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UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE

CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS – PPGCS
DISCIPLINA: CULTURA, MÍDIA E POLÍTICA
PROFESSORA: ELIZABETH CHRISTINA DE ANDRADE LIMA
SEMESTRE: 2021.1

A figura da primeira-dama na construção da narrativa político-


midiática conservadora: Marcela Temer e Michelle Bolsonaro

Aelton Alves de Melo Junior

Resumo: a presente pesquisa parte da observação midiática da construção narrativa


política conservadora no Brasil após a saída do governo PT, tomando como objeto de
análise materiais jornalísticos de portais de notícias sobre a ex-primeira-dama Marcela
Temer a atual primeira-dama Michelle Bolsonaro. De modo que, com a representação
estereotipificada destas mulheres na mídia, podemos observar uma narrativa
conservadora sobre um tipo ideal de mulher, bem como o resgate da narrativa sobre o
trabalho de assistencialismo social como um tradicional trabalho feminino.

Palavras chave: mídia; discurso; narrativa; primeira-dama;

1. Introdução

Quando abordamos o tema “narrativa”, num rápido esboço mental, é possível


imaginar um roteiro, uma história a ser contada, uma trama de filme, de novela,
de livro..., mas uma narrativa pode ir além de uma história ficcional, pode se
caracterizar como um viés político, que possui ideologias, e até metas a serem
atingidas. Podemos, então, pensar na narrativa como uma estratégia. Um tipo
de estratégia que tem como principal aporte a comunicação, sobretudo as mídias
de comunicação, que de forma massiva impulsionam as mensagens que formam
a narrativa proposta.
Charaudeau (2006) nos esclarece que os processos de comunicação em si
se constituem como uma ferramenta de repasse de informações, sendo a
linguagem a forma como essas informações são repassadas. É importante frisar
que a linguagem vai muito além da língua, da oralidade, da escrita ou mesmo
dos símbolos, mas também deve-se levar em conta as atribuições socioculturais
a qual os símbolos, signos e significados possuem, em outras palavras, a
linguagem também é discurso, um discurso que é contextualizado.
Por ser um veículo de repasse de informações, a comunicação pode também
se configurar como um espaço de poder, como aborda Charaudeau ao dizer que:
"não ter acesso à informação é não poder saber, logo, não poder informar"
(Ibidem, p. 35). Os meios de comunicação de massa detêm um espaço de poder
que atinge uma extensa gama de receptores. E com esse poder em mãos,
escolhem, filtram ou traduzem as informações que chegam às pessoas,
podendo, nesse processo, desenvolver censuras, interpretações difusas sobre
um determinado fato, bem como o sujestionamento de interpretações.
Além do discurso, podemos pensar a construção de uma narrativa, abordando
a questão das representações, e tendo em vista que essa é a forma como a
mídia costuma representar a sociedade e repassar informações, Charaudeau
(2006) nos diz que as representações são frutos dos “saberes de conhecimento”
(saberes objetivos, realistas) e dos “saberes de crenças” (saberes afetivos,
subjetivos, imaginários, idealistas). As representações imprimem o real, mas um
“real” mental, isto é, uma realidade construída pelas interpretações mentais,
formada em discursos pelos sujeitos da sociedade. As representações “se
baseiam na observação empírica das trocas sociais e fabricam um discurso de
justificativa dessas trocas (...)” (CHARAUDEAU, 2006, p. 47) e dessa forma
imprimem “(...) um desejo social, produzem normas e revelam sistemas de
valores” (ibidem, p. 47).
Nesse contexto teórico, podemos nos aproxima do conceito de Cenários de
Representação (CR), na qual Venício Lima (2004) nos apresenta o termo como
referente as representações da realidade apresentadas pela mídia de massa.
Compreende-se que “(...) os Cenários de Representação são, portanto, o espaço
específico das diferentes representações da realidade, constituído e constituidor,
lugar e objeto da articulação hegemônica total (...)” (LIMA, 2004, p. 13), ou seja,
os meios de comunicação, podem se constituir também como órgãos que
justificam, perpetuam e/ou repassam as construções culturais de uma
sociedade. Lima, colocando o teórico Castells no debate, ainda pontua que “(...)
nas sociedades contemporâneas, as pessoas recebem suas informações e
formam suas opiniões políticas, essencialmente através da mídia e
fundamentalmente da televisão” (LIMA, 2004, p. 21).
Os Cenários de Representação são posteriores a sociedade, a cultura e ao
imaginário social. Pois esses “(...) elementos que existem em nosso “imaginário
social” muito antes da existência de uma centralidade da mídia. São elementos
estruturais, que constituem traços permanentes (“residuais, persistentes”) de
nossa formação cultural” (LIMA, 2004, p. 23). E assim se olharmos a longo prazo,
a repetição de representações midiáticas, podem acabar se sedimentando na
cultural social, e assim discursos vão sendo aprendidos e incorporados pela
sociedade no decorrer do tempo.
Ao buscar um objeto de estudo, através deste prisma teórico, a representação
midiática envolvendo a figura da mulher é um tema que instiga e que nos dá
abertura para analises diversas. Ao falar de mulher, mídia e representação, é
impossível fugir do debate sobre estereótipos de gênero apresentados de forma
massiva por produções midiáticas, na qual constituem-se como grandes agentes
na manutenção de discursos sobre crenças, valores e formas de comportamento
que dialogam com construções patriarcais, machistas e até misóginas.
Construções essas que trazem estereótipos de gênero, que circulam por
diversas instâncias de poder, como: a escola, a família, a comunidade social, e
a mídia, esta última qual damos destaque.

De acordo com Lysardo-dias (2007), no âmbito da sociologia, o


estereótipo é definido como uma imagem mental coletiva que
determina formas de pensar, agir e mesmo sentir do indivíduo.
Essas imagens geram um sentimento de conexão entre os
indivíduos em relação à comunidade. Assim, os estereótipos
garantem uma relativa identidade, já que os membros de um
grupo se reconhecem por compartilharem uma visão de mundo.
(FREITAS, 2014, p. 04)

Instancias que formam as redes de micro-poderes da sociedade, atuam na


manutenção e repasse de construções culturais determinadas, colaborando, por
exemplo, na manutenção de construções discursivas que circundam as
imposições comportamentais à conduta feminina, ou seja, os discursos sobre a
dona de casa, o “sexo frágil”, a delicadeza feminina, o padrão de beleza e tantas
outros estereótipos que colocam a mulher sempre em posição a baixo do
homem, como a serviçal, a amante, a cuidadora etc. Logo "a linguagem tem um
papel importante porque é através dela que o processo de estereotipia se
materializa” (Lysardo-dias apud. Freitas, 2014, p. 04).
E assim com esse arcabouço teórico – narrativa discursiva, mídia e
estereótipo – a presente pesquisa pretende observar a narrativa político-
midiática envolta da figura da primeira-dama presidencial, e sua influência para
um modelo ideal de feminilidade no contexto político a qual se insere. O estudo
se debruça então sobre alguns materiais jornalísticos sobre Marcela Temer e
Michelle Bolsonaro. Por se tratar de um artigo em modelo paper, não se realizará
neste momento uma analise discursiva aprofundada dos materiais escolhidos,
de modo que só observaremos a construção da narrativa que estes artigos
fomentaram.

2. A narrativa do papel de primeira-dama na política

A presença do primeiro-damismo na política brasileira, tem por característica


mulheres, esposas de presidentes, em atividades filantrópicas, dando atenção à
causas sociais, ajudando aos mais necessitados, comandando ou participando
de programas assistenciais e ações no terceiro setor. O primeiro e mais notório
empreendimento assistencial capitaneado por uma esposa do presidente, em
nosso território nacional, é a Legião Brasileira de Assistência (LBA), fundada em
1942 por Darcy Vargas, esposa Getúlio Vargas, presidente do Brasil de 1930 a
1945 e de 1951 a 1954 (LOPES e GROSSI, 2019, p.01).
O primeiro-damismo e sua relação com as causas sociais, nos explica Lopes
e Grossi (2019), não surgiu atoa, tem um caráter político, que é tirar um pouco
da total responsabilidade do Estado às políticas públicas ou às assistências
sociais. De modo que, a figura da Primeira-Dama, uma pessoa pública ligada ao
governo, passa a desenvolver esse serviço pelas vias privadas de organizações
diversas, como ONGS e programas da área social.

As atribuições das Primeiras-Damas foram se ampliando, muitas


delas passaram a apoiar instituições sociais e a criar seus
próprios planos de trabalho. Segundo Amaral (2007), a partir do
século XX, a figura das Primeiras-Damas desponta como peça
fundamental para prolongar e consolidar o estatuto, o poder e a
popularidade do marido, passando a ocupar espaços aos quais
ele não chega; a produzir discursos e representar papéis que
são “mais bem entendidos” pelo fato de partirem de uma mulher.
(LOPES e GROSSI, 2019, p.01)

Ao se tratar deste tema, isto é, a questão do trabalho voluntário e/ou


filantrópico feminino, esbarramos em um debate sobre gênero. Uma vez que,
são socialmente impostas características como delicadeza, bondade e cuidado
como uma espécie de adjetivo para mulheres, sobretudo quando envolve a
questão da maternidade.

O lugar das mulheres estava, portanto bem definido: era o lar,


como esposas amorosas, mães dedicadas e senhoras
benevolentes. Suas qualidades naturais e morais as habilitavam
para a maternidade e as lides domésticas, mas também se
esperava, tanto do ponto de vista da religião quanto da filosofia
moral, que essas qualidades fossem estendidas para os outros,
para aqueles que sofriam e que precisavam de cuidados
(MARTINS apud. SILVA, 2021, p. 02).

Desse modo, ao destinar à primeira-dama o trabalho de assistência social


filantrópica, corrobora-se com as ideologias conservadoras de que o cuidado e
o amparo são serviços femininos, um "dom natural" da mulher, em uma noção
muito ligada à maternidade.
Além disso, o Estado ao remanejar o papel do assistencialismo para um
voluntariado feminino, “esse deslocamento se faz com propósitos políticos, no
sentido de cativar as camadas populares, concepção bastante ligada ao
paternalismo político e ao assistencialismo filantrópico” (SILVA, 2021, p. 02), e
também buscando construir um modelo nacional de mulher, colocando a figura
pública da esposa do presidente em destaque.

Nesse sentido, encontramos o conceito de gênero (...) uma vez


que o cuidado e a assistência eram tidos como, essencialmente,
aptidões femininas, e a maternidade está no bojo da construção
do que se entendeu (ou talvez entende-se ainda) por
feminilidade. Tais concepções engendraram atuações
específicas para as mulheres, bem como práticas
disciplinadoras para os corpos femininos. São a representação
de gênero, justamente, as imagens e projeções criadas por
determina sociedade para o masculino e feminino. (SILVA, 2021,
p. 03)
Com base na autora supracitada, podemos compreender que o primeiro-
damismo, ou melhor, o trabalho realizado pela primeira-dama e a sua
representação como exemplo de boa mulher, fazem parte do sinuoso jogo
político, na qual a narrativa proposta forma uma grande estratégia de jogo.
Neste contexto, poderíamos enumerar várias mulheres que atuaram no
trabalho social enquanto primeira-dama, como Sarah Kubistchek, que não só
colaborou no assistencialismo, como fundou a Fundação Pioneiras Sociais, além
de criar o Centro Luiza Gomes de Lemos, que se tornaria referência nacional no
combate ao câncer ginecológico (SILVA, 2021). Mas uma figura na história do
primeiro-damismo brasileiro é importante destacar, Marisa Letícia Lula da Silva,
esposa do ex-presidente Lula da Silva (presidente de 2003 a 2010). Diferente de
tantas outras primeiras-damas, Marisa não se engajou tanto no trabalho
filantrópico, pois preferiu acompanhar direto o trabalho de seu esposo, como
assim sempre faz, quando participava ativamente de protestos na década de 70,
liderando marchas de mulheres, e sendo um membro ativo no Partido dos
Trabalhadores (PT)1.
Após o mandato de Lula, não houve mais a presença de uma primeira-dama,
uma vez que uma mulher, pela primeira vez na história do país, fora eleita ao
cargo máximo na política, Dilma Rousseff, que governou a nação de 2011 a
2016. Contudo, durante o mandato de Dilma, tivemos a presença tímida de uma
vice primeira-dama, a esposa do vice-presidente Michel Temer, a jovem Marcela
Temer, esta que num futuro não muito distante despontaria como um dos pilares
de uma narrativa político-midiática conservadora.

3. Narrativa midiática 1: Marcela Temer a mulher bela, recatada e do lar

Com o impeachment de Dilma em 2016, após uma série de perseguições que


lhe levaram à um golpe político, seu vice Michel Temer ocupa o cargo de
presidente da nação, trazendo ao seu lado a esposa Marcela Temer. E assim o
Brasil volta a ter a figura de uma primeira-dama.

1Informações obtidas em artigo publicado pelo El Pais, em 2017, ano em que Marisa veio a óbito
vítima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) aos 66 anos de idade. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/03/politica/1486153715_076149.html Acesso em:
25/08/2021
Em um artigo veiculado pelo portal Extra, em 2011, é realizado um breve
apanhado da história de Marcela Temer, antes desta se tornar primeira-dama. O
fio condutor do texto é a visão patriarcal do pai de Marcela. Com o título “Marcela
Temer é discreta e muito feliz, diz pai da ex-miss Paulínia”2, o texto inicia focado
na beleza da esposa de Michel Temer. No decorrer do artigo, falas de seu pai
apresentam o tipo exemplar de mulher que Marcela é frente aos “bons
costumes”, ao ser uma moça reservada e obediente.
Em suma, a vida de Marcela como vice primeira-dama sempre foi tímida,
longe dos holofotes, buscando não dar muita visibilidade ao seu casamento,
talvez até para evitar polêmicas acerca dos 43 anos de diferença de idade entre
ela e Temer. Mas em 2016, que a figura de Marcela Temer salta na mídia ao ser
apresentada, antes mesmo do início do breve mandato presidencial de Michel
Temer, como um tipo exemplar de postura feminina, ao receber os adjetivos
estereóticos: “bela, recatada e do lar”, em matéria veiculada pela Revista Veja
em abril daquele ano, escrita pela jornalista Juliana Linhares.
Marcela, nos seus então 33 anos de idade, ascende ao status de primeira-
dama impulsionada numa narrativa conservadora, na qual sua beleza é
ovacionada, sua conduta reservada é elogiada e sua dedicação exclusiva ao lar
é aplaudida. “BELA, RECADA E ‘DO LAR’: A quase primeira-dama, 43 anos mais
jovem que o marido, aparece pouco, gosta de vestidos na altura dos joelhos e
sonha em ter mais um filho com o vice”, esta é cabeça do artigo a qual a narrativa
de Marcela começa a ser construída nesse novo ambiente político.

2 Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/brasil/marcela-temer-discreta-muito-feliz-diz-


pai-da-ex-miss-paulinia-825022.html Acessado em: 24/08/2021
Primeira página do artigo da Revista Veja, sobre a futura primeira-dama, no dia 18 de abril
de 2016. Fonte: Portal O Popular

A retirada forçada de Dilma do poder da nação, representou naquele momento


uma virada política que acarretaria em grandes mudanças, na qual a política de
direita ganhou força, e uma onda cada vez maior de discursos conservadores
ganharam palco. E é nesse ponto que os padrões de beleza e de comportamento
de Marcela são invocados.
Realmente ela pode ser considerada uma bela mulher frente aos padrões de
beleza socialmente difundidos. Sua personalidade reservada e sua decisão em
abandonar à carreira de advogada, para se dedicar a criação do filho, não
consistem em um problema, se lermos tais pontos pelo prisma da “liberdade de
escolha”. Mas num debate de gênero, a sua persona representa princípios
conservadores de feminilidade, o tipo de “mulher ideal” que ideologias patriarcais
buscam aprisionar a vivencia feminina. Mas o que queremos criticar não são as
escolhas de Marcela, ou a sua forma de ser, mas o discurso da narrativa político-
midiática feito a partir de sua representação.

(...) a ideia de “mulher ideal” propagada até o começo do século


XX: a mulher que ficava em casa, cuidando dos afazeres
domésticos (e, futuramente, também dos filhos), e não deveria
fazer apenas por obrigação, mas demonstrando prazer em tais
atividades, tendo orgulho de ser uma boa dona de casa.
(BREDER, 2013, pp. 33-34).
Com as referidas características exaltadas pela mídia, é possível colocar
Marcela sob o perfil de “mulher troféu”, que consiste em mulheres
comprometidas, normalmente, com homens mais velhos, de modo que os
atributos de beleza e “bons costumes” fazem dela um “troféu”, um prêmio
conquistado, um exemplo de mulher a se orgulhar e expor. Nas características
desse estereotipo se encontram mulheres jovens, brancas, loiras, magras, ou
seja, inscritas num padrão social de beleza eurocêntrico. Mais uma vez, é
exatamente este imagético que a alguns veículos de mídia, tal como a matéria
da Veja em 2016, invocam para falar de Marcela.
Mas um ponto fundamental a se observar nessa narrativa política, a qual
Marcela serve às ideologias patriarcais e conservadoras, está na aparição do
enunciado “bela, recatada e do lar” irromper justamente após o impeachment de
Dilma, a primeira e única mulher eleita presidente do Brasil.
Durante seu período presidencial, e principalmente nos meses que
antecederam seu impeachment, Dilma foi alvo que intensas manifestações e
discursos sobre sua posição de mulher no poder, um movimento a qual alguns
meios de comunicação de massa ajudaram a fomentar, com capas de revistas,
artigos e reportagens mostrando uma presidente agressiva, feia, burra e mal-
amada, sem falar no ataque digital via redes sociais, na qual imagens
deturpadas, nas mais variadas intensões, foram compartilhadas. Se
generalizarmos, a mídia de forma expressiva sempre buscou desqualificar Dilma
como mulher na gestão do país.

Foi notória, por parte dos referidos meios midiáticos, uma


tentativa de desqualificar a sua imagem pública. O que se leu,
ainda durante a campanha presidencial, e se continuou lendo,
foi uma enxurrada de críticas ao seu governo e uma tentativa de
associar a sua imagem a uma mulher “gerontona”, mal educada,
incompetente, de orientação sexual homoafetiva, favorável ao
aborto e ao chamado “sexo livre”, e a gestora, a escândalos de
corrupção, à ineficiência administrativa, a incompetência para
governar o Brasil. (LIMA, 2020, p. 253)

Em um outro momento, já durante o governo de Temer, o jornal online Hoje


em Dia no ano de 2017, noticia sobre uma Marcela frágil e despreparada para
tomar a frente de diálogos públicos, no artigo: “Primeira-dama Marcela Temer
'tropeça' ao discursar em evento”3. Podemos ler neste enunciado o discurso
conservador acerca da “frágil” capacidade de a mulher lidar com o mundo
político.

Não é novidade a afirmação de que a inserção da mulher nos


espaços de disputa pelo poder político é, ainda hoje, bastante
difícil. Basta ver os números para se observar a sub-
representação do feminino nos espaços executivo e legislativo,
em todas as esferas: municipal, estadual e federal, pois é no
contexto de um sistema patriarcal, sexista e estruturado numa
divisão sexual do trabalho, que as mulheres, mesmo com uma
ínfima presença nesses espaços, ainda tem que enfrentar
diversos obstáculos e estigmas quanto à sua legitimação frente
a um cargo público. (LIMA, 2020, p. 254)

Numa elaborada analise sobre as guerras discursivas ocorridas nos recentes


cenários políticos brasileiros, Luciano Trigo (2018) expõe os emblemáticos
eventos decorrentes durante o governo PT, em destaque a queda do partido com
o impeachment de Dilma Rousseff, e nos mostra como tal evento foi o estopim
para a tomada de força das políticas e discursos de direita, que alguns anos
depois levaria Jair Bolsonaro ao cargo máximo da política brasileira. Longe de
ser uma disputa entre o bem e o mal, a disputa política é partidária, ideologia e
discursiva. “Vence” quem melhor construir uma narrativa, que melhor articular a
construção de ideias que convençam ao menos uma maioria. Contudo os
eventos antes, durante e após o impeachment, levou a uma considerável
polarização social. Se antes era possível conviver na sociedade com pessoas
que votaram em partidos e/ou políticos divergentes, agora se torna uma tarefa
de difícil socialização.
Assim, a narrativa feita a partir dos estereótipos de Marcela Temer na mídia,
tem sim um viés político, de apresentar um tipo ideal de mulher, a postura ideal,
um tipo de postura diferente da de Dilma.
Além da narrativa envolta da representação da recatada Marcela, outro
enunciado sobre primeira-dama é resgatado do passado, estamos falando do
seu envolvimento com causas filantrópicas, uma espécie de tradição a ser
realizada pela esposa de um presidente. Foi junta a ela que Temer lançou o

3Disponível em: https://www.hojeemdia.com.br/primeiro-plano/pol%C3%ADtica/primeira-dama-


marcela-temer-trope%C3%A7a-ao-discursar-em-evento-1.555321 Acessado em: 24/08/2021
projeto Viva Voluntário, para o engajamento social em atividades voluntárias 4.
Além de participar recorrentemente em diversos eventos e projetos sociais, como
a ação “Criança Feliz”, na qual é embaixadora.
A narrativa política envolvendo Marcela já foi bastante debatida em diversos
trabalhos científicos, apesar de sua trajetória como primeira-dama ter sido curta.
Mas a narrativa político-midiática que surgiu com sua figura não termina com as
eleições de 2018, a qual Jair Bolsonaro sai eleito presidente, a narrativa de
“exemplo de postura feminina no mundo pós PT” é continuada via Michele
Bolsonaro.

4. Narrativa midiática 2: Michele Bolsonaro

O ano é 2018, o nome de Jair Bolsonaro já é presente na corrida política à


presidência do Brasil, que ele viria a ganhar numa tempestuosa guerra de
discursos e de ideologias. A postura conservadora, de resgate aos “bons
costumes”, e o anti-PT, adotados na campanha política de Bolsonaro, já vinha
sendo ensaiada com o breve governo Temer, preparando, assim, terreno para a
eleição de Bolsonaro. Damos destaque, nessa pesquisa, à narrativa política
envolta da primeira-dama, que, como visto, é uma narrativa político-midiática que
busca traçar o caráter ideal de postura feminina nos novos horizontes políticos.
Em abril de 2018, o portal Folha pública uma matéria bastante romântica sobre
o relacionamento de Jair Bolsonaro e Michelle5, escrita pela mesma jornalista
que assinou a matéria “Bela, recatada e do lar”, Juliana Linhares6. O artigo traz
um título (imagem abaixo) que faz clara referência a um filme de princesa Disney,
o longa de animação A Bela e a Fera, na qual a jovem Bela vive um
relacionamento com um príncipe enfeitiçado em forma de fera, na qual todos têm
medo, mas que na verdade é romântico e carinhoso. Logo o que Linhares quis
fazer analogia, é o fato de que Bolsonaro é visto por muitos como perigoso,

4 Informações obtidas em artigo publicado portal Exame, em 2017. Disponível em:


https://exame.com/brasil/temer-lanca-programa-para-incentivar-o-voluntariado/ Acessado em:
26/08/2021
5 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/04/a-bela-da-fera-conheca-a-mulher-

de-jair-bolsonaro.shtml Acesso em: 24/08/2021

6 Não foram encontrados materiais que nos fornecessem aporte para traçarmos um perfil da
jornalista. A não ser seu perfil na rede social de currículo Linkedin, onde temos a informação que
a ela atuou na Revista Veja de 2013 à 2017 e na Folha de 2018 à 2019.
agressivo e bruto, mas que ao lado de uma bela mulher, uma mulher evangélica
como a jornalista enfatiza, ele é um homem sentimental.

Captura de tela do artigo de Juliana Linhares no portal de notícias Folha.

Que fique claro que não estamos analisando o conteúdo dos materiais
jornalísticos escolhidos, mas os seus títulos e a narrativa que eles constroem.
De modo que, podemos ver claramente que houve sim uma continuidade
discursiva do enunciado desenvolvido na revista Veja em 2016.
Ao equiparar Marcela e Michelle, de cara podemos destacar a coincidência
das duas personagens se encaixarem nos estereótipos de “mulher troféu”, ou
seja, duas mulheres brancas, cisgênero, loiras, magras, “bem-comportadas”,
dedicadas a família e mais jovens que seus esposos.

A demógrafa Elza Berquó (1998) afirma que o fato de os homens


se casarem com mulheres mais jovens é uma constante
praticamente universal e deve-se à relação de poder entre os
sexos. Embora em alguns contextos as relações de gênero
venham se tornando menos assimétricas, não tiveram ainda
impacto visível na diferença entre as idades de homens e
mulheres ao se casarem. (GOLDENGERG, 2014, p. 501)

Em outubro de 2018, após as eleições presidenciais daquele ano, o portal G1


do grupo Globo publica o perfil da nova primeira-dama. Na cabeça do artigo,
mais precisamente no título auxiliar, presenciamos duas palavras que remetem
ao fatídico artigo publicado pela Veja sobre Marcela Temer, “discreta e caseira”,
havendo aqui uma continuidade discursiva, uma continuidade do discurso
midiático sobre uma primeira-dama “recatada e do lar”, como podemos ver na
captura de tela abaixo:

Captura de tela do portal G1.7

A esposa do então presidente Jair Bolsonaro, inicia sua presença como


primeira-dama sendo uma mulher à frente de causas sociais. Tal postura ficou
demonstrada ao se comprometer em ajudar os deficientes, compromisso feito no
seu discurso, feito em libras, na posse presidencial de seu esposo. Este ato
engajou a mídia a produzir materiais jornalísticos acerca do lado solidário e
filantrópico da evangélica Michelle, um papel historicamente elaborado por
primeiras-damas. Dente os diversos veículos de mídia que noticiaram o feito
inédito de Michelle e o seu comprometimento social, podemos destacar a notícia
do portal Veja, que ao noticiar o discurso de Michelle, mostra na imagem que
ilustra a matéria, a mesma beijando seu marido. Um ato que até poderíamos não
elaborar crítica alguma, afinal é um gesto afetuoso de casal, mas com o contexto
político e a narrativa política, isto é, a postura conservadora de Bolsonaro e pró
um padrão de família cristã na campanha eleitoral, é difícil não entendermos
essa situação como uma demonstração de que: apesar de ter quebrado um
protocolo, ela ainda é uma esposa dedicada ao marido, a família, ao lar, que não
está tão à frente do homem assim, mesmo discursando primeiro que ele (ato que
a mesma fez em silêncio oral).

7 Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/10/28/a-mulher-dos-


bastidores-saiba-quem-e-michelle-bolsonaro-a-nova-primeira-dama.ghtml Acessado em:
27/08/2021
Michelle beijando Jair Bolsonaro, após discursar em libras na posse do seu marido à
presidência. Fonte: Veja.com8

Como filantropa, Michelle, agora primeira-dama, é envolvida com diversas


ações sociais, ONGs e programas assistenciais. Talvez ela seja um pouco mais
ativa que Marcela Temer, em questão de atuação. É por Michelle capitaneado o
Programa Pátria Voluntária. Assim, a primeira-dama dá continuidade a narrativa
do discurso de assistencialismo ao primeiro-damismo, ou melhor, dando
continuidade no resgate do costume da esposa do presidente de se envolver
com causas sociais. Tal postura conversa com os estereótipos conservadores
femininos.

Nos casos da esterotipização da mulher, a imagem feminina é


frequentemente julgada a partir do conjunto de crenças que
cercam o mundo feminino, principalmente por sua função de
mãe e dona-de-casa, a posição de sexo frágil, mostrada como
objeto sexual, submissa ou serviçal. (FREITAS, 2014, p. 08)

Apesar de boas intenções, Michelle e suas ações sociais, sofrem corriqueiras


críticas por parte da mídia, sobre os altos gastos, ou a pouca eficiência, como
mostrado em reportagem do Estadão (imagem abaixo), ao analisar a atuação
dos programas sociais capitaneados por Michelle, tendo em vista os altos gastos
federais destinado às ações dela.

8 Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/maquiavel/discurso-no-parlatorio-e-beijo-no-


marido-primeira-dama-quebra-o-protocolo/ Acessado em: 27/08/2021
Captura de tela da reportagem do Estadão.com analisando a atuação do programa
de Michelle Bolsonaro em 2021.9

Analisar os escândalos envolvendo Michelle Bolsonaro, é um foco que


deixamos para uma outra oportunidade, visto que teríamos uma quantidade
generosa de material sobre polêmicas, denúncias e esquemas de investigação
envolvendo o nome da esposa de Jair Bolsonaro. O nosso foco foi observar a
construção da narrativa político-midiática envolvendo Marcela e Michelle em
períodos anteriores e posteriores a entrada de Temer e Bolsonaro a presidência.

5. Conclusão

Ao nos dedicarmos em observar discursivamente de forma breve, materiais


jornalísticos sobre Marcela Temer e Michelle Bolsonaro, observamos e
comprovamos que houve sim uma narrativa política sendo elaborada via mídias
de massa. Uma narrativa com intensões ideológicas conservadoras, em uma
tentativa de resgatar um “tipo ideal feminino” ligado aos cuidados domésticos e
maternos, ou melhor, resgatar o costume de esposas de presidentes eleitos se
envolverem com programas e ações sociais. A representação desse tipo de
“trabalho feminino” é posta à imagem de belas e comportadas mulheres,
mulheres estas dedicadas à família, um contraponto nítido as duas mulheres de
destaque do governo PT, Marisa e Dilma. E como visto nos materiais jornalísticos
escolhidos, a mídia teve e tem um grande peso na propagação e manutenção
dessa narrativa, ao desenvolverem corriqueiramente conteúdos sobre os

9 Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,programa-de-michelle-bolsonaro-


distribuiu-so-7-de-cestas-basicas-em-comparacao-com-acao-de-ong,70003699299 Acessado
em: 28/08/2021
atributos de beleza e de “bom comportamento” de Marcela e posteriormente de
Michelle.

REFERÊNCIAS:

BREDER, Fernanda Cabanez. Feminismo e príncipes encantados: a


representação feminina nos filmes de princesa da Disney. 2013.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. São Paulo, Contexto, 2006.


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