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TEATRALIDADES CONTEMPORÂNEAS reúne textos ~e

uma representativa expressao - cnuca


,. nao - so' dos estudos acade-.
micos no domínio da arte dramática, como das tendências mais
marcantes das concepções e das práticas em cena no teatro bra-
sileiro e internacional das últimas três décadas. A contempora-
neidade é, pois, o âmbito e o dado fundamental na visão com
que Sílvia Fernandes descortina o processo cênico em curs?,
cuja fermentação vem revolucionando o repertório de espeta-
culos oferecido ao público deste século xx1, esteja ele em car-
taz nos sedutores luminosos das grandes casas teatrais ou nos
obscuros tablados dos grupos experimentais de vanguarda. A
esta luz - em que as propostas de teóricos como Féral, Pavis,
Ubersfeld e Lehmann pautam o seu ideário -, as sensíveis e bem
fundamentadas análises da ensaísta proporcionam ao leitor as
chaves dos códigos explícitos, mas também das ocultas redes de
relações de intersignilicância tecidas, textual e cenicamente, nas
obras teatrais, aspirem ou não o status de arte. É o que aflora
com evidência estética em encenadores que, no Brasil ou no ex-
terior, puseram em jogo no seu trabalho os operadores concei-
tuais e as possibilidades de leitura artística por eles ensejadas nos
palcos da atualidade, como José Celso Martinez Corrêa, Gerald
Thomas, Felipe Hirsh e a Sutil Companhia de Teatro, Antonio
Araújo e o Teatro da Vertigem, Enrique Diaz e a Companhia
dos Atores. As esclarecedoras e, a seu modo, instigantes inter-
pretações que a nova crítica nos oferece nestes textos de Sílvia
Fernandes, traduzem uma captação e avaliação no plano do in-
telecto e da sensibilidade que é, não só de uma nova geração em
nosso movimento teatral, como de uma revisão do modo de ver
e de fazer teatro em suas diferentes latitudes na modernidade.
J. GUINSBURG

~,,,~
j)~~Ji[illiil[lil~~,1,llli ,r,,,,,,É PERSPECTIVA
122 TEATRALIDADES CONTEMPORÂN EAS

em cena wn objeto literal, que não tem por função d


ca e cênica simbolizar, mas simplesmente estar pr ralllªtúrgi
. esent -
<luzir situações de linguagem, teatros da literalidad e e Pr0_
e colll O
Tadeusz Kantor, Bob Wilson, Romeo Castelucci J 0 s de
. , an La
Gilles Maheu e Hemer Goebbels, por exemplo, acionalll Uwers,
gantesco efeito de estranhamento, posto a serviço d . u111 gi-
·c
cação e da mam1estaçao - extremada da matéria teatral. a •ntensi.fi-
Segundo Guénoun, no caso de Kantor e Wilso
dade parece confrontar-se com uma suposta essência nadteat ra1·1-
e pode ser vista até mesmo como um movimento d O ~eatro,
linguagem teatral para fora de si mesma, ou de sua espe e sa1da
. . dª
de16. Sem duv1, .da, e, bastante ev1.dente que o teatro das CIúl6c1da
. -
décadas foi mobilizado pelo desejo de colocar à prova sti1l~s
. tenc1onan
m1tes, . do ate, o ponto de ruptura as fontes trad· .us h- .
1c1onais
de sua produção. As formalizações transgressoras dos e .
• . xpen-
mentos cemcos de Tadeusz Kantor, Klaus Michael Grübe R
r, o-
bert Wilson, Richard Foreman, Wooster Group, Frank Castorf
Théâtre du Radeau e Robert Lepage são apenas alguns exempl '
. ' os
entre os mumeros dessa vertente que, no teatro brasileiro, inclui
José Celso Martinez Corrêa, Gerald Thomas, Luiz Roberto Ga-
lízia, Renato Cohen, Márcio Aurélio, Denise Stoklos, Felipe
Hirsh, Michel Melamed, a Companhia dos Atores e o Teatro da
Vertigem, entre outros. O que se constata é que todos põem em
ação uma teatralidade em que o sensível torna-se significante e
é "a pura presença teatral o que me dá a ver um objeto, um cor-
po, um mundo em sua hipersensibilidade fragmentárià' 17•

TEATRALIDADE E PERFORMATIVIDADE

Sem dúvida Josette Féral é uma das maiores estudiosas da


questão da teatralidade. Em ensaio publicado pela primeira
vez em 1988, "Theatricality: On the Specificity of Theatrical
Language': a ensaísta recusa-se a definir a teatralidade como
wna qualidade no sentido kantiano, pertinente exclusivamente à
arte do teatro e pré-existente ao objeto em que se investe. Ao

16 Actions et acteurs, p. 55-56.


17 J. P. Sarrazac, Critique du théâtre, p. 62.
TEATRALIDADES CONTEM PORÂ NEAS 123

contrário, defende a ideia de que ela é consequência de um


processo di'.1â1~ico de teatralizaçã~_Eroduzido pelo olhar que
postula a cnaçao de outros espaços e outros sujeitos. Esse pro-
, ~ n s trutivo res ulta de um _ato consciente que pode partir
tanto do performer no sentido amplo do termo - ator, encena-
dor, cenógrafo, iluminador - quanto do espectador. Portanto,
a ensaísta sustenta que a teatralidade tan.to pode nascer do su-
jeito que projeta um outro espaço a partir de seu olhar, quanto
dos criadores desse lugar alterno, que requerem um olhar que
0 reconheça. Mas é mais comum que a teatralidade nasça das
operações reunidas de criação e recepção. De qualquer forma,
ela é fruto de uma.disjunção espacial instaurada por uma ope-
J ~ cognitiva ou um ato performativo daquele gue olha (o
espectador) e daquele que faz (o ator). Tanto ópsis quanto prá-
;is é um vir a ser que resulta dessa dupla polaridade.
Em ensaio anterior, "Performance et theatralité, le sujet
desmistifié", Féral ~unha o çonceito de teatralidade ao de
performatividade 18• Publicado em 1985, o texto apresentava
de suas primeiras reflexões sobre o tema e definia a per-
formance como uma força dinâmica cujo principal objetivo é
desfazer as competências do teatro, que tend~a inscrever o pal-
co numa _semiologia específica e normativa. Caracterizando-
-se por estrutura narrativa e representacional, o teatro mane-
ja códigos com a finalidade de realizar determinada inscrição --f::
simbólica do assunto, ao contrário da performance, que ex-
pressa fluxos de desejo e tem por função desconstruir o que o
primeiro formatou.
Ainda que oponha os dois conceitos, percebe-se que uma
das principais intenções da ensaísta é definir a teatralidade
como o resultado de um jogo de forças entre as duas realidades
em ação: as estruturas simbólicas específicas do teatro e os flu-
xos energéticos - gestuais, vocais, libidinais - que se atualizam

18 O texto de Josette Féral fo i publicado em francês, no livro TI1 éâtralité, écriture


et mise em scene, editado pela autora. Doze anos mais tarde, em 1997, Timo-
thy Murray inclui o ensaio na importante coletânea Mimesis, Masochism and
Mime, em que reúne ensaios dos principais fillósofos pós-estruturalistas tra-
tando de questões relativas ao conceito, como Gilles Deleuze, Jacques Derri -
da, Jean-François Lyotard, Michel Foucault e Juli a Kristeva. Nesta coletânea
o ensaio saiu com o nome de "Pe rfo rmance and Theatricality: the Subject
Demystified".
TEATRALIDADES CONTEMPORÂNEAS
124
e ce e geram processos instáveis de manf
na penorman _ , . , . 1.estaçã
. p recusar a adoçao de cod1gos ng1dos, com 0 o
cemca. or • a de
. _ cisa de personagens e a mterpretação de te -
fimçao pre d . . Xtos a
e nce apresenta ao especta or SUJe1tos deseJ·ant ,
penorma . es, que
expressam em movimentos autobiográfic
em geraI Se ~--- os - 0
sempre citadoJfi[as çonte~f!!e Richard S~hechner _ e ten-
tam, a qualquer custo, esca senta a , iza ão
simbólica gue domina o fe~omeno_teatra_1_lutando por definir
~ uas condições de expressao a partir de _redes de impulsQ;
. Outro princípio de distinção entre teatro e performance
é O fato de esta última constituir-se enquanto evento supos-
tamente não repetível, que se apresenta no aqui/agora de um
espaço indissoluvelmente ligado à proposta de criação. Em
certo sentido, nessa acepção a performatividade aproxima-
-se do conceito de teatro energético de Jean-François Lyotard,
um teatro de intensidades, forças e pulsões de presença, que
tenta esquivar-se à lógica da representaçãp. Performatividade
1 que já se delineia na poética artaudiana, como produção de
gestos, figurações e encadeamentos, que procura evitar os sig-
nos de ilustra ão, indica -o ou simbolização, na tentativa de
projetar-se comq corrente de ener ia e presen a real ue atua
como sinalização de limiar 19 •
Em texto mais recente, elaborado para a apresentação de
uma coletânea dedicada à questão da teatralidade, Féral atenua
a oposição estabelecida nesse ensaio inicial, sustentando que a
.,2erformatividade é um dos elementos da teatralidade e todo
-~espetáculo é uma relação recíproca entre ambos. A ensaísta-
sublinha que enquanto a performatividade é responsável por
aquilo que torna uma performance única a cada apresentação,
a teatralidade é o que a faz reconhecível e significativa dentro
de um quadro de referências e códigos. Não apenas o teatro,

19 Antonin Artaud sugere esse tipo de operação em toda sua obra, mas um bom
e~emplo é O final de "O Teatro e a Cultura': em que compara os atores ª suph·
c1ados qudazem sma1s· · a seus carrascos de dentro da fogue!fa, · em O Teatroe
seu Duplo, P· 18. Evidentemente, o conceito de presença não é tão simples,
requereria tratamento específico. Basta lembrar, por exemplo, os argu mento~
de Jacques Derrida em "O Teatro da Crueldade e o Fechamento da Reprót'n-
tação" o~ mesmo em "A Palavra Soprada': ambos publicados no Brasil rdt
"Perspecl!va ' em A Escrr·tura e a Diferença. O ensaio de Jc>::i n· f-•ran,·oi,· l·.rot;lll.
,
La Dent ' la' pau ." . · •. , · . . /· ,
· me, esta me1u1do em Des Dispvsit!f., p 11 /sHJ1 11t' ·' · l ·
1 ->l ·ll;-.
TEATRAL IDAD ES CONTD!PORÀNEA S 125

mJs outras formas de arte como a dança, o circo, o ritual e a


opera procedem da combi~ação entre diferentes instâncias de
erformatividade e teatralidade,~ o que varia é exatamente a
ranu de prepon deranc1a
, . de urna ou outra 2º
~ ai avança urna nova etapa dessa discussão em ensaio
publicado há um ano, em que projeta o conceito de "teatro
21
performativo" • Discordando de Hans-Thies Lehmann a res -
~
peito o d ' drarnatico,
termo pos- , . a autora cons1·dera a1gumas das
experiências analisadas pelo teórico alemão como resultado
da contaminação radical, que acontece no teatro contempo-
râneo: entre procedimentos da teatralidade e da performance,
0 que Lehmann já havia observado em seu estudo, quando ·

notava a emergência de um "campo de fronteira entre perfor-


ma~ e teatro à medida que o teatro se aproxima cada vez

-
mais de um acontecimento e dos gestos de autorrepresentação
do artista_performático" 22 • A despeito da aparente sintonia de
princípios, Féral considera a nomeação de Lehmann excessi-
vament en ouco efetiva. for isso prefere a termino-
logia teatro performativo", efinindo a performance a partir
do conceito de per ormance art, em lugar de utilizar a noção
ampliada de Richard Schechner, que aborda o termo especial-
mente a partir da visão antropológica dos performance studies,
incorporando rituais, cerimônias cívicas e políticas, apresen-
tações esportivas, além de outros aspectos da vida sociaF3.
Para a ensaísta, o teatro contemporâneo beneficiou-se am-
plamente de algumas conquistas da arte da performance, já que
as práticas performativas redefiniram os parâmetros que per-
mitem pensar a arte e, evidentemente, tiveram influência radi-
cal sobre a cena teatral, que adotou alguns de seus princípios.
O principal deles está na origem do termo performatividade e
foi prospectado a partir das pesquisas de Austin e Searle, que
dffundiram o conceito pela via dos verbos performativos, co-
locando a ênfase na realização da própria ação performática e

20 J. Féral, Theatricality: the Specificity ofTheatrical Language, S11bstn11ce, n. 2 e


3, p. 3-12.
21 Idem, En tre Performance et théâtralité: le théâtre performati f, 111édtre/ P11blic,
190, p. 28 -35.
11 .

22 H.-T. Lehmann , Trntro Pós-dramático , p. 223 .


23 Ver J re~peito os livros Pe1for111n11ce 111eory e Pe1fomw11cc Studit:s. A11 i11trD-
duct10 11 , ,11nbo~ de Richard Schcchn er.
126 TEATRAL IDADES CON TEM PORÂNEAS

não sobre seu valor de represent~0111


.. 'd 6ase nes
dos, passou-se a cons1 erar a execução de uma a _ ses estu,
nevrálaico de toda performance, que se est. Çao O Pont
o _ .... 1 utura o
em um fazer e nao no ato de representar. Sem d , . com bas
. - uv1da e
rações performahvas de produçao e transform _ ' as ºPe-
- - . , . açao e. .
situaçoes sao as ma10res responsave1s pelo desvi enica de
· [r. das exigências da representação .
enquanto pro
O
Paulatino
cesso ce
na ilusão e no traçado ficc1onal, em proveito da _ ntract 0
'1::1!1 . . • açao e· •
real e do acontecunento mstantaneo e não repet' en1ca
. . ive 1. Ess d
vio determma outro tipo de endere amento ao re e es,
. -. - - . ceptor tr
do () àõêlo uramerite especula e1 encor . ' ans-
a ament
erce ções sensona1 or meio do mer ulho em e .. 0 e
1.mers1vas
. propnas, · as , novas tecnolog1é!§.. . Segundo Fér enencias
-· -
-mutaçao
- - cemca • . defi ne uma ruptura epistemológica dea1, essa
dem que e, necessano ,. d
a otar a expressão ~ erfoo
tal or-
.
. '
para qualifica-la.

TEATROS PERFORMATIVOS

Féral enumera uma série de grupos e criadores que assumem


as práticas diversificadas do teatro performativo, entre os
quais inclui Jan Lauwers, Gilles Maheu, Robert Lepage, Guy
Cassiers, Heiner Goebbels, Frank Castorf, Marianne Weems,
o Wooster Group e a Societas Raffaello Sanzio.
No caso da cena brasileira, os espetáculos do Teatro da
Vertigem constituem um campo fértil de produção dessa tea-
tralidade performativa. Não apenas porque o grupo escolhe
espaços não convencionais para suas apresentações, mas es-
pecialmente porque desenvolve sua teatralidade com base na
ocupação desses lugares a partir de vetores de movimento e
de corporeidade dos atores. Valendo-se de recursos da per-
formance, do cinema e da arquitetura cria dramaturgias mar-
cadas por um poderoso hibridismo de gêneros, projetad~ ?ºr
absoluta necessidade dos espaços e da turbulência tematica,
associada a questões candentes da atualidade brasileira.
A natureza dos espaços públicos escolhidos para as apr~-
- com carga simbólica e política expl'1c1·t a - uma igrep
sen taçoes,
, Perdido,
para Parazso . um hospital
. para O Livro
. deJ0' (l995),u1ll

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