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A EXCECAO E A REGRA moralidade em 8 quadros de Brrtout BRECHT tradugio de Marro pa Siva PERSONAGENS: MERCADOR Guia Coote HoreLeiRo ‘MULHER Juizes CHEFE DA SEGUNDA CARAVA- NA PROLOGO: 6s vos trazemos a histéria de uma viagem. ‘A expedigio de um mercador © dois empregados. Reparai bem como eles agem: sua conduta vos ha de parecer familiar; observai o que nela existe de ins6lito, Sob 0 quotidiano, desvendai o injustificdvel. Por tras do consagrado, atentai no absurdo. Desconfiai do menor gesto, por simples que parega Néo aceitai como tal a regra estabelecida; procurai nela a necessidade. Rogamo-vos nfo dizer “é na- tural”, diante dos acontecimentos dis- ios. ‘Numa época onde reina a con- fusiio © corre o sangue, conde a ordem & desordem, © atbitrario lei, ea humanidade se desumaniza, do se diga jamais “é natural”, a fim de que nada passe por imutavel. 1. Corrida no Deserto — Duas Pequenas. caravanas, separadas por pequena distincia, disputam uma corrida no deserto. Mercapor (a seus dois compa- nheiros de viagem, 0 guia e um coolie que carrega as bagagens) Vamos! Mais depressa, preguigosos! E preci- so chegar um dia antes dos outros. Tenho que estar depois de amanhi na estago de Han, Sou 0 mercador Karl Langman ¢ vou a Ourga com- prar uma concessio. Meus concorren- tes nos seguem de perto. ©. primeiro a chegar fica com 0 negécio. Até aqui, fiz o trajeto em tempo récorde, as custas de habilidade e energia, ¢ tratando o meu pessoal com a maior dureza. O pior & que meus concor- rentes alcangaram quase 0 mesmo ritmo. (Otha para trés com seu bind- ‘culo) Prontol AV esto eles de novo nos nossos caleanhares! (Ao. guia) Aperta um pouco af o carregador. Foj pra isso que eu te contratei. Os dois nfo esto aqui pra passear as ‘minhas custas. Sabes quanto custa uma viagem como esta? Evidente- mente, ndo é 0 teu dinheiro. Mas, otha bem, se me sabotares eu te de- ‘nuncio @ agéncia de empregos de Ourga. Guta (ao carregador) Veja se anda um pouco mais depressa MeRcAvOR — Tua vor nfo esta boa. Nunca serés um chefe. Eu devia ter contratado um guia mais caro; no fim das _contas, & vantagem pagar mais. Vamos, bate um pouco nesse moleque, Nao & que eu seja, em ge- ral, pela pancada, mas agora & pre- ciso bater. Se no chegar primeiro, estou arruinado. Ah! Confessa! Foi teu irmio que contrataste como car- regador! E teu parente, por isso € que ‘do queres bater.... Eu te conhego. Vais ver. Podes reclamar o teu salé- rio na Justigat Deus do céu! Estio nos aleangando outra ver! Coote (ao Guia) Bate, mas nio com muita forga. Pra chegar até a estagio de Han, € preciso que eu continue podendo andar. Voz (chamando da retaguarda) Ei! E o caminho de Ourga? Ei, ami- 80, paral MERCADOR (sem responder nem thar para trds) © diabo que os car- regue! Pra frente! Ha trés dias que ‘08 apresso, que os empurro. Dois dias com injtitias, 0 tereeiro com promes- sas, Em Ourga, vamos ver se as cum- pro. E os concorrentes. sempre nos ‘meus calcanhares... Mas andarei toda a segunda noite; assim conse- guirei escapar, eles me perderio de vista e chegarei a estagio de Han no terceiro dia, com um dia de vanta- gens sobre 0 primeiro dos meus per- seguidores. (Canta) ‘Andando de dia, andando de noi- {te, aumento a vantagem. As custas de pau, aumento [vantagem. s fracos se atrasam, mas os [fortes avangam. 2. No fim da estrada povoada MeRcapor — Louvado seja Deus! Cheguei & estagio de Han um antes dos outros. Meu pessoal esta esgotado. Bater récordes, lutar, isso no € negécio pra eles... Uma ca- nnalha_miserdvel que rasteja, eis 0 que sio. Tém medo de abrir a boca; a policia ainda esté aqui, gracas a Deus, para manter a ordem. Dots PoLictats (se aproximando) — Tudo em ordem, senhor? Esté s tisfeito com a estrada? Satisfeito com © pessoal? Mercapor — Tudo em ordem. Até aqui, 0 caminho que os outros fazem em quatro dias, eu fiz em trés. As estradas so infames, mas tenho por hébito terminar bem o que co- ‘mego, Que tal é a estrada depois da estagaio de Han? Que vamos ter pela frente? Pouiciais — Agora, cavalheiro, 0 senhor vai entrar no’ deserto Jahi, onde ndo hé viv'alma. Mercapor — E nio se pode levar uma escolta policial? Pouictals (se afastando) — Nao, cavalheiro. N6s somos os iiltimos po- liciais que o senhor encontra. 3. Despedida do Guia na Estagao de Han Guia — Depois do nosso encon- tro com os policiais na estagio de Han, nosso mercador se transfor- mou: fala-nos com uma vor diferen- te, € amavel. Nés 6 que nko estamos fem condigdes de fazer 0 mesmo... Nio foi previsto dia algum de repou- so na estago de Han, a tiltima an- tes do deserto Jahi. Pergunto-me muitas vezes como vou levar 0 car- regador, cansado como esté, até a estagio de Ourga. Pensando bem, itude cordial do Mercador_me deixa bastante preocupado; quem sa- be © que nos espera? Ele nfo para de passear, refletindo. Idéias, novas, novas traigées a temer! De qualquer forma, o carregador e eu precisamos suportar tudo porque, se ndo, ele no Ros paga ou nos expulsa em pleno deserto. MERCADOR (aproximando-se) — Quer um pouco de fumo? E papel pra cigaro, voc8 quer? O que nio fariam vocés pelo prazer de enegre- cer a goela com essa fumaga.... Gr gas a Deus, nds trouxemos bastan rosso fumo da e sobra para a viagem até Ourga. Guta (@ parte) — Nosso fumo. MeRcabor — Sentemo-nos, meu amigo. Porque vocé nio se senta? Numa viagem como essa, todos os hhomens sio irmios, Mas se vocé pre- fere ficar de pé, o problema € seu. Voces tém seus habitos, eu sei. Nor- ‘malmente, eu nao me 'sento ao seu lado, como vocé no se senta a0 lado do carregador. E nessas diferen- {gas que se baseia a ordem do mundo, ‘Mas nada nos impede de fumar jun- tos, no €? (Ri) E isso que me agra- da em voc’... Enfim, cada um com a sua dignidade. Bem, agora vai fazer um embrutho de nossas coisas, ¢ no se esqueca da gua; parece que nio ha muitos pogos no deserto. E, por falar nisso, eu queria prevenir voce de uma coisa, meu amigo: reparou no olhar que’o carregador Ihe deu quando vocé 0 castigou? Um olhar. .. pois é, no me pareceu nada ‘bom, E nos préximos dias, voc? tera de bater-lhe novamente, mais de uma vez © com mais forga: vai ser preciso andar mais depressa. Esse carregador jé esta bem podre. A te ra pra onde n6s vamos & deserta, nfo tem ninguém. Talvez. ele aproveite para tirar a mascara, Vocé é de uma asta superior: ganha melhor ¢ no ‘earrega nada. Basta isso para ele the detestar, Pode crer: € bom ficar afas- tado dele; € mais prudente, ‘A GUIA passa por uma porta aber- 1a para o patio vizinho; 0 MERCADOR permanece sentado, completamente ‘MERCADOR — da... gente engraca- © MeRcADOR continua sentado, em siléncio. O Guta fiscaliza, ao la- do 0 carregador na preparacao das bagagens. Depois se senta e comeca @ fumar. © CooLie, apés terminar seu trabalho, também se senta ¢ 0 Guta the dé um pouco de jumo e pa- pel de cigarro, comecando a conver- sar com ele. Coote — O Mercador diz. sem- pre que se presta um grande s {i humanidade quando se tira petr6leo da terra, Diz que, se tirarmos petr6- Jeo da terra, aqui vai haver estradas de ferro ¢ a gente vai nadar em di nheiro. © Mercador diz. que aqui vai haver estradas de ferro. E eu, entio, como € que vou viver? GuIA — Niio te preocupes. A es- trada de ferro nao é para jé. Ouvi dizer que, quando se descobre petr6- leo, a primeira coisa que se faz é ‘escondé-lo. Por isso & que o Merca~ dor esti tio apressado: no € 0 pe- trdleo, que ele quer, € 0 dinheiro pra se calar. CooLte — Nao estou entendendo. Guia — Ninguém entende. Coote — No deserto, 0 cami seri pior do que antes. Esperemos que os meus pés aguentem até o fim. Guta — Sem davida. CooLie — Hi ladries por aqui? Guia — E preciso desconfiar no primeiro dia, enquanto estivermos perto da estagio; esté assim de ban- didos. Coote — E depois? Guia — Depos de atravessar 0 rio Myr, © importante € seguir sempre 05 pocos. CooLte — Conheces 0 caminho? Gu1a — Conhego. (© MeRcaor ouviu vozes € se aproxima da porta para escutar me- thor.) Coors — £ dificil atravessar 0 rio Myf? Guta — Nesta época do ano, ge- ralmente, nfo. Mas na época das chuvas a correnteza € muito forte; corre-se perigo de morte. Mercapor — Ai esta: de conver- sa com o carregador. Com ele, con- corda em se sentar € fumar. CooLte — Que se deve fazer en- ‘0? GUA — Muitas vezes € preciso esperar oito dias para atravessar 0 rio sem perigo, ‘MeRcapoR — Vejam isso: af esté ‘um que recomenda ao carregador no ter pressa e tomar cuidado com sua preciosa pessoa. E um tipo perigoso. Vai se aliar a0 coolie. Um rapaz que nfo tem a menor autoridade. Nao ser capaz mesmo de coisa pior? En- fim, a partir de hoje, sio dois contra um)... O certo € que éle vai contro- lar 6 coolie, agora que entramos no deserto, Preciso, de qualquer manei- ra, me livrar desse individuo. (Apro- xima-se dos dois empregados ¢ se di- rige ao Guia) Encarreguei-te de fisca- lizar_ 0 bom acondicionamento das bagagens. Veremos agora se execu- taste minhas ordens. .. (Puxa violen- tamente uma correia até que ela se arrebenta). Isso & 16 pacote? Se uma correia dessas arrebenta, perdemos ‘um dia, Mas é exatamente isso que queres: descansar. Guia — No quero descansar; ¢ a correia nfo se partiria se nao fosse puxada. ‘Mercabor — O que? E ainda por cima 6s respondio. A correia se ar- rebentou ou nfo? Diz agora na mi- nha frente que ela no esta rebent da! Nao 6 possivel confiar em ti. ‘Queria te tratar bem, mas com gente da tua espécie isso nfo dé certo. De mais a mais, qual é o servigo que me prestas? Nao tens a menor autorida- de sobre os outros empregados e f rias melhor te empregando como cearregador do que como guia. Além disso, tenho razbes para acreditar que me intrigas com 0 pessoal. Guta — Que razdes? Mercapor — Ah, queres conhe- cé-las... Vai esperando; mas estis despedido. GuIA — O senhor néo pode me mandar embora no meio do caminho. Mercapor — Inda deves te dar por feliz se nio te denuncio na agén- cia de empregos de Ourga. Toma, olha o teu salério pelo que fizeste até equi. (Chama o hoteleiro, que se aproxima) O senhor & testemunha de que lhe estou pagando o que devo. (Ao Guia) Previno-te de que farias ‘bem ndo aparecendo mais em Ourga. (Otha-o de cima abaixo) Jamais che- gards a ser alguma coisa. (Passa pa- 7a outro cémodo com o hoteleiro) Vou partir agora. Se me acontecer qualquer coisa, 0 senhor é testemu- tha de que parti hoje com aquele homem. (Aponta 0 coolie. O hote- leiro demonstra, por gestos, que nio estd entendendo). Nao entende nada! Assim, ndo haverd ninguém para di- zer aonde fui. E 0 pior & que esses canalhas sabem muito bem que nio ha gente de espécie alguma pelo ca- minho. (Senta-se escreve uma car- 1a). Gua — (Ao coolie) — Fiz. mal em me sentar ao teu lado. Toma cuidado que esse homem nfo prest Pergunto-me como faras para encon- ‘rar 0 caminho. (Dé o seu cantil ao coolie) Toma: guarda esse cantil de reserva, escondido. Se os dois se per- derem, ele na certa vai tirar 0 teu, Vou te explicar o caminho. Coos — £ melhor nao explicar. Se ele nos ouvir falando, vai me des- pedir, e ai é que eu estou perdido. Nada poderé obrigi-lo a me pagar 0 salério, porque no sou sindicalizado como tu. £ preciso suportar tudo. Mercavor (ao hoteleiro) — 0 se- hor entregue esta carta as pessoas que passarem por aqui, amanha, com destino a Ourga. Prosseguirei a via gem com o meu carregador, somen- te. HoTELEIRO (inclinando-se e pe- gando a carta) — Mas ele nao é um 18 guia. Mercabor ( parte) — Quer di- zet que ele compreende tudo... Ndo estava era querendo compreender. Conhece 0 seu trabalho. Nao gosta € de ser testemunha em coisas dessa espécie. (Ao hoteleiro, asperamente). Explique ao meu carregador o cami- ho de Ourga. (0 hoteleiro sai e ex- lica ao coolie 0 caminko. Este opi- tna, com atencdo, diversas vezes). Vai hhaver barulho, na certa. (Saca de sew Tevélver ¢ se poe a limpé-lo. Enquan- to isso, canta): © fraco sucumbe; & 0 forte [que combate. Por que a terra me cederia seu [petrsleo? Por que 0 coolie carregaria [minha bagagem? Petréieo, eu te arrancarei, apesar da terrae apesar do Icoolie. E nessa luta a lei serd: © fraco sucumbe; 6 o forte que [combate. © MeRcapor entra no patio per- to da porta de saida MeRcapor — Sabes 0 caminho, agora? Cooute — Sci, sim, senhor. Mexcapor — Entio, avante. Guta — Ser que ele aprenden, de fato? Aprendeu depressa demais. 4. Conversa num lugar perigoso ‘Coot (cantando) Ourga, eu vou pra Id ‘Andando, andando, eu vou pra (Ourga. Pra Ourga ¢ 0 bandido nfo me [pegard. E 0 deserto ndo me deterd. Em Ourga vou comer € [descansar. MeRcabor — Idiota! A regio in festada de bandidos. Toda essa ca- nalha de tocaia nas estagdes aqui Perto. E o imbecil canta! (Ao Co- olie). Aquele guia nunca me agra- dou. As vezes grosseiro, as vezes ser- vil; nao era um homem muito certo. Coote — E, sim, senhor. (Cantando): © camino para Ourga é {muito du A gente sofre muito pra cheg mas em Ourga vou comer ¢ [descansar. ‘Mercabor — Por que cantas? O que € que te alegra? Ah, & que nfo tens nada a perder, se os. bandidos aparecerem. O que eles podem tomar no pertence a ti, porque tudo que evamos pertence @ mim, Coote (cantando) Minha mulher esté em Ourga, meu filho também me espera, Mexcapor — Para de cantar. Nao ha azo alguma para estares|can- tando. Tua voz esté chegando até Ourga; e iss0 56 serve para atrair a canalha atrés de n6s. Amanhi, can- tars quanto quiseres. Coote — Sim, senhor. MeRcabor (caminhando na fren- te) — E se viessem roubar 0 carre- gamento, seré que ele pensaria so- mente em se defender? Nem por um momento consideraria meus bens co- mo seus? E esse é que seria o seu dever. Raga maldita, Néo fala. Esses sio 0s piores... Que se passa em sua cabega? Impossivel saber. Lé esté ele rindo, Nao hé razio alguma para rir. Que o faz rir? E por que ‘me deixar andar na frente? £ ele que sabe 0 caminho, nfo eu. Aonde esta- ra me levando? (Otha para trds e vé ‘© coolie apagando os rastros na areia ‘com um galho). Que estis fazendo? Coote — Estou apagando 0s nos- sos rastros, senhor. ‘Marcapor — Pra que? Coots — Por causa dos bandi- dos. Mercapor — Por causa dos ban- didos... Mas é preciso que possam saber para onde ests me levando. E, por falar nisso, para onde estis me levando? Anda na frente. (Con- tinuam a caminhar em siléncio. A parte). Nessa areia fina, é verdade ‘que os rastros ficam bem visiveis. B, pode ser, de fato, uma idéia excelen- te essa de apagar os rastros.. . 5. Diante do rio caudatoso Coot — Estamos no caminho certo, patric. Fis o rio Myr. Nessa época do ano, em geral, ele nio 6 di- ficil de atravessar, mas no periodo de cheia a correnteza fica muito forte © hi perigo de morte. E 0 tio esté cheio. pMzncavon — 8 preciso atravest- lo. Coot — Muitas vezes, & preciso esperar oito dias pra atravessar sem perigo. Agora, como esté, a gente ‘corre perigo de morte, MeRcapor — £ 0 que veremos. Nio se pode perder um dia inteiro esperando. ‘Coots — Entio, é preciso aran- jar uma passagem ou um barco, ‘MeRcapor — Demora muito. Coons — Mas eu nado muito im MeRcADOR 6 maior do que A profundidade nto (gesto). Core (mergulhando uma vara no rio) — Muito fundo. Mercapor — Quando caires n’égua, nadarés direitinho, vais ver; sera preciso. Olha, eu me coloco num plano mais elevado do que 0 teu. Para que vamos a Ourga? Para pres- tar um servigo & humanidade, tiran- do o petréleo da terra. Percebes isso, imbecil? O petréleo seré tirado da terra, estradas de ferro serio cons- truidas, nadaremos em riqueza; have~ 14 pio, roupas ¢. .. Deus sabe o que mais. E quem fard isso? Quem? Nos. © progresso, a civilizagao, esta 6 a finalidade da nossa viagem. Nao vés que 0 pais inteiro esté com 0s olhos voltados para ti? Para ti, monstro, E tu hesitas em cumprir 0 teu dever Coote (que durante toda a alo- cugiio, assentia, respeitosamente, mo- vendo a cabeca) — Eu nfo sei nadar muito bem. MeRcapor — Também estou ar- riscando a minha pele! (Coolie se inclina, com respeito). Mas para espirito baixo ¢ cpido, a tinica coisa que vale 6 0 dinheiro. Por que te apressarias em chegar a Ourga? Teu interesse 6 prolongar a viagem o mai ppossfvel, porque 5 pago por dia. A Viagem nao te interessa, s6 pensas no dinheiro. Cooxte (hesitante, @ margem do rio) — Que fazer? (Canta) Eis 0 tio, © rio das 4guas perigosas. Dois homens no rio; um se joga na 4gua, 0 outro [hesita tum seré corajoso, 0 outro Tcovarde? Atravessado 0 rio, superado o (ps tum deles vai fazer um neg6cio, atravessa triunfante 0 rio Teonquistado entra em sua propriedade fe come um fruto novo; ‘0 outro, passado 0 perigo, esté cansado ¢ nfo encontra nada: ‘outros perigos ameagam sua [fraqueza, sero ambos corajosos? Serio ambos inteligentes? Viva! Juntos venceram 0 tio, mas sobre o rio conquistado ficou apenas um vencedor, que diz ‘nés”, porém, nio diz Tw" eve Juntos, nds vencemos 0 rio, mas tu é 0 vencedor contra [mim Corie — Por favor, deixe 20 ‘menos que eu descanse algumas ho- ras. Estou cansado de carregar esta bbagagem. Depois do descanso, talvez atravesse melhor. ‘MeRcapor — Conhego um meio ‘muito melhor: you encostar o revél- ‘ver nas tuas costas; aposto que atra- vessarés o rio! (Empurra o coolie sua frente. A parte). Nio vejo mais os perigos da travessia, Trata-se de proteger minha fortuna. (Canta) £ assim que 0 homem [eonquista a vit6ria sobre 0 deserto e sobre 0 rio [caudaloso; que o homem conquista a [vitria sobre si mesmo para obter 0 petréleo necessirio [a humanidade, 6. Acampamento Ao cair da noite, 0 CooLiz, que quebrou o brago atravessando 0 rio, esforca-se para armar a barraca. O ‘mercador esté sentado, préximo). Mercapor — J4 que quebraste 0 bbrago atravessando 0 tio, no preci- sas armar a tenda hoje, como te dis- se. (0 coolie continua seu trabalho). Se eu nio tivesse te ajudado a sair da correnteza, terias mortido afoga- do. (O coolie continua seu traba- ho). B claro que eu mio posso ser responsabilizado pelo teu acidente Além de tudo, 0 tronco bem poderia ter me atingido. Mas, enfim, € preci so reconhecer que essa desgraca aconteceu numa viagem organizada por mim, Nao tenho dinheiro, agora, ‘comigo; mas em Ourga, no meu ban- co, te darei qualquer coisa. Coots — Sim, senhor. Mercapor — E tudo que tem a responder... Mas em cada olhar seu ha uma reprovagdo. Nao existe gente mais dissimulada e rancorosa do que esses coolies. Podes ir dormir. (O co- olie se retira e senta-se afastado). E verdade que sua desgraga toca mais a mim do que a ele. Um membro a mais um membro a menos, que Ihe importa isso? Essa canalha no vé sendo seu prato de sopa. Por que se inquietaria com suas préprias pes- soas? Sio mesquinhos por natureza. © ceramista joga fora seus vasos ra- chados; esses tipos, sentindo-se fra- cassados, se rejeitam. Sé os vitoriosos Jutam (Canta): Para o fraco, a morte, 0 [combate para o forte, a vida é mesmo assim. Dé-se a mio ao forte, dé-se 0 [pé a0 fraco, 1 vida € mesmo assim, Deixar tombar quem tomba ¢ [inda ajudar na queda, porque a vida € assim. © vencedor do combate tem [seu lugar & mesa; ‘a vida é mesmo assim. cozinheiro nao serve aos [mortos ¢ aos derrotados; a vida € mesmo assim. Deus, que féz todas as coisas, [féz 0 patrio ¢ 0 Tempregado; fez exatamente. Tudo vai bem, és louvado; tudo [vai mal, é negado. A vida é mesmo assim. (0 Cooute se aproxima. O MER- cADOR observa-o com medo). Mecaor — Estava me ouvin- do... Alto! Fica onde estés. Que queres? Coote — A barraca esté pronta, patrio. Mencapor — Por que ficas no escuro da noite a me espiar? Nao gosto disso. Gosto de ouvir 0s passos de um homem que se aproxima, E quando falo a alguém, gosto de ver- The os olhos. Vai dormir. Nao te preocupes tanto comigo. (0 Coolie se retira). Alto! Entra na barraca. Fico eu aqui, a0 ar livre, Estou ha- bituado. ( ‘Coolie entra na barra- ca). Que seré que ele ouviu da mi nha cangio? Nao sei... E que seré que esté pensando agora? Ainda nfo deitou... Cooue (preparando cuidadosa- ‘mente sua cama) — Tomara que ele nfo repare no mato que ficou; nao 6 fécil arrancar 0 capim com um brago $6. MeRcapor — £ tolice no pensar fem todas as preocupagdes. A confi- anga uma besteira, Talvez eu te- tha prejudicado este homem por to- daa sua vida; seria justo, de sua parte, que ele’ pretendesse fazer 0 ‘mesmo comigo. O forte, quando dor- ‘me nio é mais forte do que o fraco. E preciso ndo ser escravo do sono. ‘Sem diivida, estariamos melhor den- ‘ro da barraca; ao ar livre, ficamos cexpostos a todas as doengas. Mas a ior doenga ainda € 0 proprio ho- ‘mem. Em troca de uma quantia irri- s6ria, este homem veio comigo, que tenho muito dinheiro. E, no entanto, © caminho € igualmente érduo para 1nés dois. Ao menor sinal de cansago, ele 6 espancado. Se 0 guia se senta a seu lado, despede-se 0 guia. Se quet pagar os rastros na areia, ainda que seja realmente por causa dos bandi- dos, desperta suspeita. E no rio, quando me confessou que estava com ‘medo, teve que enfrentar meu rev6l- ver. Como poderia eu dormir na mes- ‘ma barraca que ele? Jamais me con- vencerei de que ele se conforme com todas essas afrontas, Que golpe nio estard preparando, 1 dentro? Gosta- ria bem de saber. Seria completamen- te maluco se fosse 14 para dentro, 7. No final da estrada Mercabor — Por que ests para- do af? Cotte — Patrio, a estrada ter- mina aqui. Mercapor — E daf? Cooxte — Patrio, nfo sei mais 0 caminho, Pode me bater, mas no ata no brago machucado, MeRcapor — No entanto, 0 ho- teleiro te explicou, na estagio de Han. Coote — Explicou, sim, senhor. MeRcapor — Quando te pergun~ tei se tinhas aprendido, tu me disses- te que sim. Coote — Disse, sim, senhor. ‘Mercapor — E néo tinhas apren- ido? ‘Coote — Nio, senhor. ‘Mercapor — Entio, por que dis- seste que tinhas? Cooute — Tive medo de ser des- pedido. $6 sei que devemos seguir 0s poses. MeRcapor — Entiio, segue 0s po- cos! ‘Coots — Mas no sei onde esto les. Mercapor — Vai em frente € no brinques comigo. Sei muito bem que ji fizeste este caminho. Coote — Seria melhor esperar cos que vem atras de nés. Mecapor — Nio. (Continuam a caminhar). 8. A parttha da équa ‘Mercapor — Ei, onde vais? Vais para o norte? O leste & para Id. (O Coolie continua nessa direcao). Al ‘© que é que est acontecendo? (O coolie para, mas evita 0 olhar do patrio). Nao podes me olhar nos olhos, nao & ‘Coote — Pensei que fosse por Ia. ‘Mercapor — Espera um pouco, seu gaiato... Vou te ensinar a me guiar. (Baie no coolie). Sabes agora ‘onde fica 0 leste? CooLte (gemendo) — No brago no. ‘MeRcAapor — Onde estii o leste? Cooute — L4 em baixo. ‘MeRcapor — E onde estio os po- 03? Coote — L& em baixo. Mercapor (louco de raiva) — L& em baixo... Entdo estavas indo fem outra diregio? (Bate no coolie). ‘Cooute — Estava, sim, senhor. Mercapor — Onde estio 0s po- 03? (O coolie se cala. O mercador permanece aparentemente calmo). Vejamos: hé pouco disseste que s2- bias onde eles estavam. Sabes ou nfo? (O coolie se cala. 0 mercador bate). Sabes ou no? Coot — Sei. ‘Mercapor (batendo) — Sabes? Coots — Nao sei, niio. ‘Mercapor — Me da o teu cant. Eu deveria ficar com toda a dgua, ja que me conduziste por um caminho errado. Seria meu direito, mas nfo 0 farei, Vou repartir esta agua contigo. Bebe um gole ¢ continua a andar. (4 parte). Esqueci que nio devia ter batido nele, na situagio em que estamos. ‘Mercapor — Ja passamos por aqui. Otha 05 rastros. Coote — Quando passamos aqui pela primeira vez, talvez.nio estivés- semos muito afastados do caminho certo. MeRcapor — Arma a barraca. ‘Teu cantil esté vazio. O meu tam- bém. (Senta-se enquanto 0 coolie ‘arma a baraca, Bebe, escondido, a gua do seu cantil, a parte). B pre~ ciso esconder... Se me vir bebendo a gua, ele me trucida, por mais bur- ro que scja. Se ele se aproximar, eu atiro, (Tira 0 revélver e coloca-o so- bre 0 joelho). Se ao menos pudésse- ‘mos voltar ao tiltimo pogo por que passamos. Estou com a garganta se- ‘ca. Por quanto tempo o homem pode suportar a sede? ‘Coot — Preciso entregar 0 can- til que 0 guia me deu na estagio. Se cles nos encontrarem, eu com 0 can- til cheio ¢ ele quase morto de sede, na certa vio me processar. © Cooute pega o seu cantil e se dirige ao MeRCADOR, que o vé, de repente, de pé, a sua frente, e nao sabe se 0 CooLte 0 viu beber ou nao. 0 Coouie ndo viu; estende-the 0 cantil em siléncio. Mas 0 MERCA- or, julgando que é uma grande pe- dra com a qual 0 COOLIE quer esma- sé-lo, grita. Mencapor — Larga esta pedral (0 Cootre nao entende € continua a estender 0 brago com o cantil; entio, ‘0 MERCADOR 0 mata com wm tiro de revélver.) Apesar da adverténcia, ele velo, Toma, animal. Af esté o que mereceste, CANTO DO TRIBUNAL (Os atores cantam, transjormando palco para a cena do tribunal.) ‘Depois dos bandos de vil6es choga a vez dos tribunais. Quando um inocente 6 [assassinado, em tomo de seu corpo os juizes [se reunem € 0 condenam. Sobre 0 timulo do justo que {morreu inda 6 preciso matar o seu [direto. © veredito do tribunal cai semelhante & sombra do [punhal que mata, Ah, nio bastava o punhal? Era preciso mais: 0 golpe de [misericérdia? O [julgament Vejam esses abutres famosos; [aonde irdo? ‘Nada encontraram para devorar [no deserto, ‘mas 0s tribunais os [alimentarao, E nos tribunais que se [rtefugiam os assassinos; 1a, os perseguidores estéo em [seguranca; 1é, 08 adres recebem seu [premio embrulhado num papel que traz. escrito fo texto de uma lei. 9. O Tribunal O Guta ea mulher da vitima jd se ‘encontram sentados na sala do tribu- nal. Gu1a (a mulher do falecido Co6- Liz) — A senhora é a mulher do coolie assassinado, néo é? Eu sou 0 guia que tinha contratado o seu ma- ido. Me disseram que a senhora re- lama, no processo, uma puni¢fo pa- rao mercado ¢ uma indenizagio. Fiz questo de vir logo, porque’ sei que seu marido morreu inocente. A prova disso est no meu bolso, Horeteiro (ao Guia) — Hem? 2 A prova esta contigo? Te dou um conselho; deixa que ela continue no teu bolso. Guia — E a mulher do Coolie? Vai voltar de maos vazias? Horetemo — E tu? Queres que te ponham na lista negra? Guia — Obrigado pelos teus con- sellos. Vou pensar nisso, O Tribunal se instala. O acusado, o cheje da segunda expedigo e 0 ho- teleiro tomam seus lugares. Ju1z — Esto abertos os debates. Com a palavra a mulher da vitima, Muuiter — Meu marido carregou a bagagem desse senhor no deserto de Jahi. Alguns dias antes da viagem terminar, esse senhor 0 matou com tum tiro de revélver. Peco punigio do assassino, embora ela nfo devolva a vida ao meu marido. Juz (@ mulher) — A senhora pe- de também uma indenizagio? Mutner — Peco, Meu filhinho x perdemos aquele que nos alimen- tava. Juiz (a mulher) — Nao a repro- vo} estas consideragdes materiais na- da tém de infamante para a senhora. (Ao chefe da segunda caravana). A pouca distancia da expedigéo Lang- man, vinha uma segunda caravana; nela se encontrava o guia despedido. Foram essas as pessoas que loc: ram a caravana desgarrada, a menos de uma milha do caminho. Que ram os senhores, quando se apro: maram? Cuere da segunda expedigio — © Mercador tinha sé um pouquinho @4gua em seu cantil e 0 carregador estava caido, morto, na area. Juiz (ao Mercador) — O senhor atirou no carregador. Mecapor — Atirei. Ele me ata- cou de surpresa, Juw — De que forma ele atacou? MeRcapox — Tentou me esma- gar com uma pedra, pelas costas. Juz — O senhor pode nos dar uma explicago quanto aos motivos dessa agressfio? MERcAboR — Nao. Juiz — 0 senhor exigia do seu pessoal mais do que o normal? Mexcapor — Nio. Juz — Onde esté o guia despedi do? Ele féz. a primeira parte da via- gem com o senhor. Guta — Sou eu. Jui — Que diz 0 senhor? GuIA — Pelo que sei, 0 Merca- dor queria chegar a Ourga o mais ri pido possivel para comprar uma con- cessio. Juiz (ao chefe da segunda expe dicéo) — A expedigéo que caminha- va a frente da sua ia em marcha mui to acelerada? Chere da segunda expedigao — Nao, ndo muito. Ele tinha sobre nés uum dia de vantagem e o conservava. Juz (ao mercador) — Para isso, © senhor deve ter forgado a marcha? MERcADOR — Nao forcei nada. Isso era fungaio do guia. Jur (ao Guia) — O acusado no ‘ordenou expressamente 20 senhor que Acelerasse a marcha do carregador? Gut — Nio acelerei mais do que 9 normal. Até menos. Jur — Porque 0 senhot foi des- pedido? Guia — O Mercador acho que ‘eu tratava muito bem 0 coolie. Jur — E isso no era permitido? E esse coolie a quem 0 senhor estava proibido de dispensar um tratamento amével, Ihe parecia uma pessoa insu- bordinada por natureza? GuIA — Ele? Ble suportava tudo, ‘Tinha_medo de perder o emprego, segundo me disse, Nem era membro de sindicato algum. Juiz — Entio havia o que supor- tar! Responda logo; & inttil_ pensar muito antes de falar. A verdade apa- receri de qualquer maneira Guta — Eu s6 acompanhei a ex- pedigio até a estagio de Han. Horeteio (para sii mesmo) — Boa resposta. ‘Juz (ao mercador) — E. depois, houve algum acontecimento que pos- sa explicar a agressio do coolie? MeRcapor — Nao. Nao que eu saiba. Juiz — Olhe, nao se faga melhor do que €. Nao é assim que vocé po- de sair dessa, meu filho. Se voce tra- tou realmente 0 coolie com tanta gentileza, como explicar a raiva de- le? & melhor procurar tomar esse explicdvel; assim, parecerd ve- rossimil que vocé tenha agido em legitima defesa, £ necessério pensar sempre naquilo que se diz. Mercapor — Tenho uma confis- so a fazer: uma vez, bati nele. Juz — Ah... E vocé acha que uma surra s6 bastava para despertar tamanho édio na alma do coolie? ‘Mercapor — Nao. Mas quando ele se recusou a atravessar 0 rio, en- costei-Ihe um revélver nas costas. E além disso, durante a travessia, ele quebrou_o' brago. Isso também foi culpa minha. Jur (sorrindo) — No dizer do coolie? MERcapor (sorrindo também) — no dizer do coolie, € claro, Na realidade, até fui eu quem o tirou gua. Juz — Quer dizer, portanto, que, depois de despedir 0 guia, voc® deu a0 coolie todas as razdes para odié- E antes? (Ao Guia, com insis- téncia) Reconheca logo que 0 coolie odiava 0 Mercador. O que aliés, € compreensivel: um homem exposto a toda espécie de perigos, recebendo um salitio ridfculo, um homem feri- do, arriscando sua vida a todo mo- mento... € por quem? Para qué? Por alguém que, a bem dizer, nao Ihe paga. Como nfo 0 odiaria? Gu1a — Ele nao tinha édio. Juw — Escutemos agora 0 depoi- mento do hoteleiro da estagio de Han. Pode ser que ele nos esclarega a respeito das relagies entre © Mer- cador seus empregados. Como é que 0 Mercador tratava os seus su- bordinados? Horetemo — Bem. Ju — Ser que € necessirio mandar afastar essa gente? © senhor tem receio de dizer a verdade? Horetrio — Nao, nio. & di pensével. Juiz — Como o senhor quiser. Horetemo — Ele até dew um pouco de fumo ao guia. E pagou-lhe integralmente o seu salério; o que nao € usual. O coolie também era bem tratado. Jum — Nio é na sua estagio que fica 0 Ultimo posto policial do cami- nho? Horetero — B. Depois, é 0 de- serto de Jahi, onde néo vive nin- guém, Jur — Percebo. A amabilidade do Mercador na estaco de Han era mais uma amabilidade de circunstn- cia, uma amabilidade temporéria, quase que se pode dizer, titica. Em tempo de guerra, por exemplo, quan- to mais perto do front mais os ofi- is se mostram amaveis. Tais ama- bilidades, 6 claro, nao tem absoluta- ‘mente significacdo alguma, Mercapor — Durante todo 0 ca- minho, ele cantou, enquanto andava, Depois que 0 ameacei com o revél- ver, parou de cantar. Jum — Al esté... ficou aborre- cido. O que € compreensivel, sem divida, Na guerra — insisto no meu exemplo — também € perfeitamente ‘compreensivel que a gente humilde diga aos oficiais: “Os senhores fa- zem a guerra em proveito préprio, mas nés, nds fazemos a guerra em proveito dos senhores. So esses, pre- cisamente, os pensamentos que o coolie poderia ter tido em relagio a0 Mercador: “O snhor faz 0 seu neg6- cio para si mesmo, mas eu fago é 0 seu negécio — € para 0 senhot Mercapor — Tenho uma decla- ragio a fazer: quando a nossa expe- digo se perdeu, reparti com ele 0 cantil d’égua, mas queria beber 0 se- ‘gundo cantil sozinho. Jum — E ele o viu bebendo? ‘MERCADOR — Foi o que pensci, quando vi que ele vinha na minha diregio, com uma pedra na mio, Sa- bia que ele me odiava. Desde que entramos no deserto, nao descuidei ‘um momento sequer da minha segu- ranga, Tinha todas as razées para acreditar que ele me atacaria na pri ‘meira oportunidade. Se eu nfo o ‘vesse matado, ele me mataria, MULHER po Coote — Tenho uma coisa a dizer. B impossivel que ‘© meu marido tenha atacado esse se- hor; ele nunca atacou ninguém. Guta — Fique trangiila. Estou com a prova da inocéncia dele no bolso. ‘Ju10 — Encontrou-se a pedra com a qual 0 coolie o a ameagou? Ciere da segunda expedicio (mostrando 0 guia) — Este homem tirou-a da mio do morto. (0 Guia exibe 0 cantit) Jum — E esta a pedra? O senhor a reconhece? ‘MeRcapor — Sim, foi essa pedra mesmo, Puimeino Juiz Apsunto — 6 um ccantil, nfo é uma pedra. Sucunvo Juz AbJuNTo — E evi dente que ele nfo tinha nenbum: tengo de o agredir. © Guta (abracando a muther do coolie) — Ve, Nao disse que podia provar a sua inocéncia? Fui eu que Ihe dei este cantil na estago de Han. © hospedeiro é testemunha, E aqui esté ele, o meu cantil. © Hospepetro — Imbecil! Agora também ele esté perdido, Ju — Isso no pode ser ver- dade. (Ao mercador) Entio ele ofe- receurthe de beber? ‘Mercapor — Devia ser uma pe- dra. Joi — Nio, no era uma pedra, era um cantil. Veja. Mercapor — Como é que podia prever que fosse um cantil? Esse ho- ‘mem nao tinha nenhum motivo para me dar de beber. Eu no era seu amigo. © Guta — Mas quis de fato ofe- recer-the gua. Juz — E por que é que ele havia de Ihe oferecer égua? Porque? Guta — Provavelmente por haver pensado que 0 mercador tinha sede. (Os juizes entreotham-se sorrindo) Sem dévida por bondade. (Novos sorrisos) Talvez por estupidez, por- que de uma coisa estou certo: ele no tinha nada contra 0 Mercador. Mexcavor — Entiio & porque ele era extraordinariamente —estipido. Pois se quebrow um brago por minha causa, s¢ ficou inutilizado para toda a vida... Claro que se ele me fizes- se a mesma coisa seria inteiramente justo. GuIA — Inteiramente justo. Mencapor — Em troca de um sa lério miserdvel, ele marchava a0 ‘meu lado, eu que tenho muito dinhei- 10. E, no entanto, a viagem era igual- ‘mente dura para nés dois. Quando estava cansado, levava pancada. .. Guta — B isso 0 senhor também sabe que € injusto. Mercapor — Admitir que 0 coo- lie no estava & espera da primeira oportunidade para me atacar, 6 0 ‘mesmo que admitir que ele tinha per- dido 0 juizo. Juiz — Portanto, 0 réu reconhe- ce, com razo, que 0 coolie devia Odié-lo. B isso, nfo €? Nao ha dévi- da que, matando-o, 0 senhor matou tum inocente; mas unicamente porque no podia adivinhar que ele era’ ino- fensivo, Sim, sim, € uma coisa que acontece de vez em quando na poli- cia. As vezes, os policiais atiram con= tra uma multidio de manifestantes ‘que so pessoas absolutamente paci- ficas... Por que atiram? Simples- mente porque nio podem compreen- der por que essas pessoas ainda nio os tiraram dos seus cavalos e ainda no os lincharam. Atiram porque tém medo, esta é a verdade. E 0 fato de terem medo € a prova do seu bom senso. O senhor no poderia saber, portanto, que 0 coolie era uma exce~ gio. Mencapor — Exato, isto mesmo. Que motivo poderia ter esse coolie para dar de beber ao seu carrasco? Guta — Nenhum motivo razod- vel. Jur (cantando) — ‘A tegra € olho por olho. Louco é 0 que espera a excegio. ‘Um inimigo te dar de beber?! No entra em cogitacio. Guta (cantando) — No sistema que vés nos destes a bondade & uma excecao. ‘Quem se mostra demasiado Chumano aga caro essa virtude; infeliz de quem tem o rosto [amével! Prendam-no: ele quer auxiliar {o proximo, Se alguém morre de sede a teus és, fecha os olhos; se alguém geme perto de ti, {tapa 05 ouvidos; se alguém te pede socorro, [retém teus passos. Desgragado do que se deixa [arrastar: oferece Agua a um homem € um lobo que bebe. Jo — O Tribunal vai deliberar. (Os Juizes saem). Curre da segunda expedigo (a0 guia) — Vocé no tem medo de niio ‘encontrar mais trabalho? Guia — Era preciso dizer a verda- de. ‘Curre (sorrindo) — B claro que cera preciso... Os Jutzes reaparecem. Juz (ao Mercador) — O Tribu- nal ainda tem uma pergunta a Ihe fazer: 0 senhor teve alguma vant gem com a morte do coolie? Mercapor — Eu? Ao contritio. © coolie me era indispensivel para realizar o negécio em Ourga. Todas as cartas, todos 0s registros de que cn precisava, era ele que carregava. Jamais poderia transportar minha bbagagem sozinho. Jum — Quer dizer que o senhor no concluiu esse negécio em Our- ga? Mercapor — E claro que nio. Cheguei muito tarde. Estow arruina- 60. Juz — 34 que 6 assim, vou ler a sentenga. O Tribunal considera como provado 0 fato de que 0 coolie nfo se aproximou de seu patrio com ‘uma pedra ¢ sim com um cantil. Po- rém, 0 que pretenderia ele fazer com esse cantil? Dar de beber ao Merca- dor? Nao 6 verossimil. Somos leva- dos a acreditar que ele pretendia es- ‘magé-lo com o cantil. O carregador pertencia, com efeito, a uma classe que tem razBes para se sentir rouba- da, Ele nio ignorava que nio teria a sua parte da gua se nfo a tomasse pela forca. Digo mais: gente dessa espécie tem um ponto de vista limita do e universal; muito estupidamente, eles 36 véem 0 que tém diante do nariz... O coolie devia considerar justo se vingar de seu carrasco. Que tinha cle a perder, num acerto de contas? © Mercador nio pertence & classe do coolie. Logicamente, nfo podia esperar um gesto de camara- dagem da parte do coolie, a0 qui econforme confessou — dispensara ‘maus tratos. Seu raciocinio Ihe dizia que estava em grave perigo; a a cia total de seres humanos na regi enchia-o, com razio, de intranquili- dade, No havendo policia, nfio ha- ‘vendo tribunal, seu empregado tinha possibilidade de tomar pela forca a gua a que tinha direito; as circuns- incias até 0 encorajavam, O acusa- do agiu, pois, em estado de legitima defesa; pouco importa que ele tenha sido realmente ameagado ou que te- ha pensado que o ameacavam. Destarte, declaro livre 0 acusado rejeito a queixa apresentada pela mu- Iher da vitima, Os Arores (cantando) — Assim termina ‘a historia de uma viagem, ‘Vés a haveis presenciado. Vistes um acontecimento [eomum tum acontecimento como os de [todos os dias. Entretanto, nbs vos rogamo: sob o familiar, desvendai [insdlito, sob 0 quotidiano, atentai no [injustificave, Possam todas as coisas ditas [habituais vos inquietat ‘Na regra, localizai 0 erro; fe onde quer que esse erro se [mostre, encontrai o remédio.

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