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1416 Sobre A Voz
1416 Sobre A Voz
Jean-Michel Vives
Professor de Psicologia Clínica e Patológica.
Universidade de Nice-Sophia
Psicanalista – Toulon
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Essa alternância vem indicar a indecisão que se encontra, em Lacan, entre ‘discurso sem palavras’ e
‘discurso sem fala’. A fórmula ‘um discurso sem fala’ me parecendo a mais pertinente para dar conta da
posição analítica, é essa forma que utilizarei ao longo deste artigo.
De fato, o discurso sem fala proposto por Lacan articula de forma específica o
silêncio e a voz em sua dimensão de objeto pulsional. Pois então dedicaremos algum
tempo a esses dois elementos e, mais particularmente, ao que os liga um ao outro.
O objeto voz não faz parte da lista dos objetos pulsionais estabelecida por Freud,
que identificou essencialmente os objetos oral (o seio), anal (as fezes) e fálico (o falo).
Será preciso esperar os anos 60, e os trabalhos de Lacan sobre a psicose, para que sejam
introduzidos, na dinâmica pulsional, o objeto olhar — que Freud (1915 [1996, p.134-
135]) já havia identificado2 — e o objeto voz.
No trabalho do psicanalista francês a abordagem da voz tem sua origem no
estudo das alucinações psicóticas que invadem e dominam o sujeito — como é
notadamente o caso do delírio paranóico. Apesar disso, Lacan muito rapidamente
extrairá o objeto voz dessa particularidade psicopatológica para incluí-lo na própria
dinâmica do devir sujeito. Essa providência introduzirá a voz, como um objeto da
pulsão (a pulsão invocante), ao lado do seio (pulsão oral), das fezes (pulsão anal) e do
olhar (pulsão escópica). A pulsão invocante vai adquirir pouco a pouco um estatuto
particular no campo pulsional por causa de seu laço estreito com o significante e com a
fala. Porém, se Lacan consagrou diversas sessões de seu seminário para demarcar o
olhar como objeto da pulsão escópica (Lacan 1964 [1998, pp. 69-115]), os
desenvolvimentos a respeito do objeto voz são, por sua vez, raros e esparsos. Todavia,
sabêmo-lo a partir de então, tanto a emergência do sujeito quanto a sua inscrição no
grupo dos humanos devem ser compreendidas como estando estreitamente ligadas às
implicações do concerto de vozes que o cerca.
Se retomamos a definição dada por Lacan (1964 [1998, p. 101]) do objeto da
pulsão, ele se trata de “algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão”.
Não é nem o sujeito, nem o órgão enquanto tal que contam — compreendidos
isoladamente um do outro —, e sim o entremeio que os mantém distantes. Esse espaço
marcará o objeto da pulsão com o selo da falta e da perda.
A voz é, com isso, compreendida como o suporte corporal — logo, pulsional —
de um enunciado, qualquer que seja a modalidade sensorial por ele utilizada. Isso Lacan
intuiu bem cedo, visto que desde 1956 ele afirma:
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mas pode dar um jeito de também se expressar no campo escópico. De fato, isso implica
que a voz necessita menos de uma boca do que de um corpo. É a essa dimensão
incorporada da voz que Jacques-Alain Miller (1988, pp. 179-180) visa, quando propõe a
seguinte definição da voz: “tudo aquilo que, do significante, não concorre para o efeito
de significação”.
Essa definição nos permite precisar a dimensão áfona da voz que anteriormente
já havíamos esboçado. Dimensão áfona da voz que, por mais paradoxal que seja,
mostra-se tanto ser a mais precisa em nos permitir que nos libertemos de uma
psicofonologia, quanto permitir abordar a voz não do lado de suas variações imaginário-
simbólicas (altura, ritmo), e sim do lado do real e da estrutura. Essa compreensão da voz
como potencialmente silenciosa nos permite perceber o que está em jogo no discurso
sem fala, e reclama definir um certo tipo de silêncio.
Para podermos fazê-lo, proponho a vocês realizarmos um pequeno desvio por
aquilo que propus chamar de ponto surdo. Ponto surdo que defini como sendo o lugar
intrapsíquico em que o sujeito, após ter entrado em ressonância com o timbre originário,
deverá poder se ensurdecer a ele para falar sem saber o que diz, isto é, como sujeito do
inconsciente.
Se a psicanálise pôde ser considerada, numa primeira parte de sua história, uma
hermenêutica do inconsciente — apesar de certas indicações freudianas restritivas como
a designação do umbigo do sonho, em A interpretação dos sonhos (Freud 1899/1900
[1996]) —, o tratamento do homem dos lobos (Freud 1914/1918 [1996]), fundamentado
na reconstrução e na rememoração da cena primitiva, vai levar Freud a reconhecer um
furo no saber inconsciente do sujeito. É esse furo que vai conduzir à elaboração do
enigmático conceito de recalque originário, que vai modificar profundamente a teoria
analítica e, consequentemente, a prática (Rey-Flaud 2002).
A elaboração desse conceito, por mais de trinta anos, tem suas raízes no Projeto
para uma psicologia (que data de 1895) e na carta 52 (enviada a Fliess no dia
6/12/1896). Em seguida, encontrará uma formulação mais precisa nos dois textos de
1915 (“O recalque” e “O inconsciente”) incluídos na Metapsicologia, antes de ser
completada — quando do texto de 1925 sobre a Negativa.
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torna, daí, sua delegação no mundo (o conjunto que constitui o ‘eu’ mestiço da segunda
tópica).
É nesse nível que faço a hipótese da constituição, no seio da psique, de um ponto
surdo. Ponto surdo tão hipotético quanto o recalque originário, mas cuja hipótese me
parece necessária para compreender as questões de subjetivação ligadas ao circuito da
pulsão invocante.
Freud pudera fazer a hipótese de que a constituição do campo visual necessitava
da exclusão de algo que implicaria a constituição de um “ponto cego”. Assim afirma
nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: “o encobrimento do corpo, que progride
com a cultura, mantém desperta a curiosidade sexual, a qual almeja completar o objeto
sexual através do desvelamento das partes ocultas” (Freud 1905 [1996, p. 148]).
Nossa entrada na civilização exigiria a exclusão de uma parte do corpo: esse
seria, ao mesmo tempo, o preço que pagamos e a condição de nosso prazer em olhar. O
passo suplementar que Lacan nos permite cumprir é que o elemento excluído não é
necessariamente a realidade dos órgãos genitais, mas sobretudo este elemento retido do
corpo da mãe que é o olhar (Lacan 1964 [1998, pp. 69-115]).
Antes de ver, o infans é olhado por todos os lados; e esse olhar é tanto mais
intrusivo quanto mais difícil for de assinalar de onde ele vem. Esse elemento permite
compreender a dimensão maléfica geralmente associada ao olhar: somos olhados sem
saber de onde “isso” nos olha. O infans está imerso, desde a sua entrada no mundo, num
espaço panóptico. Para poder olhar e tirar prazer disso, o sujeito deverá desembaraçar-se
do olhar do Outro: não mais apenas ser olhado, mas olhar (dimensão ativa da pulsão
escópica) ou se fazer ver (dimensão ativa na passividade — o que poderíamos chamar
de apassivação da pulsão escópica). Se a dimensão visual é estruturada por uma
ausência em seu campo, parece-me necessário sustentar a hipótese de que o campo
sonoro se organiza, ele próprio, ao redor de um ponto surdo.
Ponto surdo cuja constituição parece, apesar disso, mais problemática do que a
do ponto cego. Com efeito, se o bebê pode desviar seu olhar, o mesmo não vale no que
concerne ao seu ouvido. Se Freud tendera a privilegiar a questão da amamentação na
relação do infans com o Outro primordial, as pesquisas em psicologia do
desenvolvimento mostraram que um tempo extremamente importante na hora da
amamentação era consagrado ao fato de olhar a mãe, e o quanto esta última podia ficar
ansiosa se o bebê recusasse essa troca de olhares. Desviar-se do seio poderia ser, desse
modo, uma forma de mostrar sua subjetividade, e desviar seu olhar poderia ser uma
outra. Contudo, não se pode desviar o ouvido, que não possui esfíncter. Frente à voz do
Outro não há escapatória possível. Talvez seja essa particularidade que dê à voz esse
lugar preponderante no seio do fenômeno das alucinações. Com isso, podemos adiantar
que a constituição do ponto surdo não se escora nada numa função corporal, mas se
mostra efeito de uma operação linguageira: a metáfora — o que é bem o caso do
recalque originário. Sustentar a hipótese do ponto surdo permitiria, desse modo,
repensar, no campo sonoro, a dinâmica do soerguimento do sujeito na época da
constituição do recalque originário.
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Retomemos agora o nascimento do sujeito em sua articulação com a voz do
Outro. Ao conferir à invocação, assim como ao olhar, o estatuto de pulsão, Lacan está
propondo uma nova dialética das pulsões. Ao lado dos objetos oral e anal, articulados à
demanda (o objeto oral é associado à demanda ao Outro; o objeto anal, à demanda do
Outro), Lacan introduz o olhar e a voz, que, ambos, concernem ao desejo — o olhar é
associado ao desejo ao Outro; a voz, ao desejo do Outro.
A voz que vem do Outro é a manifestação do desejo dele, e é igualmente o
desejo que dele se tem. O que leva Lacan a dizer que:
a: objeto
Aim: trajeto
Rim: borda
Goal: finalidade
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Circuito da pulsão invocante 5
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Lacan não usa ‘nominativo’ (nominatif) para se referir ao caso gramatical, e sim para assinalar que o
termo ‘insigne’ se trata aqui de um substantivo (nom). Afinal, a frase que acabara de dizer é homômina a:
“Não é à toa que essas realidades são chamadas de insignes”. (N. do T.)
7
“Trata-se do sujeito do gozo, na medida em que essa expressão tenha sentido” (Lacan 1962-63 [2005, p
192]).
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b) Ouvir: esse segundo tempo corresponderia ao advento do Outro da pulsão que
responde ao grito.
c) Fazer-se ouvir: esse terceiro tempo seria aquele em que o sujeito-em-devir se faz
voz, indo ao encalço do ouvido do Outro para dele obter uma resposta.
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instituição de um novo sujeito para o qual se mostra, a fim de ser
por ele olhado. (Freud 1915 [1996, p. 134-135])
Aqui Freud qualifica o Outro da pulsão como ‘novo sujeito’. Qual é, então, a
diferença qualitativa que Freud está tachando nessa novidade? Digamos que esse “novo
sujeito” é aquele que o sujeito-em-devir supõe e — além do mais — constitui, isto é, um
Outro não surdo, mas nem por isso “pan-fônico”.
É esse ponto surdo que o discurso sem fala ao qual Lacan se refere fará ressoar
no paciente. O silêncio específico desse outro suposto não surdo que é o analista teria a
possibilidade de recolocar em jogo esse instante enigmático em que o sujeito aportou
em sua relação com a voz do Outro.
Compreendeu-se o seguinte: a pulsão invocante precisa de um endereçamento.
No encontro analítico, ele se trata do analista, ou mais precisamente de seu silêncio.
Silêncio que não é ausência de todo e qualquer ruído, e sim o silêncio necessário à
escuta — em que o paciente pode se experienciar como sendo levado em conta e tendo
algo a dizer. Entretanto, algo surpreendente — passamos pela experiência disso
quotidianamente — é que, até mesmo quando se cala, o analista está, com relação ao
paciente, num laço que é o de um discurso. O discurso psicanalítico, aquele que Lacan
diz que pode se tratar de um discurso sem fala, seria, então, um dispositivo que permite,
para além das palavras, fazer ouvir uma voz. Com isso, esse discurso sem fala torna-se o
meio de dar voz ativa a esse Outro em mim.
O silêncio ao qual o analista está fadado não o impede absolutamente de
sustentar um discurso, ainda que sem fala. Mas, para isso, é preciso alguém que aceite
estar em posição de receber o que ele diz num silêncio que não é mera ausência de
linguagem.
Se o discurso do analista pode dar num discurso sem fala, isso não o impede
absolutamente de intervir. No entanto, esse discurso sem fala encontrará um jeito de se
exemplarizar através de um certo tipo de silêncio — que iremos atrás, a partir de agora,
de especificar.
Esse silêncio, que eu qualificaria tranquilamente como invocante, foi
lucidamente descrito por Alain Didier-Weil (2010, pp. 27-28) em sua última obra: Un
mystère plus lointain que l’inconscient [Um mistério mais longínquo que o
inconsciente]. Para introduzi-lo, ele relata um episódio da vida de Rilke, quando este era
secretário de Rodin. Rilke sofria, nessa época, de distúrbios melancólicos dos quais
ninguém conseguia livrá-lo. Porém, ao entrar um dia no atelier de Rodin, ele pôs a mão
por sobre a face de uma estátua em que o escultor havia acabado de trabalhar. Conforme
o testemunho de Rilke, ele então sentiu retornarem-lhe as forças vitais que o haviam
desertado. Em que consiste a eficácia dessa mensagem silenciosa que as palavras eram
incapazes de transmitir?
Para tentar responder essa pergunta convém distinguir, com A. Neher, dois tipos
de silêncio. Assim afirma o autor: “se a negação da fala — a não-fala — é o silêncio, o
não-silêncio não é automaticamente, nem necessariamente, a fala. Esse não-silêncio é
um silêncio mais silencioso que o silêncio” (Neher 1970, p. 75). Desse modo, ao
silêncio da fala — um silêncio habitado — viria se opor um silêncio pleno, incitando o
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antes da criação, em que o significante ainda não havia efetuado o seu trabalho de
encetamento do real. O silêncio da fala, ao contrário, é um silêncio aberto ao
acolhimento dos significantes a devir. Trata-se de um lugar de recepção para a fala. É
esse silêncio que permite que o ponto surdo ressoe, a fim de que o sujeito — para além
dos sintomas, inibições e angústias — possa soltar a voz para se inscrever no concerto
de vozes do mundo. O discurso sem fala do analista, sua enunciação silenciosa, deve ser
então compreendido como um silêncio que se ouve; silêncio invocante que chama o
sujeito a sair do silêncio pleno no qual ele pôde se enclausurar. Silêncio que faz ressoar
o “fiat lux” criacionista do terceiro versículo da Bíblia, que Lacan (1975, p. 267) será
levado a entender como um “fiat furo”. Lacan já havia cruzado com essa questão ao
propor, para grande surpresa e incompreensão de expectadores tão atentos quanto S.
Leclaire, uma tradução completamente pessoal8 do primeiro versículo do evangelho de
São João, traduzido em latim como: in principio erat verbum9. Lacan propõe substituir o
Verbo, geralmente entendido como Palavra {Parole}10, pela linguagem — traduzindo,
assim, não por “no princípio era o verbo”, mas por “no princípio era a linguagem”.
“In principio erat verbum, trata-se incontestavelmente da linguagem, não se trata
da fala”. Ao que S. Leclaire responde: “então, não tem começo” (apud Lacan 1954-55
[1985, p. 364]).
Como compreender essa asserção de Lacan a partir do modelo — que
desenvolvi anteriormente — do nascimento do sujeito na sua relação com a voz do
Outro? Lacan propõe justificar essa proposta de tradução remetendo a uma alteridade
significante primordial, que se exprimiria não através de uma palavra que se dirige ao
ouvido, mas de uma ação silenciosa. Podemos reconhecer aqui a cena relatada por Rilke
— mas igualmente a voz, na medida em que pudemos defini-la como áfona. Existiria,
desse modo, uma voz que não falaria e que, entretanto, permitiria atingir o sujeito. Essa
aporia de uma voz não sonora responde as perguntas recorrentes que nos são feitas a
respeito do que é que acontece com as crianças surdas no que tange ao processo
descrito. Nesse caso, como sabemos, a mãe tem condições de desenvolver um chamado
a ser que não passa pela via da audição, mas pela do olhar e do toque. Poderíamos,
então, falar de uma voz se exprimindo no campo da visão e do tato.
In fine, poderíamos propor substituir o in principio erat verbum, de João, por um
in principio erat vox — no princípio era a voz. Não uma voz sonora, mas aquilo que
excede todo ato que implica um endereçamento. Essa voz é a que preside a criação
silenciosa do mundo.
8
“Se eu estava pedindo pro padre Beirnaert acudir, é por causa do in principio erat verbum. O senhor
disse, um dia, que fides era o que melhor traduzia a fala. É curioso que a tradução religiosa não diga in
principio erat fides. Verbum é a linguagem, e até mesmo o vocábulo {mot}. No grego, logos também é a
linguagem, e não a fala. Depois disso, Deus fez uso da fala — Faça-se a luz, diz ele” (Lacan 1954-55
[1985, p. 353]).
9
Yohanân, Evangelhos traduzidos e apresentados por André Chouraqui. Paris: Desclée de Brouwer, 1976,
p. 435.
10
É a posição de Chouraqui, que propõe traduzir esse primeiro versículo como:
“No princípio era a palavra
e Elohim está com a palavra:
a palavra é Elohim,
ela é princípio com Elohim”
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“No princípio Elohim criou os céus e a terra” 11. É só no terceiro versículo que a
voz de Deus faz-se ouvir e se exprime numa fala: “E Elohim disse § seja luz §§§ E foi
luz” (ibid., 41).
Logo, devemos distinguir bem aqui uma voz silenciosa — que é um puro
chamado a devir presidindo o próprio advento do real — e uma voz que se exprime
numa fala que visa, por sua vez, a dar forma a esse real advindo. Essa voz silenciosa
teria de ser relacionada com a ressonância de que fala Lacan quando do seminário
consagrado ao sinthoma, em 18 de novembro de 1975:
Tem que ter alguma coisa, no significante, que ressoe. Não dá pra
dizer que a gente não fica surpreso que, os filósofos ingleses, que nada
disso tenha ocorrido a eles. Eu chamo de filósofos — porque não são
psicanalistas. Eles acreditam pra valer que, a fala, ela não tem efeito.
Estão errados. Eles acham que há pulsões! E isso quando não
resolvem traduzir Trieb por instinct. Não passa pela cabeça deles que
as pulsões são o eco, no corpo, do fato de que há um dizer. Esse dizer,
pra que ele ressoe (...), o corpo tem que ser sensível a ele. Que ele é,
isso é um fato. Isso porque o corpo tem alguns orifícios, dos quais o
mais importante é o ouvido — porque ele não pode se encerrar, se
fechar, se trancar. É por esse viés que responde, no corpo, o que
chamei de ‘voz’. (Lacan 1975-76 [2007, p. 18-19])
Reconhecemos, desse modo, o discurso sem fala caro a Lacan. Lá onde a fala
pode fazer cair o sintoma, ao desvelar os significantes que aí se achavam enquistados, a
voz silenciosa e invocante incita esse momento de soerguimento, em que o real humano
viu-se abrasado pelo encontro com o endereçamento. Endereçamento que então se
revelaria como sendo a forma mais depurada da voz, no sentido em que a psicanálise
tenta abordá-la.
Para concluir — vocês já devem tê-lo captado —, se um discurso pode ser sem
fala/palavras, ele não teria como ser sem voz, nem muito menos — mas isso é a mesma
coisa — sem endereçamento. Sem dúvida é aí que está o pungente do encontro
psicanalítico, e que a experiência nos lembra dia após dia: o silêncio que habita a sessão
não é um silêncio de espera, mas um silêncio de esperança. A espera está claramente
articulada à ilusão da completude. O seguinte excerto dos Fragmentos de um discurso
amoroso, de Roland Barthes, indica isso com precisão:
11
La bible, Entête (La Genèse), traduzida e comentada por André Chouraqui. Paris, Jean-Claude Lattès,
1992.
14
prerrogativa constante de todo poder, “passa-tempo milenar da
humanidade”. (Barthes 1977 [1990, p. 96])
BIBLIOGRAFIA
12
A tragédia de Eurípedes, na verdade, carrega o título de Hércules (ou Héracles). Talvez por influência
da obra de Sêneca, Hercules furens, ela seja frequentemente conhecida como Hércules Enlouquecido,
Hércules Furioso, ou ainda da forma que o autor traz neste artigo. (N. do T)
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