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Itinerario para uma Pastoral Urbana « Alline Leal Ruas * Anténio de Lisboa Lustosa Lopes Blanches de Paula e Douglas Nassif Cardoso » Ed René Kivitz * Geoval Jacinto da Silva - Org. « Inez Augusto Borges * Jonas Rodrigo Becker « Jorge Schutz Dias ¢ Josué Barbosa Cordeiro * Oswaldo de Oliveira Santos Junior ¢ Vanderlei Gianastacio iene Metodista Cees ENTRE A CIDADE E AS COMUNIDADES: UMA LEITURA SOCIO-PASTORAL Antonio de Lisboa Lustosa Lopes* que se poderia dizer sobre questao j4 tao abordada no 4mbito da teoria e da pratica, mesmo que ainda nao tenha sido suficiente- mente considerada num efetivo inter-relacionamento dessas duas realidades (cidade-comunidade) mutuamente implicadas? Quando se pensa ou se fala sobre 0 urbano, parece haver uma ligagao direta e restritiva & cidade e uma comparago nostdlgica com relagdo ao rural. De onde partir € uma questdo que se impGe. O que considerar com maior relevancia entre estes elementos € um dilema dificil de ser resolvido. Ou seja, j4 se leu e ou- viu muito sobre 0 urbano e 0 desafio de escrever sobre este tema emerge, a primeira vista, com dimensdes que parecem ser intransponiveis. Nao obstante, o cardter de desafio da temdtica desperta o interesse no sentido de tentar descobrir formas diferenciadas de abordagem, como pos- siveis elementos subsidiarios para a vida cotidiana dos individuos habitantes das cidades, que sio marcados pela urbanidade, além de constituirem um sem-nimero de agregagdes comunitérias eminentemente religiosas. Tematizar a cidade implica adentrar uma realidade assinalada por muitas configuragées, devido ao dinamismo interno de auto-organizagao, bastante comum aos sistemas amplos e complexos. Olhando para este universo complexo, emergem dividas e impasses sobre 0 tipo de ago que o mundo urbano reclama para as comunidades eclesiais. Para onde caminham as agdes de grupos, movimentos e comuni- dades religiosas do momento atual no campo urbano onde se entrecruzam vidas desperdigadas e vidas ainda por viver, porque so vitimas da expro- priagéo da prépria existéncia? Nao dé para conceber a cidade sem a diver- sidade, assim como nio € possfvel considerar a comunidade sem a unidade. Neste sentido, é possfvel compatibilizar cidade e comunidade? * Mestre em Teologia Pratica pela Pontificia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assungo (Sao Paulo) e doutorando em Ciéncias da Religiéo na Universidade Metodista de Sao Paulo. E-mail: pe.lisboalustosa@yahoo.com.br. 24 TINERARIO PARA UMA PASTORAL URBANA: ACAO DO POVO DE DEUS NA CIDADE Talvez nfo seja a compatibilidade destas duas instancias o real problema da pastoral urbana, mas a apreensio das contradig6es que se mosttam hoje bastante comuns ao mundo urbano e aos movimentos ¢ 4s comunidades eclesiais. Neste breve ensaio, se tentaré problematizar o tema do urbano e da comunidade eclesial, com uma aproximagéo do pensamento de um dos nossos pensadores epocais. Ele é de origem polonesa, mas adotou a Inglaterra como morada, desde quando foi acolhido em exflio, depois que teve sua cétedra cassada e foi banido de sua terra. Estamos falando de Zygmunt Bauman, um te6rico cujo pensamento e cuja palavra passeiam com desenvoltura pela universo das relagdes humanas, as quais ele considera por demais frégeis, devido ao contexto atual de liquidez de nossos tempos (Bauman, 2004). Sua abordagem tematiza o que, primeira vista, parece ndo ser impor- tante de se levar em conta; por isso, faz emergit com relevancia substancial questOes que estéio presentes no dia-a-dia da vida dos seres humanos dos tempos hodiernos. Ele recorre aos cléssicos do pensamento filoséfico, socio- légico e literario, a0 mesmo tempo em que publica pensamentos de autores contemporaneos nao tao sentidos como relevantes no interior das abordagens te6ricas do humano e do mundo. Sua forma de discurso € transversal, apon- tando para um estilo onde nenhuma fronteira cientifica parece constituir obstaculo intranspontvel para o espirito de inquirigAo cirtirgica e abertura ecuménica no que tangencia os seres humanos, o tempo e 0 espago nos quais se encontram. Nao obstante, argumenta com uma maturidade tipica de quem desenvolveu uma aguda consciéncia dialética da atividade intelectual. Daf, a sua afirmacao de “que os pensamentos, embora possam parecer grandiosos, jamais serio grandes o suficiente para abarcar a generosa prodigalidade da experiéncia humana, muito menos para explicé-la” (Bauman, 2004, p. 16). O DESAFIO DA IDENTIDADE Nos tempos atuais existe uma forte tendéncia & privatizagao da esfera piiblica, o que torna o pertencimento ¢ a identidade negociaveis e revo- gaveis. Devido aos deslocamentos freqtientes dos individuos, as identidades tornaram-se flutuantes. “A imagem da ‘fraternidade’ é 0 simbolo de se tentar alcangar 0 impos- sfvel” (Bauman, 2005, p. 16). Transgredir fronteiras pode permitir apreender a inventividade e a engenhosidade humanas ocultas. Identidade é algo a ser inventado, portanto, alvo de esforga. O pertencimento em crise demanda esforgo para forjar a identidade. Segundo Bauman (2005, p. 30), quando a identidade perde as ancoras sociais que a faziam parecer natural, predeterminada e inegociSvel, a ‘identificacdo’ se torna cada vez mais impor- tante para os individuos que buscam desesperadamente um ‘nds’ a que pos- sam pedir acesso. ENTRE A CIDADE E AS COMUNIDADES: UMA LEITURA SOCIO-PASTORAL 25 Hoje existem grupos mediados pela tecnologia, 0 que caracteriza uma perspectiva virtual de totalidade onde se pode aderir e abandonar facilmen- te, por isso o aspecto de fragilidade, com um significativo recuo na capaci- dade de interagir com pessoas reais. A sociedade dos cartées de créditos elimina as disténcias e atenua os empecilhos entre 0 que se espera ou deseja (Bauman, 2005, p. 54). Existe uma liquefagao veloz das instituigées sociais e isso afeta a questo da identidade. O termo cidadania est4 imerso em uma confusio de sentido, sendo num vazio do mesmo, devido ao desmantelo das instituigdes sociais e, sobretudo, do Estado que hoje, mais do que antes, nio esta de confianga. “O Estado-nagao nao € mais o depositério natural da confianga ptiblica” (Bauman, 2005, p. 51), a qual se encontra exilada do universo comum das relagdes humanas, como que A deriva. Constata-se, atualmente, uma énfase sobre a “vitalidade do viver espon- tineo” (Bauman, 2005, p. 59). Por sua propria natureza, as emog6es e sen- sages sao “tao frageis e efémeras, tao volateis quanto as situagdes que as desencadearam”. Na era liquido-moderna, “uma identidade coesa, firmemente fixada e solidamente construfda seria um fardo, uma repressio uma limitagéo da liberdade de escolha”. O que se verifica € um “encolhimento do tempo disponfvel para prever e planejar”. “Substitu(mos os poucos relacionamentos profundos por uma profusio de contatos pouco consistentes e superficiais”. A extrema relevancia do “ja” suplanta a tematizagao do eterno. Ocorre uma verdadeira “erosao da esséncia”. E isto afeta visceralmente a questao da identidade, sobretudo no que concerne ao situar-se neste mundo de relagées rarefeitas. A flutuacao dos relacionamentos humanos gera uma inquietude, ao mesmo tempo em que reclama a necessidade de responsabi- lidade com elementos que possam ser considerados identitérios. Neste sentido, considerando a possibilidade da religiao pés-moderna, Bauman (1998, p. 205) diz que”... 0 inefavel é uma parte to integral da maneira humana de estar no mundo quanto a rede lingiifstica com que rentamos (...) capté-lo”. Para ele, a moderna férmula da vida humana na terra foi articulada em fungao de uma estratégia agudamente alternativa: intencionalmente ou por omissio, os seres humanos est4o sozinhos para tratar as coisas humanas e, por isso, as tnicas coisas que importam aos seres humanos so as coisas de que os seres humanos podem tratar. Tal premissa pode ser considerada triste, e uma razio de deses- pero, ou, a0 contrario, uma causa de animacao otimismo: os dois pontos de vista, porém, so decisivos apenas para as vidas devotadas & reflexio filosé- fica, ao mesmo tempo em que sé aparecem em raros ‘momentos filoséficos’ das vidas comuns (Bauman, 1998, p. 212). 26 ITINERARIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AGAO DO POVO DE DEUS NA CIDADE Hé quem esteja fora do alcance do reparo, da possivel “reconstrugao cultural”. Diante disso, qual é a atitude plausivel? A “destruigao criativa”? O que fazer com os desordeiros neste “tempo em que vivemos agora, na nossa parte do mundo”? A modernidade desenhou um quadro de identidade a ser criada, a ser realizada, uma vez que a destituiu do caréter de atribui- go. Identidade 6, portanto, projeto, responsabilidade individual. Projeto que atinja a ordem social e a vida individual (Bauman, 1998, p. 30/1). Nos nossos tempos 0 que se encontra é um tipo de eu flutuante, de- vido a tempos de incertezas ¢ insegurangas. O terceiro mundo parece nio compor mais 0 espago polftico mundial. A dependéncia da grande maioria dos pafses frente a um pequeno grupo de duas dezenas de paises ricos cresce de modo assustador. O mundo est4 compondo um processo ingente de desordem com 0 movimento universal de desregulamentacao. O mercado possui, enfaticamente, uma barbarizante “cegueira moral”. A efemeridade dos lacos humanos e sociais esté num estado generalizado e degradante no nivel da sociedade e também em ambito de redes menores de vizinhangas. O DESAFIO DA COMUNIDADE E muito importante ter em vista que as palavras carregam consigo sig- nificados e sensagdes (Bauman, 2003, p. 7). Por isso, o que se sente frente ao termo comunidade € a evocagao de um reduto célido, cémodo e acon- chegante. Ele traz 4 mente um emaranhado de significados e sensagées dos quais se sente falta ¢ dos quais se depende para uma vida segura e confian- te. A liberdade e a seguranga sao necessarias para que se viva, mas nao podemos vivé-las de modo concomitante na mesma medida de nossa von- tade. Apesar disso, “sendo humanos, nao podemos realizar a esperanga, nem deixar de té-la” (Bauman, 2003, p. 11). E isto nao invalida a necessidade de se ter em mente que nao vale a pena crer que existem solugdes que dispensem ponderagées e corregées. Comunidade € um espago de entendimento, que se sustenta em um sentimento recfproco que cria vinculos. No interior da roda do aconchego que € a comunidade, as pessoas ndo sao obrigadas a provar nada e, por isso, nao obstante o que fagam ou nao fagam, podem esperar simpatia ¢ ajuda. Para Bauman, hé um qué de mesmidade nisso. Ele aduz que, frente aos demais agrupamentos humanos, a comunidade é “distinta” (tem visibilidade ‘© seu comego e’o seu fim), “pequena” (quem a integra pode vé-la) e “auto- suficiente” (€ um arranjo integral). A partir do momento em que a informagio passa a viajar independente de seus portadores, e numa velocidade muito além da capacidade dos meios ENTRE A CIDADE E AS COMUNIDADES: UMA LEITURA SOCIO-PASTORAL 27 avangados de transporte (como no tipo de sociedade que todos habitamos nos dias de hoje), a fronteira entre o ‘dentro’ e o ‘fora’ nao pode mais ser estabelecida e muito menos mantida (Bauman, 2003, p. 18). Os nossos tempos apontam para a constatagao de que parece nfo haver uma convergéncia duradoura entre a légica e os sonhos humanos. “A perda da inocéncia é um ponto sem volta. Sé se pode ser verdadeiramente feliz enquanto nao se sabe quao feliz se €” (Bauman, 2003, p. 15). O colap- so da comunidade suscita a invengdo da identidade. Com uma dura afirma- go, o autor adverte acerca da relagao forte entre a situagdo critica da comunidade e o problema da identidade. Esta, segundo ele, “brota entre os ttimulos das comunidades, mas floresce gracas & promessa da ressurreigio dos mortos” (Bauman, 2003, p. 20). A modernidade cria seres desenraizados, com a idéia de uma liberdade reduzida & “capacidade de fazer com que as coisas sejam realizadas do modo como queremos, sem que ninguém seja capaz de resistir ao resultado, e muito menos desfazé-lo” (Bauman, 2003, p. 27). Esta perspectiva denota que, medida que a emancipagao de uma parte vai se tornando realidade, a supres- sao de outra parte torna-se também real. £ criada uma reconfiguragéo do “sentido de comunidade”, coadunado com uma “nova estrutura de poder” (Bauman, 2003, p. 36), com “uma rotina artificial e construfda”. A categoria de desenraizamento Bauman acrescenta a do “desenga- jamento”, uma forte caracteristica que os tempos atuais carregam, ligada ao “principio estratégico louvado e praticamente exibido pelos detentores do poder” (Bauman, 2003, p. 42). Os poderosos nao esto mais interessados em. regular os outros e, principalmente, nao esto mais a fim de seem regula- dos. Ninguém est4 mais disposto a supervisionar a ordem. Recorrendo a Pierre Bourdieu, Bauman diz que se chegou a um estado de precariedade permanente, “inseguranga quanto & posigéio social, incerteza sobre 0 futuro da sobrevivéncia e a opressiva sensagio de ‘nfo segurar 0 pre- sente’, o que produz uma inaptidao para elaborar projetos e procurar realiz4- los. Existe uma tendéncia generalizada ao desaparecimento, sobretudo no que diz respeito aos relacionamentos humanos. No campo do trabalho, empregos tidos como permanentes ¢ indispensaveis, do tipo “imposstvel passar sem eles”, se evaporam antes que 0 trabalho esteja terminado, habilidades outrora febrilmente procuradas, sob forte demanda, envelhecem e deixam de ser vendaveis muito antes da data prevista de expiragio; e rotinas de trabalho sao viradas de cabeca para baixo antes de serem aprendidas. A “porcao de comida” no suposto fim do caminho se desloca ou apodrece mais rapido e antes que mesmo 0 mais inteligente dos ratos tenha aprendido como chegar até ela (Bauman, 2003, p. 46). 28 ITINERARIO PARA UMA PASTORAL URBANA: ACAO DO POVO DE DEUS NA CIDADE Com a liquefagao dos lagos humanos experimenta-se hoje uma confi- guragao eclipsada de comunidade. A sina de individuos que lutam em solidio pode ser dolorosa e pouco atra- ente, mas firmes compromissos a atuar em conjunto parecem prometer mais perdas do que ganhos. Pode-se descobrir que as jangadas sio feitas de mata- borrao s6 depois que a chance de salvacao ja tiver sido perdida (Bauman, 2003, p. 59). Seguindo a leitura baumaniana, nota-se que, além de tudo o que é verificado nos tempos modernos, se assiste a uma progressiva separacio daqueles que cresceram em termos econémicos e sociais, que dispensam as iniciativas das agregagdes comunitarias, pois véem que o que ganham em grupo € perfeitamente possivel ganhar individualmente, com o esforgo pes- soal e isolado, sem contar que energia e recursos seriam demandados num engajamento comunitério (Bauman, 2003, p. 50). Isto € o que Bauman chama de “secessio dos bem-sucedidos”, E uma nova elite que se configura, principalmente, com uma extraterritorialidade, que dispensa vinculos (Bauman, 2003, p. 53) e se impée pela densidade das escolhas, que sio comprometimentos perfeitamente revogaveis. Neste caso, “o vinculo cons- titufdo pelas escolhas jamais deve prejudicar, e muito menos impedir, esco- Ihas adicionais e diferentes. O vinculo procurado nao deve ser vinculante para seus fundadores”. A vida pode ser agradavel e sensfvel mesmo que sobre instabilidades. Na verdade, conforme a linha de reflexdio conduzida por Bauman (2003, p. 54-55), 0 que est sendo desenhado é um modelo de comunidade marcado muito mais pela estética do que pela ética. Comunidades extratertoriais sao instanténeas, imediatamente experimentiveis e descartéveis. A localizagao torna-se relativa, porque o relevante no é mais o lugar, mas o estar. Nao obstante todo este movimento de liquefagao, grasa nos tempos atuais a forca de quem detém o saber e de quem compée um niimero sig- nificativo que compartilha os mesmos principios e agdes. Dé certa seguranca ter nogdo de que as aspiragdes que se tém sfo as mesmas de outrem, o que constitui a forga impositiva da massa. Na politica-vida que envolve a uta pela identidade, a autocriacao ¢ a auto- afirmago sio os cacifes, ¢ liberdade de escolha € ao mesmo tempo a prin- cipal arma e 0 prémio mais desejado. A vit6ria final de uma sé tacada te- moveria os cacifes, inutilizaria a arma e cancelaria a recompensa (Bauman, 2003, p. 61). ENTRE A CIDADE £ AS COMUNIDADES: UMA LEITURA SOCIO-PASTORAL 29 Trata-se da flexibilizacio da identidade. Aqui se vé emergir 0 papel dos idolos que, ao mesmo tempo em que causam impacto, s4o formados de uma “obsolescéncia instantanea”. Eles “invocam a ‘experiéncia da comunidade’ sem comunidade real, a alegria de fazer parte sem o desconforto do compro- misso”. A vida torna-se eventual. Eo que pode ser chamado, no dizer de Bauman (2003, p. 67), de “vinculos sem conseqiiéncias”, ou seja, de curta durag&o e completamente sem perspectiva. “A proximidade j& nao garante a intensidade da interagao” Nossa época é caracterizada por um avancado movimento de migragao globalizada, uma verdadeira “proliferago de didsporas étnicas”. O local, clnico ou tribal sio expressées visiveis de atraso ¢ retrocesso dentro da perspectiva globalizante. Isto aponta para uma falsa consciéncia reco- nhecedora do valor da tolerancia multicultural. Bauman (2003, p. 102) aduz a percepgao do fato de que a seguranga também é um dado relativo 4 livre-iniciativa individual e a esfera do priva- do, o que indica a relevancia da comunidade quando se constata 0 fracasso do Estado. A comunidade é 0 espago da seguranga, onde é vetada a presen- ¢a de intrusos, significa o mesmo que “isolamento, separagdo, muros prote- tores € portdes vigiados”. Esta € uma nogao de comunidade que € sinénimo de mesmice, que assegura a auséncia daquele outro, que insiste em ser di- ferente,-o que pode “causar surpresas desagradaveis e prejufzos”. Com esta forma, a comunidade é um “gueto”, devido & solidez, dura- bilidade e confiabilidade que assegura aos seus integrantes. Ajudar os outros a suportarem as dificuldades de uma vida precéria ¢ a tiltima func que os exclufdos de outra forma intiteis, hoje encarcerados em suas moradias no gueto ou nas celas das prises, sfio chamados a desempenhar pela préspera sociedade consumidora da “modernidade lfquida” (Bauman, 2003, p. 110) Para Bauman (2003, p. 128), a seguranca é uma condicio necesséria do didlogo entre culturas. Sem ela, hé pouca chance de que as comunidades venham a se abrir umas as outras ¢ a manter uma conversa que venha a enriquecé-las ¢ a estimular a humanidade de sua uniéo. Com ela, as perspectivas da humanidade parecem brilhar. A interdependéncia caracterfstica dos seres humanos deste mundo globalizado aduz um modelo de ser humano incapaz de cuidar de seu des- tino sozinho. 30 ITINERARIO PARA UMA PASTORAL URBANA: ACAO DO POVO DE DEUS NA CIDADE Se vier a existir uma comunidade no mundo dos individuos, s6 poder ser (e precisa sé-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir do comparti- Thamento e do cuidado miituo; uma comunidade de interesse € responsabilida- de em relagao aos direitos iguais de sermos humanos e igual capacidade de agirmos em defesa desses direitos (Bauman, 2003, p. 134). Nesta sociedade atomizada, os individuos tendem a ser entre si “super- ficies”, pois esta a realidade palpdvel no contexto urbano. A visibilidade da superficie se constitui, portanto, na medida possivel para “avaliar um estranho” (Bauman, 2003, p. 132). O INCOMODO DOS ESTRANHOS, Vivemos um momento préprio de “desregulamentago”. A realidade é um tribunal de justiga que tem na presidéncia o “principio de prazer”. A liberdade tem se constituido com muita forga naquele “valor pelo qual todos os outros valores vieram a ser avaliados e a referéncia pela qual a sabedoria acerca de todas as normas e resolugdes supra-individuais deve ser medida” (Bauman, 1998, p. 09). E neste contexto que emerge a questao da pureza, tema recorrente na histéria universal do ser humano. O esforgo de fazer da idéia uma re- alidade pode, em certo sentido, ser marcado por um desfolhamento de certas formas de violéncia. A pureza € uma visio das coisas colocadas em lugares diferentes dos que elas ocupariam, se no fossem levadas a se mudar para outro, impulsionadas, arras- tadas ou incitadas; e € uma visio da ordem — isto é, de uma situagio em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro (Bauman, 1998, p. 14). A percepgo da impureza parece estar ligada mais a localizagdo num con- junto idealmente organizado do que propriamente as qualidades intrfnsecas de uma coisa. Nem sempre um éleo derramado é indicador de sujeira. Numa obra de arte a percepcdo pode ser bem diferente. Mas, sera que existem coisas que go se coadunam com nenhum tipo de ordem? Pelo visto, o interesse pela pureza radica-se na emergéncia da questio da “fragilidade da ordem”. “Ordem” significa um meio regular e estavel para os nossos atos; um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos nao estejam distribufdas 20 acaso, mas arrumadas numa hierarquia estrita ~ de modo que certos aconte- cimentos sejam altamente provveis, outros menos provdveis, alguns virtual- mente impossfveis. ENTRE A CIDADE E AS COMUNIDADES: UMA LEITURA SOCIO-PASTORAL 31 A memiGria e a capacidade de compreender permitem aos seres hu- manos uma inclinagdo para a organizago. A corporificagao da sujeira atinge um grau méximo na determinagao de seres humanos que sao vistos como impedimentos para uma boa organizagao ambiental. Neste caso, alguns certos tipos de seres humanos estariam vinculados a este modelo de enquadramento, de certo modo “pré-selecionado e pré-interpretado”. O senso comum forma um “fundo de conhecimento 4 m&o”, que faz parte da intersubjetividade cultural, com énfase ao suposto de “pers- pectivas recfprocas”. Cremos sem refletir que nossas experiéncias sio tipificadas de modo a permitir uma “permutabilidade de pontos de vista”. Este € um postulado que acede a visao de “semelhanga essencial dos seres humanos”. A compreensao das situagdes vividas por outrem decorre da suposigao de minha insergao da mesma modalidade de situages. A aceitagao da semelhanga € um pressuposto. A partir deste rumo de reflexdo, que impactos decorrem do apareci- mento do estranho num contexto de ordem? Cada ordem tem suas préprias desordens; cada modelo de pureza tem sua propria sujeira que precisa ser varrida. Mas, numa ordem duravel ¢ resistente, que se reserve o futuro e envolva ainda, entre outros pré-requisitos, a proi- bicdo da mudanga, até a ocupacio de limpeza e varredura s4o partes da or- dem (Bauman, 1998, p. 20). A reconfiguragao da ordem pode produzir novos estranhos, até mes- mo tornando estranho © que até entdo no era. A cotidianidade humana hoje € muito marcada pelo temor dos estranhos. A idéia de um “mundo perfeito” € um grande risco, porque afirma que é possivel a persisténcia de uma identidade pura através dos tempos. No plano neoliberal, as iniciativas de preservagio da pureza so assumidas como “estratégias de desregu- lamentagao e privatizagio”. Serd, entio, necessério sacrificar o estranho para garantir a preservagéo da ordem pura? No processo de enquadramento atual, para se conservar puro é necessério mostrar-se capaz de ser seduzido pela infinita possibilidade e constante renovagio promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caca intermindvel de cada vez mais inten- sas sensacdes e cada vez mais inebriante experiéncia (Bauman, 198, p. 23). Portanto, quem sao os estranhos? Neste modo em que est4 se configuran- do o mundo, sao todos aqueles que nao séo adequados aos pardmetros 32 ITINERARIO PARA UMA PASTORAL URBANA: ACAO DO POVO DE DEUS NA CIDADE cognitivos, morais e estéticas de um tipo de sociedade. Eles passam por cima de limites tacitamente considerados fundamentais. E por isso que se torna urgente perguntar: quem pode agiientar bem por longo tempo um estado de reclusao? Quem desborda os limites converte-se, por conseguinte, num estranho. A ordem jé traz na sua definigao a teal possibilidade de estranhos serem formados, ao mesmo tempo em que se potencializam os que sao “cogni- tivamente ambivalentes”. Os estranhos nao sé afetam, como impregnam os demais (sao viscosos), atingem a liberdade do individuo. No entanto, esta aderéncia € um elemen- to das habilidades e recursos, dos quais o ser humano dispée. Por isso a estreita relagao entre liberdade ¢ poder. Para o impotente, o mundo € cheio de “armadilhas”. ‘A viscosidade dos estranhos, € 0 reflexo de sua propria falta de poder. f essa sua caréncia de poder que se cristaliza nos seus olhos como a terrivel forga dos estranhos. Cada um é viscoso para o outro; mas cada um combate a vis- cosidade do outro em nome da sua propria pureza (Bauman, 1998, p. 42). Os tempos atuais marcam uma era “heterofilica”. A procura de afirma- cdo da identidade contrasta com um mundo plural e diferengado. Como relacionar com 0 diferente todos os dias e sempre! A relagao frente aos estranhos esté se reconfigurando, embora também venha se desenhando uma “inddstria suburbana de horrores” (Bauman, 1998, p. 48). Bauman tipifica as estratégias que so engendradas nesta dcida “rela- ¢80” com os estranhos. A primeira é a antropoffigica, que implica destrut- los, devoré-los, ou anular as diferengas, tornando-as semelhangas (isto é por assimilagdo); enquanto que a segunda é a antropoémica, que implica a expurgagio, o banimento (vomité-los). Estas estratégias tornam evidente 0 fato de que a excluséo impede os pobres de viverem questdes existenciais candentes como a comensalidade, o contbio, o comércio (relacionamento e intercambio de emogoes). Tudo isso desperta um sentimento de que a casa torna-se a origem da moralidade, ao mesmo tempo em que € 0 penoso caminho da justica. A inter-humanidade implica, hoje, principalmente, a nao-indiferenga. A tolerancia da diferenca bem pode ser aliada & categ6rica recusa da solida- riedade; 0 discurso monoldgico, em vez de dar lugar a um discurso dialégico, cindit-se- em uma série de soliléquios, com os falantes nfo mais insistindo em ser ouvidos, mas se recusando também a escutar (Bauman, 1998, p. 103) ENTRE A CIDADE £ AS COMUNIDADES: UMA LEITURA SOCIO-PASTORAL 33 A REALIDADE DOS TURISTAS E DOS VAGABUNDOS Vivemos atualmente “a destemporalizacao do espago social” (Bauman, 1998, p. 110). © universo dos objetos disponibilizados jé na pro- jegdo imediata da descartabilidade suplanta o mundo da durabilidade. Este contexto permite identificar duas categorias de viventes: os turistas e os vagabundos. Turista € a “epitome” da evitabilidade identitéria; mis- tura os s6lidos e desprega o fixo; vive uma mobilidade gerida por neces- sidades e sonhos, em nome de “liberdade, autonomia e independéncia”. Cada presente experienciado deve ter a sua propria “chave de sentido”. As relagées epidérmicas nfo criam compromisso com 0 futuro. E uma vida episédica, e “o episédio é um evento fechado em torno de si mesmo”. Vagabundos so os que moram fixos enquanto postos aos dedicados servigos dos turistas, so os restos; movem-se, a0 contrério dos turistas, porque sentem 0 mundo como indspito. “Turista e vagabundo sfo as metéforas da vida contempordnea”. © primeiro é marcado pela mobilidade ¢ pela faganha da nao-pertenga ao lugar onde est, coloca-se dentro e fora a0 mesmo tempo, evitando a proximidade, tem a peculiaridade de nao chegar; ao passo que segundo € 0 alterego do turista, serve como depésito de entulhos. INDIV{DUO E COMUNIDADE Percebe-se, finalmente, que Bauman navega bem nas questdes humanas, sociais e polfticas. E, como a ago pastoral se encontra bem situada dentro do eixo igreja-mundo, é imprescindfvel destacar que os temas que cle traz para o campo de discussio teérica sii substanciais no que concerne A prdxis religiosa. Ele manifesta uma grande sensibilidade para com temas relatives ao proceso de humanizagfo, focalizando a questo da globalizacao e problematizando a mesma quando esta se constitui num progresso que nao inclui o ser humano. Hodiernamente se vivem processos permanentes de descohertas, 0 que implica criagfio e recepgéo. Experimentar implica a admissao de riscos. Retomando Foucault, Bauman afirma que a critica é um risco e tem como tarefa mediatizar a facilitagao da dificuldade. Segundo ele, “a nogdo de verdade pertence a retérica do poder” Bauman, 1998, p. 143). Dat o fato de os seres humanos emergirem como modalidades de simulacros. “O mun- do dé a impressdo de uma continua interagao entre os artistas do jogo da vida, diversamente habilidosos e diversamente intcligentes”. Segundo nosso autor, para estudar a realidade da liberdade humana, € importante considerar que se est4 caminhando em terrenos onde circulam culturas, 0 que demanda questdes concernentes a: “pluralidade de culturas” e “fidelidades culturais”, que implicam “liberdade de escolhas”, “estru- turas culturais”, que implicam disponibilidade de opgdes. 34 ITINERARIO PARA UMA PASTORAL URBANA: ACAO DO POVO DE DEUS NA CIDADE A diferenga entre os liberais e os comunitaristas com relagio ao enten- dimento de diferenca & que para os primeiros a diferenga € exterior ao in- dividuo e esté no plano da expansao das possibilidades de escolhas, a0 passo que para os segundo se trata de um dado internalizado, ou seja, 0 grupo se constitui no limite, 0 individuo escolhe entre aquilo que j4 encontra dado pelo grupo. Para as duas perspectivas de abordagem, a escolha é uma possibilidade da qual nao se pode desviat ¢ isto faz emergit questoes concementes a identidade, significativa, hist6tica ou individual, e a fidelidade dos membros. Os grupos continuam se existe nos seus membros uma “lealdade ativa”. Como articular vontade e inevitabilidade? Sera papel do Estado legislar a coergao? Como se conjugam “direitos como individuos” e 0 “objetivo da sobrevivéncia”? Parece que hé o esforgo comunitério de garantit um poder de imposi- cdo, de manipulagio dos possiveis. Enquanto referéncia fontal das “escolhas significativas” para a vida, o Estado faliu! Por isso, reforcam-se as “minorias em lura”. Na verdade hé um “colapso das estruturas em que as identidades eram habitualmente inscritas” (Bauman, 1998, p. 238). O Estado promove o desenraizamento das fidelidades locais. A acelerada sucesso de futuros se dilui numa sucesso de presentes. Entio, 0 que pode 0 presente com relagdo ao futuro? Por si mesma, a vida nfo parece mais evidente. O comunitarismo é um “nacionalismo de segun- da”? Parece haver uma “angéstia da incerteza que devora as reservas ps{qui- cas do individuo pés-moderno”. A comunidade resulta das ou precede as escolhas individuais? Como respaldar os conceitos relativos a liberdade individual: autoconstituig&o, auto-afirmagio e autodefinigdo? Como é pos- sivel restabelecer a confianga? Onde se pode vislumbrar a “linha que separa 0 tormentos da individualidade da agonia da loucura”? Hoje a liberdade de escolha é “um atributo graduado”, uma “varidvel estratificadora importante”. De que vale uma liberdade sem meios dispontveis? O indivfduo é um “livre selecionador”. Comunitarismo e liberalismo siio na verdade, “projegdes de sonhos nascidos da contradic real inerente a dificil situag&o dos individuos”. Por fim, a leitura de Bauman sugere que os concei- tos tém uma raiz genética, mas vao adquirindo novas formas medida que se desenvolvem. Tudo parte de uma experiéncia pessoal, temporal, singular. REFERENCIAS BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. Aamor liquide: sobre a frogilidade dos lagos humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. Cormnidade: a busca por seguranga no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. ______- O mal-estar da pés-modernidade. Rio de Janciro: Jorge Zahar Editor, 1998. SUNG, Jung Mo. Sujeto e sociedades complexas: pata repensar os horizontes utdpicos. Petr6polis: Vo- zes, 2002. itinerério para uma pastoral urbana € um titulo bas- tante significativo para pensar a acéo das igrejas nas cidades. ltinerario é, entre outras coisas, a descricao detalhada de uma viagem, um roteiro a ser seguido para se chegar a algum lugar. Hoje, mais ainda que no passa- do, as igrejas precisam ter um “itinerario" missionario definido para alcancar algum éxito em sua jornada no mundo urbano. Ha um ditado popular que afirma "quan- do nao se sabe aonde se quer chegar, qualquer caminho serve". Percebe-se que muitas comunidades cristas estao perdidas e sem diregao, pois nao conhecem seu proprio itinerario. Ficar sem direcao nas cidades nao é algo incomum. Ha muitas pessoas eé instituicdes que tam- bém nao tém qualquer itinerario estéo ao sabor do vento. Nesse sentido, as igrejas tem um compromisso fun- damental no contexto urbano 7 descobrir caminhos e indicar as pessoas, familias, comunidades e instituicdes itinerarios mais seguros, que possam leva-las com maior seguranga aos seus destinos. Este livro se coloca nesta perspectiva — indicar itinerarios para que as igrejas encon- trem maior relevancia em seus prdprios caminhos. ISBN 978 eet Metodista de Sao Paulo 3 2 EI x 4 2 EY SI iS) a iS z = =

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