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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
L98c
Lukata, Lasana, 1964-
Caçada ao madrastio / por Lasana Lukata. - São João de Meriti, RJ : L. Lukata, 2010.
ISBN 978-85-910523-0-1
1. Crônica brasileira. I. Título.
19.03.10 23.03.10
018111
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“meu mocinho, eu vejo que isso é um madrastio”
(A história de Lélio e Lina, Guimarães Rosa)
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Prefácio
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E nesta obra desenganada, a qual mamou o chá de boldo do seio da
madrasta, engana-se quem pensar que sua razão de ser é a quebra das
classificações literárias, fato, aliás, tornado supremo na literatura
contemporânea. O poeta, cuja poesia mama as águas podres dos rios Meriti
e Pavuna, autor de preciosidades como “Tempos pós-modernos?”, não
abre mão de impregnar suas crônicas da observação crítica e contestadora
do que se chama ordem mundial ou vida comum. Seja em relação a
programas governamentais de base assistencialista, seja em relação à brutal
inversão de valores efetuada também por religiosos (como no irônico “O
sermão da picanha”), a escrita de Lasana Lukata nunca se esquece de que a
arte não peca por também misturar-se ao lado madrasta do peito da vida,
como em “As novas hienas”, um dos maiores lances do livro: “Mas esta
manhã é diferente: depois da intensa fuzilaria, os meninos acordam cedo
para catar. Só para catar. Metal. Metal da violência. Cápsulas. E enchem
bolsas. Pesadas bolsas. E no ferro-velho eles faturam. E vem a noite. E na
cama para dormir, não dormem. Perguntam-se: – Pô, ainda não deram um
tiro esta noite?! Amanhã vai ser fraco”.
Num determinado poema, Vinícius de Moraes diz que são muitos os
perigos desta vida. Em Caçada ao madrastio, o poeta-cronista de Meriti
parece querer nos dizer que são muitas as situações “madrásticas” do
cotidiano, sobre o que nos diz o emissor: “Há dias em que nem a poesia te
socorre”. Mas se a literatura desanda a inverter as coisas, esta obra troca as
noções de luz e escuridão (“Na metade escura”), tragédia e comédia
(“Exceptio regulam probat”) e real e ficcional (são todos, mas destaque-se
o alegórico “Dos mandados”), para nos dizer, entre amarga e fagueira,
“que perdeu a ilusão, mas ganhou o sonho”.
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Sumário
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Prefácio ........................................................................................ 5
O gás acabou ................................................................................ 9
Um rio chamado meu pai .............................................................. 11
Separação de Sílabas .................................................................... 13
Dona Iva dos Cajuzinhos ............................................................... 14
Madrasta ..................................................................................... 17
Morros sem água .......................................................................... 18
Professora-Madrasta ..................................................................... 20
A Raiz ........................................................................................ 21
O menino da cabeça de repolho ...................................................... 23
Trabalhinho Especial de Matemática ................................................ 26
Professora mãe ............................................................................ 29
As novas hienas ........................................................................... 31
Em certas noites de outono ........................................................... 32
Ação de Despejo Especial .............................................................. 35
O inquilino .................................................................................. 36
O dom do tio William ................................................................. 37
Pimentão Recheado ...................................................................... 39
A política do canguru ................................................................... 41
Diná do cão ................................................................................. 44
A rede ........................................................................................ 47
O sermão da picanha .................................................................... 49
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Dois Natais .................................................................................. 52
Manhã de avelã ............................................................................ 53
A rosa de alumínio – Platão ........................................................... 55
Pitágoras .................................................................................... 57
Com muita igualdade .................................................................... 61
Lerinha dos vaga-lumes ................................................................. 64
De Jandira a Djanira ..................................................................... 67
Minerva, a empacotadora ............................................................... 71
Unidade ou Morte ......................................................................... 74
Ao fazer a barba ........................................................................... 76
Madrasta ..................................................................................... 80
Enteado ...................................................................................... 81
Orquídeas .................................................................................... 82
Navarco ...................................................................................... 83
Exceptio Regulam Probat ............................................................... 85
O peito empadinha – Descartes ...................................................... 89
Dos mandados ............................................................................. 91
Na metade escura ......................................................................... 93
O refutador ................................................................................. 95
A marmita do meu pai ................................................................... 96
O Farol ....................................................................................... 99
Salmo 123 ................................................................................. 101
Farol de Tebaida ......................................................................... 102
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O gás acabou
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O celular tocou: tenho uma notícia que não é muito boa para te dar, não.
– Já sei... Meu pai morreu!
– Não. Não.
– Madrasta?!
– Sim. Mamãe levantou para fazer o café. O gás acabou. Papai saiu
para comprar o gás. Voltou e ela estava deitada e deitada ficou. Gelada.
Não levantou mais. O gás acabou. Papai fez café. Água de batata. Coração
duro, coração de pedra. Como você disse a pedra foi quebrada. Agora ela é
morta!
– Não, não. Madrasta nunca morrerá... foi morar em ICARA-í! Está
nesse instante falando com Pai Abraão. Não está ouvindo a linha cruzada?
Ouçamos:
– Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e envia-me meu enteado,
para que molhe na água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque
estou atormentada nesta chama.
– Filha, lembra-te de que em tua vida recebeste os teus bens, aliás,
tomaste os bens e teu enteado vagou pelos matos; agora, porém, ele aqui
será consolado, e tu atormentada. E, além disso, entre nós e vós está posto
um grande abismo, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós
não poderiam, nem os de lá passar para nós. Lembra do ICARA-í lá na
terra? Aqui também tem ICARA-í!
– Então, rogo-te, pois, ó pai Abraão, que me mandes como
mensageira às madrastas para que lhes dê testemunho, a fim de que não
venham elas também para este lugar de tormento.
– Têm os enteados; ouçam-nos.
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Respondeu madrasta: Não! Pai Abraão; mas, se alguém dentre os
mortos for ter com elas, hão de se arrepender.
Abraão, porém, lhe disse: Se não ouvem os enteados, tampouco
acreditarão, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos.
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Um rio chamado meu pai
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por que sobe a nossa rua como caule encurvado ao vento?
por que para no meio do caminho
no meio do caminho tem uma pedra?
e esse estender de raízes catando forças para chegar à nossa porta?
um dia segui meu pai
meu pai descia
virou a esquina
e mal distante de casa
meu pai, a planta curvada
de repente se ergueu
de repente peito estufado
de repente folhas verdes
de repente dava frutos
meu pai ainda era rio
mas desaguava noutro lugar
e a seca que o atingiu chamava-se madrasta
aguardo meu pai voltar a molhar as margens desta casa
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Separação de Sílabas
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na sala de aula
quando a professora perguntava
como era a minha família
eu dizia que era um tritongo
havia cigarra
dançávamos jongo
mas a mãe se foi
a cigarra morreu
a dança acabou
a tristeza invadiu
meu pai e a mim
e viramos ditongo
mas veio a madrasta
que teve três filhos
me jogou num hiato
e fiquei feito um i
em ICARA-í
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Dona Iva dos Cajuzinhos
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troca por uma franguinha. O galo manda. Tudo bem. Troquei por franguinhas,
mas não concordava. Galo, galinha, pinto, cantar... Todos.
A da moto ela me disse: de que adianta comprar a moto se você não
tem onde colocar? A casa em que você mora é do seu pai! Não entendi.
Fiquei por entender. Mas logo entenderia quando eu pedisse uma bicicleta ao
meu pai. Não pode. É perigoso. Ao atravessar a rua, o ônibus... Perigoso.
Meu pai sabia me convencer. Disse que não queria me perder e me abraçou.
Beijei papai, mas nem cinco anos fez meu irmão e lhe deram uma bicicleta.
Chamei papai à atenção: pai, bicicleta, o senhor sabe, a rua, o ônibus...
Perigoso. O galo aqui sou eu rapaz! Tá querendo ensinar? E seu braço pesado
de pedreiro veio feito asa de galo e derrubou o pinto no chão. Lembrei da
Dona Iva e por questão de sobrevivência fiz silêncio.
Mais tarde ganhei indenização e a primeira coisa foi montar a moto de
uma concessionária. Psicólogo para quê? Era a bicicleta disfarçada com um
motor que curava. O dinheiro na jaqueta. 750 mil. Podia pagar à vista. Tudo
corria bem, o vendedor sorrindo, eu sorrindo até que olhei para o retrovisor,
ah, o retrovisor, e vi Dona Iva sorrindo: de que adianta comprar a moto se
você não tem onde colocar?... A casa em que você mora é do seu pai? Não,
Dona Iva, não mais... Tudo agora é de minha madrasta, até um palito de
fósforo. Desmontei. Pedi desculpas ao vendedor que viu a sua comissão
sumir na esquina. Fui atrás de imobiliárias e comprei uma casa. De tijolos.
Depois veio a televisão, depois a moto e veio mais do que esperava. O pinto
tornou-se galo e veio uma galinha e, os tempos eram outros, os dois
cantávamos juntos.
Dona Iva me fez um grande bem e um grande mal. O grande bem é
que suas palavras me serviram para a vida; evitei abismos. O grande mal é
que hoje não consigo mais comer o cajuzinho de ninguém porque é longe o
cheiro de amendoim, açúcar puro, jogo fora, mas estou errado em jogar fora.
É necessário cajuzinhos bons e ruins nessa vida. Foi pelos cajuzinhos de
agora que descobri como eram deliciosos os cajuzinhos de Dona Iva.
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Madrasta
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ra-gua-i. Tritongo não se separa garoto! E a professora deu nova
oportunidade para ele não ficar com zero. Separar as sílabas da palavra
Icaraí. Pequeno Ismael separou: ICARA-í. Professora não percebeu e
manteve o zero e o pôs de castigo e aquele madrastio se ramificava:
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Professora-Madrasta
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na sala de aula
quando a professora me botava de castigo
no canto da sala
de costas para o mundo
eu ficava feito um i
em ICARA-í
empoeirado...
tudo para a raiva
mas qual o quê?
Sacudia a poeira
Dizia versos nos ouvidos das paredes
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A Raiz
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O menino da cabeça de repolho
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por que ICARA-í?
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Trabalhinho Especial de Matemática
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1ª Série
Agora resolva:
54 – 26= 28
30-10= 20
6-5 = EU
Observação da Tia Rose: Pequeno Ismael, favor não brincar com as coisas
sérias.
26
Aula de Matemática – Pré-Vestibular
Álgebra
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Exercício
Componha a função de forma tal que a cada x ∈ A faz par com y ∈ B,
obedecendo à definição de função.
Monique Pitágoras
Fernanda Descartes
Bianca Platão
Cristine Pequeno
Ismael
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Professora mãe
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As novas hienas
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Em certas noites de outono
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Hoje sei não existe alma mineral; alma vegetal; as rosas não falam,
eu sei. Tudo é provável, mas cadê que larguei a dúvida!
E fico a perguntar em certas noites de outono como essa: será que a
rosa despetalou-se por saber quem era a minha madrasta?
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Ação de Despejo Especial
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O inquilino
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Reconheço que não tive problemas com a sombra da ex: meu enteado
era a cara do pai; também não tive problemas com os amigos da ex
frequentando nossa casa relembrando velhos passeios com a família antiga.
Expulsei todos de diante de mim. Soprei neles. O pó cinza. Não ficou um.
Despachei. Mas ficou ele, ficou ele... compreende? Ele era o entre, passado
e presente.
Sim... madrasta despachou todo mundo e só eu fiquei. E ela foi tendo
filhos... Há casos em que pai e filhos são numerosos e a madrasta fica como
agregada, mas no meu caso de filho único, madrasta chegou e foi tendo filhos e
agregado me tornei eu. Madrasta foi me empurrando devagarzinho para a sala,
cozinha e fui terminar no quartinho de ferramentas. E quem disse que
terminou? Mais tarde fui parar num dos quartinhos alugados. Não assim, no
seco. Ele já está ficando um rapazinho e precisa ter um quarto só dele. Meu pai
concordou. Como discordar? Não demorou e eu mesmo tive que preencher um
recibo de aluguel em meu nome. Passei à condição de inquilino. E cada vez
mais perto da rua, da desagregação, da separação eu estava.
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O dom do tio William
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Pimentão Recheado
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por que ICARA-í?
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A política do canguru
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No fundo é sempre bom ter uns milhões de canguruzinhos dependentes,
principalmente na hora da eleição: Vem, filho, tomar leitinho! De que adianta
carteira assinada? Você não vai se aposentar mesmo!
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Diná do cão
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Deixava-me na sala vendo TV. Luís saía com o prato limpo, lambidinho. E
a debochada Diná, diante da madrasta perguntava ao Luís se estava
gostoso.
– Gostou, Lu?!
E como riam as desalmadas. Risos que coincidiam com as gargalhadas
das madrastas do cinema.
Fosse hoje, Luís, a Branca de Neve encontraria dificuldades em
encontrar florestas para mudar seu destino porque estamos devastando
tudo; os anões só se encontram, além dos livros de piadas, nos circos, TVs,
palcos de teatro, fazendo papéis engraçados e até ridículos. Quem já viu
anão, galã de novela ou cinema? Mas há esperança, Lu! Se fosse hoje, A
Branca de Neve, A Gata Borralheira e todas as crianças que sofreram maus
tratos das madrastas mudariam seus destinos, indo direto ao Conselho
Tutelar. Será?
– E adianta? Os sucateados Conselhos Tutelares?!
Você não sabia, Luís, mas atrás dos postes dessa Av. Getúlio de
Moura, nossa antiga Estrada de Minas, gritávamos nomes ruins quando
passava a empregada vilã.
– Diná do Cão! Diná do Cão!
Quando mudei, você ainda estava na cadeira de rodas, lembra, Lu?!
Não nos vimos mais. Porém, quando eu via Diná pelas ruas da cidade,
vociferava atrás dos postes: Diná do Cãããããããão! Ela nunca olhou para ver
quem zombava. Até que um dia, fiquei cara a cara com o capeta vestido de
mulher, para lhe dizer um Diná do Cão bem raivoso, canino, à
queimarroupa, mas foi ela mais rápida ao falar que você havia trocado de
cadeira; vencido a paralisia infantil com remédios e carne de rã. Não sei o
que tem a ver carne de rã com paralisia infantil, mas quem já viu pó cinza
funcionar... Disse que você já andava e jogava uma bolinha. Ainda que
meio desequilibrado, mas fazia gol. Depois dessa notícia, não sei por que
demorei a vê-lo. Talvez porque já estivesse bom e a palavra liberdade
finalmente entrara no seu dicionário. Mas agora, Luís, estamos aqui,
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cabelos embranquecendo, contudo, sem a minha e a sua madrasta e melhor,
sem aquela Diná do Cão, não é mesmo?!
E para minha surpresa, Luís sorriu, endireitou-se e falou de Diná com
emoção. Os olhos encharcados de ternura. Não entendi nada. Como ele
podia amar uma Diná do Cão que tanto mal lhe fez? Tudo bem, amai os
vossos inimigos, mas... Sorriu mais uma vez o amigo e me corrigindo,
disse, Diná de Deus e revelou. Diná escondia o bife e o colorido dos
legumes e verduras embaixo do arroz e feijão. Então pude compreender
porque ele só comia dentro do quarto fechado.
Oi Diná, seu nome não é esse, mas a história você conhece, você
viveu. Hoje aqueles meninos não existem mais. Partiram, crendo ser você a
Diná do Cão. E por minha causa. Eu a julguei por que não fui o menino dos
buraquinhos de fechaduras, espião de janelas?! Perdoe a minha cegueira de
menino. Diná, você é tão heroína quanto Tiradentes. Você é uma
inconfidente e mineira. Através dessa crônica, passo a chamá-la de: Diná do
Amor.
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A rede
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Sempre nas noites de sábado minha mãe gritava. Você vai é arrumar
mulher seu safado. E saía meu pai me arrastando para provar que não. Ele ia
trabalhar até tarde. Só que papai trabalhava até umas 18 horas. E saíamos dali
para a casa da minha tia alcoviteira. Lá não havia energia elétrica. Lampião e
vela e cheiro de querosene.
Lembro que ele ficava junto à rede balançando alguém e a luz de vela
só iluminava o ventre de uma pessoa cujo rosto ficava embutido na rede, bem
oculto, por mais que eu forçasse as vistas. A rede era um grande capuz que
lhe escondia o corpo inteiro. Da escuridade saía uma voz de mulher. Sobre o
ventre um maço de cigarros Minister e no dedo da encapuzada um anel
dourado que nunca mais esqueci. Todo cravejado de pedrinhas coloridas
refletindo. Um calidoscópio.
Uma noite meu pai me levou à beira da rede e nem assim consegui ver
o rosto da mulher, mas a voz macia me acalmava. A mão com o anel veio até
mim me oferecendo um chocolate. Tentei apanhar a vela para vê-la, mas a
voz da minha prima me chamou para brincar e fiquei sem ver aquele rosto...
Agora que mamãe foi desalojada do tritongo e madrasta chegou, vejo
que mamãe tinha razão. Ele ia se encontrar com mulher e era a mulher da
rede que hoje é minha madrasta.
Do alto do morro, da janela de uma tia, eu ficava olhando a rodovia
Presidente Dutra. Toda iluminada ao contrário do morro sombrio. O que me
atraía eram as luzes coloridas dos anúncios, piscando acendendo e apagando.
Muitas cores como o anel cravejado de pedrinhas brilhando dentro da rede.
Um dia madrasta veio me dar banho e ao me esfregar, uma das
pedrinhas do seu anel caiu na água da bacia. Ela o tirou e o pôs na em cima do
banquinho ao lado do maço de cigarros minister. Era ele mesmo! O anel da
rede. Ergui os olhos e agora via madrasta todinha. O que foi? Perguntava ela.
Mamãe tinha o peito empadinha, o de madrasta era chifre de boi, assim, com
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os bicos para os lados, Leste, Oeste. O anel tinha várias cores, mas ao mesmo
tempo em que eu o amava também o odiava. Tive desejo de que todas as
pedrinhas caíssem na bacia e fossem parar no ralo, no esgoto e no mar. Mas a
coisa não ocorreu assim. Demorou mais. As pedrinhas caíam paulatinamente.
Não sei precisar o tempo porque há pluviosidade nas lembranças... Embaçadas
lembranças.
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O sermão da picanha
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Dava para entender o medo de um Deus de Fogo Consumidor...
Naquele tempo no bairro de Vila Tiradentes havia muitos barracos. O
comércio: a barraca da Natália, a barraca do João Ratão, o Ponto Azul, ponto
de referência para os caminhoneiros vindos de São Paulo, tudo era madeira.
Mas eram os anos 70. O Brasil sendo tricampeão do mundo. Quem queria
saber que em Vila Tiradentes havia barracos? No céu os balões davam
cabeçadas tarde após tarde, gol após gol.
Era tempo das notas de Santos Dumont, de dez cruzeiros novos. Pastor
Picanha já está chegando, gente! Ah, se no bolso do meu pai houvesse muitos
Santos Dumont dando cabeçadas. Nada! Mal dava para comida. Morar num
barraco alugado já explica muita coisa. Barraco mesmo com direito à
lacraias, ratos, caranguejeiras, cobras, lobisomens, ladrões forçando as
janelas e os “Irmãos Coragem”. “Irmãos, é preciso coragem...” Era preciso
coragem mesmo para morar em Vila Tiradentes.
Lá em casa, Santos Dumont mal aterrissava, naquelas notas marrons e
verdes muito bonitas e levantava voo rapidinho das mãos do meu pai. E
nunca houve atrasos nos voos. Se, por exemplo, comprasse um carrinho,
meus carrinhos eram de caixas de fósforo, faltava para o ovo. Ovo... As
coisas não mudaram muito do meu pai para mim...
Outro dia fui preparar um ovo e ao riscar um fósforo, sofismei: o fósforo
brilha porque se rala na aspereza. Poética a frase embora passando pelo centro
do Rio, pela Presidente Vargas, vejo muitos fósforos que ralam, ralam na
aspereza e não brilham; embora muitos fósforos não consigam nem sair da
caixa. E dos que saem, muitos se quebram no caminho, perdem a cabeça. Em
vez de para frente, ralam-se para trás. Há fósforos que não brilham porque não
se mantém longe da umidade, conforme a recomendação na caixa. Há fósforos
que por ficarem perto do calor, brilham cedo demais. Existe a hora certa para
um fósforo brilhar. Existe a hora certa para um fósforo brilhar?
Echo! Aí está o pastor Picanha! Ouçamos com ele o Sermão da
Picanha:
– Pois é, irmãos! Deus é assim: chamou uns para ter dez ternos e
outros para ter um terno até o fim da vida; chamou uns para andar a pé e
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outros para andar de avião em avião; chamou uns para comer ovo e outros
para andar de churrascaria em churrascaria...
Por essa teologia, Deus chamou uns para acender o fogo com fósforos
e outros para apertarem apenas um botão. Deus é assim.
Dias depois, o pastor Picanha teve que dar um tempo de ir à
churrascaria. Hoje carrega uma cicatriz que desce do alto do peito, barriga,
coxa, canela até o calcanhar e cinco pontes safenas. Eu não queria dizer, mas...
Deus é assim.
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Dois Natais
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Era tarde de Natal. Hora de meu pai chegar das compras com minha
madrasta. Eu lavava as roupas de todos no tanque, imaginando o que viria para
mim. Chegaram de táxi. Muitas compras, embrulhos de presentes. Oba!
Entrei na casa e passando pela porta do quarto vi três camisas polo
em cima da cama. Azuis com listras brancas e vermelhas. Malha boa. E me
disse: uma é para mim e é a maior e fui vesti-la, mas pelas costas a língua
de madrasta me apunhalou: não tinha para você, rapaz. Papai subserviente
confirmou. Mas as camisas eram grandes e o irmão mais novo tinha
nascido naqueles dias. A camisa dava em mim e sobrava, a do mais novo
ficou como roupão de anjo, engolia-o, arrastando pelo chão. Mas ele vai
crescer rápido, garoto! Todos os cômodos daquela casa sabiam que eu era
doido por uma camisa polo.
No Natal todos de roupa nova, menos eu. Tiraram uma foto. E lá
estávamos, eu sem camisa, minhas costelas sorrindo ao lado das camisas polo,
azuis, belas. Hoje é Natal e eu não apanho, mas o desprezo dói muito mais.
Entanto, num outro Natal a coisa melhorou. Passei pela porta do
quarto e vi camisas em cima da cama. Comemoramos o Natal. Desta vez
vieram quatro camisas. Sim. Quatro. Mas três eram do Flamengo e uma do
Fluminense. Mais tarde nas fotos, lá estavam minha madrasta, meu pai e os
três filhos, aquele bando de rubro-negros e só eu de tricolor.
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Manhã de avelã
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Madrasta ameaçou soprar seu pó cinza em vovô e ele ria como ria.
– Sopra! Sopra aqui no meu nariz. Abaixo desse céu e acima dessa terra
há coisas que você não sabe, sua carimã! Vô tinha arco e flecha tatuados no
braço. Foi poderoso caçador nas matas antes de ser capturado e educado para o
plantio e perder as vistas para o fogo e espinho no roçado, plantação de
algodão.
Naquela manhã de avelã, vô rimou avelã com carimã. Vovô que fora
pequeno lavrador com grande família grande. Dez filhos. Todos no algodão,
plantando, descaroçando, ensacando e levando para os navios... aprendendo.
Como eram belas e novas para mim as palavras arroba e léguas! E vô me saiu
com esta outra palavra nova para mim: carimã! Fui ao dicionário e
significava farinha e também praga de algodoeiro.
– Vô, o senhor chamou madrasta de carimã, praga de algodoeiro?
Madrasta é uma praga? Destrói a plantação?
– Nem toda a vida está nos dicionários meu neto! Se achegue! Carimã
quer dizer isso aí sim que você leu e cabe naquela cabrocha, ela está
destruindo a plantação do seu pai, mas na prática, filho, carimã para um
plantador de algodão é capulho de algodão mal aberto. Um plantador de
algodão não colhe carimã. Carimã não se abre todo. Você já viu um frade
capuchinho de cabelos brancos coberto até a cabeça? Pois assim é carimã. A
fibra felpuda não se mostra toda. Quando muito uma franja. E desse jeito é
sua madrasta. A gente só vê a franja. Já passou a mão naquele casaquinho
com capuz que ela não tira faça chuva, faça sol? Toda vez que você tenta lhe
tirar o capuz para lhe acarinhar os cabelos ela diz, Arreda! Suma-se! Fora
daqui! Muito cuidado porque é isso o que ela é. Não feche os olhos meu neto.
Não feche os olhos. Os olhos da mente. Seu avô tem os olhos fechados, mas
os da carne. Vai brincar que agora você não entende, mais tarde entenderá.
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A rosa de alumínio - Platão
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Dia das Mães... Às vezes o que é loucura num ambiente em outro é pura
sanidade. Certa vez no programa «O Mundo da Literatura», TVE, Ferreira Gullar
disse que o escritor transforma a dor ou alegria em prazer estético. É verdade. Meu
irmão tem muitas dores pessoais e transformou algumas delas em prazer estético e
até foi premiado em concursos literários. Falaremos de um poema seu cuja
centelha saiu de uma dor e que termina assim: /Poema é que nem leite: / Ferveu,
derramou /Apaga o fogo/. O título do poema é Hora Certa. Os versos citados
foram os primeiros que lhe vieram à cabeça num evento « Poesia nos Arcos », na
Lapa, quando uma poeta dizia o seu poema e meu irmão disse ao Mário, outro
poeta: Mário, se ela terminar o poema nesse verso, fecha com chave de ouro!
Mário balançou a cabeça literariamente concordando, mas a poeta, embriagada
talvez por ter a consciência do belo poema, continuou e se perdeu em vãs
repetições. Então meu irmão disse ao Mário que o nome do poema seria Hora
Certa; que devíamos, não é fácil, saber a hora de parar. Eis o grande desafio não só
para escritores, mas para todos os viventes: saber a hora de parar. É certo que a
Natureza nos dá vários avisos, porém, ou não ouvimos, ou fazemos ouvidos de
mercador. Ainda estamos tão separados dela! Mas como disse, o poema Hora
Certa e seus versos finais: /Poema é que nem leite: /Ferveu, derramou /Apaga o
fogo/ saíram de uma dor do meu irmão, uma dor de nunca ter podido comemorar o
«Dia das Mães». A única vez que comemorou, não foi comemoração. Todos riram
do seu presente. O combinado era levarem rosas. Da turma só meu irmão tinha
madrasta. Na sexta-feira todos chegaram com as suas rosas vermelhas e amarelas
berrantes, outros com uma discreta rosa chá e outros com as veludosas rosas
brancas. Só meu irmão chegou com uma leiteira de alumínio.
– Ih, olha lá: o maluco trouxe uma rosa de alumínio! Comprou-a
economizando o dinheiro da passagem da escola e da merenda mais os
alumínios que catava na ida e volta para casa. Não era por falta. Lá em casa
havia três leiteiras, mas aquela era especial, mágica, socorrista, ao menos para
ele, gostava dele, uma leiteira em que o leite fervia, mas não derramava porque
a leiteira apitava, denunciando o leite para a vizinhança inteira. Se meu irmão
tivesse dado uma rosa para a sua madrasta, o leite continuaria entornando e ele
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apanhando de chicote. As outras leiteiras sem apito e o leite nunca gostaram
dele. Diversas vezes implorou ao leite. Leite, por favor, quando for derramar
me avise! O leite ficava quieto, falso, na leiteira. De repente ele desabrochava e
a sua flor branca despetalava-se sobre o fogão apagando o fogo e logo se
acendia um calor nas costas de meu irmão. A cada listra escorrida por fora da
leiteira correspondia a uma chicotada nas costas de meu irmão. Para não doer
muito digamos apenas que era um menino listrado. Listrado degradê. Que ia do
mais vermelho vigor até o rosa cansado. Todos os dias ele tinha que comprar o
leite, encostar o umbigo no fogão, colocá-lo para ferver e fazer mingau para
nós: Pitágoras, eu e Descartes. Graças a Deus ele nunca mais fez mingau na
vida! Matar não.
Mas naquela sexta-feira todos riam da leiteira, só a madrasta entendia a
sua loucura e num jogo de olhares lhe dizia, «deixa estar que te pego» e ele
respondia, «deixa estar que te escapo». Mal chegaram a casa e ela arrumou um
jeito de matar a nova invenção, entristecendo nosso pai que adorava pós-
modernidades. Ela pôs chumbo derretido na garganta do apito, que me desculpe
a ciência, mas um menino não vê mais que seus dois olhos veem, ainda não
treinado o seu terceiro olho, chamava de apito o efeito científico do vapor d’água
e a produção do som, porém, Haroldo, um amigo de infância, vendia limão na
feira e ensinou Pequeno Ismael a vender... Lembra até hoje do seu pregão: “Aê o
limão do Mato Grosso/ Casca fina, caldo grosso!” Era uma rima pobre, mas
como entrava bem no ouvido do povão e Pequeno Ismael voltava com novas
leiteiras que apitavam para casa. Se a madrasta destruía, Pequeno Ismael
comprava mais até que pararam de fabricar. Entanto, ele já estava grande,
economicamente ativo. Com 14 anos pagava à minha mãe pela comida, roupa
lavada; vestia-se e se calçava a seu gosto. Seu namoro com Damiana não
prosperou porque ela insistia em se apresentar a ele com o cabelo todo trançado,
trançadinho e perfumado como o chicote que lhe ardia no lombo, além de a
madrasta botar todas as namoradas dele para correr de vassoura.
Hoje quando ouve apitos fininhos lembra-se da leiteira que apitava, sua
rosa de alumínio, que não cansou de ofertar a sua madrasta no Dia das Mães,
tempo em que se colocava o leite para ferver. Veja que até a dor de encostar o
umbigo no fogão dá poesia. Só depende de você, mas lembre-se: /Poema é que
nem leite: / Ferveu, derramou/Apaga o fogo/.
56
Pitágoras
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faltou frango em nossa casa! Por que o olho grande? Indaga-se. Porém,
manda buscar quatro frangos. A curiosidade fisga os seis membros da
família. Alastra-se feito bertalha, chegando às casas dos amigos. A internet
encarrega-se do mundo:
-Dois frangos?!
-Sim. Dois frangos! De presente de aniversário.
-Que presente mais estranho, não acha?!
-Deve ser graceta de moleque!
-Nada! É olho grande mesmo! Maluco ele não é!
-Pode estar querendo dizer algo importante à família!
-E esses garotos têm lá coisa importante a dizer para a vida?
-É mesmo!
O apelido pega rápido. Em meia hora o planeta já sabia:"Olho
Grande" queria dois frangos de presente de aniversário.
À tardinha, hora da festa, meu irmão senta-se com os dois frangos,
enquanto os outros chafurdam no bolo. A casa é pequena, mas cabe
prefeito, presidente da Câmara, juiz diretor do Fórum, TV local fazendo
transmissão direta. Todos querem ser filmados ao lado do olhudo. "É um
acontecimento inédito em nossa cidadezinha”, diz o repórter. Meu irmão
nem quer saber de bolo. Senta-se e lambe as coxas como se nunca as
tivesse visto. E a câmera em cima. Ostenta-as , admirando, como se fossem
dois troféus. E a câmera em cima. Saboreia o peito com os olhos e exclama:
"Este é um feliz aniversário!". A câmera em cima. Apoia os cotovelos
sobre a mesa, exibindo as coxas como se fossem dois porretes para
esmurrar a fome. E a câmera em cima. Outro irmão chega a pedir uma
coxinha, aliás, coxona, mas mano velho disse Não: Esses aqui são meus. Só
meus. É o meu presente de aniversário. E dado por nossa mãe. São frangos
privativos do aniversariante. E a câmera em cima. E tem mais: eu tenho
direito nesses outros dois frangos aí também. Eu sou da família logo tenho
direito! Esses aí, hoje, são frangos públicos. Quando eu acabar daqui,
vamos comê-los, juntos. A câmera em cima.
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– Tá vendo – disse meu outro irmão – é olho grande mesmo, mãe!
Reclamou Descartes
Ninguém diz nada audível. Só murmúrios de chalaças. Olho Grande
come tudinho, exceto costela e asa. Mamãe pergunta se ela pode dividir os
dois frangos restantes. Ele balança a cabeça que sim. Ao dividir, mamãe
não resiste e dispara:
– Vem cá, você não vai dizer o porquê de pedir dois frangos de
presente de aniversário não, doidinho?
Mamãe diz isso com os frangos já divididos, distribuídos em
pratinhos. Em sua mão direita só resta o prato suspenso no ar, aguardando a
resposta do Pequeno Ismael:
– Ah, tia, minha tia, minha madrasta! Há 15 anos eu como costela e
asa nessa mesa.
Mamãe envermelhada. E a câmera em cima.
59
por que ICARA-í?
60
Com muita igualdade
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os cabos não conseguiam. Ele era o tal. O safo. Um dia de inspeção o
comandante ao tocar o bico do sapato num dos bordos, uma placa de
ferrugem despencou dentro d’água. Quanta tinta sobre ferrugem nesse país,
nesse planeta.
Mas era domingo, dia de feira, crônica e família reunida. Chegamos
da feira. Meu pai foi para o quarto deitar. Lembro que havia sol. Não me
cobrem as palavras porque eu só tinha dois anos e Igualdade, cinco. Portanto,
essa é uma crônica em parte muda, de imagens, movendo-se no tempo.
Mal chegamos e Igualdade foi logo abrindo os embrulhos dos
presentes. Eram dois chapéus de nylon, um azul, outro rosa e um penico rosa.
Igualdade me deu o chapéu azul e se entronizou no seu penico rosa e me
abaixei por companhia. Ficamos frente a frente e de repente ela interrompeu
essa rima pobre e foi para o quarto e de lá trouxe papai, puxado pela bermuda
branca. Brincávamos muito de trenzinho e ela era a locomotiva que me
levava para a casa da negra Dona Tita, a passadeira da redondeza; e era ela
também o vagão que me empurrava para frente, quando me ensinava a ser
locomotiva. Piuíííííííí! E veio do quarto trazendo papai a pequenina
locomotiva, rebocando o enorme passageiro.
Aguardávamos o almoço. Igualdade falava com papai e apontava para
mim. Papai, aprisionado pela bermuda, balançou a cabeça que sim e foi para
o quarto e saiu de lá arrumado. Igualdade me deu a mão e lá fomos de novo à
feira, pessoas gritando, mulheres se abaixando, apertando minhas bochechas,
beijando, exigindo que eu risse para que se abrissem as covinhas no meu
rosto. Era febre naquele tempo. Naquele tempo? Ô povo para gostar de
covas! São uns beija-covas.
Outra vez paramos diante do homem cabeçudo e dentes grandes.
(dentes que hoje vejo é de gente humilde, com restaurações provisórias
eternamente nos postos de saúde) Igualdade apontou para um mundo de
coloridos, onde o cabeçudo enfiou a mão e arrancou de lá um penico azul.
Ao chegarmos, a cena se repetiu: meu pai foi para o quarto e ficamos
na sala. Ela sentada no penico dela e agora, eu no meu. Igualdade balançava
a cabeça e sorria: um penico rosa e um chapéu rosa com uma peninha rosa
em dégradé ao lado e um penico azul, chapéu azul e peninha azul... Tudo
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combinando. Quem é de rosa: rosa; quem é de azul: azul. Naquele tempo as
cores eram muros tão altos como o ex Muro de Berlim e o fresco Muro de
Israel, mas hoje, nas vitrines da Rua do Ouvidor e vizinhança, quantos
blusões e camisas rosa bebê?! Combina com jeans, com o bege, com o
beijo... Mas com quem ela aprendeu isso? Os olhos meigos, o queixo apoiado
sobre as mãos... Papai sempre foi um Nietzsche inconsciente e mamãe não
ligava pra gente. Com quem Igualdade aprendeu a igualdade? Ah, é do
feminino essa coisa do combinar. E não era uma igualdade forçada, mas
desejada. Igualdade acordava abrindo janelas e cortinas e havia sol do quarto
ao banheiro.
Por aqueles dias Igualdade morreu. Minha irmã teve a duração de uma
crônica. À noite quem dormia? Eu chamava por Igualdade: I! Ô I! Minha
mãe também se foi e em seguida veio a madrasta. E como disse Drummond...
De tudo fica um pouco:
Minhas primas tinham vindo passar as férias escolares comigo e numa
tarde, dormíamos, e a madrasta me tocou pondo o indicador no centro da
boca e pedindo segredo me levou à cozinha e começou a bater um abacate.
Nasceu-me uma ruga entre os olhos. Disfarcei. Acompanhei. Joguei. Que
jogo, Baltasar Gracián, favorito de Shopenhauer. Disseste na tua Arte da
Prudência: “o jogador perfeito nunca move a peça que se espera, e muito
menos a peça que seu adversário desejaria”. Pois Movi exatamente a peça
que a minha adversária desejava que eu movesse e foi ela a envergonhada. A
madrasta... Quanta engenhosidade! Com um pano de prato engasgava o
cansado liquidificador Wallita de três velocidades para minhas primas não
ouvirem. Entanto, da cozinha dava para ver as três dormindo, mas eu não
enxergava Lucimar, Lene e Mirian. O amor me daltonizava. E para o
daltônico o vermelho e o verde são um. E eu só via Igualdade, Igualdade,
Igualdade. Não... A igualdade não estava morta. Dormia. Lázara, sai para
fora! As coisas passadas ainda são. Com pedacinhos de casca de laranja e
elástico para dinheiro, improvisei meu estilingue e fui ressuscitando as
Igualdades, uma a uma.
Naquela tarde ensolarada a vitamina teve de ser para todo mundo.
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Lerinha dos vaga-lumes
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Contudo, bastaram três vaga-lumes para Lerinha atrair o seu
pretendente. Eu! Chamava-me sempre para brincar na casa dela. E quando
entrávamos, na porta, do lado de fora, resplandecia um copo de café. Às vezes
cheio, pela metade ou quase vazio. E Lerinha me dizia que aquele café era para
as almas. E de fato era sorvido, pois a marca de café no copo, a cada dia, ia
descendo, lentamente. Lerinha dizia, com muito jeito e nenhum espanto, que as
almas sorviam devagarzinho. Saboreavam o pretinho gostoso como quem
delicia uma crônica, um conto, croniconto, um romance. Lerinha caiu na
besteira de ir à minha casa e saiu de lá a toque de vassouradas por minha
madrasta, a pedra. Todas as namoradinhas saíam corrida. Por quê? Fedra?
Não... Meu nome não é Hipólito, mas eu sou Hipólito. Que me arrastem
cavalos de Posêidon, mas em ti não ponho as mãos.
Fiquei sem graça de lhe dizer a verdade, mas o tempo aumentou as
intimidades com Lerinha e de beijinhos de criança passei a levar os livros de
ciências para a menina dos cabelos negros, lisinhos de henê. Ela não estudava.
Fui o primeiro professor de beijo, inclusive. Carinhosamente a chamava de
“Minha pretinha de alma branca!” Lerinha não passava recibo e devolvia a
ternura no equilíbrio: “Meu branquinho de alma preta!”. Resolvi aclarar-lhe a
mente e disse a ela que quem bebia aquele café era o sol. Lerinha riu. E com
toda convicção afirmou ter visto por diversas noites as almas chegando para o
café. Como era o sol, se várias vezes esquentou no fogo para as almas não
beberem café frio? Dava dor de barriga, ensinou-lhe a vó Maria! Continuei a
dizer, era o sol. E mostrei nos livros como o sol bebia café através do processo
da evaporação, mas ela teimou. Era natural. Apaixonada!
Fiz-lhe o desafio. De dia e de noite tirávamos plantão junto ao copo.
Criança, quase ninguém chama de maluca. E ela pôde verificar com os seus
próprios olhinhos amendoados que o café só sumia de dia. E perdeu a ilusão. E
fui para casa, certo de que no outro dia quando voltasse para brincar, já não
encontraria aquele copo de café, horroroso, no canto da porta. Apaguei a luz.
No dia seguinte voltei e não pude entrar. A pequenina casa de Lerinha
era daquelas construídas bem no fundo de um terreno 10x50m, sobrando muito
terreno para frente, onde estavam espalhados 600 copos de café. Cheinhos.
Fumaçando. Exército de pigmeus prontos para o combate. Ao perguntar por
que ela insistia em colocar café para as almas, porque espírito não bebe café,
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não bebe nada, não sente fome, nem sede, respondeu-me que perdeu a ilusão,
mas ganhou o sonho. Que agora punha café para o sol beber, porque estava
louca por uma longa chuva de café para deixar todo mundo pretinho e não
haver mais discriminação.
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De Jandira a Djanira
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Também tive uma Teresa com penteadeira! E você dirá: Ah, Pequeno
Ismael, muitos já tiveram uma Teresa...
– Sim, mas a forma como a conheci foge ao cotidiano. Você já viu
alguma vez um Eliézer Bertalha?
Bertalhemos: Muitos evangélicos andam por aí dizendo que foram
chamados para pregar a reis e governadores, mas o apóstolo Paulo pregou
para o rei Agripa, da prisão; José e seus irmãos, o José do Egito, antes de
ser esse José, passou pela inveja, ódio, venda e prisão.
Uma Teresa pode vir no tempo das vacas magras e o ódio no tempo
das vacas gordas. O amor pode chegar num dia cinza e a morte numa tarde
completamente azul. Sei, o certo seria o amor montar sempre as vacas
gordas e o ódio, as magras, mas não é assim na poesia. Quando mataram
meu vizinho, a manhã era cinza e chovia, chuva fina. Combinava com a
vida que ele levava, mas na morte de Kaspar Hauser seria injustiça se a
tarde não fosse azul.
Ao ouvirmos sobre o início de um amor, quase sempre a vaca é
gorda: numa bela noite, belo dia, bela praia, belo baile...
Conheci Teresa e sua penteadeira no baile da fome. A fome também
dá seus bailes. Não era uma fome como a do Egito, no tempo de José. A
fome costuma dar pequenos bailes nos lares. Findava o “milagre
econômico” e a fome iniciou seu baile pelos lares da construção civil. Meu
pai, pedreiro, autônomo, ficou desempregado e à mesa, durante o primeiro
almoço de vaca magra, chorou. Apenas feijão. De dois terrenos 12X30
geminados, só usávamos 40m2 na frente. Para os fundos tudo era mato.
Capim africano, capim-elefante, do tamanho da espada de Golias. Guiei
papai a uma passagem secreta no capinzal e quando viu, se espantou. Uma
horta que tinha de um tudo. Alfaces enormes. Milho? Espigas enormes!
Aipim? Enormes. Tomates, galinha, frango e a bertalha. O espanto deu
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lugar à curiosidade. Eu era apaixonado por sementes e a madrasta não me
dava comida. Eu passava fome com a geladeira cheia. Dinheiro? No tempo
das vacas gordas, pai, José não gastava os poucos centavos da merenda.
Para a escola ia a pé muitas vezes e comprava, na casa de aves, envelopes
de sementes. Galinhas e frangos são os pintinhos trocados por garrafas.
Essa é a sua mulher meu pai, minha madrasta, falsa Jandira, nossa Djanira.
O Senhor ganhou muito e nada tem. Até o palito de fósforo nessa casa,
hoje, está no nome dela. E se o senhor tentar me defender:
– Eu vou meter o pé na sua bunda, entendeu, garoto? E se ele tentar
te defender, meto na dele também! Agora que tudo está em meu nome. Até
um palito de fósforo está no meu nome nessa casa! Aqui ó a escritura do 5º
Ofício! E é cópia, tá! Pode rasgar!
Tirávamos para o almoço. Agora meus irmãos que diziam sobre mim,
ele nasceu no lixo, comiam da minha horta de olhos arriados. Enquanto
colhíamos, meu pai não cessava de dizer que eu tinha as mãos boas para o
plantio e a criação. Fazer viver pintinhos de garrafa e ainda pôr ovos! Qual
o segredo? Olha o quiabo?! E esse jiló?! Seu adubo é de encurvar japonês.
É melhor do que calcário.
– Pai, é mel! Eu rego a Mãe-Terra com mel jamais encontrado na
literatura de agricultura, porque esta é uma agricultura literária e o mel
literário tem gosto de tinta.
E de colheita em colheita chegou a vez da bertalha com ovos. Nesse
tempo eu já pensava em namoradas. à noite, vez por outra, pelo basculante
do quarto, entrava a voz do alto falante de uma igreja, dizendo que Abraão
enviou o seu servo Eliézer a buscar mulher para o filho, Isaque. Eliézer
quer dizer “Deus é auxílio”, mas meu pai não era um Abraão com gados e
fazendas e um Eliézer. E naqueles dias não havia Eliézer eletrônico...
Papai apanhava os ovos e eu a bertalha. Colhia as folhas. Grandes
folhas em forma de coração, quando percebi que o pé de bertalha havia
pulado a cerca. Chamei meu pai, tentamos puxá-lo, mas ele não quis voltar
como se tivesse ido fazer um mandado para a Mãe-Terra e só voltasse
depois de terminado.
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Resolvi segui-lo: da cerca tinha trepado no telhado do Seu Ventura
Barroso; alcançou o coqueiro a 3 metros de distância, pelo alto, deve ter
sido auxiliado por algum pássaro, havia muitos bem-te-vis, sanhaços e
sabiás por ali. Do coqueiro alcançou o fio e, ladeira abaixo, o telhado da
Erínia Barros, a 12 metros de distância, pelo alto; esse pé de bertalha deve
ter firmado algum contrato com os pássaros para ir tão longe e pelo alto,
sempre pelo alto... Da casa da Dona Erínia, saltou 10 metros, a casa da
Hortênsia, nada bêbada, e alcançou no vale, a casa de Bartolomeu Campos
e em seguida um vermelho flamboyant em flor, ardendo na tarde e,
ladeirinha acima, ouvia-se o farfalhar de bananeiras e entrou pelo vão entre
o telhado e a parede de uma pequenina casa cinza, janela do quarto aberta.
Eu que vinha também pelo alto, sempre pelo alto, com as pernas de pau de
circo de um amigo, desci e dei com a extremidade do pé de bertalha
agarradinho a uma penteadeira, humilde, de duas gavetas, cheia de
florzinhas e perfumes, onde estava Teresa, que do grande espelho disse oi,
a minha primeira namorada.
69
por que ICARA-í?
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Minerva, a empacotadora
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Mas no Maracanã, sempre cheio, disfarçado de cliente, eu abarrotava um
carrinho de compras. Se alguma vez tive o carrinho cheio no mercado, foi
assim, de mentirinha. Pois bem. Apelar para a força do leão, não daria. Ele era
um leão, truculento, sanguinário filho do deus Marte, bigodudo, cinco vezes
mais forte do que eu, um leãozinho, bigodinho, que por certo, na primeira
patada teria a espinha quebrada. Se eu chamasse o Terêncio, policial civil,
chefe da segurança e o resto dos seguranças, seria tiroteio na certa e, salvo
minha madrasta, que grande oportunidade de me livrar dela, dessa pedra, havia
tantos inocentes entre nós... Ah, se o sangue no país fosse apenas o espocar de
flamboyants no verão!
Mais a frente, surpreendi um meninão tomando ilicitamente um yogurte.
Daqueles de morango com geleia vermelhinha no fundo. Assustado com o meu
olhar o meninão só bebeu o yogurte e largou o copo, ferido, tombado na
gôndola e a geleia pingando, vermelha, sangue e a mancha crescendo no chão.
Pingando os lipídios, glicídios, protídios, occídios, tá-tá-tá-tá! Não, não. Que o
PM leve todo o supermercado, mas sangue, não. Se o supermercado estivesse
vazio, só com minha madrasta dentro... Mas vítima pode ser esse meninão que
mal degustou o yogurte e lá no inferno, por tudo o que sei, não há geladeiras e
yogurte quente é uma diarreia só. E se ele for para o céu, lá não se casam nem
se dão em casamento e esse meninão tem cara de que quer casar para ter uma
família à roda da mesa num domingo cronizável. Que besteira disse agora. Isso
é coisa de cronistável. Qualquer domingo é cronicável nas mãos de um
cronista. Resolvi deixar o PM se dar bem. Tinha de pegar o rato de outra
maneira. No fundo Minerva era quem guiava o carrinho e os meus
pensamentos. E carrinho vai, carrinho vem, muitos deles com um quilinho de
arroz, um tiquinho de café, um dedinho de açúcar, um pedacinho de sabão,
uma canequinha de refresco, encontrei o PM de novo. Ele estava em frente à
gôndola dos desodorantes e os amigos fizeram um meio círculo, ocultando-o,
enquanto experimentava as fragrâncias. Que nada! O esperto estava esvaziando
os frascos de desodorantes, um no outro, porque esses desodorantes vêm tão
vazios que dão para colocar dois dentro de um. Quando saíram, aproximei-me
da gôndola e contei 20 frascos vazios. Que derrame! Que malandro! Tudo bem
que o Maracanã era rico, mas havia um prêmio de cem pratas para quem
pegasse mais furtos. Foi aí que nasceu a raposa, a inteligência de Minerva. Ele
aguardava na fila. Juntei os frascos vazios e os coloquei na sacola. Naquele
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tempo havia mais empregos, havia as empacotadoras de supermercados. Que
saudade! Não fui herói sozinho. Já viu homem fazer algo grandioso sem a
ajudinha da mulher?! Contei o caso à empacotadora, uma deusa, chamava-se
Minerva de Araújo Geovú, também adorava aventura, inteligência, aceitou e
sutilmente trocamos as sacolas de desodorantes. Ali começamos o namoro. No
supermercado, ela já tinha sido namorada do Diomedes, Ulisses, Aquiles,
Menelau, mas agora o seu herói era eu, um simples fiscal de salão. O PM
partiu, festejando com os amigos. Alertei o Terêncio que logo disse: ele vai
voltar. Reuniu toda a segurança por entre os caixas como se fosse uma
comissão de frente de um mórbido carnaval. Dito e feito. O opala preto,
rebaixado, roda de magnésio, entrou no estacionamento e veio para a frente do
mercado. Mas o PM já saiu rindo. Riso largo. Terêncio perguntou se havia
algum problema. Não. Estava tudo bem, mas ele queria apertar a mão do
cidadão, porque ele tinha encontrado um cara mais malandro do que ele. E
erguia a sacola com os frascos vazios. Disse que o tal cara era um artista.
Chamou-me de artista. Confesso, fiquei vaidoso, porém, na dúvida, usei de
prudência e me contive. Hoje aperto sua mão através dessa crônica, PM, e
constato como Baltasar Graçián tinha razão: a destreza realiza mais do que a
força, e os sábios têm derrotado os valentes mais vezes do que o contrário. Na
guerra, Minerva é superior a Marte.
Por sua causa, PM, ganhei o prêmio de cem pratas no dia do meu
aniversário, 14 de março, Dia Nacional da Poesia. Comprei calças e camisas
novas e fomos andar pela cidade de mãos dadas, a empacotadora e eu, com os
presentes que você nos deu. É pena não existir mais o supermercado Maracanã
para lhe dizer, amigo: Agradecemos a preferência e volte sempre.
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Unidade ou morte
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Ao fazer a barba
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Já fui mordido por gato e cachorro, mas a que mais doeu foi a
mordida canina. E não fiz nada para ser mordido. De repente a cadela
apoiou-se em mim e mordeu. Do nada. Mas o meu nada pode ser o tudo de
outro ponto de vista e ficaram dois buracos de uma pastora alemã, cujas
cicatrizes ainda vejo ao fazer a barba. Que raiva! Sessenta e quatro injeções
na barriga, lá na Rua do Resende. Nunca mais passei na Rua do Resende.
Dizem que fico menino quando faço a barba, porém, as cicatrizes…
Não consigo morder certas lembranças. Não é fácil morder a própria vida.
Ainda não sei a arte de automorder-se. Mas chega um tempo de conflitos,
de escolhas: ou a privacidade ou a liberdade de expressão; ou a saúde ou a
liberdade de fumar; ou o não falar ou o direito de perguntar; ou a barba ou a
lembrança cinza. Andei fazendo a barba…
Dia desses, o tempo nublado, após fazer a barba fui à banca do Careca
ler as manchetes dos jornais. Lia que lia, buscando assunto para a próxima
crônica, quando chegou o filhote da Pretinha, fazendo festa. Antes de chegar
à mãe, o filhote me deu umas lambidas, mordiscou meu calcanhar, entanto,
arriei os olhos como os que têm olhos, mas não veem e só via um
engraçadinho filhote de cachorra no meu calcanhar e nada mais. Às vezes
gastamos dinheiro que não temos, comprando jornais para a próxima crônica
e às vezes a crônica está ali, de graça, mordendo o nosso calcanhar.
De súbito, Jimmy soltou-se da coleira e atravessou a esquina, indo
pegar uma flor amarela caída na frente de um bar fechado. Ainda enroladinha
e viçosa. Flor vendida por meninos e meninas à noite. Exploração. Jimmy
sacudiu a terra, voltou correndo e colocou a flor aos pés de Pretinha. Depois
dizem que os bichos apenas sonham. Que não têm imaginação criadora.
Tive um vira-lata, vira-e-mexe, chamado Tupi que adorava morder
as patas dos cavalos invasores de seu território. Os cavalos sumiram e Tupi
passou a morder as rodas dos carros. Esquisitices de bicho, diziam.
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Um dia um homem entrou armado para matar nosso Tupi. Éramos
conhecidos como a “Família P”: o pai era Pedreiro, a mãe (Dona Dália)
uma Perdulária, o filho, Poeta e um cachorro Pancado das idéias. O homem
ergueu a pistola para Tupi que passou para trás de mim geograficamente
como um Irã atrás da Rússia e os Estados Unidos invadindo.
• Sai da frente desse vira-lata maluco, Rússio, que ele nunca mais vai
morder pneus de ninguém. Quase capotei.
• Desculpe senhor, mas Tupi não é terrorista nem maluco! Maluco é
o senhor com essa arma na mão. Tupi farejou cavalos. Ele detesta
cavalos que invadam seu território.
• O quê?! Você está me chamando de cavalo?
• Não, senhor. Disse que Tupi farejou cavalos. Qual é o seu carro?
• Corolla XRS!
• XRS?
• Sim, um XRS, filho!
• Não precisava estufar o peito, senhor. Sabia que XRS, XR3, MI,
CS, LX, ELX, LXS LHC é tudo caô? 171? É só para dar a sensação
de conteúdo? É o que dizem por aí!
• Não desconversa, cadê os cavalos?
• Há! Os cavalos? Au!Au!Au! Tupi está dizendo que para ele o seu
carro é um tremendo Cavalo de Tróia; Au!Au!Au! Disse agora que
os cavalos estão no carro; Au!Au!Au! É só abrir o capô; Au!Au!Au!
Há 158 cavalos.
O homem baixou a arma de vencido, arrancou com o carro e sumiu,
gritando: malucos, malucos! Tudo 171, caozeiros são vocês.
Bem, Pretinha ciscou a rosa de Jimmy para longe. Suas pétalas
dariam um excelente refresco de rosas nesse inverno calorento. Parece que
não é só a “Família P” a maluca nessa história. Tudo parece maluco. Até
esse tempo. Tinha que ver como o homem arrancou com o seu Corolla
XRS, 158 cavalos. Um Cavalo. Aliás, desembestado.
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Pretinha é cadela grande, bonita e deram o seu filhote à professora
Layla que lhe pôs o nome de Jimmy. Não sei se existe saudade no mundo
dos bichos, mas é bem parecido o filhote ver a mãe e não parar de balançar
o rabinho e se aproximar com gracinhas, pulinhos, oferecer rosas…
Pretinha ficou indiferente, desviou-se, desprezou e diante da
insistência de Jimmy o mordeu e se afastou. A mãe mordeu o filho. Sim,
houve uma dor, talvez duas dores em Jimmy. Por dentro e por fora. Senti as
dores de Jimmy. Então de nublado abriu um sol, que sol, e os meus olhos se
abriram e enquanto todos diziam: não faz isso, Pretinha! Só eu disse, não
faz isso, Dona Dália,digo, Diamantina...
78
por que ICARA-í?
79
Madrasta
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80
Enteado
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81
Orquídeas
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82
Navarco
_______________________________________________
83
por que ICARA-í?
84
Exceptio Regulam Probat
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De tudo que fui passando criou-se uma quase lógica dentro de mim.
Madrasta era má. Mais de oitocentas maldades contadas. A vizinhança
dizia que era mais. Um dia o senhor vai encontrar seu filho morto. Eu já
esperava pela nongentésima, milésima maldade. Cobrava pela comida, pela
roupa lavada, e ainda tinha que dar o sabão.
Uma noite, madrasta, meu pai e meu primo tramavam sobre o terreno
de São Bernardo. O tão falado terreno que seria meu, já que madrasta era
dona de tudo o que havia, falava papai. Pai bom esse.
Comecei a trabalhar cedo, 14 anos. Era excelente vendedor
ambulante. Tinha dinheiro que dava para pagar o preço da escritura à vista,
mas disse que não tinha e que deixasse aquele terreno, comprado meio a
meio, inteiro para tio Satú por causa de seus muitos filhos. Essa foi a
desculpa. A verdade é que naquela noite não tinham me visto chegar do
trabalho e tramavam para eu dar o dinheiro, mas a escritura não sairia no
meu nome e sim no nome de madrasta. O terreno foi comprado meio a
meio, meu pai e meu tio. Naquela noite... meu próprio pai... “é e aí a
escritura sai nome de Dália que é para a outra, a cobra, não ter direito a
nada.”
Madrasta também chamou a polícia, dizendo que eu era um bandido
de alta periculosidade. A polícia veio. De fato eu andava com um volume
entre o short e a camisa. Naquele tempo nem deixavam falar. Chegavam no
morro atirando, mas um policial me rendeu e outro puxou o suposto
revólver que na verdade eram caneta e folhas de papel almaço enroladas,
cheias de versos.
− A senhora nos fez vir aqui só para gastar gasolina minha senhora!
Seu enteado é poeta!
Quando Tupi morreu fiz o enterro e chorei muito, olhos vermelhos.
Ao entrar em casa, madrasta deslizou para o quarto e de lá veio como um
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rebocador acelerado, empurrando papai para cima de mim, associando:
olhos vermelhos é maconha. Não, não. Quebraram a cara. Mostrei-
lhes atrás do capinzal, a vela acesa e Tupi, nosso cão, enterrado e uma
imagem de São Lázaro cheio de feridas, rodeado de animais.
Hoje não creio em imagens. Só nas imagens dos poetas. Essas fazem
milagres, mas eu tinha mais feridas do que São Lázaro e a desvantagem de
que todas eram por dentro e há dias em que nem a poesia te socorre.
De outra vez madrasta nem deixou papai tirar os sapatos e na entrada
da porta já foi dizendo:
– Seu filho anda querendo me rebocar.
– Meu próprio filho...
– É! seu próprio filho!
– Pai, é mentira! Ela é que é rebocadora! Fica peladinha no chão da
sala quando o senhor sai e eu tenho que pular a janela para ir à escola!
– Meu próprio filho...
– Disse que arrumaria um jeito de o senhor me mandar embora
daqui!
– Meu próprio filho...
– E que se o senhor tentasse me defender iria meter o pé na sua
bunda também!
– Meu próprio filho...
– Grita comigo quando ela fala e não olho para ela. “Quando eu falar
contigo, você olha pra mim, rapaz!”. E quando olho, pai, lá está ela com um
dos peitos de fora. O bico do peito duro. Pai, eu detesto peito chifre de boi,
meu negócio é peito empadinha!
– Meu próprio filho...
Por essas e outras, pendurei madrasta numa cruz entre Fedra e a
madrasta de Cinderela, mas a lógica não é a vida e madrasta ressuscitou ao
terceiro dia me dando um radinho de pilha de presente, num domingo em
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que todo o comércio funcionava. Um rádio caro para a época. À noite liguei
o radinho e acendeu uma luz verde que logo apagou com a chegada da
energia intrusa do Luís dizendo em latim: Exceptio Regulam Probat! E
traduzia ele mesmo ao seu jeito: A exceção confirma a regra.
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por que ICARA-í?
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O peito empadinha - Descartes
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Por esses dias, Pequeno Ismael revia seus filmes preferidos, quando
ao olhar a programação cinematográfica deu com o nome Fedra. Era a
mostra intitulada “Do Palco à Tela” que tinha a parceria da cinemateca da
Embaixada da França, onde o espetáculo teatral Fedra de Racine foi
adaptado para a tela e encenado em 2003 por Patrice Cháreau, com 140
minutos de duração.
Pequeno Ismael circulou a data com a caneta e no dia estava lá, na
fila do meio, esperando Fedra. Num certo momento da peça, Fedra desnuda
um seio diante de Hipólito. Não era peito empadinha, mas Pequeno Ismael
perturbou-se com aquele seio desnudo. Rangia os dentes. O bico do peito
da atriz estava duro. Desejava que a atriz ocultasse logo aquele peito, mas
ela o explorou por eternos segundos... e em menos de um minuto aquele
peito começou a falar com Pequeno Ismael: “vou meter o pé na sua bunda!
Por que você não me chupou?” E se eu o chupasse haveria alguma
surpresa? Viva o peito empadinha! Gritou o enteado como se fosse um
grito de independência ou morte. Ninguém se assustou no cinema. Ao
contrário, caíram no riso, repetindo: Viva o peito empadinha! Na saída o
comentário sobre o espetáculo era um só: peito empadinha. Não sei dizer se
o peito da atriz era chifre de boi. Pequeno Ismael é que é o peitólogo dessa
história.
Mas a primeira vez que o peito apareceu foi na hora do almoço. Sua
madrasta o mandou lavar louça. Pequeno Ismael era jovem e cabisbaixo.
Mas sua madrasta depois de um tempo andou querendo que ele erguesse a
cabeça. Pequeno Ismael, quando eu falar com você, rapaz, você olha pra
mim! Na porta da cozinha, Pequeno Ismael dá meia volta e ergue os olhos e
lá estava ele: Peito chifre-de-boi. Bico duro. A madrasta umedece os lábios.
A língua vem cá fora. Ele na porta da cozinha e ela na do quarto, diante do
espelho do guardarroupa. Fingia-se arrumar para sair. Esperava ser jogada
na cama e possuída pelo enteado. Sabia de ouvir os comentários de suas
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namoradinhas que Pequeno Ismael era grosso e demorava... mas o rapaz
sequer teve ereção. Dá outra meia volta e vai lavar louça e mamãe cobre o
peito com o sutiã como quem fecha um caixão.
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Dos mandados
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falta. Por isso fico daqui desse escanteio sem poder dar ao leitor outros ângulos
do jogo, Leibniz. Não é fácil ser um narrador bola. Bola no córner.
O segundo mandado, madrasta mandou comprar cola da boa. Falei isso
para o dono do armarinho. Quando vi madrasta colando, vi que a cola era boa
mesmo. Assim que se distraiu, passei a cola em mim e corri, saltei no colo
dela, num grande abraço. Fomos parar juntinhos no hospital. Naquele breve
espaço de união senti o suor de madrasta e o gosto de seu corpo era amargo...
cheiro de tinta de navio, tinta anti-incrustante, veneno para um menino com
alma de mexilhão. Logo veio o médico e nos separou.
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Na metade escura
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escura do campo. Todos tinham bicicletas feitas de ossinhos e sussurravam:
Pequeno Ismael, Ismael Caveirinha, seu lugar é aqui!
E fiquei olhando, como pode? Bicicletas de ossinhos...
Foi diante do espelho que me toquei, digo, toquei nas minhas costelas
e me recordei das aulas de catecismo; que Deus tirou uma das costelas de
Adão e formou a mulher; que na TV apareciam pessoas que quebraram
suas costelas para ter cinturinhas! Ora, estava comigo a bicicleta. Arranquei
umas costelas, montei a minha e fui pedalar com aqueles ICARA-ís e
reparei que na metade escura do campo também há uma grande área e uma
pequena área.
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O refutador
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“Deus não pode estar em toda parte, e por isso fez as mães.”.
(provérbio judeu)
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A marmita do meu pai
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Quando um pai morre se pensa na morte. O filho mais velho pensa
mais! Mas o meu encontro consciente com a morte não veio com a partida do
meu pai, veio com a chegada da madrasta.
– Desculpe, madrasta, a morte não veio com você, veio comigo, mas
você é o fio condutor dessa história e eu não podia quebrar a unidade deste
livro. Peço que aguente este libelo porque a gema estourou, meu pai morreu e
de herança só me deixou esta marmita vazia.
Entendi, pai! Agora é a minha vez, com o meu trabalho, de colocar
alimento dentro dela.
Já é noite e hoje estou tão encolhido sob o lençol que poderia dormir
nesta marmita.
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O Farol
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Pequeno Ismael estava para servir. Tinha passado nas provas e exames.
Recebeu passagem para ir embora servir à Marinha. Cansou de ouvir
marinheiros dizendo: “A Marinha é uma mãe!”. Era praticamente um ditado
na Marinha. E foi isso que o atraiu para essa farda: A Marinha é uma mãe.
Antes de embarcar teve a sensação de estar em vantagens sobre os
outros que choravam, abraçados às mães, vós e tias, pais, irmãos... Pequeno
Ismael foi o primeiro a embarcar. Estava contente porque agora tinha uma
mãe e poderosa, ao menos no Brasil. Logo de cara Pequeno Ismael
observou que sua nova mãe era uma mãe colorida que ora era cinza de
fragatas e corvetas, ora preta de submarino, ora branca hidrografia, ora
vermelha Barão de Tefé.
Naquela turma de Aprendizes-Marinheiros do Espírito Santo só
Pequeno Ismael tinha madrasta, agora as próximas turmas terão bem mais
com tantos divórcios no país.
Pequeno Ismael não tinha para quem dar adeus. Do lado de fora do
ônibus mãos de parentes, principalmente de mães como que algemando as
mãos dos filhos. A janela de Pequeno Ismael era a única que permaneceu
fechada, mas o choro do ICARA-í alcançava o último banco, onde ele
estava. Sem aviso o motorista ligou o motor e o ônibus foi escorregando e
as mãos foram se separando... Quantos ICARA-ís, mas só no de Pequeno
Ismael não haveria saudades...
Ainda na Escola de Aprendizes a Marinha chamou voluntários para o
curso de faroleiro militar. Era tudo o que sua madrasta desejaria saber: que
o enteado estava distante, num farol, ilha inóspita, dentro do mar, ICARA-í.
Não. Não. Vou cursar aviação, voar, macacão cheio de brevês,
motocicleta, óculos escuros, mulheres bonitas. Farol, não... Tem muitas
assombrações. E de Assombração basta a de dona Yolanda com o seu menino
da cabeça de repolho. Farol, não... Ter que ver todos os dias aquela torre feito
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“i”, longe das vogais, das consoantes... Ver o foco luminoso iluminar as
moreias à noite. Isso, não. Todo o romantismo do farol vai ser mastigado pelos
dentes de madrasta. As moreias pareciam ter roubado os dentes de minha
madrasta. A assombração chefe do meu farol vai ser madrasta. Mastigando a
noite, nhac, nhac, nhac, as estrelas, nhac, nhac, nhac, a natureza, nhac, nhac,
nhac... Madrasta não dorme. Parece menina cheia de energia. Vai acabar com
os peixes do mar, nhacnhacnhac, à noite dá para ouvir seus pesados passos na
casa. Mas é a boca que faz nhacnhac, que sopra pó cinza, que profere
maldições pelas costas. Farol, não.
Passaram-se dois anos e Pequeno Ismael foi chamado para o curso de
especialização em aviação, mas o psicotécnico o contraindicou, selecionando-o
para um novo curso, o curso de faroleiro. E ficou feito um “i” em ICARA-í, o
“i”, farol distante da sociedade, Farol de Tebaida... a Marinha não é uma mãe:
para mim me foi madrasta. E Pequeno Ismael tornou-se rebarbado, bola 7,
indisciplinado, deixando a barba crescer, crescer, cresceu tanto que dizia o
piloto do helicóptero que lhe levava mantimentos: Este é filho de Netuno. Só
não sei se é profeta ou esquizofrênico, comandante, mas o livro é meio
esquizo, não? Um livro de separação numa hora dessas de solidariedade,
inclusão, globalização!
– Não, piloto. Não se mata um apartheid a pedradas. E não é inclusão
o ficar pelas beiradas, ser incluído perversamente na luz... a única cauda
que já vi brilhar neste planeta foi a de um cometa. Que rima triste. No mais,
são caudas de lagartixas servindo de alimento aos ratos.
– É verdade... E essa pergunta feito goteira que fica sem resposta,
comandante: por que ICARA-í?
Cabrunnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn!
Pequeno Ismael, há muito tempo você me faz uma pergunta. E hoje
Pai Abraão vai dar a sua resposta. A sua resposta está no Salmo 123.
Quando chegar em casa, abra a minha palavra e verá: Por que ICARA-í...
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Salmo 123
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101
Farol de Tebaida
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enterro a convite de Machado em São Cristovão. E Coelho Neto: “No caixão,
o cadáver de uma senhora idosa. Machado teria deixado escapar estas
palavras: É minha mãe!” Na verdade era a sua madrasta, entanto, Machado
dizia: minha mãe.
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Este livro foi composto nas tipologias
Times New Roman / ITC Officina Sans Book, impresso
em papel Alta Alvura 75 g/m2 (miolo) e Cartão Supremo 250 g/ (capa),
pela Fábrica do Livro, em abril de 2010.
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