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Gostei muito, Hanita.

De início, soa mais como um relato, especialmente pela


linguagem sincera e simples, como se fosse apenas você contando sobre as coisas
que tem. Mas os objetos vã o se cruzando e formando uma trama mais complexa, as
caveiras no sidur, tudo para redundar na instalaçã o final, que faz o texto terminar de
forma finalmente literá ria, seca e significativa.
Eu mudaria apenas alguns trechos para torná -lo um pouco menos “relato” em
algumas partes, especialmente quando você fala coisas do tipo “fico pensando”, esse
tipo de construçã o. Adorei a forma como você foi estabelecendo relaçõ es entre
objetos aparentemente sem nexo comum, apenas o fato de você possuí-los. É , como
sempre, um trabalho super original, criando uma reflexã o sobre perdas e sobre a
morte, todas interligadas pelo teu olhar.
Beijo,
Noemi

As coisas que tenho

Acontece que as forças diminuem e julguei


por bem me desfazer de parte da bagagem.
R. Naves

Tenho em mã os um pequeno livro, um sidur de reza preto e fosco, menor que a


palma, de bolso. Parece novo mas, quando abro, as folhas estã o amareladas. Pouco
uso mas mesmo assim, usado. Na terceira folha, uma especificaçã o da ediçã o; sem
muito alarde, o mesmo desenho da pá gina anterior, em hebraico: Sidur Kol Bo,
santificado à lembrança dos que foram mortos nos anos 1939 a 1945 sob as mã os
dos nazistas; uma nota embaixo, com letras menores, avisa que a reza da lembrança
dos mortos está na pá gina 251 e o calendá rio do aniversá rio das mortes, no final do
livro. Na ú ltima pá gina, leio que esse sidur foi publicado em novembro de 1946, sob
a aprovaçã o da UNRRA em Ulm, Danube.
Um sidur dedicado a uma memó ria recente que ainda nã o é passado. Provavelmente
publicado como um ato de reparaçã o já sque os sobreviventes nã o têm mais no que
rezar: os livros, sidurim, hagadot, meguilot, cadernos, tratados talmú dicos, rolos da
Torá , todos, queimados. Esses sobreviventes nã o sabem para quais mortos rezar,
ainda nã o sabem. Tem espaço para doze nomes no calendá rio dos mortos: nome,
data e local de falecimento. Rezar pelas almas de doze pessoas é muito, mas nã o
para esse livro. Com vinte e um anos o dono do sidur já tinha, em 1946, mais do que
doze nomes a rezar. As pá ginas dos calendá rios das mortes estã o com a ponta
dobrada, cada uma separada e dobrada; sem nomes nem datas nem local
assinalados, todas as doze pá ginas em branco estã o marcadas. Fico imaginando
esses sobreviventes abrindo o sidur e vendo as letras em hebraico depois de seis
anos de guerra; é uma imagem de filme, com drama e sofrimento, pouca luz no
alfabeto iluminado; quase uma impossibilidade nas telas. Na verdade, minto. Nã o
penso em nada, nã o consigo. É um buraco negro na minha cabeça criadora de
mundos mas que, nesse lugar, nã o vê nada.
Esse sidur viajou pelo mundo; de Munich a Sã o Paulo, dentre todos os outros lugares
pelos quais passou, está agora aqui. Sobreviveu ao dono, meu pai. Era usado, nos
ú ltimos dez anos, na Havdala aos sá bados no apartamento da minha mã e. Quando
esvaziamos o apartamento, quis, num primeiro impulso, dar tudo; depois, jogar
muito; acabei ficando com mais do que o suficiente. Disse nã o à caixa de Havdala e
agora sei que o sidur ficou conosco porque meu filho pegou: é dele por direito daqui
pra frente. Até esse sá bado estava numa caixa em cima da estante de livros. Entã o C.
me disse: esse sidur é de 1946, você sabia?

O parapeito da minha janela tem quase cinquenta pedras; tã o diferentes entre si,
parecem pessoas: algumas sã o roladas, outras têm até brilho. Fui pegando em
viagens, foram pegando e dando para mim; guardo lembranças de praia com bolso
de criança pesado. Nã o lembro da origem de cada pedra, nem me esforço; monto
totens desde que vi vá rios na Bolívia e acho muito difícil equilibrar pedras tã o
peculiares. Os totens na viagem eram marcaçõ es, nã o sei do quê ou nem perguntei já
que o que me chamou a atençã o foi a estética desses monumentos espontâ neos,
pensar que alguém tinha feito aquilo ali, tanto esforço e delicadeza para equilibrar
pedras enormes, no meio do nada, cada cultura com suas pedras; os judeus as
colocam no cemitério, faz parte da visita, as pedras sobre o tú mulo. Gosto de ir ao
cemitério, adoro colocar muitas pedras nas lá pides dos meus pais, cada pessoa
simbolizada numa pedra. Fico olhando os seixos brancos sobre o má rmore, monto
um totem horizontal como se fosse uma á rvore genealó gica, tantas pessoas os dois
deixaram no mundo.

Minha amiga gosta de cemitérios e de arte, como eu; somos bem amigas. Vi, numa
exposiçã o dela, um coraçã o vermelho de acrílico com asas que batem quando se dá
corda. É do tamanho do meu polegar, cabe na minha mã o fechada. Gostei tanto, dei
muita corda e as asas quase fizeram o coraçã o levantar voo, que ela acabou me
dando o coraçã o. Agora esse coraçã o é meu. Realmente, à s vezes me pego pensando,
para que ficar com esse coraçã o, bastava o amor que senti por ele, o coraçã o da
minha amiga. O doutor Rui pegou o coraçã o transplantado do tio e ficou esperando a
madrugada inteira o cemitério do Butantã abrir para o coraçã o ser enterrado no
mesmo lugar que o tio um dia será . O tio encontrará seu coraçã o velho e gasto,
possivelmente sofrido, quando for visitar alguém no cemitério. Passará na sua
futura cova e fará uma reza por esse coraçã o, enterrado antes do pró prio corpo. Um
dia, nessa cova, estarã o juntos corpo, coraçã o velho e coraçã o transplantado. O
sobrinho, doutor Rui, colocará pedras na lá pide.
Mexicanos convivem artisticamente em paz com a morte; um olhar de longe me faz
acreditar que a morte, para eles, é feliz e colorida. Tenho doze micro caveiras
mexicanas – do tamanho do meu dedinho - de metal pintado de branco, guardo num
pote no tampo da mesa que uso para escrever essas palavras. Sento a caveirinha na
borda do pote, ela sorri como se estivesse feliz, assim, sem estofado nem pano, nem
carne, nem sangue. Ossos felizes. Posso enxertar as caveirinhas nas pá ginas
dedicadas aos mortos do sidur kol bo já que sã o doze pá ginas e doze caveirinhas.
Uma simbiose de caveiras mexicanas e pá ginas escritas em hebraico, nesse sidur
que viajará para museus do mundo inteiro. Como instalaçã o artística penso numa
sala de um branco ofuscante, alta, altíssima, com seis milhõ es de seixos brancos
formando um totem imenso e, lá no alto, o sidur Kol Bo preto incrustado com
caveiras.

Na verdade, minto. Nã o vejo arte em nada disso, o que enxergo está além de
qualquer estética, nã o passa pelo cérebro, pelo coraçã o ou pelo olho; meus cinco
sentidos tã o treinados e aguçados nã o dã o conta. Quando vou ao cemitério sinto
cheiro de pã o doce mas lá nã o tem nenhuma padaria, assim só posso associar o
cheiro com algum outro sentido, nã o um sexto. Um sentido sem nú mero, sem
sentido. Como todo o resto das coisas.

Hanita Bergmann

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