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Se um discurso pode ser sem fala/palavras1, ele pode ser sem voz?

Jean-Michel Vives
Professor de Psicologia Clínica e Patológica.
Universidade de Nice-Sophia
Psicanalista – Toulon

Trad. Paulo Sérgio de Souza Jr.


Outrarte – IEL/Unicamp

“A essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala {parole}” (Lacan


2008, p.11). Em 13 de novembro de 1968 Lacan havia escrito essa frase no quadro, na
abertura do seminário De um Outro ao outro — no qual ele viria a preparar o terreno da
estrutura dos quadro discursos. Algumas semanas antes, em nota acrescida ao texto que
data de 26 de setembro de 1968, Alocução sobre as psicoses da criança, Lacan (2003,
p. 359) encerrava dizendo: “quando é que se vai ver que o que eu prefiro é um discurso
sem palavras {paroles}!?”. Pode-se observar que, entre a nota de 26 de setembro e a
primeira sessão do Seminário, em 13 de novembro, o s de parole(s) caiu, radicalizando
assim a expressão. Não é mais das palavras, mas justamente da fala que se trata, então.
Isso pode parecer particularmente enigmático, caso lembremos que é na fala — e na
dupla possibilidade que ela engendra de contar (rememoração) e de enunciar (produção
de efeitos de sentido) — que Freud havia inscrito a própria descoberta da psicanálise, na
medida em que a posição do analista que escuta teria como fazer advir um saber não
sabido pelo sujeito que o enuncia. Conhecemos a célebre cena relatada em Estudos
sobre a histeria — em que Emmy Von N. ordena a Freud: “«fique quieto!», «não diga
nada!», «não me toque!»” (Freud; Breuer 1895a [1996, p.83]) —, que abre o caminho
da função da fala em psicanálise.
Partindo disso, como compreender esse “discurso sem fala” que Lacan enuncia e
repete nesse ano de 1968? Esse discurso sem fala pelo qual Lacan tem preferência é o
discurso do analista, na medida em que ele se sustenta colocando no comando um
determinado tipo de silêncio; fazendo vir, nesse lugar do semblante, o objeto a, que, no
caso, só pode ser a voz — cuja relação mantida com o silêncio veremos mais adiante.
No presente artigo indagaremos a respeito do lugar da voz como objeto pulsional na
dinâmica específica desse discurso sem fala que caracteriza, vez por outra, o encontro
analítico. Essa questão já pode ser percebida em Freud, quando de seu encontro com
Emmy Von N.: vê-se que ele inventa a psicanálise ao se desprender do mero olhar, ao
abandonar sua posição de mestre hipnotizador para aceitar se deixar ensinar pelo saber
do paciente que se ordena na dimensão da fala e da voz.

1
Essa alternância vem indicar a indecisão que se encontra, em Lacan, entre ‘discurso sem palavras’ e
‘discurso sem fala’. A fórmula ‘um discurso sem fala’ me parecendo a mais pertinente para dar conta da
posição analítica, é essa forma que utilizarei ao longo deste artigo.
De fato, o discurso sem fala proposto por Lacan articula de forma específica o
silêncio e a voz em sua dimensão de objeto pulsional. Pois então dedicaremos algum
tempo a esses dois elementos e, mais particularmente, ao que os liga um ao outro.

O objeto voz não faz parte da lista dos objetos pulsionais estabelecida por Freud,
que identificou essencialmente os objetos oral (o seio), anal (as fezes) e fálico (o falo).
Será preciso esperar os anos 60, e os trabalhos de Lacan sobre a psicose, para que sejam
introduzidos, na dinâmica pulsional, o objeto olhar — que Freud (1915 [1996, p.134-
135]) já havia identificado2 — e o objeto voz.
No trabalho do psicanalista francês a abordagem da voz tem sua origem no
estudo das alucinações psicóticas que invadem e dominam o sujeito — como é
notadamente o caso do delírio paranóico. Apesar disso, Lacan muito rapidamente
extrairá o objeto voz dessa particularidade psicopatológica para incluí-lo na própria
dinâmica do devir sujeito. Essa providência introduzirá a voz, como um objeto da
pulsão (a pulsão invocante), ao lado do seio (pulsão oral), das fezes (pulsão anal) e do
olhar (pulsão escópica). A pulsão invocante vai adquirir pouco a pouco um estatuto
particular no campo pulsional por causa de seu laço estreito com o significante e com a
fala. Porém, se Lacan consagrou diversas sessões de seu seminário para demarcar o
olhar como objeto da pulsão escópica (Lacan 1964 [1998, pp. 69-115]), os
desenvolvimentos a respeito do objeto voz são, por sua vez, raros e esparsos. Todavia,
sabêmo-lo a partir de então, tanto a emergência do sujeito quanto a sua inscrição no
grupo dos humanos devem ser compreendidas como estando estreitamente ligadas às
implicações do concerto de vozes que o cerca.
Se retomamos a definição dada por Lacan (1964 [1998, p. 101]) do objeto da
pulsão, ele se trata de “algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão”.
Não é nem o sujeito, nem o órgão enquanto tal que contam — compreendidos
isoladamente um do outro —, e sim o entremeio que os mantém distantes. Esse espaço
marcará o objeto da pulsão com o selo da falta e da perda.
A voz é, com isso, compreendida como o suporte corporal — logo, pulsional —
de um enunciado, qualquer que seja a modalidade sensorial por ele utilizada. Isso Lacan
intuiu bem cedo, visto que desde 1956 ele afirma:

o que acontece se vocês se atêm unicamente à articulação daquilo que


estão ouvindo: ao sotaque; até mesmo às expressões dialetais? — ao
que quer que seja que seja literal no registro do discurso do
interlocutor de vocês. É preciso acrescentar aí um pouco de
imaginação, pois talvez isso nunca possa ser levado ao extremo, mas é
muito claro quando se trata de uma língua estrangeira: o que vocês
compreendem num discurso é outra coisa que não o que está
registrado acusticamente. É ainda mais simples se pensamos no surdo-
mudo, que é suscetível de receber um discurso através de sinais
visuais feitos com os dedos, conforme o alfabeto surdo-mudo. Se o
surdo-mudo fica fascinado com as lindas mãos do seu interlocutor, ele
não registrará o discurso veiculado por essas mãos. (Lacan 1955-56)
2
Freud, nesse artigo [Pulsões e destinos de pulsão], já fala em “pulsão de olhar”. Será preciso esperar os
trabalhos de Lacan para que sejam desenvolvidas de maneira mais precisa as questões dessa “pulsão de
olhar” — tornada, para ele, “pulsão escópica”.
2
O exemplo dado por Lacan indica bem a tensão entre voz e efeito de
significação. E, com isso, torna-se coerente falar da voz do surdo-mudo. Voz que
ensurdeceria à significação da mensagem aquele que estivesse por demais atento ao
bailado das mãos...
E, de fato, a voz se manifesta por toda parte, e cada vez de um modo diferente:
ao longo de cada enunciado; na música — mesmo quando esta não é vocal —, mas
igualmente na dança; na escrita; nos ruídos e nos silêncios que ela cava. A voz é esta
parte do corpo que é preciso colocar em jogo — sacrificar, até se poderia dizer — para
produzir um enunciado. Suporte da enunciação discursiva, a voz desaparece, apesar
disso, por detrás do sentido: “que se esteja dizendo resta esquecido por detrás do que se
diz naquilo que se escuta” (Lacan 1973 [2003, p. 448]).
Esse fenômeno que visa a apagar a voz por detrás do dito se observa facilmente
quando alguém toma a palavra. Pode-se estar capturado, de início, pelas características
da voz (seu sotaque, por exemplo), mas muito rapidamente esse processo desaparece —
tão logo se preste atenção no que está sendo dito. A fala vela a voz. Ao contrário, se
algum fenômeno chega a afetar o enunciado significante — através da introdução de
uma temporalidade particular ou até perturbando a enunciação por meio de um registro
incompatível com a articulação de determinados fonemas, como ocorre frequentemente
na ópera —, a voz deixa de ser transparente sob o sentido. A música faz parte dessas
“parasitagens” da enunciação, tendo como consequência tornar a voz perceptível com
uma finalidade de gozo estético.
O canto, a música, o que se pode chamar aqui de lirismo, não passam nunca de
parasitagens da enunciação linguageira, tendo como efeito tornar a voz opaca, a fim de
fazê-la perceptível — o mais frequentemente com uma finalidade estética, para gozar da
voz. O mesmo efeito pode igualmente surgir numa situação em que a enunciação
linguageira é gestual, como no caso de um surdo que estivesse sinalizando um
enunciado, por exemplo. Graças a uma amplitude, a um encadeamento numa
continuidade particular de significantes gestuais, o surdo “sinalizante” chega a produzir
um tipo de canto gestual, de coreografia, colocando à frente a corporeidade do suporte
de seu discurso — a ponto de torná-lo, vez em vez, ininteligível.
Se a relação de tensão entre voz e significante aplica-se integralmente a
propósito do significante gestual do surdo sinalizante, o mesmo vale para aquilo que
concerne ao significante escrito. A caligrafia ilustra perfeitamente como, através da
introdução de uma certa continuidade, de um movimento, de um ritmo — em resumo,
do corpo — numa inscrição significante, esta se vê transformada, tornando-se objeto de
arte e de gozo em detrimento da inteligibilidade: com efeito, é bem difícil reconhecer,
por detrás do desenho do calígrafo, o sentido do enunciado caligrafado 3. É natural,
portanto, reconhecer nessas três modalidades do canto — o sonoro, o gestual e o gráfico
— os mesmo efeitos: presentificação da questão do corpo e relação paradoxal com o
significante, na medida em que aquilo que lhe é o suporte — a voz na sua modalidade
acústica, gestual ou gráfica — chega a distorcer o significante até evacuar-lhe a
3
Se a grafologia tivesse um interesse, seria sem dúvida do lado dessa dimensão “vocal” do escrito que
poderíamos situá-la...
3
dimensão do sentido. É nesse processo paradoxal que residem os fundamentos do efeito
de gozo produzido; e, por conseguinte, os fundamentos da arte, que, em cada uma
dessas modalidades — sonora, visual e gráfica —, visa ao mesmíssimo tempo a suscitar
e a regular, através das regras da arte, o gozo ligado ao objeto em jogo sob suas diversas
modalidades.
Com isso, podem ser adiantados dois elementos que nos permitirão abordar no
que é que a voz, tal como assimilada pela psicanálise, excede as meras questões de
significação.
O primeiro é que é impróprio dizer que o pássaro canta. Pode-se dizer, quando
muito, que ele fala, mas não que ele canta. As modulações, a melodia de sua enunciação
sonora, constituem, com efeito, parte integrante de seu enunciado significante — seja
ele sinal de alerta, chamariz para a fêmea ou marcação de território. Ele nunca vai
modular sua própria enunciação, para distorcê-la com outra finalidade que não aquela
que corresponde à sua emissão natural. Há, no pássaro, adequação entre a emissão e a
mensagem. Aqui a voz não está em excesso, e bem se poderia apostar que não se
encontra no pássaro — ainda que ele se esgoele ou se acabe de tanto cantar um dia
inteiro para chamar a fêmea — fenômeno de afonia. É justamente porque a voz é, no ser
humano, um objeto de gozo, que pode estar no lugar de construções de sintomas.
O segundo é que, na lógica definida acima, a dança, a coreografia e a caligrafia
podem ser, de fato, encaixadas na categoria da arte da voz em sua modalidade gestual
ou escrita. Para mostrar que essa proposição não advém somente do gosto pelo
paradoxo, bastaria lembrar que toda relação de comunicação linguageira efetua-se em
duas modalidades: acústica e gestual. No caso de uma permuta de palavras, em que o
significante se enuncia no registro vocal — logo, sonoro —, toda fala, em toda cultura,
é acompanhada por gestos — não significantes, porém expressivos. E cada cultura
modela, da forma que lhe é própria, o bom e o mau uso dos seus gestos expressivos de
acompanhamento, deixando-lhes o curso mais ou menos livre. Se pegarmos a situação
mais insólita — à qual Lacan fazia referência —, de um sujeito surdo sinalizando um
enunciado, assistiremos a uma inversão {renversement}: o significante se estrutura no
nível gestual, e é o sonoro que fica relegado ao plano de acompanhamento expressivo
secundário. Sem, no entanto, que com isso desapareça, como testemunha o fato de que
os surdos, sinalizando, possam acompanhar seus sinais com movimentos da boca e com
determinadas emissões vocais — não significantes, mais uma vez, porém expressivos.
Da mesma forma que o gesto para os ouvintes, a voz sonora do surdo constituirá o
objeto de uma educação que tende a controlá-la rigorosamente (Poizat 1996). A dança,
através do jogo com gestos expressivos, do mesmo jeito que o canto gestual do surdo,
seria exatamente do foro — se a colocamos no nível da estrutura, e não mais da
modalidade sensorial — da arte do canto, isto é, da introdução de uma continuidade no
gesto expressivo, de uma amplidão, de uma “melodia” gestual exatamente homóloga ao
que sucede no canto.
Por fim, o mesmo vale para a caligrafia frente ao significante escrito: pode-se, da
mesma forma, defini-la como a arte da voz em sua dimensão gráfica. Essa voz do gesto
gráfico ou da dança, da qual podemos gozar com o olho e não com o ouvido, nos leva a
sustentar, a exemplo de Lacan, que a voz não compete somente ao registro do sonoro,

4
mas pode dar um jeito de também se expressar no campo escópico. De fato, isso implica
que a voz necessita menos de uma boca do que de um corpo. É a essa dimensão
incorporada da voz que Jacques-Alain Miller (1988, pp. 179-180) visa, quando propõe a
seguinte definição da voz: “tudo aquilo que, do significante, não concorre para o efeito
de significação”.
Essa definição nos permite precisar a dimensão áfona da voz que anteriormente
já havíamos esboçado. Dimensão áfona da voz que, por mais paradoxal que seja,
mostra-se tanto ser a mais precisa em nos permitir que nos libertemos de uma
psicofonologia, quanto permitir abordar a voz não do lado de suas variações imaginário-
simbólicas (altura, ritmo), e sim do lado do real e da estrutura. Essa compreensão da voz
como potencialmente silenciosa nos permite perceber o que está em jogo no discurso
sem fala, e reclama definir um certo tipo de silêncio.
Para podermos fazê-lo, proponho a vocês realizarmos um pequeno desvio por
aquilo que propus chamar de ponto surdo. Ponto surdo que defini como sendo o lugar
intrapsíquico em que o sujeito, após ter entrado em ressonância com o timbre originário,
deverá poder se ensurdecer a ele para falar sem saber o que diz, isto é, como sujeito do
inconsciente.
Se a psicanálise pôde ser considerada, numa primeira parte de sua história, uma
hermenêutica do inconsciente — apesar de certas indicações freudianas restritivas como
a designação do umbigo do sonho, em A interpretação dos sonhos (Freud 1899/1900
[1996]) —, o tratamento do homem dos lobos (Freud 1914/1918 [1996]), fundamentado
na reconstrução e na rememoração da cena primitiva, vai levar Freud a reconhecer um
furo no saber inconsciente do sujeito. É esse furo que vai conduzir à elaboração do
enigmático conceito de recalque originário, que vai modificar profundamente a teoria
analítica e, consequentemente, a prática (Rey-Flaud 2002).
A elaboração desse conceito, por mais de trinta anos, tem suas raízes no Projeto
para uma psicologia (que data de 1895) e na carta 52 (enviada a Fliess no dia
6/12/1896). Em seguida, encontrará uma formulação mais precisa nos dois textos de
1915 (“O recalque” e “O inconsciente”) incluídos na Metapsicologia, antes de ser
completada — quando do texto de 1925 sobre a Negativa.

Retomemos as articulações gerais do percurso freudiano.


Nos idos de 1895, Freud descreve o nascimento do sujeito da seguinte forma: na
origem, o infans é amputado de uma parte de si mesmo, em decorrência da expulsão do
estado de sobrestamento que a ruptura do estado de equilíbrio homeostático encadeia.
Essa ex-pressão4 assume a forma de um grito que ainda não é um chamado, mas apenas
a tentativa de distanciar a provação dolorosa. A fome fornece o modelo desse processo:
o objeto específico (o seio), que traz um apaziguamento da tensão desagradável,
confessa-se incapaz de estancar a fonte da necessidade — que constitui daí no sujeito
um foco de desprazer irredutível, sentido como um núcleo estranho. Em razão de seu
caráter inassimilável, ele será expulso. Essa parte perdida deixa, todavia, como rastro de
seu desaparecimento, os “traços de percepção” de que Freud (1896/1950 [1996, p. 282])
fala a Fliess na carta 52. Convocados para registrar a perda de objeto que o sujeito
4
‘Ex-’: movimento para fora, como em ‘exportar’. (N. do T.)
5
nunca possuiu — já que é por meio de sua subtração que ele advém como sujeito —,
esses traços são os primeiros marcadores de um corte.
Freud mostra, desse modo, como o infans, confrontado ao “complexo perceptivo
do Outro-semelhante” (Nebenmensch), esforça-se para reconduzir os elementos desse
complexo a experiências provadas em seu próprio corpo. Todavia, essa empreitada
mostra-se fracassar diante de um certo número de “traços novos e incomparáveis” —
que vão se revelar irredutíveis ao “si mesmo” e constituir o fundo organizado e estável
do Outro, extrarrepresentação —: a Coisa (das Ding). O complexo perceptivo desse
Nebenmensch se reconhece, então, originariamente cortado em dois: uma parte pode ser
reconduzida a uma espécie de memória do corpo, ao passo que a outra se revela
refratária a qualquer apreensão. Esse ponto inapreensível pela percepção — logo, ponto
cego — torna-se a condição de toda percepção; pois se fosse concedido ao sujeito
perceber, captar totalmente o Outro, se o percebido fosse a contrapartida perfeita do
real, o sujeito se confundiria com ele e reconheceria um estado de gozo absoluto. Estado
de gozo absoluto que Freud é levado a supor na origem do sujeito, que dele conservaria
a nostalgia. Assim aparecem tanto uma primeira diferença quanto uma primeira
memória imemorial que delimitará o espaço da Coisa. Não haverá rememoração desse
ato, mas necessidade de comemoração. A própria possibilidade do devir sujeito é, por
isso mesmo, solidária da inscrição desses primeiros traços: uma falência advinda na
consignação desses traços, correlata a um fracasso dessa perda primeira, determina um
destino de psicose.
Diversos destinos se configuram, desse modo, em função da relação que o
sujeito-em-devir instala com relação à Coisa. Confrontado com a perda da Coisa, o
neurótico não se resigna, o perverso a recusa, o psicótico nunca a perdera; o
melancólico, por sua vez, tentará não “se tornar nada” — isto é, perda e vazio da Coisa.
Nos primeiros instantes, pois, o infans é posto diante de uma “escolha”:

1) Ele pode fazer a “escolha” da rejeição do corte, isto é, da rejeição da


consignação escritural da perda do objeto primordial pelos traços de
percepção. Essa escolha que exprime uma rejeição primeira da perda destina
o sujeito a um espaço psicótico radical.
2) O sujeito pode, ao contrário, fazer a escolha de aceitar o corte realizado
como registro da perda do objeto que fornecerá o modelo do que será, mais
tarde, no momento do juízo de existência, o recalque originário. Essa
segunda escolha traduz uma primeira inscrição no simbólico e, portanto, uma
primeira integração da falta.

O recalque primordial incide sobre uma representação particular, excluída da


cadeia de representações e arrimando-a com sua própria ausência. O inconsciente é
marcado com uma mancha cega que sela num esquecimento sem retorno a própria
origem do sujeito. O recalque originário separa o sujeito da sua origem. A fronteira não
passa entre o sistema inconsciente e os sistemas pré-consciente / consciente, mas entre
um inconsciente originário (Unerkannte, para sempre não reconhecido) e um
inconsciente representativo, solidário do sistema pré-consciente / consciente — e que se

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torna, daí, sua delegação no mundo (o conjunto que constitui o ‘eu’ mestiço da segunda
tópica).
É nesse nível que faço a hipótese da constituição, no seio da psique, de um ponto
surdo. Ponto surdo tão hipotético quanto o recalque originário, mas cuja hipótese me
parece necessária para compreender as questões de subjetivação ligadas ao circuito da
pulsão invocante.
Freud pudera fazer a hipótese de que a constituição do campo visual necessitava
da exclusão de algo que implicaria a constituição de um “ponto cego”. Assim afirma
nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: “o encobrimento do corpo, que progride
com a cultura, mantém desperta a curiosidade sexual, a qual almeja completar o objeto
sexual através do desvelamento das partes ocultas” (Freud 1905 [1996, p. 148]).
Nossa entrada na civilização exigiria a exclusão de uma parte do corpo: esse
seria, ao mesmo tempo, o preço que pagamos e a condição de nosso prazer em olhar. O
passo suplementar que Lacan nos permite cumprir é que o elemento excluído não é
necessariamente a realidade dos órgãos genitais, mas sobretudo este elemento retido do
corpo da mãe que é o olhar (Lacan 1964 [1998, pp. 69-115]).
Antes de ver, o infans é olhado por todos os lados; e esse olhar é tanto mais
intrusivo quanto mais difícil for de assinalar de onde ele vem. Esse elemento permite
compreender a dimensão maléfica geralmente associada ao olhar: somos olhados sem
saber de onde “isso” nos olha. O infans está imerso, desde a sua entrada no mundo, num
espaço panóptico. Para poder olhar e tirar prazer disso, o sujeito deverá desembaraçar-se
do olhar do Outro: não mais apenas ser olhado, mas olhar (dimensão ativa da pulsão
escópica) ou se fazer ver (dimensão ativa na passividade — o que poderíamos chamar
de apassivação da pulsão escópica). Se a dimensão visual é estruturada por uma
ausência em seu campo, parece-me necessário sustentar a hipótese de que o campo
sonoro se organiza, ele próprio, ao redor de um ponto surdo.
Ponto surdo cuja constituição parece, apesar disso, mais problemática do que a
do ponto cego. Com efeito, se o bebê pode desviar seu olhar, o mesmo não vale no que
concerne ao seu ouvido. Se Freud tendera a privilegiar a questão da amamentação na
relação do infans com o Outro primordial, as pesquisas em psicologia do
desenvolvimento mostraram que um tempo extremamente importante na hora da
amamentação era consagrado ao fato de olhar a mãe, e o quanto esta última podia ficar
ansiosa se o bebê recusasse essa troca de olhares. Desviar-se do seio poderia ser, desse
modo, uma forma de mostrar sua subjetividade, e desviar seu olhar poderia ser uma
outra. Contudo, não se pode desviar o ouvido, que não possui esfíncter. Frente à voz do
Outro não há escapatória possível. Talvez seja essa particularidade que dê à voz esse
lugar preponderante no seio do fenômeno das alucinações. Com isso, podemos adiantar
que a constituição do ponto surdo não se escora nada numa função corporal, mas se
mostra efeito de uma operação linguageira: a metáfora — o que é bem o caso do
recalque originário. Sustentar a hipótese do ponto surdo permitiria, desse modo,
repensar, no campo sonoro, a dinâmica do soerguimento do sujeito na época da
constituição do recalque originário.

7
Retomemos agora o nascimento do sujeito em sua articulação com a voz do
Outro. Ao conferir à invocação, assim como ao olhar, o estatuto de pulsão, Lacan está
propondo uma nova dialética das pulsões. Ao lado dos objetos oral e anal, articulados à
demanda (o objeto oral é associado à demanda ao Outro; o objeto anal, à demanda do
Outro), Lacan introduz o olhar e a voz, que, ambos, concernem ao desejo — o olhar é
associado ao desejo ao Outro; a voz, ao desejo do Outro.
A voz que vem do Outro é a manifestação do desejo dele, e é igualmente o
desejo que dele se tem. O que leva Lacan a dizer que:

O objeto a está diretamente implicado, quando se trata da voz — e


isso no nível do desejo. Se o desejo do sujeito se funda como desejo
do Outro, esse desejo como tal se manifesta no nível da voz. A voz
não é somente o objeto causal, mas o instrumento em que se manifesta
o desejo do Outro. Esse termo é perfeitamente coerente e constitui,
por assim dizer, o ponto culminante com relação aos dois sentidos da
demanda — seja ao Outro, seja vinda do Outro. (Lacan 1965-66, s/p.)

Nessa citação Lacan utiliza o termo ‘demanda’. Apesar disso, o termo


‘invocação’ pareceria aqui mais apropriado. Com efeito, a voz é um objeto
completamente particular na lista dos objetos pulsionais, pois ela concerne menos à
demanda do que ao desejo do Outro. A demanda do Outro concerne ao objeto anal.
Decerto a voz pode ser “analizada”, como mostra a relação existente entre certos
amantes de ópera e as gravações em que tentam ciosamente conservar as vozes
confiscadas no decorrer de apresentações ou concertos. No entanto, essa dejetização da
voz é apenas um pormenor. Com efeito, à mama, ao excremento e ao olhar, que
parcelam o corpo, opõe-se a voz, que o subjetiva. Por sua musicalidade, ela é o meio
pelo qual a linguagem e a fala se transmitem. Para mostrá-lo, parece necessário retornar
a esse instante mítico do nascimento do sujeito, dando ênfase aqui ao papel da voz do
Outro.

a: objeto
Aim: trajeto
Rim: borda
Goal: finalidade

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Circuito da pulsão invocante 5

O circuito da pulsão invocante implica a presença do Outro: depois de ter


ressoado ao timbre do Outro, o sujeito, no decorrer do processo do recalque originário,
assume e rejeita esse timbre simultaneamente. Com efeito, ele a assume — pelo fato de
um “Sim” ter acolhido a voz arcaica (Bejahung) — e, ao mesmíssimo tempo, a rejeita
(Ausstossung), devendo o sujeito poder conseguir ensurdecer-se a isso para poder
adquirir sua voz própria. Podemos assinalar, aqui, como o ‘não’ está a serviço do ‘sim’.
A rejeição da voz do Outro permite atender ao seu chamado. Sem esse ‘não’ o sujeito
não pode mais atender ao chamado, encontrando-se nada mais, nada menos que
invadido por essa voz da qual ele não pode se desfazer.
Assim sendo, para se constituir, o sujeito se apoia na possibilidade de ter podido
ensurdecer-se a essa voz primordial. No entanto, o próprio princípio da pulsão invocante
mostra — através da busca pela voz, por exemplo — que o sujeito do inconsciente não
esqueceu que, para se tornar invocante, ele teve de se ensurdecer à pura continuidade
vocal do Outro.
A operação do recalque originário permite, desse modo, que a voz originária
permaneça no seu lugar — isto é, inaudível, num primeiro momento; depois, inaudita.
Essa surdez à voz primordial permitirá que o sujeito chegue, por sua vez, a soltar a voz.
Aquele que não tiver podido estruturar esse ponto surdo, mediante o recalque originário,
vai se ver invadido pela voz do Outro. E aquele que não tiver obtido êxito em se
ensurdecer a essa voz primordial, aí permanecerá para sempre suspenso e sobrestado.
5
Quando do seminário XI, Lacan retoma a questão da satisfação pulsional: “aqui vai se esclarecer o
mistério (...) dessa forma que a pulsão pode tomar, de atingir sua satisfação sem atingir sua finalidade —
na medida em que seria definida pela função biológica, pela realização do emparelhamento reprodutivo.
Pois não é essa a finalidade da pulsão parcial. (...) Debrucemo-nos sobre esse termo ‘finalidade’ e sobre
os dois sentidos que ele pode apresentar. Aim — alguém que vocês encarreguem de uma missão, isso não
quer dizer o que ele deve restabelecer, isto quer dizer por qual caminho ele deve passar. The aim é o
trajeto. A finalidade tem uma outra forma, que é o goal. (...) Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter
atingido aquilo que, tendo em vista uma totalização biológica da função, seria a satisfação a fim de
reprodução, é que ela é pulsão parcial, e que sua finalidade não é nada além desse retorno em circuito”
(Lacan 1964 [1998, p. 169-170]).
9
Para dizer de outro modo, o sujeito deve poder, depois de tê-la aceitado, esquecer a voz
originária, sem que tenha se esquecido do ato de esquecimento. Aqui se trama, em sua
dimensão subjetivante, a pulsão invocante — da qual Lacan pôde, por diversas vezes,
dizer que era “a mais próxima da experiência do inconsciente” (Lacan 1964 [1998, p.
102]).
O que é que permitirá esse processo de subjetivação? É a transformação, pela
leitura que dele fará o Outro, do grito do infans em chamado. O que é que faz do grito
um chamado? É o acolhimento que esse grito recebe do Outro; o aviso de recebimento
que o Outro dá dele. Tal é a tese que Lacan levanta na Observação sobre o relatório de
Daniel Lagache:

Antes, ele (o sujeito) se comprazerá em reconhecer ali as marcas de


resposta que tiveram o poder de fazer de seu grito um chamado.
Assim ficam circunscritas na realidade, pelo traço do significante, as
marcas em que a onipotência da resposta se inscreve. Não é à toa que
essas realidades são chamadas de insígnias. O termo, aqui, é
nominativo6. É a constelação dessas insígnias que constitui para o
sujeito o Ideal do Eu. (Lacan 1960 [1998, p. 686])

De um lado há um emissor que ainda se ignora como tal (o infans) e, do outro,


um receptor (o outro cuidador) que se posiciona imediatamente como tal. Esse receptor
se transformará em emissor: tomada por uma “violência interpretativa” (Aulagnier
1975), a mãe interpreta o grito como uma fala suposta ao infans que ela coloca, desde o
nascimento, em posição de sujeito suposto falante. Ela acusa o recebimento desse grito
e faz a hipótese de que ele quer dizer algo, de que ele apresenta o sujeito ao mundo.
Reconhecemos aqui a definição do significante: o que representa o sujeito para um
outro significante. O grito do infans não representa o infans para a mãe, caso esse em
que estaríamos no registro do signo. Ele representa, sim, o sujeito para o conjunto de
significantes por vir. A resposta do Outro, a recepção que ele reserva ao grito puro ao
transformá-lo em grito “para”, vai transformar o grito — que então se torna significação
do sujeito a partir do significante do Outro. Reconhecemos aqui os três tempos do
circuito pulsional que Freud descreve, a partir do circuito da pulsão escópica, em
Pulsões e destino de pulsões (Freud 1915 [1996, p. 134]).

a) Ser ouvido: esse momento mítico corresponderia à expressão do grito. Nesse


estádio o sujeito ainda não existe. Estaríamos situados no nível daquilo que
Lacan aponta em seu Seminário 10 – A angústia7 sob a fórmula paradoxal de
‘sujeito do gozo’. Essa posição ativa somente vai ser percebida como tal, então,
no só-depois do encontro com o Outro.

6
Lacan não usa ‘nominativo’ (nominatif) para se referir ao caso gramatical, e sim para assinalar que o
termo ‘insigne’ se trata aqui de um substantivo (nom). Afinal, a frase que acabara de dizer é homômina a:
“Não é à toa que essas realidades são chamadas de insignes”. (N. do T.)
7
“Trata-se do sujeito do gozo, na medida em que essa expressão tenha sentido” (Lacan 1962-63 [2005, p
192]).
10
b) Ouvir: esse segundo tempo corresponderia ao advento do Outro da pulsão que
responde ao grito.

c) Fazer-se ouvir: esse terceiro tempo seria aquele em que o sujeito-em-devir se faz
voz, indo ao encalço do ouvido do Outro para dele obter uma resposta.

Lacan (1964 [1998, p. 184]) já havia tachado a especificidade da pulsão


invocante em sua relação com o Outro: “enquanto que o fazer-se ver se indica por uma
flecha que verdadeiramente retorna rumo ao sujeito, o fazer-se ouvir vai rumo ao
outro”.
A assunção do ponto surdo interviria com o advento do Outro que interpreta: a
interpretação significante do grito vela a dimensão real da voz a que o sujeito vai se
ensurdecer para ter acesso ao estatuto de sujeito falante. O terceiro tempo seria aquele
da posição subjetiva em que o sujeito constitui um Outro não surdo suscetível de ouvi-
lo.
O grito do infans é ouvido pela mãe como sendo um chamado no qual ela se
mete a ler uma demanda. É sua voz que é interpretada como significante. A voz é tida
como objeto primeiro, como objeto perdido a partir do momento em que a mãe dá uma
significação a essa voz — a voz como objeto está perdida por detrás do que ela significa
para o Outro. A voz como objeto é esse primeiro objeto perdido, o que cai na formação
do significante. O primeiro objeto perdido não é o seio, como frequentemente se pôde
dizer, mas justamente a voz — visto que, para que o objeto oral possa ser considerado
objeto, é preciso que haja significante. O sujeito que era invocado pelo som originário
vai, apreendido na linguagem, tornar-se invocante. Nessa reviravolta da situação ele
conquistará sua voz própria: vai, segundo a fórmula de Lacan, “fazer-se ouvir”.
Porém, para que ele possa se fazer ouvir, não é somente preciso que deixe de
ouvir a voz originária — o que o psicótico não consegue realizar. Ele deve, ademais,
poder invocar, isto é, fazer a hipótese de que há um não surdo para ouvi-lo. O “fazer-se
ouvir” corresponde à apassivação da pulsão invocante. Não se trata de “ser ouvido” —
como sucedia no momento em que o Outro primordial respondeu ao grito —, nem de
“ouvir” — como era o caso quando da resposta que o Outro dera ao seu grito —: trata-
se de “se fazer ouvir”. Há, pois, criação na reversão {retournement} da pulsão, nesse
movimento de apassivação — de um novo sujeito, como propõe Freud em Pulsões e
destinos de pulsão. Nesse texto, Freud propõe analisar a atividade pulsional a partir do
par de opostos pulsionais cuja finalidade é, conforme ele diz, “olhar e se mostrar”.
Descrevendo o destino da “pulsão de olhar” em forma de reversão-inversão
{retournement-renversement} desse par pulsional, é com o terceiro tempo — isto é, a
procura por uma satisfação em ser olhado — que Freud emprega pela terceira vez o
termo ‘sujeito’ quando da escrita desse texto.

(a) O olhar como atividade dirigida para um objeto estranho; (b) O


abandono do objeto, a reversão da pulsão de olhar a uma parte do
próprio corpo, ao mesmo tempo que a inversão em passividade e
o estabelecimento de uma nova finalidade: ser olhado; (c)

11
instituição de um novo sujeito para o qual se mostra, a fim de ser
por ele olhado. (Freud 1915 [1996, p. 134-135])

Aqui Freud qualifica o Outro da pulsão como ‘novo sujeito’. Qual é, então, a
diferença qualitativa que Freud está tachando nessa novidade? Digamos que esse “novo
sujeito” é aquele que o sujeito-em-devir supõe e — além do mais — constitui, isto é, um
Outro não surdo, mas nem por isso “pan-fônico”.
É esse ponto surdo que o discurso sem fala ao qual Lacan se refere fará ressoar
no paciente. O silêncio específico desse outro suposto não surdo que é o analista teria a
possibilidade de recolocar em jogo esse instante enigmático em que o sujeito aportou
em sua relação com a voz do Outro.
Compreendeu-se o seguinte: a pulsão invocante precisa de um endereçamento.
No encontro analítico, ele se trata do analista, ou mais precisamente de seu silêncio.
Silêncio que não é ausência de todo e qualquer ruído, e sim o silêncio necessário à
escuta — em que o paciente pode se experienciar como sendo levado em conta e tendo
algo a dizer. Entretanto, algo surpreendente — passamos pela experiência disso
quotidianamente — é que, até mesmo quando se cala, o analista está, com relação ao
paciente, num laço que é o de um discurso. O discurso psicanalítico, aquele que Lacan
diz que pode se tratar de um discurso sem fala, seria, então, um dispositivo que permite,
para além das palavras, fazer ouvir uma voz. Com isso, esse discurso sem fala torna-se o
meio de dar voz ativa a esse Outro em mim.
O silêncio ao qual o analista está fadado não o impede absolutamente de
sustentar um discurso, ainda que sem fala. Mas, para isso, é preciso alguém que aceite
estar em posição de receber o que ele diz num silêncio que não é mera ausência de
linguagem.
Se o discurso do analista pode dar num discurso sem fala, isso não o impede
absolutamente de intervir. No entanto, esse discurso sem fala encontrará um jeito de se
exemplarizar através de um certo tipo de silêncio — que iremos atrás, a partir de agora,
de especificar.
Esse silêncio, que eu qualificaria tranquilamente como invocante, foi
lucidamente descrito por Alain Didier-Weil (2010, pp. 27-28) em sua última obra: Un
mystère plus lointain que l’inconscient [Um mistério mais longínquo que o
inconsciente]. Para introduzi-lo, ele relata um episódio da vida de Rilke, quando este era
secretário de Rodin. Rilke sofria, nessa época, de distúrbios melancólicos dos quais
ninguém conseguia livrá-lo. Porém, ao entrar um dia no atelier de Rodin, ele pôs a mão
por sobre a face de uma estátua em que o escultor havia acabado de trabalhar. Conforme
o testemunho de Rilke, ele então sentiu retornarem-lhe as forças vitais que o haviam
desertado. Em que consiste a eficácia dessa mensagem silenciosa que as palavras eram
incapazes de transmitir?
Para tentar responder essa pergunta convém distinguir, com A. Neher, dois tipos
de silêncio. Assim afirma o autor: “se a negação da fala — a não-fala — é o silêncio, o
não-silêncio não é automaticamente, nem necessariamente, a fala. Esse não-silêncio é
um silêncio mais silencioso que o silêncio” (Neher 1970, p. 75). Desse modo, ao
silêncio da fala — um silêncio habitado — viria se opor um silêncio pleno, incitando o

12
antes da criação, em que o significante ainda não havia efetuado o seu trabalho de
encetamento do real. O silêncio da fala, ao contrário, é um silêncio aberto ao
acolhimento dos significantes a devir. Trata-se de um lugar de recepção para a fala. É
esse silêncio que permite que o ponto surdo ressoe, a fim de que o sujeito — para além
dos sintomas, inibições e angústias — possa soltar a voz para se inscrever no concerto
de vozes do mundo. O discurso sem fala do analista, sua enunciação silenciosa, deve ser
então compreendido como um silêncio que se ouve; silêncio invocante que chama o
sujeito a sair do silêncio pleno no qual ele pôde se enclausurar. Silêncio que faz ressoar
o “fiat lux” criacionista do terceiro versículo da Bíblia, que Lacan (1975, p. 267) será
levado a entender como um “fiat furo”. Lacan já havia cruzado com essa questão ao
propor, para grande surpresa e incompreensão de expectadores tão atentos quanto S.
Leclaire, uma tradução completamente pessoal8 do primeiro versículo do evangelho de
São João, traduzido em latim como: in principio erat verbum9. Lacan propõe substituir o
Verbo, geralmente entendido como Palavra {Parole}10, pela linguagem — traduzindo,
assim, não por “no princípio era o verbo”, mas por “no princípio era a linguagem”.
“In principio erat verbum, trata-se incontestavelmente da linguagem, não se trata
da fala”. Ao que S. Leclaire responde: “então, não tem começo” (apud Lacan 1954-55
[1985, p. 364]).
Como compreender essa asserção de Lacan a partir do modelo — que
desenvolvi anteriormente — do nascimento do sujeito na sua relação com a voz do
Outro? Lacan propõe justificar essa proposta de tradução remetendo a uma alteridade
significante primordial, que se exprimiria não através de uma palavra que se dirige ao
ouvido, mas de uma ação silenciosa. Podemos reconhecer aqui a cena relatada por Rilke
— mas igualmente a voz, na medida em que pudemos defini-la como áfona. Existiria,
desse modo, uma voz que não falaria e que, entretanto, permitiria atingir o sujeito. Essa
aporia de uma voz não sonora responde as perguntas recorrentes que nos são feitas a
respeito do que é que acontece com as crianças surdas no que tange ao processo
descrito. Nesse caso, como sabemos, a mãe tem condições de desenvolver um chamado
a ser que não passa pela via da audição, mas pela do olhar e do toque. Poderíamos,
então, falar de uma voz se exprimindo no campo da visão e do tato.
In fine, poderíamos propor substituir o in principio erat verbum, de João, por um
in principio erat vox — no princípio era a voz. Não uma voz sonora, mas aquilo que
excede todo ato que implica um endereçamento. Essa voz é a que preside a criação
silenciosa do mundo.

8
“Se eu estava pedindo pro padre Beirnaert acudir, é por causa do in principio erat verbum. O senhor
disse, um dia, que fides era o que melhor traduzia a fala. É curioso que a tradução religiosa não diga in
principio erat fides. Verbum é a linguagem, e até mesmo o vocábulo {mot}. No grego, logos também é a
linguagem, e não a fala. Depois disso, Deus fez uso da fala — Faça-se a luz, diz ele” (Lacan 1954-55
[1985, p. 353]).
9
Yohanân, Evangelhos traduzidos e apresentados por André Chouraqui. Paris: Desclée de Brouwer, 1976,
p. 435.
10
É a posição de Chouraqui, que propõe traduzir esse primeiro versículo como:
“No princípio era a palavra
e Elohim está com a palavra:
a palavra é Elohim,
ela é princípio com Elohim”
13
“No princípio Elohim criou os céus e a terra” 11. É só no terceiro versículo que a
voz de Deus faz-se ouvir e se exprime numa fala: “E Elohim disse § seja luz §§§ E foi
luz” (ibid., 41).
Logo, devemos distinguir bem aqui uma voz silenciosa — que é um puro
chamado a devir presidindo o próprio advento do real — e uma voz que se exprime
numa fala que visa, por sua vez, a dar forma a esse real advindo. Essa voz silenciosa
teria de ser relacionada com a ressonância de que fala Lacan quando do seminário
consagrado ao sinthoma, em 18 de novembro de 1975:

Tem que ter alguma coisa, no significante, que ressoe. Não dá pra
dizer que a gente não fica surpreso que, os filósofos ingleses, que nada
disso tenha ocorrido a eles. Eu chamo de filósofos — porque não são
psicanalistas. Eles acreditam pra valer que, a fala, ela não tem efeito.
Estão errados. Eles acham que há pulsões! E isso quando não
resolvem traduzir Trieb por instinct. Não passa pela cabeça deles que
as pulsões são o eco, no corpo, do fato de que há um dizer. Esse dizer,
pra que ele ressoe (...), o corpo tem que ser sensível a ele. Que ele é,
isso é um fato. Isso porque o corpo tem alguns orifícios, dos quais o
mais importante é o ouvido — porque ele não pode se encerrar, se
fechar, se trancar. É por esse viés que responde, no corpo, o que
chamei de ‘voz’. (Lacan 1975-76 [2007, p. 18-19])

Reconhecemos, desse modo, o discurso sem fala caro a Lacan. Lá onde a fala
pode fazer cair o sintoma, ao desvelar os significantes que aí se achavam enquistados, a
voz silenciosa e invocante incita esse momento de soerguimento, em que o real humano
viu-se abrasado pelo encontro com o endereçamento. Endereçamento que então se
revelaria como sendo a forma mais depurada da voz, no sentido em que a psicanálise
tenta abordá-la.
Para concluir — vocês já devem tê-lo captado —, se um discurso pode ser sem
fala/palavras, ele não teria como ser sem voz, nem muito menos — mas isso é a mesma
coisa — sem endereçamento. Sem dúvida é aí que está o pungente do encontro
psicanalítico, e que a experiência nos lembra dia após dia: o silêncio que habita a sessão
não é um silêncio de espera, mas um silêncio de esperança. A espera está claramente
articulada à ilusão da completude. O seguinte excerto dos Fragmentos de um discurso
amoroso, de Roland Barthes, indica isso com precisão:

Na transferência, espera-se sempre — o médico, o professor, o


analista. Mais ainda: se espero num guichê de banco, no embarque de
um avião, estabeleço imediatamente um vínculo agressivo com o
empregado, a recepcionista cuja indiferença revela e irrita minha
sujeição. De modo que se pode dizer que, em todo lugar em que
houver espera, há transferência: estou dependendo de uma presença
que se divide e leva um tempo para aparecer — como se fosse para
derrubar meu desejo, largar minha necessidade. Fazer esperar:

11
La bible, Entête (La Genèse), traduzida e comentada por André Chouraqui. Paris, Jean-Claude Lattès,
1992.
14
prerrogativa constante de todo poder, “passa-tempo milenar da
humanidade”. (Barthes 1977 [1990, p. 96])

A esperança, ao contrário, acompanha e abre o campo dos possíveis. Essa


esperança, muito diferente da espera, encontra-se nos trágicos gregos — e
particularmente em Eurípedes, que dela deu magníficas ilustrações. Assim, em A
loucura de Héracles ([2003, p. 71])12, encontramos este diálogo entre Anfitrião e
Mégara:

Anfitrião: Gosto de manter a esperança.


Mégara: Também eu. Mas o que há de bom em esperar o inesperado?
Anfitrião: Adiar o infortúnio é dar espaço para o bálsamo.

Mais explícito ainda é o coro final do seu Alceste ([1993, p. 62]):

O que se estava esperando não se realiza;


e, para o inesperado, um deus abre passagem.

Eurípedes articula e opõe aqui, muito pertinentemente, espera e esperança. O


que se esperava, compreendido na dimensão transferencial necessariamente alienante —
tão precisamente recuperada por Roland Barthes — não se realiza, dando lugar ao
inesperado. Inesperado que podemos definir, na esteira de Alain Didier-Weil (2010, p.
288-295), como a existência de uma coisa significante que se revela como aquilo que se
descobre podendo perseverar, irresistivelmente, quando já não resta mais nada daquilo
que se havia podido esperar. A esperança silenciosa não é mais então compreendida
como a espera de algo, mas como o que é vetorizado por essa voz significante extrafala
que convida o sujeito a advir lá onde o silêncio da espera leva o eu {moi} a ter de
responder por sua possibilidade de existência. O que se poderia, parafraseando
Eurípedes, dizer assim: “o que se estava esperando não se realiza; e, para o inesperado,
o analista abre passagem”.

BIBLIOGRAFIA

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EURÍPEDES. ([2003]). Héracles. Introd., trad. e notas de C. R. Franciscato. São Paulo:
Palas Athena.

12
A tragédia de Eurípedes, na verdade, carrega o título de Hércules (ou Héracles). Talvez por influência
da obra de Sêneca, Hercules furens, ela seja frequentemente conhecida como Hércules Enlouquecido,
Hércules Furioso, ou ainda da forma que o autor traz neste artigo. (N. do T)
15
EURÍPEDES. ([1993]). Alceste. Trad.. fr. de M. Gondicas. Montpellier: Ed. du Théâtre
des Treize Vents.
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