2) Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, no qual contém fundamentos
para a compreensão da Lei Maria da Penha e demais dispositivos que marcam o
tema;
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3) Grupo Reflexivo para Mulheres e Supostos Autores, cujo objetivo é
demonstrar sobretudo esta metodologia de atendimento com mulheres vítimas e
homens supostos autores de violência doméstica, vez que tem garantido bons
resultados. Além disso, será discutido, de forma breve, as novas configurações
durante e após a pandemia "COVID-19".
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1. ASPECTOS SÓCIO-HISTÓRICOS DO GÊNERO
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Nos primórdios da humanidade, a Vênus de Willendorf (24.000 a.C.) é
um marco relevante para se pensar as relações de gênero. Apesar do nome difícil,
a estátua ilustra aspectos de identificação simples. A mulher é apresentada sem
pés, com braços frágeis e sem rosto, localizando sua função na fertilidade. A
preocupação com a reprodução da espécie era muito presente e necessária, mas já
é possível identificar aqui o depósito de um papel a ser cumprido por pessoas do
sexo feminino, ainda que de forma mais primitiva.
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era indicada aos homens, para que pudessem refletir e alcançar a liberdade do
pensamento, a elevação do espírito e da virtude.
Ademais, o período da Antiguidade Clássica é marcado por lutas para
proteger territórios, saquear matérias-primas e escravizar, condições que também
demonstravam a dinâmica de gênero. Quando as cidades eram tomadas, o estupro
de mulheres passou a valer como “prêmio de conquista”. A educação para a
guerra, geralmente iniciada desde cedo, estimulava o desenvolvimento de porte
físico, bem como o surgimento e a manutenção de comportamentos agressivos
para os meninos. Já para as meninas, quando se autorizava o cuidado com o
corpo, correspondia a manter saúde para que tivesse filhos fortes para compor
futuramente o exército.
Centenas de anos à frente, com a decadência do sistema de civilizações e
impérios, iniciou-se a transição para a Idade Média. Nesse tempo, a religião
adquiriu papel de máxima evidência, onde os clérigos eram os únicos com
permissão para acessar a escrita e refletir sobre a humanidade. Nesse sistema de
pensamento, que regulava as relações que se estabeleciam no período, retomamos
Ambrósio de Milão (como citado por Duby e Perrot, 1993b, p. 35) ao afirmar
que: “a mulher é que foi autora da falta para o homem, não o homem para a
mulher”.
O que o trecho nos indica é a culpa da mulher pelos pecados da
humanidade: tanto seus, quanto do homem. Tal concepção se embasa na
interpretação bíblica de Eva como o ser ardiloso que mediou o contato de Adão
(e consequentemente de todos) com os frutos do mal. Por carregar tamanha
culpa, não poderia também ser considerada afável: “A beleza do corpo não reside
senão na pele. Com efeito, se os homens vissem o que está debaixo da pele, a
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vista das mulheres dar-lhes-ia náuseas… Então, quando nem mesmo com a ponta
dos dedos suportamos tocar um escarro ou um excremento, como podemos
desejar abraçar esse saco de excrementos?” (Odão de Cluny, 942, citado por
Duby e Perrot, 1993b).
Entretanto, do século XII em diante, os princípios da época criaram uma
imagem do feminino um pouco mais contraditória. Dando ênfase à história de
Maria, a virgindade e a maternidade se tornaram expectativas do que a mulher
deveria alcançar e manter. Inclusive, a proteção da castidade da mulher se tornou
responsabilidade de homens que a custodiassem, como pais, irmãos.
Mediante eventos que começaram a afetar o domínio pleno do clero nas
atividades cotidianas, ingressou-se a formação de cidades como as conhecemos.
É nesse momento que ocorre o desenvolvimento de atividades industriais e o
chamado Renascimento cultural, artístico e político. Esses acontecimentos
tiveram profundas consequências na vida cotidiana das pessoas. Não se buscava
mais um terreno para plantio e para desenvolver uma comunidade, mas sim
embarcar para centros urbanos, sem preocupar-se com vínculos vitalícios. Como
os espaços se transformaram desta maneira, os laços também não eram mais os
mesmos.
Sabe aquela expressão: "lar doce lar"? A origem dessa concepção de lar,
um ambiente doméstico e completamente privado surge nesse período. Por
conseguinte, depois de anos de casamento sem consentimento da mulher,
buscando-se formação de alianças políticas no medievo, o casamento passou a
ser somente “coisa de marido e mulher”. Além disso, crianças que antes eram
cuidadas em grupos de mulheres, vincularam-se à responsabilidade de uma única
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mulher, a mãe, ou em caso de famílias mais abastadas financeiramente, também à
empregada da família (Ariès, 2015).
Falando um tanto mais sobre a relação das mulheres com o trabalho,
nota-se que quando chegavam à adolescência, dois deveres lhe eram dispostos:
arrumar um emprego para que pudesse gerar renda para sua família (vez que não
geria o próprio dinheiro arrecadado) e, ao mesmo tempo, conquistar aptidões
para seu futuro casamento, como a costura, a cozinha e o cuidado com os filhos
(Duby e Perrot, 1993c). Esta formação era iniciada já aos poucos anos de idade e
o emprego raramente possuía retorno financeiro igualado ao salário masculino
para a mesma função. Justificava-se ser desnecessário receber o mesmo valor,
porque a mulher necessariamente seria sustentada por outra figura masculina,
seja o pai ou o marido.
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b. Teorias sobre gênero
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Para o masculino, há uma recusa do feminino, estabelecido como "não ser
mulherzinha". Isso porque o homem precisa, necessariamente, ser ativo, viril,
entre o agressivo e o racional, para que integre a masculinidade dominante. De
outro lado, cabe à mulher ser dócil, passiva, emocional, cuidadora, mas com
leves traços de timidez, para então ser entendida como uma "mulher de respeito".
Esses estereótipos envolvem mais do que regras já superadas, mas são diluídos
no senso comum construindo subjetividades que buscam tais referências a serem
seguidas. Sendo desta forma, tanto as mulheres quanto os homens compartilham
destas ideias de reprodução da dominação, vivenciando a repressão de seus
sentimentos para cumprir papeis sociais (Rabelo, 2010).
No meio filosófico e sociológico, muito se questiona o que mantém esses
papeis ainda tão rígidos que implicam, em regra, a sobreposição do poder do
homem perante a mulher. As explicações sobre essa estruturação das relações de
gênero nascem de diferentes visões. Vamos falar um pouco sobre algumas delas?
Teoria da Dominação Masculina
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Teoria da Dominação Patriarcal
Quem abre as discussões dentro desta visão é Heleieth Saffioti. Para a
autora, além da dominação, é preciso conceber a violência contra a mulher como
uma relação de exploração. Isso porque retomando a história, entende-se que nos
organizamos a partir de um sistema patriarcal. O patriarcado se refere a uma
lógica construída historicamente em que a mulher é oprimida pelos homens
enquanto estrutura de convivência social, sendo totalmente destituída de poder e
posses (Saffioti, 2001). Relembra desde os empecilhos para que mulheres
estudassem, fossem proprietárias de objetos e de si mesmas, destacando as
atualizações cotidianas desse cenário. Entretanto, a autora não estabelece a
ausência de autonomia da mulher. Pelo contrário, acredita que a mulher seja
somente vítima da violência, submetida à condições desiguais de poder, mas que
é possível alterar este cenário a partir da movimentação político-social.
Teoria Relacional
Maria Gregori é a referência fundamental para esta teoria. Em contraponto
com as noções anteriores, entre a não-autonomia e a condição de vítima, a autora
acredita que a violência é um jogo relacional. Na sua concepção, os episódios
violentos podem ser uma forma de comunicação perversa entre os parceiros e,
não necessariamente a mulher assume uma postura de passiva enquanto o homem
é ativo. Ela parte do pressuposto de que há uma igualdade social estabelecida
quando se inicia uma relação e ambas as partes podem ser responsabilizadas
pelos caminhos de violência trilhados em conjunto.
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Cada uma destas teorias carrega consigo muitas implicações e
complexidades, por isso recomendamos que aprofundem a leitura das referências.
Além delas, temos ainda muitas outras discussões que permeiam o campo de
estudos do gênero. Dentre elas, ressaltamos a interseccionalidade como um
assunto de suma importância para a temática, conforme discutiremos no tópico a
seguir.
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c. Interseccionalidades
Dialogando sobre esse tema, Fanon (2008) coloca em perspectiva que essa
relação de dominação não foi superada, produzindo-se experiências de
impotência ao longo de toda a vida do negro. Isso porque ao ser retirado à força
da sua casa, da sua identidade, o negro precisou se guiar também por um padrão
de referências completamente diferente do seu: “negro não tem mais de ser
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negro, mas sê-lo diante do branco” (Fanon, 2008, p. 104). Nesse sentido, sua cor
da pele, seu cabelo e seus costumes se tornaram elementos a serem combatidos
no meio social e, dessa forma, também na autoimagem que os negros possuem de
si.
Ainda mais intensa é a violência contra mulheres negras. Na dinâmica
social das colônias, elas eram alvo de constantes abusos e estupros. Segundo
Belonia (2019), a violação sexual das escravas tinha caráter disciplinador, para
demonstrar um lugar de feminilidade que não poderia acontecer por outra via,
como a restrição aos trabalhos domésticos. Ainda hoje, identifica-se o processo
de sexualização do corpo feminino negro, o que impacta significativamente em
outro fenômeno conhecido como “solidão da mulher negra”. Essa solidão é
considerada no sentido do afeto aplicado às relações amorosas, ocupando
somente o lugar de fonte de satisfação sexual ao homem, sobretudo branco.
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sendo inexistente uma imagem contemporânea dos indígenas" (Peixoto, 2017, p.
31).
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fatores determinantes à permanência da mulher em contextos violentos (Abreu,
2015).
A autoimagem construída por estas mulheres é também muito mais
fragilizada, como afirma Pinto (2011): “a par da vulnerabilidade social a que
estão expostas, pode-se constatar que elas também apresentam alto grau de
vulnerabilidade emocional, seja pelo sentimento de abandono, seja pela violência
e exploração a que foram submetidas, seja pela fragilização a que estão expostas
cotidianamente na busca de estratégias para a sobrevivência de seu núcleo
familiar.”.
Ainda assim, é importante relembrar que não se trata de uma hierarquia do
sofrimento ou que não é uma restrição da vivência de violência a determinados
grupos. A violência, infelizmente, é um fenômeno democrático, o que se altera
são as formas como ela se manifesta a cada grupo e a cada pessoa. Por isso,
justifica-se a necessidade de leis que protejam as mulheres em sua diversidade,
assunto que trataremos mais no próximo módulo.
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2. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A
MULHER
Tu tens um medo
Acabar
Não vês que acabas todo dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo…
“E toda a mulher, que fizer adultério a seu marido, morra por isso. [...] que
quando o marido perdoar a mulher, elle não morra morte natural, mas seja
degradado para sempre para o Brazil". (Ordenações Filipinas, 1870/2004, p.
1175-6). Iniciamos nossa discussão retomando as Ordenações Filipinas, que além
de dar aval para o assassinato de mulheres em casos de rumores de traição,
também previa legalmente seu ferimento com paus e pedras. Dispositivos como
este demonstram a necessidade contínua de questionarmos o modo como a
legislação pode legitimar relações desiguais, mas também como é passível de
revisão e transformação. Sobre este processo, retomaremos em um breve
histórico a construção das regulamentações sobre gênero que vigoram na
atualidade.
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a Mulher, na cidade do México. A ONU proclamou o ano de 1975 como o Ano
Internacional da Mulher e de 1975 até o ano de 1985 como a Década das
Nações Unidas para a Mulher.
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como espécie de violação aos direitos humanos. Concretizou-se, mediante tais
discussões, uma declaração que detalhou múltiplas modalidades da violência,
estabelecendo a necessidade:
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como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro
local; e
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inclusão das mulheres nos processos de desenvolvimento social, econômico,
político e cultural do País.
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firma para implantação de Conselhos Municipais de Políticas para as Mulheres.
Inaugura também a criação e equipagem das “salas lilás”, com equipe
multiprofissional que possa dar atendimento humanizado e em ambiente
adequado no exame de corpo de delito. Todas estas ações até então citadas
podem ser ratificadas por cada município, isto é, cada prefeitura pode assinar um
termo de adesão ao Pacto para iniciar a implementação do programa de interesse.
Este documento celebrou ainda o lançamento do “Aplicativo Goiás Seguro”, com o
botão “Alerta Maria da Penha”, onde o contato com a unidade da Polícia Militar é
mais rápido.
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b. Lei Maria da Penha: conceitos fundamentais
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Art. 2º. Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação
sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as
oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde
física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social (Brasil,
2006a).
Nesse sentido, a lei não foi criada para buscar a punição de homens, mas
para garantir que as mulheres não sejam violentadas por serem mulheres.
Considerando que a mulher é comumente oprimida em nossa sociedade,
especialmente pela figura masculina, a Lei Maria da Penha criou mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Por isso a referida
lei conferiu proteção diferenciada ao gênero feminino que, em um contexto de
vulnerabilidade estiver inserido em situações específicas, como no ambiente
doméstico, familiar ou em relação íntima de afeto. A proteção diferenciada terá
incidência somente quando a violência contra a mulher ocorrer em uma dessas
situações descritas.
Diante disso, vale ressaltar que o texto legal abrange também pessoas em
relações homoafetivas quando constatada violência de gênero. A partir do padrão
de ocorrência da violência de gênero, geralmente dentro de casa ou a partir
relações familiares, definiu-se como objeto também a violência doméstica e a
violência familiar contra a mulher:
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II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada
por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços
naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
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A Lei Maria da Penha utiliza o termo violência em um contexto amplo,
abarcando além da violência física, a psicológica, a sexual, a patrimonial e a
moral. A violência doméstica e familiar apresenta ainda tipos de ocorrências
comuns. Por isso, o art. 7º desta mesma lei abrange como formas de violência
contra a mulher:
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Para que seja configurada a violência doméstica e familiar contra a mulher
não é exigido que a conduta criminosa contenha a presença simultânea de todos
os requisitos do artigo 7º da Lei Maria da Penha. Dessa forma, o ato de violência
deve estar contido em um dos incisos do artigo 7º citado acima, combinado com
um dos pressupostos previstos no artigo 5º, a saber, no âmbito da unidade
doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto.
Ademais, a referida lei não trouxe como requisito a habitualidade dos atos
violentos, ou seja, basta a prática de qualquer ação ou omissão nesse contexto.
Como delimitado nesse trecho da lei, o ato violento não se configura
somente como aquele que deixa marcas no corpo, como socos, empurrões, tapas,
mordidas ou asfixia nos casos de violência física. As ameaças e tentativas de
controle sobre a atividade da mulher ou o uso de palavras e xingamentos para
aterrorizá-la, humilhá-la e culpabilizá-la também é violência, de forma
psicológica. Acusar e espalhar comentários degradantes sobre a mulher é ainda
violência moral. Proibir que a mulher tenha acesso a dinheiro, trabalhando ou
estudando, e impossibilitar livre acesso das finanças ou objetos da vítima, como
celular e documentos, é considerado violência patrimonial. Além disso, é
bastante comum que não se reconheça alguns episódios de violência sexual, vez
que o ato sexual sem vontade e consentimento ou o impedimento do uso de
métodos contraceptivos no casamento é rotineiramente naturalizado.
É importante descrever cada tipo de violência para facilitar a compreensão
e auxiliar na identificação se há ou não situação de violência doméstica e familiar
contra a mulher em um determinado contexto. Ademais, é muito comum
confundir a violência psicológica com a moral, o que se faz necessário
demonstrar as características de cada tipo de violência abrangendo também o que
pode diferenciá-las.
VIOLÊNCIA FÍSICA
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É compreendida como qualquer conduta que seja capaz de ofender a
integridade física ou corporal, visto que há emprego de força física sobre o corpo
da vítima lesando a sua integridade ou saúde corporal. A ofensa à saúde corporal
compreende as perturbações fisiológicas (desarranjo no funcionamento de órgão
do corpo humano) ou mentais (alteração prejudicial à atividade cerebral). São
exemplos de violência física: espancamento, fraturas, fissuras, escoriações,
queimaduras. estrangulamento, sufocamento, atirar objetos, sacudir e apertar os
braços. Como exemplo de infrações penais praticados com violência física
podemos citar as formas de lesão corporal (artigo 129 do Código Penal), o
homicídio (artigo 121 do Código Penal), a contravenção penal de vias de fato
(artigo 21 do Dec.-Lei nº 3.688/41).
VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA
Trata-se de qualquer conduta que cause na vítima dano emocional,
diminuição da autoestima, prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que
tenha o intuito de controlar suas ações, comportamentos, crenças, decisões,
mediante uso da ameaça, humilhação, ridicularização, constrangimento,
isolamento, perseguição contumaz, vigilância constante, manipulação, limitação
do direito de ir e vir, chantagem, insulto, violação da intimidade, exploração ou
qualquer outro meio que cause prejuízo à autodeterminação e à saúde psicológica
da vítima.
As infrações penais mais comuns que enquadram como violência
psicológica são: ameaça (artigo 147 do Código Penal), constrangimento ilegal
(artigo 146 do Código Penal), sequestro e cárcere privado (artigo 148 do Código
Penal). Em 2018 foi inserido na Lei Maria da Penha a violação da intimidade
como uma forma de violência psicológica, cujo exemplo é o crime de registro
não autorizado de intimidade sexual (artigo 216-B). Outros exemplos bastante
comuns são proibir de estudar, viajar, falar com amigos ou parentes, insultar,
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deixar a mulher em dúvida sobre sua sanidade ou memória ao distorcer e omitir
fatos (gaslighting).
Esse tipo de violência pode chegar até mesmo a ser mais grave do que a
violência física, visto que são causados na vítima danos emocionais, ocasionando
a baixa autoestima, sendo que o objetivo precípuo do agressor é também o de
prejudicar o pleno desenvolvimento da mulher. Na sua maioria as situações
relatadas culturalmente são normalizadas e aceitas pela sociedade, tanto que não
raramente sequer a vítima percebe que está submetida a uma violência doméstica
e familiar contra a mulher que causa danos de difícil reparação.
VIOLÊNCIA SEXUAL
Caracteriza-se por qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar,
manter ou participar de relação sexual que não foi desejada nem consentida,
mediante ameaça, intimidação, coação ou até pelo uso da força. Também é
considerado violência sexual qualquer conduta que induza a mulher, de qualquer
modo, a comercializar ou a utilizar sua sexualidade, que a coíba de usar método
contraceptivo, que limite ou anule o livre exercício de seus direitos sexuais ou
reprodutivos, que a force a contrair matrimônio, à gravidez, aborto, prostituição
mediante uso de chantagem, suborno, coação ou manipulação.
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VIOLÊNCIA PATRIMONIAL
Compreende-se como qualquer conduta que represente subtração,
retenção, destruição parcial ou total dos objetos da vítima, instrumentos de
trabalho, bens, documentos pessoais, valores e direitos ou recursos econômicos.
Algumas infrações penais podem caracterizar a violência patrimonial, como as
descritas no Código Penal como crimes contra o patrimônio. Não obstante ser um
tipo de violência doméstica e familiar contra a mulher não se exige da conduta o
emprego de violência física ou corporal. Podem configurar esse tipo de violência
atitudes como a de controlar o dinheiro, deixar de pagar pensão alimentícia,
causar danos propositadamente a objetos da mulher ou dos quais ela goste.
VIOLÊNCIA MORAL
Conceituada como qualquer conduta que seja enquadrada no Código Penal
como calúnia, injúria ou difamação. Apesar de serem crimes com pena máxima
igual ou inferior a dois anos, não se submetem à Lei 9.099/95 por vedação da Lei
Maria da Penha, não sendo admitidos nenhum dos institutos despenalizadores da
Lei dos Juizados. Atitudes como acusar de traição, fazer críticas mentirosas,
expor a vida íntima, emitir juízos morais sobre a conduta da vítima, bem como
fazer xingamentos sobre sua índole, desvalorizando-a podem caracterizar
violência moral.
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também possível que a vítima obtenha reparação por danos materiais e morais no
âmbito cível, caso ajuíze a ação de indenização.
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As Medidas Protetivas de Urgência aplicadas ao ofensor tratam além da
proibição de contato e aproximação com a mulher vítima e seus familiares ou
demais condições restritivas. Sendo de nosso interesse particular, é importante
destacar que cabe também a determinação para que o agressor seja acompanhado
por equipe de atendimento psicossocial para que busque sua reeducação:
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c. Atuação da Rede de Enfrentamento e da Rede de
Atendimento
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atendimento. O atendimento, por sua vez, envolve sobretudo setores da justiça,
segurança, saúde e assistência social para que conjuntamente ofereçam
assistência capacitada, de forma integral e humana. Além de serviços não
especializados em violência contra a mulher, como delegacias comuns, programa
de saúde da família ou Centros de Referência de Assistência Social (CRAS),
enfatiza-se a construção de alguns órgãos especializados no atendimento como as
Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, os Núcleos da Mulher das
Defensorias Públicas, os Centros de Referência de Atendimento à Mulher, Casas
de Acolhimento Provisório (Casa de Passagem) ou Casas Abrigo (Brasil, 2011a).
Vamos conhecer o que está previsto para a atuação de cada um deles?
III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local
seguro, quando houver risco de vida.
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V - informá-la de seus direitos e sobre os serviços disponíveis. (Brasil, 2010).
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gênero e ser promovente de campanhas de conscientização e de fiscalização de
outras instituições de atendimento à mulher (Brasil, 2006).Os Conselhos da
Mulher, sejam estaduais ou municipais, também são órgãos fundamentais para
controle social na implementação das políticas para mulheres.
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mulher volte a ser vítima, o Centro de
Referência oferece aconselhamento jurídico e
Aconselhamento e acompanhamento acompanhamento nos atos administrativos de
jurídico natureza policial e nos procedimentos judiciais,
informando e preparando a mulher em situação
de violência para participação nessas
atividades.
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sejam assistidos. Esta condição se torna ainda mais evidente em municípios que
não ainda possuem uma rede estruturada, fazendo com que as referências para o
atendimento se organizem em outros espaços. Dito isso, mesmo nessas condições
é fundamental trabalhar para que exista uma articulação institucionalizada,
possibilitando coerência, rapidez na atuação, qualidade do atendimento e a
consolidação de uma agenda comum de objetivos a serem seguidos, mesmo que
cada instituição conte com uma intervenção distinta para a problemática
(Redondo, 2012). Consideramos o diagnóstico da situação uma finalidade
importante desta agenda e, assim sendo, discutiremos sobre a identificação de
fatores de risco e do ciclo de violência no próximo tópico.
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d. Identificação de fatores de risco e do ciclo de violência
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tensão, com insultos, humilhações, intimidações, culpabilização e provocações
mútuas. É um período bem marcado pelo controle da mulher, em todas suas
ações ou vontades. Temos alguns exemplos infelizmente bastante corriqueiros
disso: xingamentos desferidos contra a mulher diminuindo sua autoestima;
exigências para que a mulher mude sua vestimenta e diminua contato com
amigos e familiares; para que o homem possua acesso ilimitado ao celular ou
outras formas de contato que a mulher possua; ameaças ou destruição de seus
bens, entre outros. Intensificando-se estes episódios de violência psicológica,
sobretudo, são geradas sensações de tristeza, medo, angústia, insegurança e
ansiedade, mas que não costumam ser expressadas, sob ideias de que o parceiro
não é assim, foi somente um momento inexplicável onde “se tornou outra
pessoa”, ou de que ela precisa mudar seu comportamento para que não ocorram
novas violências, mas que no fundo a violência é também uma demonstração de
que o parceiro quer permanecer com ela.
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Nesse sentido, a mulher fica confusa sem acessar a situação por completo e se
mantém paralisada, apassivada e em negação.
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Alguns destes fatores podem ser identificados já nos documentos legais e
processuais que envolvem o agressor. Ocorrências reincidentes com as mesmas
partes, descumprimento de medidas protetivas de urgência e o porte/posse de
arma de fogo são condições preocupantes, demonstrando escalonamento e acesso
a instrumentos letais para possíveis novos episódios de violência. Além disso, a
constância ou aumento de outras formas de violência são um sinal vermelho
quando se avalia o risco de feminicídio.
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3. ATENDIMENTO INDIVIDUAL E EM GRUPO
REFLEXIVO
Sou humano, nada do que é humano é alheio a mim
Terêncio, 163 d. C.
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Para o profissional da psicologia, o acolhimento é momento de extrair-se a
visão do indivíduo como um todo, possibilitando a compreensão da vivência do
sujeito. É visto como um diálogo confidencial entre a acolhida e o acolhedor,
dando a oportunidade de superar o seu estado de estresse e possibilitando que a
mulher tome decisões saudáveis no que se refere à demanda explicitada (Narvaz
& Koller, 2006).
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Após a acolhida, a vítima sente-se confortável em elaborar e elencar
psiquicamente as possibilidades de encaminhamentos de sua história, sendo
possível que encontre os elementos que ficaram perdidos e que, recombinados, se
mostrem estratégicos no desenvolvimento das capacidades pessoais de resiliência
e simbolização, possibilitando uma nova combinação e na elaboração criativa de
um novo futuro.
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Também, para que promovam discussões que propiciem a reflexão sobre
novas formas de visão de mundo a partir de suas vivências e as encaminhem para
a cultura de paz. Que elaborem a violência sofrida, que se informem sobre seus
direitos, que propiciem troca de experiências visando a superação da sua situação
de violência e busquem seu bem estar psicossocial.
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b. Acolhimento e Grupo Reflexivo com supostos autores
A palavra é: acolher!
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Os encontros do grupo reflexivo sobre gênero tem o objetivo principal de
despertar nos supostos autores homens ou mulheres em processo judicial que
estejam envolvidos em contexto de violência doméstica e familiar contra a
mulher a reflexão sobre suas atitudes denunciadas, bem como as latentes.
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diálogo, a qual cria reflexões coletivas de eixos temáticos vividos pelos autores
em seus cotidianos, reconstruindo saberes, conhecimentos e conceitos durante
sua interação com outros participantes.
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Tão importante quanto planejar com cuidado os encontros incluindo o eixo
temático e seus componentes é também monitorar e avaliar os encontros. O
monitoramento periódico, sugere-se ao final de cada encontro, pode levar a
equipe condutora a reorganizar os temas de acordo com as falas e sugestões que
vão se apresentando. Na conclusão do cronograma é importante avaliar os
encontros de forma verbal e também escrita, de preferência sem a identificação
do avaliador, para que se oportunize a fala genuína, gerando um feedback para
futuros ajustes necessários ao bom planejamento, execução e condução dos
trabalhos por parte da equipe.
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c. Procedimentos e documentos necessários
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duração de duas horas cada, já computado o momento de socialização,
totalizando de 10 a 12 encontros, ou o que melhor convier, e com o máximo de
quinze integrantes, podendo eles ser de diferentes faixa etária, etnias, religiões,
sem distinção ou discriminação. Com ressalvas de contraindicação aos acusados
e/ou sentenciados de abuso sexual, autores de crimes dolosos contra a vida, ao
dependente químico com comportamento comprometido, aos portadores de
transtornos mentais severos e aos que apresentem comportamento prejudicial ao
funcionamento do grupo.
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Vencida a fase inicial administrativa, a execução das atividades com o
grupo reflexivo se materializa. Momento de colocar em ação o planejamento
feito. A metodologia a ser trabalhada vai de encontro com a formação,
experiência e formas de trabalho da equipe multiprofissional, respeitando a
autonomia das equipes, mas fazemos aqui algumas pontuações necessárias.
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Importante que a equipe tenha ciência de que o trabalho com os grupos
reflexivos têm interesse nas ações responsabilizantes dos sujeitos, que eles
reconheçam e se responsabilizem pelos atos violentos cometidos e não a
pretensão de policiar ou julgar esses homens. Todavia, ter a convicção de que a
violência de gênero não se justifica sob quaisquer circunstâncias ou pretextos e
deve ser ser interrompida por intermédio de trabalhos como esse, aliados a outros
recursos existentes e disponíveis pela rede de atendimento e pelas políticas
públicas efetivas.
55
Compartilhamos neste site alguns modelos de documentos, textos para
leitura complementar, que recomendamos para melhor sedimentar os conteúdos
até aqui discutidos e facilitar o planejamento dos grupos a serem realizados.
56
d. Impactos da pandemia na forma de atendimento
57
familiar, expondo um problema de saúde global que assume proporções de uma
epidemia silenciosa e requer ações urgentes.
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deixa a mulher mais vulnerável, sendo o isolamento, parte da dinâmica de
relacionamentos abusivos.
59
60
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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LTC.
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