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cadernos de pesquisa do LAP 37 A Arie da Ruacao e a Cidade Luso-brasileira Série Urbanizacao e Urbanismo O Arquiteto Miguel de Arruda e o Primeiro Projeto para Salvador Rafael Moreira Jan - Jun 03 USP Universidade deSée Paulo FAU Faculdade de Arquilelura eUrbanisime AUH Departamonta da Historia © Estotica do Projeto 4 ‘ae ahaa NN, i en aaa a la Rea aba A Arte da Ruacdo e a Cidade Luso-brasileira (S€culos XVI - XVIII) O Arquiteto Miguel de Arruda e o Primeiro Projeto para Salvador Rafael Moreira Introougao 6 Resumo / Assteact 7 AAxtt 0A RuACAO € a Cioape Luso-prasiuara (Stouts XVI - XVI] 8 Noras 29 pate 8 Resumo / Aasteact 34 0 Araumero Micuet De ARRUDA & 0 Prineieo Prosero PAeh SawvAnOR 35 Notas 49 Imagens 51 & Uma nova perspective Fee onveraéncla dos temas de pesquisa, no Brasil e em Porlugal, nas tltimos décadas. Como diz Rafael Moreira, vird demonstrar a uilidade de estender o cam- Po de estudos urbanos @ Africa e ao Oriente, “once Marrocos , Acotes, Goa, Bagaim, Mocau, elc. sd0 casos irmées, sem os quais a realidade brasileira fica muted: Reunimos aqui dois artigos do professor Moreira, Chele do Departamento de His- {oria da Arte da Universidade Nova de Lisboa. 0 primeiro & “A Arte da Ruasto ea cidade luso-brasileira dos séculos XVI a XVII", elaborado para a mesa-redonda de abertura do V Seminério Internacional de Hisiéria da Cidade ¢ do Urbanismo, realizado em Campinas em outubro de 1998, até aqui, inédito. 0 outro 6°O arqui- tefo Miguel de Arruda e a primeiro projelo para Salvador’, elaborado Para a con- feréncia final da primeira sessao do IV Congresso de Historia da Bahia, realizado em Salvador, como parte das comemoracées da passoger dos 450 anos da fun, dace da cidade. Foi publicado anteriormente nos Anais do IV Congreso, pelo Inslilulo Geogratico e Historico de Salvador, em 2001 A escolha desses dois irabalhos, pelo seu autor, é significativa,-Com 0 primeiro, Poe em evidencia a exceléncia de uma tradicéo urbanistica portuguesa, de de. Senho “tendencialmente regular’, segundo ele vindo da Ordem de Cristo, “com base em princrpios e regras, mais do que em leis e normas jridicas, moldavel ao Sole @ as condigdes concratas do terreno - um modelo pragmatico néo-um ox. avema quacticular legal ~ onde as posturas municipais s6 vam depois* Rafael Moreira considera 0 segundo texto um “case-study do mesmo sistema Geral, i em 1548, isto 6, do momento em que foram elaboradas as direlizes que deveriam atender aos os que seguiram de tishoa para @ Bahia, para a fundacao de Salvador, no ano seguinte. Ao Publicar esses trabalhos no Cadeino de Pesquisa do LAP = que sao distibui- dos Qs bibliotecas das faculdades de Arquitetura de lodos 0s esiados ~ estamos Procurando levar ao conhecimento dos pesquisadores de HistOria da Urbaniza. 600 © do Urbanisme no Brasil o que de melhor produzem nossos colegas do ov. ro lado do Atlantico, e ampliar um didlogo que $6 poderd trazer beneficios a ‘ambos 0s lados. Nestor Goulart Reis Filho Feta Resumo Este lexlo 6 uma vistio panordmica da “arte de fazer novas cidades” da fase co- lonial no territorio portugués da Europa e ilias allanticas (Madeira, Acores) 2 ao longo das costas da Africa, Asia e Brasil, até ao inicio da penetragéio no in- terior, valorizando-se os exemplos europeus ¢ sua adaplagéo tropical Propde um esquema evolutive baseado na relacdo entre teoria, percepgdo e re~ alizacées, e procura extrair conceitos especificos de um “modo portugués* com raizes na Baixa Idade Média e na fecnologia nautica, teorizado na época do Marqués de Pombal no inéaito Tratado da Ruaéo do arquiteto J. Figueiredo Seixas. O papel dos engenheiros militares é particularmente enfatizado. ABsTRACT This text is an overview of the “art of making new towns" of the colonial phase in the Portuguese territory of Europe and Atlantic islands (Madeira, Acores) and along the shores of Africa, Asia and Brazil, until the beginnings of the Penetration towards inland, valueing the European examples and their tropical adaptation. It proposes an evolutionary scheme based on the relation among theory, perception and realizations, and seeks to extract specific concepts of a “Porluguese manner” with its raots In the late Middle Ages and in nautical technology, theorized at the time of the Marquis de Pombal in the inedited Tratado da Ruacdo by the architect J. Figueiredo Seixas. The role of military engineers is parlicularly emphasized. 2S cence I. A Arte pa Ruacio E a cipape Luso-rasiueira (secs. XVI — XVIII) Nestas reflexdes para servirem de base de discussdo a uma mesa-redonda, gos- taria de dei clara minha relutancia em usar com ligeireza uma expressdo para poca anterior ao século XIX, sob o risco de ser anacrénico: Urbanismo. A pala- vra no existia, a coisa provavelmente tambam nao e certamente nao com o mesmo sentido que hoje fem, 0 lugar da disciplina era entéo ocupado por outros corpos de praticas e saberes, com outros significados e outro nome. Para ser breve, aquilo que proponho aqui é que no mundo portugués do Antigo Regime — sobretudo no mundo colonial - existia plena consciéncia dessa maté- ria do “saber fazer cidade", com ligagdes culturais diversas do que tem hoje e sob 0 nome empirico de “arte ou ciéncia da Ruagdo". Uma teoria empirica e, Sobretudo pragmatica, de terreno mais que de gabinete, a que se procurou dar credibilidade e forma cientifica no séc. XVill, mas que @ fruto de uma evolucdo especifica do império portugues com raizes em Portugal no passado medieval, na sua situacdo de pais-limite da Europa. Penso que existe uma relacao estreita entre a “cidade regular” € a siluagdo de fronteira: da cidade-militar (Valletta, Palmanova, mas também das fundagées sicilianas e das bastides inglesas da Aquitdnia do séc. Xille francesas do XIV) e de fronteira como linha-de-frente dum avango de penetracdo e ocupacto do interior. © mito historiografico da “cidade ideal” deveré, consequentemente, dar lugar ao conceito de cidade utépica (Krult, 19891, sabendo-se que as utopias sdo uma realidade (a vontade de construir 0 futuro] mediatizadas com o real pela ideologia e incluem uma forte vertente esté- fica, |@ nas “citta nuove" loscanas do séc. XIV tragadas por Arnolfo di Cambio! Como algumas fundacées cislercienses (Guidonil, sdo “cidades de colonizagao", que consiréem e ordenam o territoro. Gostaria, também, como premissa @ discussao, de afirmar dois fatos metodolégicos (e epistemolégicos) que me parecem claros 1") A ligacao congénita, quase indissociavel no conereto, entre ci $80; 0 conteddo e 0 confinente: duas faces da mesma moeda. Imesmo que a mullos km de distancia, ou controlando nés de co- braco armado da populacdo; e vice-versa. O papel dos engenhei- os militares foi insirumentol no desenho das cidades. Nao 6 possivel, a néo ser Por estratégia analtica, estudar uma coisa sem a outra, pelo menos no que diz respeito a Porlugal 2°] A necessidade duma definigao rigorosa de como cleo urbano esiruturado, ras cn wm sje Hees com percent po muni (Bria. E muito forte em Portugal — uma heranga da disting@o tardo-romana (que se mantém até o século Vi-Vill entre civitas urbana e villa tural e da vitalidade do municipalismo da Idade Média ~ a hierarquia entre tr8s niveis — juridico, sociol6- ‘0 e formal — com origens e natureza diferentes. ‘al, carta de estatuto municipal materializado na 'd Camara-e-Cadeia e erecdo do Pelourinho - 0 simbolo arrogante da autonomia concelhia onde eram expostos os criminosos? - era con- cedido pelo poder central segundo uma estratégia muito refletida, nada casual; © 0 foro de cidade 6 excapcionalmente era outorgado em norma ds sedes epis. Copal, mas também a vilas que o Coroa pretendia desenvolver*. Na definicao do iurista Doutor Jodo de Barros em 1540, “cidade he aquela que he cercada de mu- fos @ que antigamenie teve nome de cidade" {.8, que finha bispol: mas o essen- cial € que era muito mais do que um mero filulo honorifico (como Mui nobre e sempre leal cidade de...), era uma categoria de direito que adquiria poder autérquico com assento especial nas Corles. Mesmo dentro delas havia sutis distincdes hierdrquicas: assim, 0 foro de Evora ~ 0 mais baixo, dado a quase to- das as cidades — apenas isentava os cidadaos de serem acoilados em piblico, enquanto o de Lisboa, dado a Goa e ao Rio de Janeiro, garantia uma maior part cipacdo da populacéo trabalhadora na vida publica, através dos eleitos para a “Casa dos 24”, representando os oficios ou bandeiras. Muito ambicionado era o estatuto de cidadéo do Porto $ - dado a cidade de Sao Luts do Maranhao (1615) ora atrair colonos ~ que fozia da burguesia municipal uma auténtica aristocra- ¢la urbana ao isenté-los da prestagtio de servico milla, impedir que fossem pre- S08 salvo om prisdo domiciliar e submetidos a tortura, poderem usar armas de noite como de dia e quaisquer tecidos ricos de seda, mesmo os proibidos pelas Pragmaticas contra 0 luxo, e 0 dever de “pousada” ou hospedagem gratuita a fi- dalgos @ seus criados por mais de 3 dias. Howe sérios motins no Porto por cau- Sa deste privilégio, que o Rei sempre decidia a seu favor. € dentro desse quadro complexo que devemos examinar os ndcleos urbanos coloniais, que transplan- fam para outro meio uma situacao arcaica, radicada nas origens da nacdo nos séculos XI e XII E que 0 uso das sedas, p.ex, significava muito mais do que um status social, de moda ou etiqueta: era todo um estilo de vida que estava em causa, manifestado fisicamente em moradias elegantes, com saldes que justift- cassem 0 uso de armagées de tecidos ricos e bordados da india e quarlos de alcova com corlinados e docéis. © estatuto juridico refletia-se nas praticas de urbanidade e na propria forma material da urbe, mals monumental. A vila de Olinda 11535), que aspirava a ser cidade, mosirava esse desejo no luxo de seus moradiores, que gastavam 80 mil cruzados/ano em vinhos portuguases, ¢ faziam consiru 0 Pe, Ferndo Cardim dizer (1583) que “em Pernambuco se acha mais vaidade que om lisboa e Brandénio chamé-la “uma Lisboa pequena” (1618) Ja Solvador ~ pri- meira capital arificial do Brasil 11549), a precursora de Brasilia -, que gozava dos Privilégios do Porto, manteve um trem de vida mais modesto, s6 na 2° metade do ‘séc. XVII conseguindo a ‘aparéncia digna duma capital. Esles sao os dados de base que importa reler, 0 quadro estavel da escala planetaria — e uma rede de 98 “cartelras", Por isso ele teve por cenario os Oceanos, nao os continentes. Na metade ariental, o Estado da India (1504) do Indico até o Pacifico; na ocidental, os Estados do Brasil do Maranhdo, mas também todo o espaco atlantico, das ilhas dos Agores a costa do golfo da Guiné, Mina e Angola. Ao longo desses § séculos howve logicamente uma evolucdo na maneira de entender, conceber e fozer funcionar as cidades em latitudes tao diversas, que mostra a modernidade do processo expansionista lusitano como uma dinamica de experiéncias em continuidade do Sc. XV ao iluminismo pombalino, pelo menos. Tentarei aqui sintetizar esse pro- cesso em § fases, no que diz respeito a funcado e modos de produgéo do espaco: urbane colonial portugues: ous | 5 Num 1? momento, que remonta & Baixa Idade Média e abrange a colonizacao do Atlantico Préximo iilhas atlonticas e Norte da A\rical, fentou-se a pura e sim- ples @XPOrGEGS do tipo de vila medieval portuguesa. Tinham sido raras as fun- dagées novas: pequenos enclaves legais para foragidos, coulos e salvaterras, ou bairros extramuros, burgos ou vilas novas. A mais importante criagao de raiz fot Vila Real, fundada pelo rei D. Dinis em 1289 no interior da provincia de Trds-os- Montes, © pais crescia pelo aumento des vias, que desde 0 séc. XIV descem do cademes de pesqui: 10 ‘alto: dos monies pora a planicie: varzeq de rios, encostas abrigadas, beira-mar (Obidos, Palmela, Tomar, Arraiolos, Monsaraz, Sesimbra...). Talvez mais sob infiu- | 6ncia italiana [patente na Vila do Infante fundada pelo infante D. Henrique er 1455 No promontério de Sagres, com a sua *correnteza" de casas uniformes que se devia repetir em linhas paralelas, como em Pienzal, configura-se o que se fem t chamado onde as rvas acompanham 6 relevo com uma Rua da Corredoura como eixo unindo dois rossios ou lerreiros uniformes e cortado or transversais: assim em Tomar, sede da antiga ordem dos Templarios (de Cris- to apés 1319); no povoado de Santa Maria do Funchal na ilha da Madeira — primei- '0 aglomerado urbano edificado por europeus fora da Europa (1420-25; elevada | G vila c. 1450, cidade em 1508 e sade de diocese em 1514); Angra dos Acores Wvila: 1478; cidade e bispado: 1534), e m terras dependentes do “Padroado Porlugu- @s" doado em 1451 pelo Papa no mundo ndo-cristao (S.Tomé, §, Salvador’ etc). Seria esse esquema bipolar Tem se exagerado, a meu ver, essa tipologia geométrica, reagindo contra a viséo medievalista de um Robert Smith, que, tomando a Parte pelo todo, via nos povo- ados mineiros - e mineitadores — espontaneos e informes, o prolétipo da cidade colonial portuguesa. Parece-me mais prudente e acertado falar numa i: NGo havia a ob: do telo nem da geo- metria absirata, +a linha da cos! dum rio, nivel de cota duma encasta abrigada da intempérie. Neste urbanismo “endencialmente regular” |4 se define uma oposicdo entre a Vila Velha, com o Castelo © @ muralha urbana (muitas vezes abandonada) e o arrabaltle mais aces. Sivel; entre a Alta e a Baixa, que serd uma das constantes da cidade portugue- Sa, no continente como no ullramar. Sobretudo, jé se verifica a lendéncia ou von- lade de uma reticula relativamente rigorosa, de que so haverd a utensilagem mental e capacidade de realizar em €poca posterior. "© a demarcagéo dos lotes por marcos ou postes: auténticos ae embora a palavra ndo apa- eco, € sim a de “engenho* (designando aparethos mecanicos ¢ maquinas de guerra, que consirulam seguindo a Machinatio e a Gnomenica vitruvianas)”. Nao € de excluir a hipotese de uma influencia da arte romana da Castramelacdo (cas- {ro metatto,“balizar acampamentos’l, j@ conhecida entre nds no S&c. XV: 0 pré- Prio Inf. D. Pedro traduzira c, 1430 0 De Re Militari de Vegécio, Se © seu sobrinho e continuador, o rei D. Jodo Il, fundou com éxito duas “Vilas Novas" (de Milfontes, 1486, na costa alentejana, e das Caldas de Obidos ou da Rainha, 1488, num hospital termall, nos terras |d habltadas do ullramar somaram- se fracassos: a vila Graciosa, no rio Larache (Marrocos}, a aldeia de Portugal na otual Liberia, uma feltoria na foz do rio Senegal, a fortaleza de Tangarim no estu- rio da Serra Leo e a cidade de S. Jorge da Mina (hoje Elmina, no Ghana) — a mais antiga fundagdo européia nos tr6picos (1486) ~ nao tiveram o papel civi lor que © Fei sonhara, alguns ndo chegando sequer a sair do papel. Ma: = Acra, Axem, Ugats, Ajuda no Benim — & 3 3 | nav Monta, stow XIV Peron de Lovins colin, ola sesh aula ee Seas nee Sax za fe Pe Gormy at [Smbrwea yo me Sire Nao. se chegou, pois, a. criar uma sociedade e arte “luso-marroquinas” devido @ hostilidade das. populagées muguimanas locais, e falhou a esperada cristianizacdo, da Africa, Negra (reinos. do Senegal, Congo, Angola}. Mas foi um campo de. experiéncias, onde se:forjaram. as técnicas. de colanizagdo, laboratério de formas de transicao onde se superou de vez a heranca tardo-gética européia, festando os primeiros balyarles e sistemas defensivos (caso de Arzila, 1509, com @ Gnica torre-de-menagem feudal da Africa. ao lado do proto-baluarte “da Pata da Aranha’, j@ moderno), intervindo.na malha urbana arabe com abertura de pra- Gas civicas e ruas de acesso direto a igrejas e convenios, e provando a importan- cia de diminuir e regularizar os perimetros por “cortes* (atalhos). Especialmente instrutivo 6-0 caso da vila de Alcdcer-Ceguer (1458), no Esireito, entre as cidades de Ceuta e Tanger, onde escavacdes arqueolbgicas recentes trouxeram a luz uma ‘muratha circular tipicamente medieval portuguesa em que s6 as portas monumén- fais Grabes foram aproveitadas, a esirutura vidria com a Rua Direita, 0 Castelo, os largos da matriz e do Misericérdia e a couraca de ligagGo direta ao porto (1469) ~ uma maha urbana “tendencialmente regular” que data da 2* metade do séc. xv. Pela Impossibilidade de resistirem a um ataque da. moderna pirobalistica (artilharia de fogo| que os Mouros 4. dominavam — com o auxilio dos Porlugueses, fundidores e artilheiros, trdnsfugas para 0 campo contrario (os ev Top esinbsed ap sousopea Gre 1504, arate Deano ranean Auckce Cie, noe) Bona 3 | cadernos de pesquisa do LAP lx “Elches" ou renegados| ~, apenas se conservando a inexpugndvel vila-fortaleza de Mazegéo [El-Jadida), evacuada pelo Marqués de Pombal (1769) para mudar os seus moradores para Nova Mazagao no Amapa. W) 0 avango da expansdo acempanha o da racionalidade © impoe o dominio da linha reta, pele habito de tragar as linhas de rumo e marcacao de rotas nduticas. Do meridiano de Tordesilhas (1494), tragado no abstrato a melo do oceano ignoto, Qs suas perperdiculares, paralelas ao Equador, des capitanias do Brasil (1532- 35), uma grelha orlogonal divide 0 globo terrestre. Dai que a nogdo de requlari- dade progrida como sinal ideolagico do espiriia moderno. 2 comércio colonit speciari- 4s exigia outro Modelo urbano, mais simples, facilmente exportavel e reprodutivel, de construgdo rdpida, capaz de recponder ds funcdes de cidades maritimas, sempre junto de um bon: porto, afestadas quanto baste da populagdo local (a li- G0 do Norte da Africa fera aprencidal, num estudrio abrigado, bem defendidas Por fortificacdes onde © peso da urlilharia era cada vez, maior. Exist um ideal de cidade caracteristico desse extravaganie estilo do reinado de D. Manvel (1495-1521)"? Por estranho que pareca, julgo que sim. £ inegavel um esforco de regularizacéo sistematica, 9 calcelamento em pedra da Rua Nova dos Mercadores, a principal arléria da Baixa lisboeta com seus 6 m de largura, iniciado em 1482 ao mesmo tempo que a reforma das frontarias assentes em pilares iguais, para 0 gue D. Jodo Il pedia Camara “pintada em papel |... a dita rua tragada e compas- sada f= medida a compassol per cévados de grandura de hum dedo de ancho” (uma planta & escala 1:24, dirfamos hojel; a construgao do Bairro Allo em xadrez Quase regular a partir de 1511; ov a decisdo do Rel, em 1500, de transformar 0 Rossio de Lisboa em praca fechada por pérlicos em arco regulares e “fermosos", maneira de cidades italianas como Bolonha. Seria um novo centro civico posto G0 Terreiro do Pago, na Ribeira junto do Tejo, que entao ganhava enorme desen- volvimento, e para onde mudaria palaicio real. , arcarias, laggias @ até o campanile (torre do relégiol; e € no mundo colonial que muito disso ira ser feilo. Passado 0 Allantico Sul, descoberto © Brasil, alcangada por fim a india, 0 Oceano Indico ira ser o palco de algumas ¢ das mais criativas inovagées (e inven¢ées) urbanislicas e fortificadoras, logo apés @ fundagdio do “Estado da India” {1504) governado por um Vice-Rei, eslendendo- se desde 0 Cabo da Boa Esperanca (Capetown) até o Japdio e ao arquipélago das Molucas e Timor, ja na orla do Pacitico, A cidade de Santa Cruz de Cochim, pri- meira capital, ainda apresenta vestigios manuelinos. Uma bela planta de 1610, le- vaniada pelo engenheiro-mor Jélio Siméo, mostra 0 Castelo Manuel fundado por Afonso de Albuquerque em 1503 - 0 mais antigo erguido na India — e a reticula de uma “cidade aberta” pouco fortificada pelas defesas naturais dessa Veneza do Oriente, mas com 0 nicleo portugues (alual Fort Cochin, um bairro numa me- {répole de 7 milhdo de habitantes) provido dos equipamentos essenciais, com ruas bem delineadas, a Ribeira com estaleiros, a Grea portuaria de ver-o-peso (Peso da Pimental, e 0 foco religioso em torno & Sé. Consiruida num areal vazio escolhi- do pelos Portugueses, cedido pelo seu aliado rei de Cochim, a mao de um urbanizador & aqui, a meu ver, indubitével. A [6ia do Estado da India era a cidade de Goa, desde sua conquista em 1510 por Albuquerque [outros centros vitais, como Cananor e Chaul, foram apenas vilas, jé antes de 1545, e Diu nao passou de uma fortaleza sob governo militar, s6 em 1799 recebendo estatuto municipal). Principal porto do sultanato de Bijapur, 0 conquis- tador refez Goa quase do zero, salvando apenas 0 palacio do Sabaio, simbolica- mente tornado residéncia vice-real e centro da cidade, na praga quadrada onde se ergueu a Sé e viviam os cidaddos mais importantes”. A mais antiga planta dessa Roma do Oriente (desde 1572 arcebispado Primaz da Asia}, de c. 1580, in- dica com nitidez 0 nécleo manvelino, com muralha oval e fosso, fechado sobre o mar pela Fortaleza de Santa Catarina, e uma rede de ruas orientadas a N-S cor jadas por fravessas no sentido L-O, Vemos ndo 6 a vontade de fazer uma urbe moderna ~ com 0 bazar (mercado) cruciforme exiramuros =, mas um arquiteto militar habil: ser dGvida o alentejano que ergueu em 1511 a fortaleza de Malaca, no estreito de Singapura. Of que em 1614 le (ah Vosges) de d ctiavam uma paisagem urbana @ uma atmosfora muito parecida, infelizmente extinia, 0 francés Pyrard, Assi parecem afirmar-se, na fase de viragem entre 1480 ¢ 1530, E interessante encon- ma atitude na Literatura de Viagens, onde o conceito de bem arruado aparece como crilério de valorizacéo esiética: o.arruar surae como cat. 5 PromonenaotceSiein ‘Swe ne Coons ‘orator “ereHo-ne how, to Sa, 1610 joria no do, que admira las itas rus bem proporcionadas, @ maneira das do Reino. Melinde, na costa norte de Zanzibar, & comparada com Alcochele e corte o dito “Guem viv Goa nao precisa ver Lisboa’. 0 Livro das Cousas da india de Duarte Barbosa llisboeta escrivéo da feiloria de Cananor em 1516-18) dé opinides pessoais que valem como testemu- nho da nova maneira de ver da época: assim, Quiloa é “uma vila de mouros fermosas casas de Pedra e cal com muitas janelas & nossa man ae: ‘em Melinde “o lugar esta mui bem artuado’; a cidade de Ormuz, na entrada do Golfo Pérsico, & “mui bom assentada e arruada com muito boas Dasa", enquanto s6 outra grande cidade indigena the merece esse elogio (que © Arqueologia confirma: Vijaiandgar, capital do reino hindu de Norsinga, com casas “muito bem concertadas e arru is de | cor las rt e de grandes Pracas"®, O ideal parece ser o das cidades alentejanas, de casas cUbicas com terraco e fach Tuas e €; mas 0 fermo jd entrara no uso corrente, Ml) Pela sintese de influéncias diversas ~ 0 pensamento urbanistico italiano, 0 modelo da metropole indomuculmana, a tradicdo manuelina -, parece estabili- 2ar-se de 1540 a 1620 um tipo “cléssico* de cidade portuguesa [ou definida uma metodologio de desenho urbanol, fruto da geometria do sisterna abaluartado - empregue de modo pioneiro em Mazagdo pelo engenheiro militar Benedetto da Ravena (1541) ¢ pela primeira vez no Oriente na frente abaluarlada de Div por D. ene need Pando ceewaco forte-wodoai Jodo de Castro (1546) - e da criagéo embrionaria dum ensino oficial pelo mesire: pedreiro Miguel de Arruda, a 1/Jon./1549 nomeado Mestre das forlificagdes & muros do Reino, Lugares d’Além ¢ India. Um minisiro de obras poblicas, que ja em 1548 fornecera os desenhos para os baluaries “ao moderno” do Castelo da mina e 0 infeiro plano da capital do Brasil, por (uis Dias. Do seu atelier, junto ao Paco da Ribelra, rodeado de ajudantes e discipulos, devem ter saido as “tragas* “debuxos" da maior parte dos edificios construidos pela Coroa, religiosos, civis, militares e planos urbanos, entre os quais nao havia distingdo projetual: uma pra- lica continuada pelo seu sucessor, 0 mestre-mor AniOnio Rodrigues (1564-1 que_em 1572 inaugura 0 ensino formal na “Aula de Arquitelura do Paco do Ribel- 1a’ baseado na explicacdo diéria de textos de vilrivio, Sérlio ¢ Pietro Cataneo sobretudo, 86 enléo comecado a usar} ‘a-se nas regibes do império pel solicitacdes A especializacdo @ cada vez mais uma necessidade, e enquanto no Reino con- tratam-se técnicos italianos {Tomas Benedito, 1565; Filipe Terzi, 15761, nas coldni- Qs criam-se cargos de alto nivel: fortificador (india, 185}; Brasil, 1588), engenheiro (india, 1568; Brasil, 15751 e por fim 0 engenheiro-mor de quem tudo depende (1583 @ 1597), As nomeacées sucedem-se nesse final de século conturbado, em que o timo da construcdo militar supera tudo: como a nova cerca abaluartada de Goa, de 12 km de extensdo (1567), e as duas maiores fortalezas jamais erguidas pelos Porlugueses, a do Mente Brasil em Angra (1590] num circuito de 6 km e a da Aguada em Goa (1604) com um perimelro que atinge os 8 kr. Amecoacis vomscien ns ronazao Sto Tacooe ‘Smo, no Prous unos mises Poeroutss 1612 quisa doLAP | 8 Puan su mace Manono Weeocos uo oreo Sano 00% Sao e720 sinbsad ap sowepeD B Deoure ox an mane, eswso0 airs oes tons oCcosmicoecans Nesse triunfo de geometrismo e do grande escala, as cidades so deixadas ao Crescimento espontaneo, alias espetacular: a Sé de Goa (1562) € a malor catedral Portuguesa e as fundagdes dos Jesuitas, em particular a igreja de Macau (1602; fachada: 1624), nao tm paralelo na Europa. A Coroa utiliza as fundacées urba- nas (5. Sebastidio do Rio de Janeiro, 1565; Sanfissimo Nome de Deus de Macau, 1587 ~ Gnica cidade portuguesa de fundacdo parlicular ~; Sa0 Tomé de Meliapor, atual Madrasta, 1622] como instrumento ao servico préprio. Nao ha uma politica urbana coerente. Sem insistirmos na jesuitica Nagasaqui {1570}, que deve muito a 10 japonesa de estrita regularidade, e sendo a autoria do tragado do Rio de Janeiro ainda um problema (Battista Antonelli, 15822), a Gnica criactio de interes- se parece ser Damaa, na Provincia do Nore na india. Em torno de um forle a Quadrangular ocupado em 1559, 0 vice-tel_D. Constantino de Braganca - que devia ter em mente a corte ducal renascentista de Vila Vicosa. tracada.em 1535 pelo engenheiro Benedetto da Ravena inspirado em Alberti ~ fez repetir o médulo em quadras e ruas iguais, sem praca central, num fabuleiro de xadrez perfeita- mente regular Ique é costume atribuir ao engenheiro-mor de entao, o italiano Jodo Balista Cajratol. 4 influ8ncia classicista da cidade-militar e da cidade-fronteira da Italia @ Gbvia: um jesuita ja escrevia em 1570 que pelo seu tracado Damo the fazia lembrar as melhores cidades italianas, Mas tudo aponta como autor 0 arquiteto amador dominicano Fret Julian Romero, um castelhano que vivera em Roma no meado do século e que tanto se pode ler baseado nas Leyes de Indias iberoamericanas como em idéias colhidas na ratadistica italiana, como P. Cataneo {que estava sendo usado precisamente 1635 BmoncaNaocna oe sderos de pesquisa dota | t 2 Pane oa a Cases ma ‘neo Fue Tra, 1894 Nesse ano pelo fortiicador oficial na construcdo de baluarles no Forte de Barém, no golfo Persico. E uma coincidéncia ~ de datas, de fontes, de localizagao - que lulgo que explica o caso atipico, verdadelramente excepcional, de Damao. Por tronia, € a regularidade excessiva da sua traga — em que se tem querido ver a “cidade ideal” por exceléncia dos Porlugueses na india - 0 fato exagerado que mais parece afastar-se da tradi¢o de empirismo dos nossas urbes “arruadas’, Confirma a idéia de corpo estranho 0.desenho demasiado rigido da muralha, decerto refeita ou encamisada por Cairato quando 16 trabalhou em 1588. , Por es- 5e5 mesmos anos, anonimamente, vai-se definindo o tipo de vila ou de cidade colonial portuguesa: em Olinda, Salvador, Rie, Santos, Luanda, Chaul, Bacaim, = Arelativa trangolidede criada pela Pax Lustana de D, Jogo E uma cidade lio- ranea, em excelente situacdo porludria e de condicdes de defesa ~ ndo por aca so muilas delas deram origem a megalépoles atuais, como Mazagao/E! Jadida {hoje 0 2° maior porto da Africa em movimento}, Rio, Salvador, Bombaim {com os seus 15 milhdes de habitantes}, Singapura [a herdeira de Malacal, etc. Por isso caterosdepequsadotar | elevadores ou monta-car- gas, formando um anfiteatro rodeado de montes: as sele colinas de Lisboa, ou 098 oifeiros de Goa e os morros do Rio. As ruas sdo determinadas pelo sitio: as cosias (‘quebra-costas’, rua cortando a encostal, a Rua Direita com suas fraves- 2 Sas, as serventias de igrejas, os adros, largos, pracas e a praca-de-armas para fungdes militares @ de prestigio, @ beira-mar, com a Camara, o palicio dos Go- vernadores ¢ 0 pelourinho: a futura Praga do Comércio @ a Praca da Sé. O seu iracado “tendenci I se cada vez mai 1, sem chegar & esquadria: procura-se um alinhamento refi n_quadras proporcionadas, 0 que nem sempre é possivel pela natureza do terreno ou edificios preexistentes; mas a intencdo de regularidade é tao indiscutivel quanto 0 recurso a desenhos uma ati rojato « medida obedecendo a princl \abitos ou norm: jo que a mi fixos e a re rand t velhos mé ‘do com uso ds ola, c: ft das encerad. = quadro. ———eeneeeenenrentntreneranmnnetniiens is ssn as- Sando insensivelmente da Néulica ao Urbanismo: & um navegador em. terra, pro- letando no solo concreto a quadricula virual dos mapas ocesinicos. ™) Passado o triunfo dos engenheiros militares italianos @ da Tratadislica normativa que Impuseram, volta ao primeito plano a criatividade dos “praticos - acionais sua experiéncia, agora enriquecida pela sintese entre o saber erudi- {0 0u livresco © 0 seu tradicional empirismo, Na melade oriental do império, sob @-ameaca cada vez mais agressiva das potncias concorrentes - os Holandases primelro (desde 1602, em que chegaram a fechar 6 acesso a Goal, os Ingleses no final do século — vive-se 0 momento do reco e da consolidacdo de posicées. Ea hora do Brasil, para onde se desloca o eixo dos aconiecimentos, De 1620 a 1750, aproximadamente, & al que ocorrem os progressos essenciais. Na pratica urbanislica do Reino as novidades so poucas: inlensifica-se 0 pro- cesso de arruamentos, no sentido (que vinha da Idade Média) de dispor os ofic- 05 Por tuas abertas propositadamente ~ a Bug dos Sapatelros, a dos urives, dos Cortecitos. dos Cordoeiros, dos Acougues efc.. coma ineio de feestruturar a ci- ide. Corresponde a uma exigéncia pragmatica do municipio, néo a uma teoria, Por isso ganham nova importancia os medidores camaraios, a quem compete o essencial do trabalho. A aberlura, por exemplo, da Rua Nova do Almada {1673}, ue ainda hoje liga diretamente o Chiado & Baixa e era entao a arléria mais mo. derna de Lisboa; foi um Processo complicado e longo, que reuniu um corpo de ecnicos: © engenheiro-mor, 0 vereador das obras camararias, 0 vedor, os mes- tres-pedreiros contratanies da empreitada, os louvados ou peritos no exame das expropriagdes © em avaliar 0 seu preco, os mesires das obras municipais ¢ o “medidor da cidade", que realizou a planta “indo cordeando com igualdade”*, 0 objetivo era essa fraca igual ~ oposta 4 “disformidade” — quo s6 0 medidor sabia & com que se buscava, além da utlidade pUblica, regularizar e dar “formosura’ a Assim, nao admira que o engenheiro-mar Manuel de Azevedo Fortes, no Seu tratadlo © Engenheiro Portugués lLisboo, 1729), propusesse a inslituigao de um corpo de medidores, com um medidor-mor e medidores das comarcas como superintendentes dos modestos oficiais camardirios: uma proposta légica que néio teve efelto, mas mostra que o ideal da regularizagdo era jé um dado adauirido, cadernes ce pesquisa doLaP | Eno espaco brasileiro, amplo ¢ aberlo, que essa utopia ligada & ideologia do lluminismo e da idade da Razdo iré encontrar a oportunidade de se realizar. Além dos engenhelros militares, habituades a abrir cominhos @ a tragar novas povoa- 969 id perfeltamente regulares (como mosttam as cartas de fundagéo de Vila Boa de Golds e vila de Ic6, 1736, S. José do rio Negro, 1755, ¢ Oelras no Piaui, 1761, tio idénticas que parece seguir um formulrio preestabelecidol, os age les na feliz e) doa? | cadernos de pesqui pressdo de Renata Aradjo: uma profissao [ou ao menos o nome! que parece nao ter existido em Poi Mais do que aos engenheiros, a esses hu- mildes funciondrios municipais deve-se a aparéncia. moderna das cidades brasi- leiras, mais regulares que as da metropole e do Oriente; e © terme j@ devia ser corrente no Brasil (e talvez em Portugal na linguagem colo- quiall desde o século XVI, correspondendo a forma verbal “arruado" - que imp! ca, logicamente, o verbo “arruar* ~ empregue por Duarte Barbosa em 1516 em Cananor com toda naturalidade de algo cujo sentido ninguém ignorava. Mas s6 0 ‘encontro pela primeira vez bem explicito por Gabriel Soares de Sousa no Trafado descritivo do Brasil, em 1587, quando descreve @ fundagéo, em 1549, da cidade do Salvador por Tomé de Sousa, arruando-a por boa ordem"*. No cap. X da II Par- te "como corre a cidade por este rumo..."), parece repetir Barbosa quando diz que do Terreiro de Jesus @ praca da Camara vai a cidade multo bem arruada: 0 que introduz uma sugesliva correspondéncia entre 0 conceito néutico de rumo e © urbano de flavarudda, isto é, direcionada em linha direita ou refiinea. Entre “tomar 0 rumo* e “artuar’ 0 paralelo é claro. pos a fundagtio da capital, creio que ndo é coincidéncia que o conceito surja bem expresso, ¢ ja com uma leoria implicita, em outro momento marcante na historia do urbanismo brasileiro: 0 tracado da outra capital, na costa Norte, a ci- dade de Sfio Luis do Maranhdo. & em novembro de 1615, apés a expulsdo dos franceses da “Franco Equinocial’, que o engenheiro-mor Francisco Frias de Mes- quita faz 0 projeto da nova urbe, que 0 “Regimento” do capitéo Alexandre de Moura, datado gé 9 de Janeiro de 1616, recomenda se execute fazendo que fi- que bem arruada e actescente a doacdo de chdos para as casas e faca a dita reparti¢do @ arrua¢ao seguindo em tudo a traca do engenheiro-mor, que, além disso, deixara feita uma casa para servir de modelo és demais (provavelmente, uma maquete em madeira}. € curioso, e sintomdtico do desconhecimento em que mesmo a melhor historiogratfia tem mantido este conceito, que o termo que consia do original, “arruagdo", seja lido por Paulo Santos como “arrumagao” ”... Temos aqui 0 passo fundamental na histéria da disciplina, em que da palavra designan- do a ago le 0 seu resultado) se passa a sua conceituagao. la em larga medida empirico e sem regras cienti cas, como 0 dos “medidores" do Reino. Encontramo-lo em Belém do Para, onde ‘em 1626 0 “tuador’ da camara abria_uma rua para albergar colonos vindos dos Agores!; © cremos que néo serd por acaso que as duas primeiras ocorréncias do termo surjam exatamente em cidades-fronteira do Norte, ambas modelos de colonizagao portuguesa que se opunham ds ambigSes estrangeiras. A atividade vulgarizava-se, e com ela 0 cargo respectivo - talvez restrito as capitais. assim 25 dv Topesabssd ap sowapes Bow Joust Gos once se ‘ove 9a a0 Francsco Xa 1593, ‘nub oun S90 8 i i i cadernos de pesquisa do Lap | que em 1685 {mas decerto desde muito antes) encontramos em Salvador o “arruador e medidor do concelho", o mestre-pedreiro Julio de Sousa, encarre- gado de abrir a Rua Nova entre a praia e o convento de Santa Teresa; particular mente curiosos sdo os termos da ata da vereactio descrevendo como se proce- deu & medicdo de propriedades vizinhas: presentes odes botou o pilloto o rumo € 0 medidor @ arruador e medidor do concelho Julido de Sousa botou suas linhas © achou unir a dita rua demandar as ditas casas...”. Uma vez mais, 0 paralelo enlre 0 tragado do rumo € 0 da rua¢do, navegando em terra, Em Salvador como em Lisboa, portanto, a designacdo oficial desse cargo do mu- nicfpio era “medidor’: devia ser a forma erudita e prestigiada, que s6 no uso cor- rente se substituia pela varianie mais popular de “ruador”. Em 1674 era “medidor da Camara” o engenheiro Francisco Pinheiro, autor do convento do Desterro 116871?” — 0 Gnico convento feminino existente em todo o Brasil até o século XVII ~ © sem d6vida 0 urbanizador de toda a encosta adjacente, entre a Ladeira do Carro e a da Fonte das Pedras. Ora, se, como afirma Carlos Ott, o mesmo enge- nheiro Francisco Pinheiro dirigiv em 1708-1709 as obras da igreja e do convento de Sao Francisco, até que ponio ndo seria ele, na sua competéncia de ruador da mara, 0 autor dessa obra-prima do urbanismo luso-brasileiro que é o Terreiro de Jesus? VIA regularidade tornara-se, pois, yma pratica generalizada, e 0 gosto pelas ruas © pracas retilineas condicdo essencial da formosura das vilas e cidades. Mas é © melhor testemunho desse momento, e documento Gnico do processo de afir- mado dessa prélica urbanisiica de que vimos os primeiros indicios no texto de Barbosa em 1516, & 0 inédito Tratado de Ruacdo de José de Figueiredo Seixas ofe- Fecido em 1763 ao todo-poderoso minisio Marqués de Pombal. Trata-se de um Manuscrito de luxo, bem ilustrado, contendo algumas propostas de interesse: uma reflexéo sobre o que se estava fazendo na reconstrugdo da Lisboa pés- Terramoto sete anos antes, constituinde como que a teoria do urbanismo pombalino que José-Augusio Franca caracterizou como sendo essencialmente empirico e imediatista, nGo-le6ricol. O autor, um pintor de omatos cenograficos da regido de Viseu que trabalhou com 0 arquiteto toscano Nicolau Nasoni e tra- duziu com vinte e poucos anos, em 1732, 0 famoso Perspectiva pictorum et architectorum do jesuita Andrea Pozzo (Roma,.1700), era um bom construtor de Profissdo na cidade do Porto ~ onde fez igrejas rococés (Ordem 3¢ do Carmo) e Neoclassicas lirmandade da Lapal e indmeros palacetes, solares jalribui-se-the a capela do Solar de Mateus, 1743], moradias rurais e prédios urbanos de aluguel ‘eesemantsenemnenmnnrsnaneahegenrenenseretrten tins : i 2 Ipraticamente toda a rua de Belomonte, por Irés da torre dos Clétigos! ~ e fol pro- fessor de Desenho na “Aula da Noutica e Fortificagao” instituida em 1762 pela Real Companhia dos Vinhos do Alo-Douro, a burguesia do vinho do Porto. Nessa qua- lidade ¢ que escreve 0 seu tratado, que tive a sorte de descobrir (alémri de uma Arte de Ediificar desaparecida} @ apresentei no 3° Centenério' da morte de Pom- bak — para onde remelo, 0 que me dispensa aqui de mais pormenores ~ tendo- © atuaimente em estudo para publicacto na Universidade de Washington {devido 6s semelhancas flagrantes entre as idéias do autor e 0 plano da capital norte- americana, do francés l'enfant, 1791), © contedo do texto é extremamente vasto @ denso ~ até no titulo: Tratado de Ruacdo para emenda das ruas das Cidades, Vilas @ lugares deste Reino... mas 0 sev objetivo 6 muito clar $ S / dades, sua fungio, histéria, tipologias etc.: 0 fenémeno urbano auténomo, tal como hoje o entendemos. Para isso, propée a criagéio dum estabelecimento do ensino em que seja esiudada e a profissionalizacao de um corpo de praticantes, 9s WYadores, com dois em cada comarca, coordenados pelo ruador-mor lem que Se sugere a si proprio). £ 0 projeto. falhado de Azevedo Fortes de 30 anos atras Para os “medidores”, mas que Seixas retoma com uma minticia e uma fundamen: la¢Go matematica mais que convincentes, levando o seu enlusiasmo a pormeno- res quase risivels: propde, por exemplo, que todo o pais seja dividido em quadra- dos de % légua (3 km de lado, por sua vez subdivisiveis noutros, por ruas conti- nvas, prolongadas por estradas também retas e perpendiculares, criando uma auadricula de dimensées constantes por onde se distribuam os lotes de constru- 50, 08 compos de cultivo e alé as Greas floresiais, de modo que, como ele diz, {al “composicao formosa” trard o bem comuim “e o pais inteiro parecer um jar. diml’ 4 ndo 6 56 a cidade mas 0 ordenamento do territrio, a rede de comunica- Ses ¢ a planificacdo regional (para usarmos termos de hojel que o preocupam, nesse final do Antigo Regime. Uma utopia, mas uma utopia realizével, um plano de asdo: basta ver os projetos idénticos aparecidos na Espanha (a Sindpia do conde de Campomanes, cerca de 1770, ¢ 0 Discurso sobre la necesidad... de buenos caminos publicado em 1763 pelo ilurhinista Padre Sarmiento) e as imen- sas linhas retas tracadas no mapa americano como divisas estaduais do Midwest- West pela Land Ordinance de Thomas Jeffersosn em 1785. A ulopia era possivel, Seixas desejava “erendar alguns defeitos da ruacdo" da cidade do Porto, mas apercebeu-se de que era impossivel fazé-lo parceladamente, como ele o diz; a “cidade perfeita” ou “cidade regular” so é viavel pelo planeamento global urna idéia de Pierre Patle) e da totalidade do p ciencia, © a6 vaidade, de estar fazendo obra nova, pois ‘nem athe o tempo presente houve algum sujeito que haja escrevido de semelhante materia". Mas segundo F capac Choay 0 conceito @ © nome do Urbanism foram inventados pelo engenhelo de — ane em Barcelona em 1867”. A originalidade da Proposta ambiclosissima de Figueiredo Seixas ~ cujo mapa se encontra no Rio de Janeiro — & que ele vai pegar numa tradigo velha de séculos e castamente nacional, que istura com leitur tt sl aAl ivros d nageme a arte da quadratura de tetos. De fato, 0 termo “Ruacdo" é uma palavra desaparecida, sem traducao possivel noutras linguas®, ¢ a realidade que Ihe ser ve de suporie @ a experiéncia urbanistica colonial lusitana, 0 século XVI passamos oo jo XVII, para terminar, fechan- do 0 ciclo, ne coragdo do Portugal setecentista burguas (e ndo na Corle, note- se). Ninguém suspeitava da existéncia deste surpreendente precursor selecentisia de Cerda, que deve ter estado no Brasil e dé como exemplo de boa Taco a nova Lisboa pombalina e o Rio de Janeiro — as duas capitais do império luso-brasileiro. © seu utopismo é a ocupagdo racional dos espacos do Novo Mundo e 0 mapeamenio enciclopédico do continente, acabada a descoberta dos oceanos: triunfo do sonho lou pesadelo) da régua-e-esquadro substituindo a cultura da bissola e do compasso. Nao é um texlo fundador mas conclusivo: @ feorizac cola fugu le urb« 10. Como era de esperar, 0 livro de Seixas ficou guardado em alguma gaveta, duran- te dois séculos. Mas é legitimo perguntar 0 que teria acontecido se 0 Marqués de Pombal tivesse decidido dar-Ihe atencdo e posto em pratica, criando uma dis- ciplina e um corpo de praticantes préprios. Provavelmente, estariamos hoje aqui reunidos no “V Seminario de Histéria da Cidade e da Ruacéio" Notas |, David Friedman, Florentine New Towns. Urban design inthe tale Mlddlo Ages, M1, Mass.,19B6Imesmo Aiscordando de algumas de svas reconsitugdes do trecada tegulador, 2. Bo arabe od-doya, “casal ristco, herdade", mas que na Reconquista se eslende a qualquer ndcleo no campo com freguosia e igreja matrz. Falta saber a sua evolugéo no Brasil, 4. Vor coronel Vasco da Casta Salama, Pelourinhos do Bros, SP, Usbog, 1992 “pclmaauiim Verissime Ser1B0, A concessao do foro de cidade am Portugal dos séculos Xi! XIX, sop. De ‘Portugaliae Historica, vol, Lisbon, 1973, pp 12-80, §, be cielo consueludinaio,reconhocido por carta régio de D. 10801 em 1890 o publicado por flip nos Prvlegios dos eidadaos da cidade do Porto (Port, YOM: 3 ed, 19871. Vor M. Helona Cruz Coelho ¢ I Romees Magaihaes, 0 poder municipal em Portugol, Coimbra, 1984, 6,fta. Jos8 Manuel Fernandes, Angra do Heroism, co. “Cidades @ Vilas de Portugt’, Editorial Presenco, Lisbon. 1989, pp. 46-52. A expresso fol cunhado pelo Prot A Franco na recensdocriica to Inve, podlnteg a revista Coldquio-Aries, Lisboa, 1990, 7 abre 0 eoncelto de “Arquifelura de Programa’, ver Prof Dr. J Harta Correo. Vila Real de Santo Antonio: Uubonlsme poder na poliiea pombatna, Porto, Faculdade de Arqullehic e Urbenismo do Porta: 199i ah oe UNL, 1988), cede pesculsadoLA? | § Aptimeira edi impressa do De Architecture & de 1496-86 Inova um exemplar na biblioteca do arcebispo le Gragol, mas exisiem mais da 40 manuscritos medievols, algum dos quale seria decors conkeeey oe Infante D, Henrique oliavos de seus cantates italianos J,No.caso concreo da Ordem de Cristo, podemas suspeltar do papel de Jodo de Alverco, ‘mes ve do podrarar des tes D, Dual ©. Alonso V, mario em 1466 F. Sousa Vilerbo, Dicondlo dos Arumecos. i, 1899, oo Sa ¢ #991 mas que também fazia obras millores (Monumenfa Henricina, 1960, 5. V), € do vedor des chavs aa Infante @ seu alferes-mar, 0 cavalero D. Frei Gongalo de Sousa, olcide-mor de Toman, culor orn hase ca 10.0 onesie de “esta manuelino” fot batizado e definido pelo brosleio FA. Varnhagen no opésculo Novica Hisiorica @ Descriva do Masteira de Gelém lisboa, 1842) 1. Bocumentagdo 6 publicar. H6 pracas manuelinas regulores em Beja, Ehas, Evora, ek 2 Palocl Morsic, Goa om 1595. Uma cidade manuetina, sop. Oa “Revista da Faculdade de Ciencias Seciais @ Humonas", Univarsidada Nova de lisboa, n='8, 1995 Toad Navas Kavos, © Uvo de Duarte Barbosa, Usboa, 1992, pp. 23,25, 48 © BB. HG ume edd de ko, por Franca Maria Rice, Codice Casanatense, milao. 1988 4B Morelia, “notre de Carvalho, a Renolssance architec in he Gul, In M. Kerwin, ed, Bahrain inthe Toth Century. an impregnable island, thanama, Bohrein, 1988, pp. 85-98 5 15. M. Helene Murteira, isboo da Restauracao ds Luzes: uma andlice da evelugdo urbana, ese de Mestrado fom Hisiério do Ate, Universidade Nova de Lisboa, 1994, p. 171 15. G. 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Autti F dodo como brasierismo om Morcis Sita 11789: Rvagdo, nagado de Tuas onde ndo exislem consirucdes)& © alentejano Limo Bacslar 1783: Arua, fazer rua deal 23. A votre franceso, que deu origem a olguns texos do século Xvtt nunca publicados, designewa apenas 0s ‘Quest0es praticas de impeza das ruas (sogundo informagdo pessoal do savdoso Prof. André Chastel a Fanaa cams Sha lasie Muni. T758, Cera sare Amin Maca Ht Tv, caternas de pesqulee doLAP | Prot ocreecou topo BROS SeunDD cet EE MEH FEMALE A a, MEIN US ‘16D. Jomo D, Cre azo MeO MM | WMA ie awe ew C1980

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