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Na sala as cadeiras pareciam tesas ¢ espantadas ¢ o brilho da hora tardia boiava nos espelhos subitamente acordados pela luz. O Bispo nao se quis sentar € ficou de pé junto duma mesa. — Nao vale a pena sentar-me, nao me demoro, 0 que tenho a di- zer diz-se depressa. Mas nao sabia como comegar. — Aconteceu alguma coisa? — perguntou o Dono da Casa. — Aconteceu. Houve um novo siléncio. Depois, devagar, 0 Bispo disse: — Nio sei contar © que vi. Hoje, esta noite, foi acusado um ho- mem justo. Mas 0 proprio Deus veio ser sua testemunha. — Nao compreendo — disse 0 Dono da Casa. — Hoje, aqui, o padre novo de Varzim foi acusado. —E Deus desceu do céu para testemunhar por ele? — E verdade. — Desculpe, senhor Bispo, desculpe que eu nao posso acreditar. © Bispo olhou 0 Dono da Casa, 0 dono dos quadros, das pratas, dos campos, das vinhas, dos pinhais ¢ da serra. E viu que era como se todas as coisas que aquele homem possufa tivessem formado a roda dele um espesso muro que o separava da realidade. Ele estava fechado na certeza dos seus direitos. E, com tristeza, o Bispo respondeu: — Eu sei que nao pode acreditar. Depois, devagar, continuou: — O padre de Varzim nao foi sé acusado. Foi também vendido. Vendido pelo telhado de uma igreja. Da Igreja da Senhora da Esperanga. O Dono da Casa quase nao acreditou nas palavras que ouvia. Pois dle nao tinha nenhuma intengio de se confessar. Era mesmo como se ele tivesse perdido ou rejeitado ha muito tempo a possibilidade de se reco- leu seco, dominando a sua célera: que disse vendido. Nao houve ne- de acordo com a minha cons- nhecer a si proprio. Por isso respond — Nao compreendo porque é nhuma venda. Dei uma esmola e fiz, ciéncia, um pedido. — Mas cu — respondeu o Bispo. Prometi mudar para outro lugar © padre novo. confessando-se amargamente — Fiz uma promessa ¢ recebi 89 ero entregar a qu rir a promessa € 4 RAE A QUEM mo dy fo posso cum dinheiro. Nao posso cumP este dinheiro : Ea mio enrugada poisou O Dono da Casa olhou 0 ‘os dois cheques em cima da mesa, gesto com um misto de furor, span .gio. O Bispo» aquele prelado tio polido, estava a trair as Pr boa educagéo respondia com problemas de con. Dono da Casa, de fazer negécios inconfesiv alavras claras, inconfundiveis. Nem ao me. ¢ por meio de alusées. E, no fundo dy oon dma, o Dono da Casa teve grande vontade de receber 0 dinhio de dar ao Bispo uma resposta crua. Mas lembrou-se que no conviny lembrou-se da sua fama, da sua reputacio eda ter questdes com o Bispo. y boa educagio que tinha recebido em pequeno. Por isso contevese ¢ disse com alguma pompa: — Nio compreendo. O dinheiro que Padre de Varzim, Sio duas questées completamente diferentes. Voss Exceléncia Reverendissima esté a fazer uma confusao lamentivel. Dei uma esmola ¢ nunca torno a receber 0 que dou. Mas este assunto nio pode ser resolvido s6 por nés os dois. E preciso sabermos qual é a opi niao do meu héspede. Dono da Casa tocou pelo criado ¢ mandou-o chamar 0 Ho- mem Importante. Mas 0 criado Ant6nio percorreu em vao a casa. O Homem Impor tante, 0 héspede imprevisto da noite, tinha desaparecido. Nao st"? hem no quarto nem nas salas, nem nas escadas, nem nos corredores © are eee aie tinham-se volatilizado, ¢ até 0 suleo hs rods Eng nitig po ew aes molhado do patio. fazer companhia 2 Bispoe foi cle én, 3 Cosa Dera eae revista & casa aos jardins ep ca Proprio, & frente dos criados eS no pogo, Anténio citi ee 40 s6ti0, desceram & ave, nat a ‘0s, espreitou debaixo da cam; ma seen Madan oe ns 105, Mas odesapatecd nay vo” 2 Casa espreitou ass dos Terminada a busca, 0 Biers sa Anti, Ja,» cine dy ie, © DOR € & Dona da Case ° oe: ’) € Mariana, a criada dos quafto fo indignagao do jogo. As regras ciéncia. Acusava-0 2 cle, © confisos. Acusava-o €M Ps nos se exprimia indirectamente dei nao tem nada a ver como 90 dos pelo espanto, formaram um circulo na sala, comentando 0 sucedido. © Dono da Casa pediu a0 Bispo que the desculpasse a estranheza da si- io, Nao havia explicago possivel. Instalara-se no ar um pesado star. A Dona da Casa estremecia quando as madeiras estalavam ¢, fora, as sombras do jardim tinham tomado um ar suspeito. “Finalmente, falou 0 Bispo: E tarde, Amanha pensaremos melhor. O seu héspede vai com aparecer ou dar alguma noticia. Vou-me retirar. Deixo-lhe aqui is cheques. quando olharam para a mesa s6 viram um cheque. Era 0 do da Casa, O outro, 0 cheque do Homem Importante, tinha desa- ido. s presentes olharam-se transtornados. Mios e olhares percorre- -rvosamente a sala a procura do pequeno papel. Vé debaixo da mesa — disse a Dona da Casa ao criado. 1tonio pés-se de gatas e mergulhou de baixo da colcha de seda que cobria a mesa. Passado um instante, no gesto dum fors- antigo retirando a cabega dos panos da sua mdquina, reapareceu Nao esta. Era nominal ou ao portador? — perguntou o Dono da Casa a0 Nio sei, nao olhei — confessou o Bispo, atrapalhado. confuséo aumentava. Tenho de prevenir 0 banco — disse o Dono da Casa. — Vossa Ex- ia Reverendissima viu que banco era? complicagao crescia. . as o Bispo estava agora muito cansado dos negécios do mundo. Vou deixar 0 assunto nas suas mios — disse ele ao Dono da — A noite hé-de trazer conselho. E o dia de amanha deve trazer esclarecimento, Vou-me retirar. nou a despedir-se ¢ saiu. 4 ;pois da saida do Bispo, o Dono da Casa pés os criados & pro- cheque. Levantaram-se os tapetes, as almofadas dos sofés, as . Mas, ao fim de meia revistas que estavam em cima da mesa. for, cheque ainda nio tinha aparecido. Finalmente, 0 patrao disse 205 criados: — Vou-me deitar. Continuem a procurar; 0 cheque nao pode ter desaparecido. Boa noite. Saiu, ¢ Anténio, Juilia ¢ Mai — Fiquem vocés 4 procura aqui, ‘Talvez o cheque tenha voado com as correntes de at — disse 0 ctiado Anténio. — Ou talver 0 diabo o tenha levado! — disse a criada Julia, ‘Ant6nio deitou um olhar sem esperanga ao chao dos corredores ¢ giu-se 4 cozinha para desabafar com Gertrudes. — Mas, afinal — perguntou a cozinheira —, quem era este se riana olharam-se com desinimo, eu vou procurar nos corredores dit nhor, tio importante? — Nio sei — respondeu o criado —, 86 sei que parece que entrou o deménio nesta casa. — Quem sabe! — disse a velha Joana, pondo no lume o seu olhar cansado. — Quem sabe! Talvez ele fosse realmente 0 Diabo! Nos tem- pos que correm pode bem ser. — Nos tempos que correm — disse a cozinheira — ja no ha Deus nem Diabo. Ha sé pobres e ricos. E salve-se quem puder. E, pegando num pano, Gertrudes limpou no chao de tijolo as pe- gadas do mendigo. 9

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