MORALIDADE EM FACECIAS
SoBeJou razao a um dos nossos mais reputados criticos contem;
raneos 0 Sr. Ronald de Carvalho — quando sentenciou que “nosso po
éum grande criador de fabulas e historietas, geralmente de tendénci
morais € corretivas”.
Os cantadores dispdem sempre de farto repertério de histori
amorosas, humoristicas ou de fundo moral. Nas festas do sertio,
quanto pares de namorados preferem a danca ao som da harménica,
maioria dos convidados se agrupa em torno de um menestrel que,
terreiro ¢ ao som da viola, da rabeca ou da harménica faz versifica’
narrativas, cantando yersos préprios ou alheios. Nessas historietas jo:
sas ressumbram freqiientes licdes de perfeita moralidade.
Como apreciavel exemplo de poesia “de tendéncia moral e co:
tiva”, deve ser tida a Histéria do Cavalo que Defecava Dinheiro:
Numa cidade distante,
Antigamente existia
Um Duque velho invejoso
Que nada o satisfazia,
Pois desejava possuir
Todo obijeto que via.
Esse Duque era compadre
De um pobre muito atrasado,
Que morava em sua terra
Num rancho todo esiragado
E sustentava seus fithos,
Tendo vida de alugado.
Se vendo 0 compadre pobre
Naquela vida apertada,
Foi trabalhar num engenho,
Longe da sua morada,
Na volta trouxe um cavalo
Que ndo servia pra nada.
120 Violeiros do Norte — Leonardo MeO pobre disse & mulher:
— “Como é que se ha de passar?
O cavalo é magro e velho,
Néo pode mais trabalhar..
Vamos inventar um plano
Pra ver se 0 querem comprar.”
Foi na venda e de la trouxe
Trés moedas de cruzado,
Sem dizer nada a ninguém,
Para nao ser censurado,
No fiofé do cavalo
Fes 0 dinheiro guardado...
Do fiofé do cavalo"
Ele fez wm mealheiro,
Saiu dizendo: — “Sou rico
Inda mais que um fazendeiro
Por que possuo um cavalo
Que s6 defeca dinheiro.”
Quando 0 velho Duque soube
Que ele tinha esse cavalo,
Disse pra velha Duquesa:
— “Amanhé vou visité-lo...
Seo animal for mesmo assim,
Fago jeito de compré-lo,”
Chegou, salvando 0 compadre,
Muito desinteressado:
— “Compadre, como lhe vai,
Onde tanto tem andado?
Hé dias que eu ndo the vejo...
Certo que anda melhorado.”
~E quase certo, compadre,
Ainda nao melhorei
Porque andava por fora,
Faz trés dias que cheguei,
Mas breve farei fortuna
Com um cavalo que comprei.”
oleiras do Norte — Leonardo Mota 121122
— “Se for assim, meu compadre,
Vocé estd muito bem,
E bom guardar o segredo,
Néo dizer nada a ninguém...
Me conte qual a vantagem
Que este seu cavalo tem!”
Disse o pobre: — Ele esté magro,
‘S6 tem 0 osso € 0 couro...
Porém, tratando-se dele,
Meu cavalo é wm tesouro:
Basta dizer que defeca
Niquel, prata, cobre e ouro!”
Ai chamou 0 compadre
E saiu muito vexado
Para o lugar onde tinha
O cavalo defecado,
O Duque ainda encontrow
Trés moedas de cruzado.
Ai exclamou 0 Duque:
— ‘S6 pude achar estas trés...
Disse 0 pobre: — “Ontem, de tarde,
Ele botou dezesseis,
E até ja tem defecado
Dez mil réis mais de wma vez.”
“Enquanito ele esta magro,
Me serve de mealheiro,
S6 tenho tratado dele
Com babuge do terreiro,
Porém, depois dele gordo,
Nao hé quem venca dinheiro!”
Disse 0 Duque: — “Meu compadre,
Vocé nao pode tratd-lo:
Se for trabalhar com ele,
Com certeza é pra maté-lo...
O melhor que vocé faz
E vender-me este cavalo,”
Violeiros do Norte — Leonardo Mora— “Meu compadre, este cavalo
S6 posso negociar
S6 se for por uma soma
Que dé bem para eu passar
Com toda a minha familia,
Sem precisar trabalhar.”
Disse 0 Duque: — “Meu compadre,
Assim ndo 6 que se faz...
Nossa amizade é antiga,
Do tempo de nossos pais,
Dou-lhe seis contos de réis!
Acha pouco? inda quer mais?”
— “Compadre, 0 cavalo é seu,
Eu nada mais the direi...
Ele, por esse dinheiro
Que agora me sujeitei,
Para mim nem foi vendido:
Faco de conta que dei...”
O Duque, pela ambigéo
Que era descomunal,
Deu-lhe os seis contos de réis,
Tudo em moeda legal,
Depois, pegou no cabresto,
Saiu puxando 0 animal.
Quando ele chegou em casa,
Foi gritando no terreiro:
— “Eu sou o homem mais rico
Que habita no mundo inteiro,
Porque possuo um cavalo
Que sé defeca dinheiro.”
Pegou o dito cavalo,
Botou-o na estrebaria...
Milho, farelo e alfafa
Era o que o bicho comia,
O vetho Duque ia vé-lo
Dez, doze vezes por dia.
Violeiras do Norte — Leonardo Mora 123,126
O Duque ficou suspenso
De ver a mulher curada,
Porém como estava vendo
Ela muito ensangiientada,
Corregeu ela ¢ ndo viu
Nenhum sinal de facada.
O pobre, entusiasmado,
Lhe disse: — Jé conheceu?
Quando esta rabeca estava
Nas mdos de quem me vendeu,
Tinka feito muitas curas
De gente que jad morreu...
“No lugar que eu estiver
Nao deixo ninguém morrer,
Como eu adquiri ela
Muita gente quer saber
Mas ela me esta téo cara
Que néo me convém dizer.”
O Duque, que tinha vindo
Somente propor questao,
(Porque o cavalo velho
Nunca botou um tostéo)
Quando foi vendo a rabeca
Quase morre de ambicao.
— “Compadre, vocé desculpe
Eu ter-lhe tratado assim...
Agora estou mais que certo
Que eu mesmo fui 9 ruim,
Mas othe: a sua rabeca
S6 serve bem é pra mim...
“Como sabe, eu sou um homem
De muito grande poder...
O senhor é muito pobre,
Ninguém o quer conhecer,
Perca 0 amor da rabeca,
Responda se quer vender...
Violeiros do Norte— Leonardo Mets“Porque a minha muther
Também é muito estouvada,
Mas eu, comprando a rabeca,
Dela nao suporio nada:
Se quiser teimar comigo,
Também dou-lhe uma facada!
“Ela se vé quase morta,
Sente medo do castigo,
Mas ¢u, com esta rabeca,
Salvo ela do perigo
E ela, dai por diante,
Nao quer mais teimar comigo.”
Responde o compadre pobre:
— “O senhor faz muito bem,
Quer ine comprar a rabeca,
Nao venderei a ninguém;
Custa seis contos de réis.
Por menos, nem um vintém!”
O Duque, muito contente,
Disse, de si para si:
=A rabeca jé 6 minha
Eu preciso a possuir...
Ela para mim foi dada,
Ele nem soube pedir...”
Pegou a rabeca e disse:
— “Vou ja mostrar & mulher...”
A velha zangou-se ¢ disse.
= “Va mostrar a quem quiser,
Eu néo quero ser culpada
Do prejuizo que howver.
“O senhor mesmo é um velho
Avarento e interesseiro...
Que é que fez do tal cavalo
Que defecava dinheiro?
Meu velho, dé-se a respeito,
Seja menos trapaceiro!”
Violeiros do Norte — Leonardo Mota 127128
O Duque, que confiava
Na rabeca que comprou,
Disse a ela: - “Cale a boca,
A coisa agora virou:
Dou-lhe quatro punhaladas,
Jé vocé sabe quem eu sou!”
Ele findou as palavras,
A velha ficou teimando,
Diz ele: “Velha dos diabos,
Vocé inda esta falando?!”
Deu-lhe quatro punhaladas
E ela ficou arquejando...
O velho Duque, ligeiro,
Foi buscar a rabequinha,
Ia tocando e dizendo:
— “Acorde, minha velhinha!”
Porém a pobre da velha
Nunca mais comeu farinha...
O Duque estava pensando
Que a mulher inda tornava,
Ela acabou de morrer,
Porém ele duvidava,
Depois entdo conheceu
Que a rabeca ndo prestava...
Quando ele ficou ciente
Que a velha tinha morrido,
Botou o joelho em terra
E deu téo grande gemido
Que 0 povo daquela casa
Ficou tudo comovido.
Ele dizia chorando:
— “Este crime hei de vingd-lo!
Seis contos desta rabeca
Com outros seis do cavalo...
Eu lé néo mando ninguém
Eu mesmo quero maté-lo...”
Violeiros do Narte— Leonardo MoteMandou chamar dois capangas
E seguiu no outro dia,
Prendeu o compadre pobre,
Trancou-o numa enxovia, -
Para exercer a vinganca
Da forma que pretendia.
Disse ele aos dois capangas:
= “Me faca um surréo bem feito,
Facam isso com cuidado,
Quero ele wm pouco estreito,
Com uma argola bem forte,
Pra levar este sujeito.
“Quando acabarem a. coisa,
Mande este bandido entrar
Para dentro do surrao
E acabem de costurar,
E levem para 0 rochedo,
Sacudam dentro do mar.”
Os homens eram dispostos,
Findaram no mesmo dia.
O pobre entrou no surrao,
Pois era o jeito que havia,
Botaro 0 surrdo nas costas,
Sairam numa folia...
Adiante, disse um capanga:
= “Nao agiiento o rojao,
Jé estou muito cansado,
Botemos isto no chao,
Vamos tomar uma pinga,
Arriemo 0 tal surréo.”
— “Lembrou bem, meu companheiro,
Vamos tomar a bicada!”
Falou 0 outro capanga,
Respondendo ao camarada
E seguiram para a venda
Que ficava além da estrada.
Violeiros do Norte — Leonardo Mota 129130
Quando os capangas seguiram,
O preso ficou dizendo:
— “Nao caso porque néo quero!
Me acabo aqui, padecendo!
A moca é miliondria,
Mas o resto eu bem estou vendo...
Foi passando um boiadeiro
Quando ele dizia assim,
O boiadeiro pediu-the:
— “Arranje isso pra mim...
Eu ndo me embraco que a moca
Seja boa ou seja ruim!”
Continua o fazendeiro:
~ “Eu dow-lhe, de mao beijada,
Todos os meus possuidos
Que vdo aqui na boiada,
Fica 0 senhor como dono,
Pode seguir a jornada.”
Ele, condenado & morte,
Néo fez questao, aceitou:
Descoseu-se 0 tal surréo,
Nele o boiadeiro entrou
Eo pobre, morto de medo,
Num minuto o costurou.
O pobre, quando se viu
Livre daquela enrascada,
Montou-se num bom cavalo,
Tomou conta da boiada,
Saiu por ali dizendo:
— “A mim nao falta mais nada!”
Os capangas nada viram,
Que o servico foi ligeiro
Pegaram dito surréio
Com o pobre do boiadeiro,
Jogaram de serra abaixo:
Nao ficou um osso inteiro!
Violeiros do Norte — Leonardo MotaFazia dois ou trés meses
Que o pobre negociava,
A boiada, que lhe deram,
Cada vez mais aumentava...
Foi ele, um dia, passear
Onde 0 compadre morava.
Que quando o Duque viu ele,
De susto empalideceu:
“Compadre, por onde andava?
Sé hoje me apareceu?
Muito me engano, ou vocé,
Jéé mais rico do que eu!”
— “Aqueles seus dois capangas
Voaram-me num lugar,
Eu sai de serra abaixo,
Até a beira do mar,
Ali vi tanto dinheiro...
Quase ndo posso ajuntar!
“Quando me faltar dinheiro,
Eu prontamente vou ver...
O que trouxe ndo é pouco,
Vai dando para eu viver
Junto com minha familia,
Passarei até morrer.”
— “Compadre, sua riqueza
Diga que fui eu quem dei!
Mas, para recompensar-me,
Tudo quanto lhe arrumei,
E preciso que me bote
No lugar que eu the botei!”
Disse-lhe 0 pobre: — “Pois nao!
Estou pronto pra the mostrar,
E é mesmo com seus capangas,
Nés mesmos vamos levar,
Eo surrdo, de serra abaixo,
Sou eu que quero empurrar...
Violeivos do Norte — Leonardo Mota 131O Duque, no mesmo dia,
Mandou fazer um surrao,
Depressa meteu-se nele,
Ja cego pela ambicao,
E disse: — “Compadre, estou
A sua disposicéo!”
O pobre foi procurar
Dois cabras de confianca,
Se fingindo satisfeito,
Fazendo a coisa bem mansa,
S6 assim ele podia
Tomar a sua vinganca.
Sairam com o velho Duque
Na carreira, sem parar,
Subiram de serra acima,
Té 0 mais alto lugar,
Dali soltaro 0 surrao,
Deixaro o velho embolar...
O Duque ia pensando
De encontrar muito dinheiro,
Porém sucedeu com ele
Do jeito do boiadeiro
Que, quando chegou em baixo,
Nao tinha um 56 osso inteiro...
Aprenda la quem quiser
Neste mundo viver bem:
A desmedida ambi
Decerto que ndo convém!
Em cima do que possui
Ninguém arrisca 0 que tem!
Traslado para aqui algumas ironias rimadas, referentes a usancas
da atualidade:
Hé uns cem anos atras,
O tempo nao era mau:
132 Violeiros do Norte — Leonardo Mota