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Caçada ao Madrastio

Copyright © 2010 by Lasana Lukata


Todos os direitos reservados
Editoração/Arte final: Ione Nascimento
Impressão: Fábrica do Livro
Revisão final: pelo autor
Email: lasanalukata@yahoo.com.br

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

L98c
Lukata, Lasana, 1964-
Caçada ao madrastio / por Lasana Lukata. - São João de Meriti, RJ : L. Lukata, 2010.

ISBN 978-85-910523-0-1
1. Crônica brasileira. I. Título.

10-1201. CDD: 869.98


CDU: 821.134.3(81)-8

19.03.10 23.03.10
018111

2
“meu mocinho, eu vejo que isso é um madrastio”
(A história de Lélio e Lina, Guimarães Rosa)

“Era, então, Jefté, o gileadita, valente e valoroso. O seu pai era


Gileade; porém, a sua mãe uma prostituta. Também a mulher de
Gileade lhe deu filhos, e, sendo os filhos desta mulher já grandes,
repeliram a Jefté e lhe disseram: Não herdarás em casa de nosso
pai, porque és filho de outra mulher. Então, Jefté fugiu de diante
de seus irmãos e habitou na terra de Tobe...”. (Juízes 1,2,3)

“- Aqueles que me amaram eram gente desprezada...”


Baudelaire

Onde tudo nos quebra e emudece


Onde tudo nos mente e nos separa
Sophia de Mello Breyner Andresen

“A vida é sonho, e os sonhos sonhos são”


Calderón de La Barca

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Prefácio
_______________________________________________

O madrastio nosso de cada dia

Os dicionários em geral informam que “madrasta” é uma espécie de


mãe substituta, aquela que faz as vezes da genitora, quando da ausência da
mesma. Mas esta caçada de Lasana Lukata não é uma empreitada de teor
vocabular: antes de tudo, o poeta envereda pelas linhas poéticas da prosa
movido pela acepção existencial da palavra, que, a exemplo da mortificada
vida severina de João Cabral de Melo Neto, manifesta seu caráter
adversativo à sua própria definição já a partir da primeira – ma – sílaba:
“Minha madrasta tinha nome de flor sem espinho e eu não entendia suas
pétalas tão ásperas...”.
O conflito entre a aparência do verbal e a essência do real não se dá
apenas na entidade que é o fio condutor de todo o livro – a madrasta. Em
quase todos os textos, o emissor (um fingidor) diz haver diante de nossos
olhos uma série de crônicas, o que, num primeiro olhar, nos faz supor que
Lasana Lukata relata, lá do seu irônico bairro de Éden, em São João de
Meriti, episódios da vida cotidiana para lhes acrescentar simpatia ou
reprovação. Ledo engano. Tão grande é a diversificação unitária de Caçada
ao madrastio, que em seu cerne residem características de vários gêneros
literários, como a prosa e o verso, a citação de outros discursos (como o
“Salmo 123”) e a estrutura típica da prosa ficcional, exibindo
sistematicamente: elos a manter ligados os textos aparentemente
fragmentados do livro, como os relatos e/ou divagações do personagem-
narrador-sujeito lírico Pequeno Ismael; a polifonia narrativa, a fazer com que
muitas vozes habitem e se pronunciem num mesmo discurso; e as
indagações não necessariamente respondíveis. À pergunta martelante “Por
que ICARA-í”, inscrita do início ao fim do livro, Lasana responde, no
capítulo-falsete emblematicamente intitulado “Farol de Tebaida”: “Não
adianta procurar... é farol da literatura (...). Gosto é de ficar lá em cima do
farol, sendo folheado, ver que perceberam o oculto e o profundo”.

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E nesta obra desenganada, a qual mamou o chá de boldo do seio da
madrasta, engana-se quem pensar que sua razão de ser é a quebra das
classificações literárias, fato, aliás, tornado supremo na literatura
contemporânea. O poeta, cuja poesia mama as águas podres dos rios Meriti
e Pavuna, autor de preciosidades como “Tempos pós-modernos?”, não
abre mão de impregnar suas crônicas da observação crítica e contestadora
do que se chama ordem mundial ou vida comum. Seja em relação a
programas governamentais de base assistencialista, seja em relação à brutal
inversão de valores efetuada também por religiosos (como no irônico “O
sermão da picanha”), a escrita de Lasana Lukata nunca se esquece de que a
arte não peca por também misturar-se ao lado madrasta do peito da vida,
como em “As novas hienas”, um dos maiores lances do livro: “Mas esta
manhã é diferente: depois da intensa fuzilaria, os meninos acordam cedo
para catar. Só para catar. Metal. Metal da violência. Cápsulas. E enchem
bolsas. Pesadas bolsas. E no ferro-velho eles faturam. E vem a noite. E na
cama para dormir, não dormem. Perguntam-se: – Pô, ainda não deram um
tiro esta noite?! Amanhã vai ser fraco”.
Num determinado poema, Vinícius de Moraes diz que são muitos os
perigos desta vida. Em Caçada ao madrastio, o poeta-cronista de Meriti
parece querer nos dizer que são muitas as situações “madrásticas” do
cotidiano, sobre o que nos diz o emissor: “Há dias em que nem a poesia te
socorre”. Mas se a literatura desanda a inverter as coisas, esta obra troca as
noções de luz e escuridão (“Na metade escura”), tragédia e comédia
(“Exceptio regulam probat”) e real e ficcional (são todos, mas destaque-se
o alegórico “Dos mandados”), para nos dizer, entre amarga e fagueira,
“que perdeu a ilusão, mas ganhou o sonho”.

São muitas as madrastas desta vida, leitor, e não sabemos de que


armas dispomos: se de fogo ou de sonho. Mas é necessário caçá-las, e este
livro está em riste. À caçada.

Marcos Estevão Gomes Pasche

Rio de Janeiro, 15 de março de 2010.

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Sumário
_______________________________________________

Prefácio ........................................................................................ 5
O gás acabou ................................................................................ 9
Um rio chamado meu pai .............................................................. 11
Separação de Sílabas .................................................................... 13
Dona Iva dos Cajuzinhos ............................................................... 14
Madrasta ..................................................................................... 17
Morros sem água .......................................................................... 18
Professora-Madrasta ..................................................................... 20
A Raiz ........................................................................................ 21
O menino da cabeça de repolho ...................................................... 23
Trabalhinho Especial de Matemática ................................................ 26
Professora mãe ............................................................................ 29
As novas hienas ........................................................................... 31
Em certas noites de outono ........................................................... 32
Ação de Despejo Especial .............................................................. 35
O inquilino .................................................................................. 36
O dom do tio William ................................................................. 37
Pimentão Recheado ...................................................................... 39
A política do canguru ................................................................... 41
Diná do cão ................................................................................. 44
A rede ........................................................................................ 47
O sermão da picanha .................................................................... 49

7
Dois Natais .................................................................................. 52
Manhã de avelã ............................................................................ 53
A rosa de alumínio – Platão ........................................................... 55
Pitágoras .................................................................................... 57
Com muita igualdade .................................................................... 61
Lerinha dos vaga-lumes ................................................................. 64
De Jandira a Djanira ..................................................................... 67
Minerva, a empacotadora ............................................................... 71
Unidade ou Morte ......................................................................... 74
Ao fazer a barba ........................................................................... 76
Madrasta ..................................................................................... 80
Enteado ...................................................................................... 81
Orquídeas .................................................................................... 82
Navarco ...................................................................................... 83
Exceptio Regulam Probat ............................................................... 85
O peito empadinha – Descartes ...................................................... 89
Dos mandados ............................................................................. 91
Na metade escura ......................................................................... 93
O refutador ................................................................................. 95
A marmita do meu pai ................................................................... 96
O Farol ....................................................................................... 99
Salmo 123 ................................................................................. 101
Farol de Tebaida ......................................................................... 102

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O gás acabou
_______________________________________________

O celular tocou: tenho uma notícia que não é muito boa para te dar, não.
– Já sei... Meu pai morreu!
– Não. Não.
– Madrasta?!
– Sim. Mamãe levantou para fazer o café. O gás acabou. Papai saiu
para comprar o gás. Voltou e ela estava deitada e deitada ficou. Gelada.
Não levantou mais. O gás acabou. Papai fez café. Água de batata. Coração
duro, coração de pedra. Como você disse a pedra foi quebrada. Agora ela é
morta!
– Não, não. Madrasta nunca morrerá... foi morar em ICARA-í! Está
nesse instante falando com Pai Abraão. Não está ouvindo a linha cruzada?
Ouçamos:
– Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e envia-me meu enteado,
para que molhe na água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque
estou atormentada nesta chama.
– Filha, lembra-te de que em tua vida recebeste os teus bens, aliás,
tomaste os bens e teu enteado vagou pelos matos; agora, porém, ele aqui
será consolado, e tu atormentada. E, além disso, entre nós e vós está posto
um grande abismo, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós
não poderiam, nem os de lá passar para nós. Lembra do ICARA-í lá na
terra? Aqui também tem ICARA-í!
– Então, rogo-te, pois, ó pai Abraão, que me mandes como
mensageira às madrastas para que lhes dê testemunho, a fim de que não
venham elas também para este lugar de tormento.
– Têm os enteados; ouçam-nos.

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Respondeu madrasta: Não! Pai Abraão; mas, se alguém dentre os
mortos for ter com elas, hão de se arrepender.
Abraão, porém, lhe disse: Se não ouvem os enteados, tampouco
acreditarão, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos.

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Um rio chamado meu pai
_______________________________________________

meu pai era um rio e terminava em mim


e de mim saíam peixes coloridos para o mundo
meu pai banhava minha mãe e a mim
e em nós não faltavam folhas verdes flor e fruto
mas um dia deu no jornal da tevê:
uma seca atingiu proporção jamais vista antes...
tanto que da tela a seca pulou em meu pai
e de repente meu pai não tinha braços
dois galhos secos me abraçavam sem dar frutos
seus afluentes que davam cem, agora, davam cinquenta
eu via o volume de água diminuir em meu pai
o azul dos olhos despejado pelo cinza
eu via meu pai rachar diante da tevê
logo ele herdeiro do semiárido, árido tornou-se de vez
árvore pelada de sentimentos
andando dentro de casa sem saber que estava nu
e uns dizia era Oxum
mas mamãe dizia era Oxum
dessas que do portão
atrai o marido das outras...
meu pai meu pai

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por que sobe a nossa rua como caule encurvado ao vento?
por que para no meio do caminho
no meio do caminho tem uma pedra?
e esse estender de raízes catando forças para chegar à nossa porta?
um dia segui meu pai
meu pai descia
virou a esquina
e mal distante de casa
meu pai, a planta curvada
de repente se ergueu
de repente peito estufado
de repente folhas verdes
de repente dava frutos
meu pai ainda era rio
mas desaguava noutro lugar
e a seca que o atingiu chamava-se madrasta
aguardo meu pai voltar a molhar as margens desta casa

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Separação de Sílabas
_______________________________________________

na sala de aula
quando a professora perguntava
como era a minha família
eu dizia que era um tritongo
havia cigarra
dançávamos jongo
mas a mãe se foi
a cigarra morreu
a dança acabou
a tristeza invadiu
meu pai e a mim
e viramos ditongo
mas veio a madrasta
que teve três filhos
me jogou num hiato
e fiquei feito um i
em ICARA-í

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Dona Iva dos Cajuzinhos
____________________________________________________________

Dona Iva, 80 anos, baixinha, magrinha, a voz de um grão de amendoim,


contratada para fazer os cajuzinhos do aniversário do meu irmão.
Ela e minha madrasta comandavam a cozinha. Minha madrasta tinha
nome de flor sem espinho e eu não entendia suas pétalas tão ásperas... Entendi
depois. Ela era de gêmeos. Duas caras. Uma de osso, dura, e a outra de carne
macia. A de osso – caveira – bailava oculta sob a pele e golpeava dali feito
Palas-Athena, sem ninguém ver... Feriu muitas amigas. Mas havia dias em que
a caveira vinha tomar sol e madrasta ficava de ossos salientes. As bochechas
gordinhas sumiam e meus lábios atracavam em seu rosto como um navio sem
defensas que se arranha num cais. As águas bravias sangravam-me a boca,
dentes quebrados... Sim... Era de gêmeos, hábil, possuía dois registros de
nascimento. Um que carregava com ela e outro sepultado no fundo do
guardarroupa. Desenterrei. No fundo do guardarroupa ela chamava-se
Diamantina, à superfície da vida seu nome era Dália. Dália Jandira. Não que
nascesse duas vezes. Diamantina era nome dado pelos pais; Dália ela deu a si
mesma, registrou-se outra vez em Botafogo com a ajuda da patroa aos 18 anos.
Detestava que a chamassem de Diamantina. Eu a chamava desde o dia em que
ao pé da janela brincava e notei-me sendo observado. Cacei e era madrasta na
janela que se encolheu feito cobra, porém, eu já havia penetrado nos seus olhos
com apenas 14 anos e vi o que ela era. Era de gêmeos, mas Diamantina e Dália
não eram gêmeas, não rimavam rima perfeita. Minha madrasta esforçava-se
por ser Dália, mas o que brilhava era a dureza de Diamantina. Dona Iva e
minha madrasta... Dois diamantes na cozinha... Mas do diamante da madrasta
eu não conheceria nem brilho nem beleza, só dureza, dureza, dureza, minha
madrasta era uma anáfora sobre duas pernas. Tinha o cérebro hipertrofiado a
ponto de ir empurrando o coração para a sola do pé onde só usava sandália,
fosse verão, fosse inverno, para manter o coração ocupado com o frio, calor,
poeira, pedras e ele não tentasse subir ao seu lugar de origem e atrapalhasse a
nobre expansão cerebral. Sandália... San Dália. San Dália nada, doente Dália.
Cristo Jesus, o senhor curou a sogra de Pedro, porque não curou minha
madrasta? Trovoadas. E uma Voz de Muitas Águas: Pequeno Ismael! A sogra
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de Pedro quis a cura. Sua madrasta está muito doente e não sabe. Ela tem o
coração de pedra. Quando ela deitar, não vai levantar mais.
Ah! Dona Iva é o que interessa: chegou armada de um moinho de grãos
a manivela. Naquele tempo muito do mundo ainda era posto em movimento a
manivela. Naquele tempo, muitos moinhos de grãos, moedor de carne em casa,
nas feiras e nas feiras víamos moinhos funcionando, cheiro de cominho e
pimenta do reino no ar. Tudo moído na hora. Um tempo de cheiros. Hoje –
reclamou o baiano do bar – deu onze horas e em todas as portas só se sente
cheiro de alho. O Rio de Janeiro vive a ditadura do alho. Na Baía não, moço.
Em cada porta é um cheiro, seu cronista! Entanto, eu que estava acostumado a
ver moinhos de grãos triturando condimentos, agora via um moinho de grãos
especial, o da Dona Iva, exclusivamente para amendoim. Poderia usar para
moer outros grãos, lavar, depois moer os amendoins, mas não, só grão de
amendoim e pronto. Dona Iva era exigente. O seu moinho de grãos era como o
navio que transporta suco de laranja para o exterior: vai cheio e retorna vazio
porque nesse navio: apenas suco de laranja.
Dona Iva chegou à noitinha e foi logo fixando o seu moinho na beirada
da mesa e eu fui fixando minhas mãos na manivela do moinho e a casa
perfumou-se de amendoim. Ela falava com A e B, faz isso, faz aquilo, mas às
vezes punha os olhos em mim e dizia umas coisas das quais só guardei duas: a
do galo e a da moto: Pequeno Ismael, dois galos não cantam debaixo do
mesmo teto! Era verdade. Lá em casa criávamos galinhas, mas o galo que nos
acordava era um só. Imponente pela madrugada ou avisava à meia noite que
ladrões estavam forçando portas e janelas para levar a única televisão que
havia na redondeza. Morávamos num barraco, mas meu pai era o único que
tinha uma TV, Telekta, em preto e branco na sala. Quando a televisão chegou
fui procurar onde ficava a manivela que a faria funcionar. A manivela encolheu
para botão. Dois galos... Verdade, mas eu não concordava. Por que só o galo
podia cantar? E por que as galinhas só cantavam na hora do ovo?! Aquilo não
era canto, era dor. Ovo enorme. Eu que ouvia de tudo em casa, disse: sabe
Dona Iva, minhas galinhas têm que fazer perine! Menino é doido, Dona Iva!
Dona Iva sorriu e corrigiu: é períneo, filho. Do grego períneon. Dona Iva, um
dos pintos cantou e o galo bateu no pinto e aí bati no galo. No galo, não! Dona
Iva arriou sobrancelhas, ruga entre os olhos. Nunca bata no galo. Pega o pinto e

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troca por uma franguinha. O galo manda. Tudo bem. Troquei por franguinhas,
mas não concordava. Galo, galinha, pinto, cantar... Todos.
A da moto ela me disse: de que adianta comprar a moto se você não
tem onde colocar? A casa em que você mora é do seu pai! Não entendi.
Fiquei por entender. Mas logo entenderia quando eu pedisse uma bicicleta ao
meu pai. Não pode. É perigoso. Ao atravessar a rua, o ônibus... Perigoso.
Meu pai sabia me convencer. Disse que não queria me perder e me abraçou.
Beijei papai, mas nem cinco anos fez meu irmão e lhe deram uma bicicleta.
Chamei papai à atenção: pai, bicicleta, o senhor sabe, a rua, o ônibus...
Perigoso. O galo aqui sou eu rapaz! Tá querendo ensinar? E seu braço pesado
de pedreiro veio feito asa de galo e derrubou o pinto no chão. Lembrei da
Dona Iva e por questão de sobrevivência fiz silêncio.
Mais tarde ganhei indenização e a primeira coisa foi montar a moto de
uma concessionária. Psicólogo para quê? Era a bicicleta disfarçada com um
motor que curava. O dinheiro na jaqueta. 750 mil. Podia pagar à vista. Tudo
corria bem, o vendedor sorrindo, eu sorrindo até que olhei para o retrovisor,
ah, o retrovisor, e vi Dona Iva sorrindo: de que adianta comprar a moto se
você não tem onde colocar?... A casa em que você mora é do seu pai? Não,
Dona Iva, não mais... Tudo agora é de minha madrasta, até um palito de
fósforo. Desmontei. Pedi desculpas ao vendedor que viu a sua comissão
sumir na esquina. Fui atrás de imobiliárias e comprei uma casa. De tijolos.
Depois veio a televisão, depois a moto e veio mais do que esperava. O pinto
tornou-se galo e veio uma galinha e, os tempos eram outros, os dois
cantávamos juntos.
Dona Iva me fez um grande bem e um grande mal. O grande bem é
que suas palavras me serviram para a vida; evitei abismos. O grande mal é
que hoje não consigo mais comer o cajuzinho de ninguém porque é longe o
cheiro de amendoim, açúcar puro, jogo fora, mas estou errado em jogar fora.
É necessário cajuzinhos bons e ruins nessa vida. Foi pelos cajuzinhos de
agora que descobri como eram deliciosos os cajuzinhos de Dona Iva.

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Madrasta
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Ela não era de se debruçar... madrasta ficava periscópica das janelas.


Em público sempre estava por trás de alguém. Madrasta era lua nova;
corveta abaixo do horizonte; olho de submarino me espiando.
Um dia pedi a papai dinheiro para tratamento dentário. Era concurso
público que exigia dentes cuidados. Meus dentes quebrados por quem?
Madrasta batia na boca com qualquer coisa que estivesse na mão.
No quarto a cama ficava perto do guardarroupa. Eu estava ao pé da
cama, em pé, tentando convencer papai, mas notei que o olhar do meu pai
me atravessava como se eu não fosse ninguém. Nem foi preciso olhar para
trás. A porta do guardarroupa aberta e no espelho o dedo indicador de
minha madrasta balançando para a esquerda e para a direita, dizendo não.
Sentindo-se percebida encolheu-se e sumiu a banda de rosto no espelho,
mas àquela altura já havia contaminado meu pai que balançava a cabeça
imitando o dedo de madrasta. Não tenho dinheiro, disse a boca paterna. E tinha.
Eu vi no bolso do paletó. A construção civil estava em alta. Milagre Brasileiro...
Mas quantas vezes eu saía, deixando meu pai de um jeito e quando
voltava ele estava de outro! Deixava um gato e encontrava um leão no sofá.
Outra vez à tarde confesso pensei que estávamos a sós, eu e meu pai
e fui lhe falando: em vez de Jornalismo, eu poderia fazer Engenharia Civil,
pai! Meu pai era pedreiro e vários engenheiros iam lhe pedir explicações
com plantas enormes. Carrões do ano em nossa porta... vendo isso se
repetir: Pai! Eu posso trabalhar de servente contigo, você me passa os seus
conhecimentos e serei um ótimo engenheiro!
Porém, Madrasta apareceu de repente saindo de detrás da porta
– Não vai dar certo! Parente trabalhando junto não dá certo!
Papai feito um cordeiro mudo baixou a cabeça. Meu pai que quando
precisava ser cordeiro era leão, quando precisava ser leão era cordeiro.
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Morros sem água
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Pequeno Ismael vivia reclamando da vida. Achava que sofria mais


que todos no mundo. Morava no Morro da Caixa D’água, onde não havia
água encanada. O meu Morro do Carrapato também era assim e descia-se
para buscar água na bica junto à linha do trem. Nesse tempo eu só usava a
camisa do Vasco. Era a única que eu tinha. O Morro da Caixa D’água tinha
esse nome porque nele havia, lá no pico, dois reservatórios de água que
distribuíam para Nilópolis e outros municípios. Aquilo era irônico. Morar
pertinho do reservatório e sem água!
Ismaelzinho não morava no pico. Para chegar até os reservatórios
andava uns 150 metros com as curvas. Enchia as latas de 20 litros que
carregava numa balança improvisada por cabo de enxada e vergalhões 3/16.
Subia com as latas vazias e descia com elas cheias. Sabe como é ditado
para descer todo santo ajuda. De fato não era fácil: ter que encher uma
caixa d’água de 500 litros e um latão de 200. Fazia isso de 3 em 3 dias. Era
o que gastava sua família com 6 pessoas. Muitas vezes o ajudei depois que
ficamos amigos. Vi o Pequeno Ismael desmaiar em cima da janta quase se
afogando no feijão por muitas vezes. Água gelada para acordar porque se
viesse a madrasta era pancada no pescoço. Só jantava depois de tudo cheio.
Por isso vivia reclamando. Achei-o muito dramático, trágico no início, mas
conforme fui vendo... não sabia o motivo, mas uns o chamavam de
Prometeu, mas outros, de óculos fundo de garrafa, diziam: Prometóide.
Dormia no quarto entre o pai e a mãe. Um tritongo. A casa era
retangular e tinha dois quartos: um numa ponta e outro na outra ponta da
casa. Mas quando a mãe se foi, logo chegou a madrasta. Tão rápido. E
Pequeno Ismael passou a dormir primeiro na sala, depois na cozinha e foi
parar na outra ponta, no quartinho das ferramentas entre marretas,
ponteiros, talhadeiras e ainda sonhava...
Com esta mudança levou um zero na sala porque a professora pediu
que ele separasse a palavra Paraguai e Pequeno Ismael separou assim: Pa-

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ra-gua-i. Tritongo não se separa garoto! E a professora deu nova
oportunidade para ele não ficar com zero. Separar as sílabas da palavra
Icaraí. Pequeno Ismael separou: ICARA-í. Professora não percebeu e
manteve o zero e o pôs de castigo e aquele madrastio se ramificava:

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Professora-Madrasta
_______________________________________________

na sala de aula
quando a professora me botava de castigo
no canto da sala
de costas para o mundo
eu ficava feito um i
em ICARA-í
empoeirado...
tudo para a raiva
mas qual o quê?
Sacudia a poeira
Dizia versos nos ouvidos das paredes

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A Raiz
_______________________________________________

A cada vez que ia ao dentista achava graça nos dentes arrancados de


sua boca. A dentista é que não achava graça nenhuma e ficava sem
entender aquela alegria desdentada, louca, até que um dia depois de uma
extração lhe disse Pequeno Ismael:
– Agora a coroa e a raiz aparecem, doutora! Se a minha família fosse
um dente, moça, eles 5 seriam a coroa e eu a raiz... solitária, oculta,
enterrada. Lá em casa eu sou essa raiz, doutora!
E alisava carinhosamente a raiz ensaguentada.
– Vou levar esse pré-molar de presente para madrasta, doutora!
– Você tem madrasta, Ismael?
– Sim...
– Eu também!
Por que doutora, as madrastas não podem ser mães, se muitas mães
são verdadeiras madrastas?
– O que conta não é o nome, mas a mulher... minha madrasta é boa.
Não fique a contas com este dente. Descanse. Em casa, descanse.
– Tenho que carregar água, doutora! Só eu carrego água lá em casa.
Tem uma caixa d’água de 500 litros e um galão de 200 me esperando. São
19 viagens. E isso se for com duas latas de 20 litros na balança é que eu
termino lá pelas dez da noite. De três em três dias faço isso...
– Que sofrimento!
– Nada, doutora! Eu pensava assim também até um dia um amigo me
emprestar o binóculo e lá da torre do reservatório de água eu ver no outro
morro, Morro do Carrapato, um menino que só usa a camisa do Vasco da
Gama e sofre muito mais. Eu subo com as latas vazias e desço com elas
cheias e o vascaíno desce o morro com as latas vazias e sobe com elas
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cheias. Quando ele carrega água sem camisa, do meu morro dá pra ver a
espinha envergada, torta como o pau da balança. Vai ter problema de
coluna mais tarde. No meu morro tem reservatório! E não é tão distante da
minha casa. Ele não. Tem que descer até embaixo, no Rodo, perto da linha
do trem pra pegar água na bica. Fila enorme. E eu que achava que sofria
mais do que todos no mundo...
– De fato ele sofre mais!
– Sofre mais do que isso, doutora. Além de carregar água o dia
inteiro, cansado, o vascaíno é que tem que colocar a comida dele no prato.
Quando ele fica esperando a madrasta colocar, sabe o que ela diz?
– Não!
– Empregada de preto é mais caro.

22
O menino da cabeça de repolho
_______________________________________________

Pequeno Ismael via o madrastio espalhar-se pela vizinhança, escola...


carregando água tinha por companhia uma vizinha magra e alta. Chamava-
se dona Yolanda que transportava água num baldinho de praia de tão magra
que era. Não. Não era isso, ela contou. O motivo era não prejudicar uma
possível gravidez. Daí o pouco peso. Apelidada de “Figueira do Inferno” e
“Árvore que não dá Fruto”, tinha um andar embaraçado por um único
pensamento: ter um filho. Quem olhasse para o casal seu Jorge e dona
Yolanda, obedecia à lógica e diria que ela era a doente da história. Ele,
forte e saudável e ela magrinha, dos olhos esbugalhados.
Nas idas e vindas, carregando água, dona Yolanda lhe segredou
porque não engravidava. É que nos fundos da minha casa, à meia noite,
aparece um menino cabeção e fica andando pelo meu quintal: “Eu sou o
menino da Cabeça de Repolho, cada fiapo tem um piolho!” Dona Yolanda
contava se arrepiando. O bico do peito ficava durinho. Peito discreto. Peito
empadinha. Na medida da minha boca. É preciso dizer que nesse tempo a
escuridade fazia crer até em lobisomem e dona Yolanda era membro de
uma Assembleia de Deus e tinha muitas visões e quando as contava,
arrepolhava as histórias. Para o caso de um avião, vindo do Campo dos
Afonsos ela disse que foi um disco voador. Eu estava com ela. Sim. Era
uma luz muita forte, tão forte que parou sobre nós e depois se foi
rapidamente. Mas sei que foi um desses pilotos sacanas que deu uma freada
brusca, acendeu o farol e depois seguiu.
Para o caso de sua não gravidez os culpados eram a vida madrasta e
aquele menino da cabeça de repolho. Eu jamais vou dizer a dona Yolanda
que o menino cabeçudo que entrava no quintal dela, procurando ovos de
galinha era o Pará que sabendo da história do repolho, explorava-o muito
bem, já que seu Jorge trabalhava à noite:
– Eu sou o Menino da Cabeça de Repolhoooooooo!
– Vai embora! Vai embora! Quero ter filhos!
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Incomodada com os apelidos “Figueira do Inferno e Árvore que não
dá Fruto”, dona Yolanda mudou sem dizer para onde.
Um dia, porém, comprava um X-Tudo quando chegou uma sobrinha
da dona Yolanda, já moça, risonha e perguntei pela tia:
– Minha tia? Ah, ela teve três filhos e está morando em Nova Iguaçu
!
– Filhos?!
– Sim... Filhos!
– Mas ela...
– Já sei! Ela contou pra você a história do menino da cabeça de
repolho!
– Isso!
– Minha tia é maluca! Ela se separou, casou de novo e teve três
filhos! O cabeça de repolho era o seu Jorge.

24
por que ICARA-í?

25
Trabalhinho Especial de Matemática
_______________________________________________

1ª Série

Leia, pense e resolva os desafios com alegria


Resolva as continhas com carinho

Agora resolva:
54 – 26= 28
30-10= 20
6-5 = EU

Observação da Tia Rose: Pequeno Ismael, favor não brincar com as coisas
sérias.

26
Aula de Matemática – Pré-Vestibular

Álgebra

Funções.: uma relação f de A em B é chamada de função se para todo


x ∈ A existe um único y ∈ B, tal que (x,y) ∈ f.
Ex.:

27
Exercício
Componha a função de forma tal que a cada x ∈ A faz par com y ∈ B,
obedecendo à definição de função.

Monique Pitágoras

Fernanda Descartes

Bianca Platão

Cristine Pequeno
Ismael

28
Professora mãe
_______________________________________________

Professora Shirlei apareceu lá na Vila Tiradentes para dar aulas no


Alzira dos Santos Silva. 3a série. Aulas de matemática. Trouxe com ela os
irmãos gêmeos, João Paulo e Luiz Paulo.
Não demorou muito e ela surgiu com uma ideia de sortear nas suas aulas
um sanduíche que trazia de casa: tomate, alface, ovo fritinho e um saboroso
bife à milanesa, dentro de um pãozinho francês. Dá para imaginar?! Era um
verdadeiro almoço. Para mim era. E já, já você vai saber por que.
Toda semana ela convidava um aluno para meter a mão no saquinho
transparente. O sorteio era pelo número de chamada no diário. Eu era o
número seis. E na 1a semana saiu o número 6, comi; na 2a, o 6, comi; na 3a,
outra vez, que alegria; na 4a , novamente o 6. Divino. João Paulo, um dos
gêmeos, ficou desconfiado, eu já estava acreditando nele, ou seja, que a
professora Shirlei estava me protegendo. Por conta das piadinhas, a
professora chamou o próprio João Paulo para proceder ao sorteio, mas ele
rejeitou. E deu o 6 mais uma vez. Que garoto de sorte! Dizia ela. E rindo.
Sempre foi espirituosa, alegre toda vida. Acho que a matemática lhe fazia
muito bem e nisso a gente aprendia.
Sem soberba, eu já chegava à sala de aula certo de que o sanduíche
era meu. E era mesmo. Saía da escola às 11 da manhã, com a barriga cheia.
E eu até lamentava: “Pena não ter aula de matemática todos os dias!”. Só
deixei de ganhar o sanduíche porque infelizmente passei para a 4a série e lá
não havia uma professora Shirlei.
Mais tarde fui ser Aprendiz de Marinheiro e meu tio me ensinou a jogar
no bicho. Lembrando da grande sorte que eu tinha com o número 6 passei a
arriscar nele e só nele. Para minha surpresa perdi a 1a vez , a 2a , a 3a , a 4a...
Um dia cheguei a sonhar claramente com o 6, enorme, azulzinho. Eu tinha
economizado o dinheiro das viagens de navio que fiz, o das férias, e o
pagamento de cabo, antes de servir num farol. Lembro que era um bom
dinheiro. Hoje na faixa de uns 7 mil reais. O bicheiro da Vila espantou-se.
29
Joguei tudo no 6. E deu. Só que três dias depois. Fiquei desesperado. Procurei
no calendário se não havia algum Santo por nome São Seis. Não havia. Pensei
em fazer um de barro, assim como os homens fazem, mas percebi que eu ia me
esgoelar sozinho e desisti.
Triste, pela rua, encontrei a empregada da professora Shirlei. Contei-
lhe a história. A mulher se escangalhou de rir. Depois ficou séria. Pediu
desculpas e me explicou que naquele saquinho de sorteio da professora
Shirlei só havia o número 6. Não vou dizer o que é o 6 no jogo do bicho
porque não desejo esse vício a ninguém. Sei o que minha tia e os meus
priminhos sofreram com o viciado meu tio.
Hoje, anos depois, sei que se a professora Shirlei me oferecesse o
sanduíche, assim: “toma pra você!”, eu não aceitaria porque saberia que a
minha história havia descido o morro, que a D. Célia ou D. Jupira, minhas
vizinhas, já falecidas, cujos filhos estudavam comigo, tinham contado para
ela que minha madrasta não me dava comida na hora do almoço. O morro
todo sabia da minha história, a história do Pequeno Ismael, mas naquele
tempo não havia Conselho Tutelar e muitas temiam o pó cinza de madrasta.
Ninguém podia falar nada. Sei que esse foi o jeito que a professora
encontrou de matar a minha fome com aquele pão que transbordava bife à
milanesa, douradinho, acompanhado de vermelhas rodelas de tomate,
alfaces verdes e ovo branquinho e amarelo. Espero que essa crônica chegue
até você, professora Shirlei. Seu aluno de matemática na 3a série, aquele
aluno “maguinho” e de olhos assustados, feiinho que só, lembra?! Eu
sentava na frente, na 1a carteira, sozinho, na sala 1. E no seu diário eu era o
6. Beijos.
Pequeno Ismael

30
As novas hienas
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Esta manhã é diferente. Mas naquelas manhãs corríamos cedinho para a


aula. Nunca faltávamos. Meia verdade. Saíamos com destino à escola, mas
quantas vezes nos desviamos e fomos parar naquela lixeira em Portugal Pequeno
em Meriti! Os caminhões a despejar papelão e cobre e alumínio e metal, nosso
Natal, menos mal, animal numa rima proposital. Dava para comprar as roupas
até do ano novo e mais: “Madrasta, a rabanada é com a gente!”.
Naquelas manhãs, acreditávamos nas queixas dos comerciantes na
televisão e íamos lá às lojas deles, comprar as coisas para eles, como a
gente, terem ao menos rabanada sobre a mesa, nas noites de festas.
O caminhão azul era meu. Ninguém tocava. Trazia cobre e metal, os
mais caros. Meu pedaço era privilegiado. Vez por outra voavam sacos de
vitaminas do governo por sobre um muro e me acertavam a cabeça.
Almoçávamos todos. Bocas rosas de leite em pó. Engordavam mesmo,
aliás, inchavam. Mas legal, as datas vencidas não faziam mal.
Naquelas manhãs, os catadores não eram anônimos. Conhecíamos cada
carência. Éramos medusas, transparentes à luz do sol e do olhar. Fragmentados
de corpos, almas não. Nossos corpos davam passagem à aspereza e a
desamizade. Retínhamos a doçura. Os semelhantes se atraem, dizem.
Naquelas manhãs, corríamos para o metal que vinha misturado ao
lixo dos parques de diversões, das fábricas, cinemas, feiras e casas. E ele
vinha sujo de iogurte, açúcar, mel, café, sangue de galinha, coisas leves,
coisas de crônica, desanimalizadas.
Mas esta manhã é diferente: depois da intensa fuzilaria, os meninos
acordam cedo para catar. Só para catar. Metal. Metal da violência.
Cápsulas. E enchem bolsas. Pesadas bolsas. E no ferro velho eles faturam.
E vem a noite. E na cama para dormir, não dormem. Perguntam-se:
– Pô, ainda não deram um tiro esta noite?! Amanhã vai ser fraco.

31
Em certas noites de outono
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Houve tempo em que filósofos acreditavam até na alma mineral;


houve tempo em que acreditei na alma vegetal, apesar de ouvir Cartola
dedilhar: “As rosas não falam...” Mas será que não pensam? Não era fácil
dizer a uma criança que nem tudo tem alma nesse mundo. Às vezes nem o
tempo convence. Vence...
Lembro na minha agenda escolar a professora colou este bilhetinho:
“Papai, preciso trazer até sexta-feira o valor de Cr$1,50 para o presente da
mamãe”
Mãe, eu já não tinha mãe e, ufa, meu pai e a madrasta não sabiam ler.
Estavam livres daquele constrangimento, porque meu pai era pedreiro, caído
sobre uma cama, doente. Trabalhador autônomo: se trabalhasse comia... Era
a décima primeira operação e o décimo primeiro grito de meu pai sobre a
mesa de cirurgia, apesar das anestesias que eram mesmo que nada.
O pãozinho da merenda eu comprava com moedas de 1, 2 e 5
centavos que achava na rua, às vezes embaixo da cama varrendo. O
pãozinho custava 7 centavos, mas a rosa para o Dia das mães era Cr$1,50.
Foi descendo a ladeira da escola que vi a solução pendendo para a
rua, para mim: uma rosa. Por aqueles dias depois do bilhetinho da
professora eu descia e olhava para a rosa e ela olhava para mim. Tenho
certeza disso! E o meu coração deliberou. Vou pegar aquela rosa com a
ajuda de outro coração igual a mim, esse muro tem altura. Mas ao pé do
muro uma rosa falou, não uma rosa, porém, a Rosa, moradora de rua: se
fizer isso vai ser roubo! Aliás, furto que o dono está viajando. Eu sequer
tinha dito nada. Rosa entrou no meu coração pelos olhos.
Disse a Rosa que a lei permitia pegar a rosa, os frutos que passassem
dos limites do muro. Também conheço a lei! Sorriu a Rosa. Só se os frutos,
as rosas do vizinho caírem no chão da sua casa, mas você mora lá embaixo
e não aqui, e a rosa não está caída, está no pé. Os dias passavam e Rosa me
olhava acusando: não, não! Isso, não!
32
Eu precisava levar uma rosa para a minha madrasta. Minha madrasta
que mais tarde me deixaria com fome, apesar de uma geladeira cheia; minha
madrasta que na hora do almoço me dizia: some da minha vista! Que
esfregaria literalmente no meu rosto o documento do antigo 5º Ofício de
Notas, dizendo: tá vendo aqui? Agora, até um palito de fósforo nessa casa é
meu. Você trata de ir embora porque tudo é meu e se você falar com o seu
pai dou um chute na bunda dele também! Tá pensando que eu caio nessa
historinha de boadrasta, rapaz! A nossa História é história de Poder! Derrubei
sua mãe e vou derrubar você também. Aqui não tem M de matrimônio e mãe,
não. Aqui é patrimônio e padrastio. Era a Guerra da Secessão Familiar.
Sim... Minha madrasta que me inchava as mãos de chocolates todas
as noites e eu dormindo... Por um ano foi delicioso acordar... Eu tinha
vontade de acordar... Depois os inchaços foram outros... O que estivesse
próximo ela usava para executar as suas maldades. Aliás, não sei o porquê
de se escrever maldade com L... Deveria ser maudade, com U. Ora, o
antônimo de Bom é Mau e não, Mal. Deveria ser maudosa e não maldosa.
Na sexta-feira em que todos levariam rosas para suas mães, convenci
Rosa a me ajudar a pegar a rosa com o argumento de que ela sendo
moradora de rua e morando ali, junto ao muro, tinha o direito de cortar os
ramos que invadiram o terreno vizinho, isto é, seu terreno. Você não diz
que a rua é sua, que a rua é o seu terreno? Rosa sorriu. Olhou no meu
caderno o artigo 558, atual 1.283. As raízes e os ramos de árvore, que
ultrapassarem a estrema do prédio, poderão ser cortados, até o plano
vertical divisório, pelo proprietário do terreno invadido. Sim... Eu sou
proprietária da rua. Parou de sorrir e tratou de juntar as mãos e fazer
cadeirinha para eu subir. Fiquei do tamanho do muro. A rosa bem diante
dos meus olhos. Estrelas no céu; anoitece cedo no outono, mas a rosa seria
a surpresa e livramento da surra. E Rosa já não aguentando: pega logo essa
rosa! Mas com ternura mal toquei a rosa, despetalou-se. Uma linguagem?
Cheguei sem rosa e sem poder dizer que lutava há dias por uma rosa
para ela... As pancadas eram também na boca. Dentes quebrados...
Madrasta literalmente...

33
Hoje sei não existe alma mineral; alma vegetal; as rosas não falam,
eu sei. Tudo é provável, mas cadê que larguei a dúvida!
E fico a perguntar em certas noites de outono como essa: será que a
rosa despetalou-se por saber quem era a minha madrasta?

34
Ação de Despejo Especial
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Meu pai tinha umas casinhas alugadas, aliás, casebres, quartinhos. Eu


fazia os recibos e madrasta entrava com a Ação de Despejo se o inquilino
não pagasse ou deixasse de falar com ela. Madrasta era vingativa.
Madrasta entrava com ação de despejo, mas não era no Fórum, era na
Macumba. O rito era sumaríssimo e o inquilino sumia do quintal rapidinho.
Madrasta jogava pó cinza no inquilino. Como o banheiro era comunitário,
todos tinham que passar pela nossa janela. E lá estava madrasta soprando pó
nas costas dos inquilinos que não pagavam. O pó era semelhante a
chumbinho moído. Madrasta afastava a cortina e pelos hiatos das janelas
soprava...
Se fosse casal mal pagador, macumba dizia que o pó tinha que ser
soprado no homem e na mulher; homem no homem e mulher na mulher. E
lá ia meu pai contribuir na maldade. E funcionava. Após o pó, logo no dia
seguinte casais se desentendiam, atracavam-se. Madrasta ficava da cozinha,
da sua cripta preferida, olhando o efeito. Os inquilinos indo embora. Muitos
desempregados que não podiam pagar e em dificuldades, porque já se
escasseava o Milagre Brasileiro. A construção civil se ressentia.
Madrasta atacava, mas se defendia. Uns tomam banho de ervas,
outros de frutas... madrasta tomava banho de fogo. Pólvora. Ia para o
terreiro, puxando meu pai e seus três filhos e o Exu fazia uma roda de
pólvora que ao leve toque do charuto aceso, transformava-se numa roda de
fogo que subia acima das cabeças, envolvendo toda a família naquela
muralha, menos eu do lado de fora, olhando aquele incêndio protetor:
ICARA-í.

35
O inquilino
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Reconheço que não tive problemas com a sombra da ex: meu enteado
era a cara do pai; também não tive problemas com os amigos da ex
frequentando nossa casa relembrando velhos passeios com a família antiga.
Expulsei todos de diante de mim. Soprei neles. O pó cinza. Não ficou um.
Despachei. Mas ficou ele, ficou ele... compreende? Ele era o entre, passado
e presente.
Sim... madrasta despachou todo mundo e só eu fiquei. E ela foi tendo
filhos... Há casos em que pai e filhos são numerosos e a madrasta fica como
agregada, mas no meu caso de filho único, madrasta chegou e foi tendo filhos e
agregado me tornei eu. Madrasta foi me empurrando devagarzinho para a sala,
cozinha e fui terminar no quartinho de ferramentas. E quem disse que
terminou? Mais tarde fui parar num dos quartinhos alugados. Não assim, no
seco. Ele já está ficando um rapazinho e precisa ter um quarto só dele. Meu pai
concordou. Como discordar? Não demorou e eu mesmo tive que preencher um
recibo de aluguel em meu nome. Passei à condição de inquilino. E cada vez
mais perto da rua, da desagregação, da separação eu estava.

36
O dom do tio William
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Li na internet que um dos melhores relatos de levitação da história


aconteceu em Londres quando Daniel Douglas elevou-se no ar, flutuando
para fora através de uma janela e entrou por outra a 24 metros de altura numa
elegante casa londrina, presenciado por testemunhas respeitáveis como o
visconde Adare, o senhor de Lindsay, e o capitão Winne. Feita a leitura digo
que também cresci ouvindo histórias fantásticas na família, óbvio, bem mais
modestas; histórias de 20 centímetros , histórias de pouca fé.
Mas contam as testemunhas que titia, quando havia incêndio no roçado, ia
até a beira do fogo, labializava umas palavras e as chamas iam diminuindo,
extinguindo-se por completo. Dizem que lobisomem só desencanta com bala ou
alguma coisa de prata, mas papai desencantou essa fera com uma pedrada; já o
meu tio Antônio carregava a famosa oração de São Cipriano e podia se
transformar no que quisesse, porém, certa vez meteu-se numa briga, bateu muito
e a polícia saiu no seu encalço até que o encurralou num beco sem saída. Ora, tio
Antônio num piscar de olhos virou balde e os policiais ficaram doidos,
perguntando uns para os outros: Pra onde é que ele foi? Havia um policial que
sempre chegava por último nas perseguições e quando chegou, bufando, foi logo
sentando no único balde que havia no beco, esmagando o pobre tio Antônio que
tinha virado um baldinho de apenas 1,99.
Como se não bastasse, semelhante atrai semelhante, uma das minhas
tias por parte de mãe casou-se com um barbeiro e veio a ser o meu tio
William que além de cortar cabelo e barba, levitava. Ele nunca levitou na
minha frente, vi secreto, mas quem ia à casa dele, pessoas sérias como o
professor Waldir, matemático, via o tio William deitar e levitar uns 20
centímetros acima do sofá, muito embora titio ficasse mais inspirado a
levitar depois de umas 20 cervejas, daquelas que fazem levitar até lutador
de sumô. E veja como a fé escasseia: em 1868 viram Daniel Douglas
erguer-se 24 metros acima do chão, em nossos dias, meu tio William
levitava apenas 20 centímetros. Cristo tem razão: quando, porém, vier o
filho do homem porventura achará fé na terra?
37
Não me surpreendia o tio William levitar porque se o professor Waldir
fosse lá em casa veria meu pai e madrasta me levitando pelas orelhas 20, 30,
40 centímetros do chão por qualquer coisinha como fazer a letra “e”
minúscula, fechadinha como um “i”; calçar as meias com calcanhar para
cima... Minha madrasta foi a única que veio para a família com um dom
diferente, a de separar os melhores amigos: pai e filho. Porém, mesmo hoje o
professor se arrepia quando conta. Toda a razão ao professor Waldir porque
não é todo dia que uma pessoa se ergue 20 centímetros acima do solo ou sofá
ou faz levitar coisas como livros, copos, canetas. Também não é em qualquer
ambiente que se presencia o ato de levitar. Levitações semelhantes à de
Daniel Douglas, por exemplo, só encontrei na área pública, por exemplo, no
INSS, onde advogados, juiz e afins, movidos por tamanha fé conseguiram
levitar enormes quantias dos cofres públicos direto para as suas contas.
Ora, como já temos Faculdade de Rock e Surf, não duvido que a
próxima faculdade a ser criada e a mais procurada, principalmente pelos
politiqueiros, será a Faculdade de Levitação, pois dessa forma ninguém
precisará passar pelo constrangimento de ser pego com a mão na mala, na
bolsa ou dólar na cueca ou na meia, coisas desse tipo.
Como o leitor percebeu nesse rito sumário que exige a crônica, minha
família está repleta de dons, todos eles, hoje, sem utilidades: o da minha tia
que apagava incêndio foi suplantado pelo Corpo de Bombeiros; o do tio
Antônio morreu com ele, pois a oração também foi esmagada pelo policial;
meu pai, em todos os setenta anos de vida, com pedras, só desencantou um
lobisomem numa terra como a nossa cheia de lobisomens. Atirou muitas
pedras no principal lobisomem da sua vida, o lobisomem do INSS, mas
nunca desencantou o bicho e na hora do aumento dos aposentados esse
lobisomem vem e devora tudo. Quanto ao tio William, de certa forma,
herdei um pouco do seu poder de levitar, mas longe de ser o seu
substituinte. Bastaria, a começar por mim, levitar de dentro das pessoas
toda mágoa, amargura, rancor, ódio, guerras...
Por enquanto, quem for lá a casa vai me ver no sofá com um
dicionário aberto de onde faço levitar palavras para uma folha branca,
numa preta máquina de escrever de 1912, até compor uma crônica, conto,
poesia e quem sabe um dia o romance que nunca consegui viver.

38
Pimentão Recheado
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Ninguém fazia um pimentão recheado de carne moída como o de sua


madrasta. Não dava para não repetir, mas a madrasta só fazia 6 pimentões. A
conta certa da família. Na feira e nos mercados a madrasta encontrava
pimentões verdes, vermelhos, amarelos e roxos, mas só recheava os
vermelhos.
Um dia madrasta, mascarada de bondade, preparava vermelhos
pimentões recheados e os colocava na forma para levá-los ao forno, quando de
repente de um deles, que tinha a tampinha mal fechada, escapou um grão de
carne moída. Vejam: um grão de carne moída. Com o seu dedo indicador
madrasto o apertou com violência, levou-o à boca e o foi passando pelos
dentes, incisivo, pré-molar, molar... madrasta mastigava de boca aberta. Mal
aberta. Houve um momento em que mesmo rasgado, amassado, o grão
conseguiu incrustar-se num dente furado, mas logo foi sugado; tentou ocultar-
se na gengiva, mas a língua foi lá e o tirou; escapou para debaixo da língua,
mas todos, Dente, Língua, Bochecha, Gengiva e Garganta estavam contra o
grão. E a língua feito pá mecânica elevou o grão aos dentes. Madrasta sorria,
vendo o menino contemplar o desespero daquele grão, a cena se lhe
incrustando, um simulacro, símbolo de um sofrimento universal e de certos
enteados. Aquela imagem do pobre grão em vez de naufragar, relampejava na
memória. Madrasta mastigando... Seu dente vindo cá fora, pela primeira vez,
desocultando-se do capuz da boca. Carimã. Tão cedo e já lhe foi tirada a
cegueira dos olhos e do entendimento. Aquele grão também era ele. Nunca
mais tocou num pimentão recheado. Madrasta agora só precisava fazer 5
pimentões. O menino comia ovo.

39
por que ICARA-í?

40
A política do canguru
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Domingo foi manchete no jornal “O Globo: “Em 6 estados Bolsa


Família já atende metade da população.” O próprio prefeito de Canudos– BA
(Meu Deus, de uma forma ou de outra, sempre Canudos sendo bombardeada)
admite: “o problema que vejo é que se cria um círculo vicioso: tem muita
gente que fica preguiçosa”.
Por ocasião do lançamento do Bolsa Família, escrevi a crônica abaixo:
Na infância eu ia muito à casa dos meus avós por parte de madrasta.
Ficava em Campo Grande , Zona Oeste do Rio, quilômetro 42 e pegávamos a
viação Ponte Coberta para chegar lá. Em volta da casa havia campos de
futebol, mais distante, olarias, fabricando tijolos fresquinhos e muitos
escorpiões que capturávamos pelo rabo, mergulhávamos no álcool e viravam
remédio para as feridas. Só não curava a ferida dentro de madrasta que toda
vez que íamos lá, voltava chorando. A senhora me jogou numa casa de
família com 11 anos! Madrasta era doméstica. E começou assim, sendo
jogada nas mãos da patroa: Essa preguiçosa! Nunca teve bonecas ou
bonecos. Fui o primeiro boneco em suas mãos. Madrasta era um pimentão
recheado com carne moída. Por fora ela era inteira, vermelha de muita vida,
mas por dentro estava aos pedacinhos. Não tinha um domingo que não
voltasse da casa da mãe chorando.
Mas Lembro que havia pelotões de pés de quiabos, verdinhos, onde
pela manhã pousavam o sol, canários e coleirinhas e minhas esperanças de
escritor.
De propósito deixei para dizer agora que nos fundos da casa dos meus
avós fica o rio Guandu, onde pescávamos traíras, piabas e entre a casa e o
Guandu havia muitos eucaliptos e um bom pedaço de mata. À tardinha o
vento passando por entre as folhas dos eucaliptos parecia alguém fritando
uma grande quantidade de batatas. Foi por entre essas folhagens que um dia
vi um canguru. Alertei vovô e ele logo veio armado de um porrete de
eucalipto, deixando-me muito triste, mas ainda bem que o canguru fugiu.
41
Todos sabem que canguru é com a Austrália, Tasmânia, Nova Guiné e
Ilhas Aru, porém, o Brasil é uma terra tão boa que é possível um político
ganhar mais de duzentas vezes na loteria! Ora, por que o espanto de um
canguruzinho em Campo Grande?! Mas foi um espanto. A notícia correu.
Todos ficaram de olho, mas ele nunca mais apareceu. Ele não, ela, porque
antes de chamar meu avô, fiquei olhando um tempo para ela, tentando
desenhá-la, pois duas coisas me atraíam na infância: a pintura e as palavras.
Isso me dividia e ora colocava a boina do meu pai e me sentia um Picasso, ora
escrevia palavras desarrumadas e fazia pose de Mário Quintana ou Drummond.
Hoje como vocês podem ver, escolhi a escrita, porém, sempre tive o
defeito de querer abraçar o mundo com as pernas e para não perder de tudo,
tornei-me um escritor imagético em vez de jurídico.
Mas a certeza de que o canguru era fêmea veio do filhotinho na
bolsa, vez por outra se escondendo para dar uma mamadinha. Naquele
rápido encontro pude ver que mamãe canguru por diversas vezes o
empurrava para fora da bolsa e o tocava para que fosse adiante como quem
diz: Filho, chega de leitinho! Um canguru evolui do leite para as folhas e já
é hora de você comer as folhas da grande literatura! Mas o bichinho em vez
de pular para frente, saltava para trás, para dentro da bolsa e começava a
mamar nervosamente. E como ficaram naquele lenga-lenga, ela empurrava
para fora da bolsa e ele saltava para dentro da bolsa, fui chamar vovô. Por
esses dias os meios de comunicação divulgaram que muitos dos que têm o
bolsa família e outras bolsas mais, estão se recusando a trabalhar de carteira
assinada para não perder, obviamente, a bolsa.
Parece história de canguru, onde a Pátria Canguru empurra seus
Cangurus para a carteira assinada, mas eles saltam para dentro da bolsa de
novo e começam a mamar nervosamente. Assim a taxa de desemprego não
cai nunca. Fica difícil dizer "Pra frente Brasil"; "Este é um país que vai pra
frente"; "Pra cima deles, Brasil" se os nossos cangurus saltam para trás.
Se meu avô estivesse vivo diria que é safadeza desses tipos de
cangurus e certamente apanharia o seu porrete de eucalipto e botaria todo
mundo pra correr do bolsa. Entretanto, prefiro ver isso como a Política do
Canguru.

42
No fundo é sempre bom ter uns milhões de canguruzinhos dependentes,
principalmente na hora da eleição: Vem, filho, tomar leitinho! De que adianta
carteira assinada? Você não vai se aposentar mesmo!

43
Diná do cão
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Luís da Cadeira de Rodas e eu tínhamos uma coisa em comum:


madrasta. Na sala de aula o professor dizia que a experiência universal com
as madrastas não era grande coisa...
Numa noite de saudades da infância passava na pequena ruazinha em
que morei, a velha Abílio Machado, no bairro histórico de Vila Tiradentes e
lá estava o Luís da Cadeira de Rodas, sentado numa cadeira comum. Dessas
em que sentamos para almoçar e jantar. A rua não mudou muito. Recebeu
uma capinha de asfalto, uns postes de luz. E o Luís tinha mudado de cadeira.
Quem vê a minha ruazinha do alto de um helicóptero sabe: lembra
um J de justiça, coisa a ser feita no final dessa crônica. Noticiei ao Luís a
morte da minha madrasta e desta recordamos, quando ele vivia numa outra
cadeira. Cadeira de rodas. Daí o Luís da Cadeira de Rodas. Parecia que
nunca mais iria trocar de cadeira. Sofreu muito com a madrasta. Ela lhe
dava arroz e feijão. Às vezes nem isso. Enquanto que os filhos dela
saboreavam bife e os coloridos de verduras e legumes. Era muito engraçado
vê-lo passar fome com a geladeira cheia. Luís não contava nada ao pai se
não era ovo quente na boca que a madrasta lhe enfiava no dia seguinte. A
cadeira de rodas do Luís de tanto tombar aos tapas, pegou a manha,
igualzinho a jogador de futebol, cavador de falta e penalidade máxima.
Qualquer toquinho, caía. Agora tente acertar quem dava os tapas: Papai
Noel, Coelhinho da Páscoa ou sua madrasta? Naquela cadeira Luís era uma
rã de corpo largo e pernas fininhas.
Certa tarde chegou à casa dele uma empregada doméstica, mineira,
por nome Diná. Eu, criança, pensei: essa aí deve ser mais uma bruxa,
megera, O-Cão-Chupando-Manga. Maldade. E era mesmo. Também
colocava arroz e feijão purinho para o Luís.
Desgraçada! Luís apanhava o prato e cabisbaixo, sem falar nada, ia
para o quarto como se fosse para o gólgota, para a forca e trancava-se.

44
Deixava-me na sala vendo TV. Luís saía com o prato limpo, lambidinho. E
a debochada Diná, diante da madrasta perguntava ao Luís se estava
gostoso.
– Gostou, Lu?!
E como riam as desalmadas. Risos que coincidiam com as gargalhadas
das madrastas do cinema.
Fosse hoje, Luís, a Branca de Neve encontraria dificuldades em
encontrar florestas para mudar seu destino porque estamos devastando
tudo; os anões só se encontram, além dos livros de piadas, nos circos, TVs,
palcos de teatro, fazendo papéis engraçados e até ridículos. Quem já viu
anão, galã de novela ou cinema? Mas há esperança, Lu! Se fosse hoje, A
Branca de Neve, A Gata Borralheira e todas as crianças que sofreram maus
tratos das madrastas mudariam seus destinos, indo direto ao Conselho
Tutelar. Será?
– E adianta? Os sucateados Conselhos Tutelares?!
Você não sabia, Luís, mas atrás dos postes dessa Av. Getúlio de
Moura, nossa antiga Estrada de Minas, gritávamos nomes ruins quando
passava a empregada vilã.
– Diná do Cão! Diná do Cão!
Quando mudei, você ainda estava na cadeira de rodas, lembra, Lu?!
Não nos vimos mais. Porém, quando eu via Diná pelas ruas da cidade,
vociferava atrás dos postes: Diná do Cãããããããão! Ela nunca olhou para ver
quem zombava. Até que um dia, fiquei cara a cara com o capeta vestido de
mulher, para lhe dizer um Diná do Cão bem raivoso, canino, à
queimarroupa, mas foi ela mais rápida ao falar que você havia trocado de
cadeira; vencido a paralisia infantil com remédios e carne de rã. Não sei o
que tem a ver carne de rã com paralisia infantil, mas quem já viu pó cinza
funcionar... Disse que você já andava e jogava uma bolinha. Ainda que
meio desequilibrado, mas fazia gol. Depois dessa notícia, não sei por que
demorei a vê-lo. Talvez porque já estivesse bom e a palavra liberdade
finalmente entrara no seu dicionário. Mas agora, Luís, estamos aqui,

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cabelos embranquecendo, contudo, sem a minha e a sua madrasta e melhor,
sem aquela Diná do Cão, não é mesmo?!
E para minha surpresa, Luís sorriu, endireitou-se e falou de Diná com
emoção. Os olhos encharcados de ternura. Não entendi nada. Como ele
podia amar uma Diná do Cão que tanto mal lhe fez? Tudo bem, amai os
vossos inimigos, mas... Sorriu mais uma vez o amigo e me corrigindo,
disse, Diná de Deus e revelou. Diná escondia o bife e o colorido dos
legumes e verduras embaixo do arroz e feijão. Então pude compreender
porque ele só comia dentro do quarto fechado.
Oi Diná, seu nome não é esse, mas a história você conhece, você
viveu. Hoje aqueles meninos não existem mais. Partiram, crendo ser você a
Diná do Cão. E por minha causa. Eu a julguei por que não fui o menino dos
buraquinhos de fechaduras, espião de janelas?! Perdoe a minha cegueira de
menino. Diná, você é tão heroína quanto Tiradentes. Você é uma
inconfidente e mineira. Através dessa crônica, passo a chamá-la de: Diná do
Amor.

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A rede
_______________________________________________

Sempre nas noites de sábado minha mãe gritava. Você vai é arrumar
mulher seu safado. E saía meu pai me arrastando para provar que não. Ele ia
trabalhar até tarde. Só que papai trabalhava até umas 18 horas. E saíamos dali
para a casa da minha tia alcoviteira. Lá não havia energia elétrica. Lampião e
vela e cheiro de querosene.
Lembro que ele ficava junto à rede balançando alguém e a luz de vela
só iluminava o ventre de uma pessoa cujo rosto ficava embutido na rede, bem
oculto, por mais que eu forçasse as vistas. A rede era um grande capuz que
lhe escondia o corpo inteiro. Da escuridade saía uma voz de mulher. Sobre o
ventre um maço de cigarros Minister e no dedo da encapuzada um anel
dourado que nunca mais esqueci. Todo cravejado de pedrinhas coloridas
refletindo. Um calidoscópio.
Uma noite meu pai me levou à beira da rede e nem assim consegui ver
o rosto da mulher, mas a voz macia me acalmava. A mão com o anel veio até
mim me oferecendo um chocolate. Tentei apanhar a vela para vê-la, mas a
voz da minha prima me chamou para brincar e fiquei sem ver aquele rosto...
Agora que mamãe foi desalojada do tritongo e madrasta chegou, vejo
que mamãe tinha razão. Ele ia se encontrar com mulher e era a mulher da
rede que hoje é minha madrasta.
Do alto do morro, da janela de uma tia, eu ficava olhando a rodovia
Presidente Dutra. Toda iluminada ao contrário do morro sombrio. O que me
atraía eram as luzes coloridas dos anúncios, piscando acendendo e apagando.
Muitas cores como o anel cravejado de pedrinhas brilhando dentro da rede.
Um dia madrasta veio me dar banho e ao me esfregar, uma das
pedrinhas do seu anel caiu na água da bacia. Ela o tirou e o pôs na em cima do
banquinho ao lado do maço de cigarros minister. Era ele mesmo! O anel da
rede. Ergui os olhos e agora via madrasta todinha. O que foi? Perguntava ela.
Mamãe tinha o peito empadinha, o de madrasta era chifre de boi, assim, com

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os bicos para os lados, Leste, Oeste. O anel tinha várias cores, mas ao mesmo
tempo em que eu o amava também o odiava. Tive desejo de que todas as
pedrinhas caíssem na bacia e fossem parar no ralo, no esgoto e no mar. Mas a
coisa não ocorreu assim. Demorou mais. As pedrinhas caíam paulatinamente.
Não sei precisar o tempo porque há pluviosidade nas lembranças... Embaçadas
lembranças.

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O sermão da picanha
_______________________________________________

Irmãos em Cristo! Convidei o pastor Picanha para pregar hoje à noite,


mas até agora ele não chegou. Aguardemos o homem de Deus e enquanto
isso vos contará um pouco de história, historinha, o Pequeno Ismael:
Quem descobriu o fósforo foi Hennig Brand, no ano 1669, em
Hamburgo, na Alemanha. E quem descobriu o fósforo que hoje vem na
cabeça do palito foi Anton Von Shöter, no ano de 1845, Alemanha, mas
quem descobriu o fósforo aceso em contato com o balde cheio de gasolina
junto ao barracão, na Vila Tiradentes, em 1970, fui eu.
– Licença! Atendeu o celular. Era o pastor Picanha, gente! Ele tá preso
no trânsito.
Madrasta me avisou para não jogar fósforo aceso num balde de 20
litros perto do barracão onde morávamos, porque estava cheio de gasolina.
Não resisti. Arrastei o balde em chamas para cima do patinete ao preço de
uma sobrancelha queimada. Já tinha ouvido falar que Deus guiava os filhos
de Israel numa coluna de fogo à noite, mas criança não aguenta esperar e
joguei logo o fósforo aceso, Deus acendeu e o levei para passear de patinete à
tardinha mesmo.
Percebi que Ele gostava de água e a cada baldinho Deus crescia mais e
mais até o céu e eu O levava para dar um abraço caloroso nos amiguinhos da
rua, mas eles saiam gritando que Deus era fogo consumidor. Por que Deus
Fogo Consumidor, o Senhor, não dá um abraço na minha madrasta?!
– Pastor Picanha ligou que o trânsito está melhorando, mas ele vai dar
uma paradinha no estacionamento do posto de gasolina, onde ele mantém
vaga cativa, para trocar de carro: toda vez que sai para pregar, minha gente,
ele passa no estacionamento e deixa seu carro Zero, no valor de R$190,000 e
sai de lá com um fusca velho, caindo os pedaços que é para não chamar a
atenção dos fiéis.

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Dava para entender o medo de um Deus de Fogo Consumidor...
Naquele tempo no bairro de Vila Tiradentes havia muitos barracos. O
comércio: a barraca da Natália, a barraca do João Ratão, o Ponto Azul, ponto
de referência para os caminhoneiros vindos de São Paulo, tudo era madeira.
Mas eram os anos 70. O Brasil sendo tricampeão do mundo. Quem queria
saber que em Vila Tiradentes havia barracos? No céu os balões davam
cabeçadas tarde após tarde, gol após gol.
Era tempo das notas de Santos Dumont, de dez cruzeiros novos. Pastor
Picanha já está chegando, gente! Ah, se no bolso do meu pai houvesse muitos
Santos Dumont dando cabeçadas. Nada! Mal dava para comida. Morar num
barraco alugado já explica muita coisa. Barraco mesmo com direito à
lacraias, ratos, caranguejeiras, cobras, lobisomens, ladrões forçando as
janelas e os “Irmãos Coragem”. “Irmãos, é preciso coragem...” Era preciso
coragem mesmo para morar em Vila Tiradentes.
Lá em casa, Santos Dumont mal aterrissava, naquelas notas marrons e
verdes muito bonitas e levantava voo rapidinho das mãos do meu pai. E
nunca houve atrasos nos voos. Se, por exemplo, comprasse um carrinho,
meus carrinhos eram de caixas de fósforo, faltava para o ovo. Ovo... As
coisas não mudaram muito do meu pai para mim...
Outro dia fui preparar um ovo e ao riscar um fósforo, sofismei: o fósforo
brilha porque se rala na aspereza. Poética a frase embora passando pelo centro
do Rio, pela Presidente Vargas, vejo muitos fósforos que ralam, ralam na
aspereza e não brilham; embora muitos fósforos não consigam nem sair da
caixa. E dos que saem, muitos se quebram no caminho, perdem a cabeça. Em
vez de para frente, ralam-se para trás. Há fósforos que não brilham porque não
se mantém longe da umidade, conforme a recomendação na caixa. Há fósforos
que por ficarem perto do calor, brilham cedo demais. Existe a hora certa para
um fósforo brilhar. Existe a hora certa para um fósforo brilhar?
Echo! Aí está o pastor Picanha! Ouçamos com ele o Sermão da
Picanha:
– Pois é, irmãos! Deus é assim: chamou uns para ter dez ternos e
outros para ter um terno até o fim da vida; chamou uns para andar a pé e

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outros para andar de avião em avião; chamou uns para comer ovo e outros
para andar de churrascaria em churrascaria...
Por essa teologia, Deus chamou uns para acender o fogo com fósforos
e outros para apertarem apenas um botão. Deus é assim.
Dias depois, o pastor Picanha teve que dar um tempo de ir à
churrascaria. Hoje carrega uma cicatriz que desce do alto do peito, barriga,
coxa, canela até o calcanhar e cinco pontes safenas. Eu não queria dizer, mas...
Deus é assim.

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Dois Natais
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Era tarde de Natal. Hora de meu pai chegar das compras com minha
madrasta. Eu lavava as roupas de todos no tanque, imaginando o que viria para
mim. Chegaram de táxi. Muitas compras, embrulhos de presentes. Oba!
Entrei na casa e passando pela porta do quarto vi três camisas polo
em cima da cama. Azuis com listras brancas e vermelhas. Malha boa. E me
disse: uma é para mim e é a maior e fui vesti-la, mas pelas costas a língua
de madrasta me apunhalou: não tinha para você, rapaz. Papai subserviente
confirmou. Mas as camisas eram grandes e o irmão mais novo tinha
nascido naqueles dias. A camisa dava em mim e sobrava, a do mais novo
ficou como roupão de anjo, engolia-o, arrastando pelo chão. Mas ele vai
crescer rápido, garoto! Todos os cômodos daquela casa sabiam que eu era
doido por uma camisa polo.
No Natal todos de roupa nova, menos eu. Tiraram uma foto. E lá
estávamos, eu sem camisa, minhas costelas sorrindo ao lado das camisas polo,
azuis, belas. Hoje é Natal e eu não apanho, mas o desprezo dói muito mais.
Entanto, num outro Natal a coisa melhorou. Passei pela porta do
quarto e vi camisas em cima da cama. Comemoramos o Natal. Desta vez
vieram quatro camisas. Sim. Quatro. Mas três eram do Flamengo e uma do
Fluminense. Mais tarde nas fotos, lá estavam minha madrasta, meu pai e os
três filhos, aquele bando de rubro-negros e só eu de tricolor.

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Manhã de avelã
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Vovô veio passar o Natal conosco. Um dia após um Natal, a cozinha


ainda estava cheia. Oito pessoas. Todos sentados no chão formando uma
meia lua, quebrando avelãs. Era manhã de risos, mas o filho de madrasta
emporcalhou o chão de merda no momento em que eu tentava quebrar minha
avelã. A avelã espirrou e foi parar no cocô. Madrasta disse: você vai comer
essa avelã!
– Mas está com cocô!
– Vai comer se não vai apanhar!
Aquela conversa estava sendo ouvida por meu avô na sala que se
levantou e parou na porta da cozinha. Vovô era cego, mas era índio.
– O que é isso que você está querendo fazer com o meu neto?
– Ele vai comer avelã com merda!
– Tá conversando, Cabrocha! Que prato é esse que você oferece para o
meu neto? Não vê que ninguém come avelã com merda!
– Vô abriu as narinas farejando, caçava aquele madrastio. De súbito
uma bengalada acertou a cabeça de madrasta. Tanta gente junta, mas a
bengalada foi certeira, só em madrasta.
– Agora parta para cima de mim, sua cabrocha, que você vai ver uma
coisa que nunca viu na sua vida!
Madrasta levantou furiosa para enfrentá-lo. Meu avô pressentindo a
investida aprumou-se na porta. Vovô cresceu. Nunca vi meu avô daquele
tamanho. Madrasta quando ia encostar as mãos em vô, caiu de costas como
se tivesse sido empurrada violentamente para trás. Ou quem a puxou? Vô não
tocou nela. Ninguém! Madrasta chorava de costas no cocô sem poder se
movimentar. Um imã a prendia no chão fedorento e quem conseguia levantá-
la? E meu avô enorme, parado na porta, dizendo palavras que pareciam reza.

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Madrasta ameaçou soprar seu pó cinza em vovô e ele ria como ria.
– Sopra! Sopra aqui no meu nariz. Abaixo desse céu e acima dessa terra
há coisas que você não sabe, sua carimã! Vô tinha arco e flecha tatuados no
braço. Foi poderoso caçador nas matas antes de ser capturado e educado para o
plantio e perder as vistas para o fogo e espinho no roçado, plantação de
algodão.
Naquela manhã de avelã, vô rimou avelã com carimã. Vovô que fora
pequeno lavrador com grande família grande. Dez filhos. Todos no algodão,
plantando, descaroçando, ensacando e levando para os navios... aprendendo.
Como eram belas e novas para mim as palavras arroba e léguas! E vô me saiu
com esta outra palavra nova para mim: carimã! Fui ao dicionário e
significava farinha e também praga de algodoeiro.
– Vô, o senhor chamou madrasta de carimã, praga de algodoeiro?
Madrasta é uma praga? Destrói a plantação?
– Nem toda a vida está nos dicionários meu neto! Se achegue! Carimã
quer dizer isso aí sim que você leu e cabe naquela cabrocha, ela está
destruindo a plantação do seu pai, mas na prática, filho, carimã para um
plantador de algodão é capulho de algodão mal aberto. Um plantador de
algodão não colhe carimã. Carimã não se abre todo. Você já viu um frade
capuchinho de cabelos brancos coberto até a cabeça? Pois assim é carimã. A
fibra felpuda não se mostra toda. Quando muito uma franja. E desse jeito é
sua madrasta. A gente só vê a franja. Já passou a mão naquele casaquinho
com capuz que ela não tira faça chuva, faça sol? Toda vez que você tenta lhe
tirar o capuz para lhe acarinhar os cabelos ela diz, Arreda! Suma-se! Fora
daqui! Muito cuidado porque é isso o que ela é. Não feche os olhos meu neto.
Não feche os olhos. Os olhos da mente. Seu avô tem os olhos fechados, mas
os da carne. Vai brincar que agora você não entende, mais tarde entenderá.

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A rosa de alumínio - Platão
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Dia das Mães... Às vezes o que é loucura num ambiente em outro é pura
sanidade. Certa vez no programa «O Mundo da Literatura», TVE, Ferreira Gullar
disse que o escritor transforma a dor ou alegria em prazer estético. É verdade. Meu
irmão tem muitas dores pessoais e transformou algumas delas em prazer estético e
até foi premiado em concursos literários. Falaremos de um poema seu cuja
centelha saiu de uma dor e que termina assim: /Poema é que nem leite: / Ferveu,
derramou /Apaga o fogo/. O título do poema é Hora Certa. Os versos citados
foram os primeiros que lhe vieram à cabeça num evento « Poesia nos Arcos », na
Lapa, quando uma poeta dizia o seu poema e meu irmão disse ao Mário, outro
poeta: Mário, se ela terminar o poema nesse verso, fecha com chave de ouro!
Mário balançou a cabeça literariamente concordando, mas a poeta, embriagada
talvez por ter a consciência do belo poema, continuou e se perdeu em vãs
repetições. Então meu irmão disse ao Mário que o nome do poema seria Hora
Certa; que devíamos, não é fácil, saber a hora de parar. Eis o grande desafio não só
para escritores, mas para todos os viventes: saber a hora de parar. É certo que a
Natureza nos dá vários avisos, porém, ou não ouvimos, ou fazemos ouvidos de
mercador. Ainda estamos tão separados dela! Mas como disse, o poema Hora
Certa e seus versos finais: /Poema é que nem leite: /Ferveu, derramou /Apaga o
fogo/ saíram de uma dor do meu irmão, uma dor de nunca ter podido comemorar o
«Dia das Mães». A única vez que comemorou, não foi comemoração. Todos riram
do seu presente. O combinado era levarem rosas. Da turma só meu irmão tinha
madrasta. Na sexta-feira todos chegaram com as suas rosas vermelhas e amarelas
berrantes, outros com uma discreta rosa chá e outros com as veludosas rosas
brancas. Só meu irmão chegou com uma leiteira de alumínio.
– Ih, olha lá: o maluco trouxe uma rosa de alumínio! Comprou-a
economizando o dinheiro da passagem da escola e da merenda mais os
alumínios que catava na ida e volta para casa. Não era por falta. Lá em casa
havia três leiteiras, mas aquela era especial, mágica, socorrista, ao menos para
ele, gostava dele, uma leiteira em que o leite fervia, mas não derramava porque
a leiteira apitava, denunciando o leite para a vizinhança inteira. Se meu irmão
tivesse dado uma rosa para a sua madrasta, o leite continuaria entornando e ele

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apanhando de chicote. As outras leiteiras sem apito e o leite nunca gostaram
dele. Diversas vezes implorou ao leite. Leite, por favor, quando for derramar
me avise! O leite ficava quieto, falso, na leiteira. De repente ele desabrochava e
a sua flor branca despetalava-se sobre o fogão apagando o fogo e logo se
acendia um calor nas costas de meu irmão. A cada listra escorrida por fora da
leiteira correspondia a uma chicotada nas costas de meu irmão. Para não doer
muito digamos apenas que era um menino listrado. Listrado degradê. Que ia do
mais vermelho vigor até o rosa cansado. Todos os dias ele tinha que comprar o
leite, encostar o umbigo no fogão, colocá-lo para ferver e fazer mingau para
nós: Pitágoras, eu e Descartes. Graças a Deus ele nunca mais fez mingau na
vida! Matar não.
Mas naquela sexta-feira todos riam da leiteira, só a madrasta entendia a
sua loucura e num jogo de olhares lhe dizia, «deixa estar que te pego» e ele
respondia, «deixa estar que te escapo». Mal chegaram a casa e ela arrumou um
jeito de matar a nova invenção, entristecendo nosso pai que adorava pós-
modernidades. Ela pôs chumbo derretido na garganta do apito, que me desculpe
a ciência, mas um menino não vê mais que seus dois olhos veem, ainda não
treinado o seu terceiro olho, chamava de apito o efeito científico do vapor d’água
e a produção do som, porém, Haroldo, um amigo de infância, vendia limão na
feira e ensinou Pequeno Ismael a vender... Lembra até hoje do seu pregão: “Aê o
limão do Mato Grosso/ Casca fina, caldo grosso!” Era uma rima pobre, mas
como entrava bem no ouvido do povão e Pequeno Ismael voltava com novas
leiteiras que apitavam para casa. Se a madrasta destruía, Pequeno Ismael
comprava mais até que pararam de fabricar. Entanto, ele já estava grande,
economicamente ativo. Com 14 anos pagava à minha mãe pela comida, roupa
lavada; vestia-se e se calçava a seu gosto. Seu namoro com Damiana não
prosperou porque ela insistia em se apresentar a ele com o cabelo todo trançado,
trançadinho e perfumado como o chicote que lhe ardia no lombo, além de a
madrasta botar todas as namoradas dele para correr de vassoura.
Hoje quando ouve apitos fininhos lembra-se da leiteira que apitava, sua
rosa de alumínio, que não cansou de ofertar a sua madrasta no Dia das Mães,
tempo em que se colocava o leite para ferver. Veja que até a dor de encostar o
umbigo no fogão dá poesia. Só depende de você, mas lembre-se: /Poema é que
nem leite: / Ferveu, derramou/Apaga o fogo/.

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Pitágoras
_______________________________________________

Hoje é aniversário do meu meio irmão, Pequeno Ismael. Pequeno pra


eles, né! Ele é o mais velho da casa e de papai ele vai ganhar uma camisa.
Mas ele quer um presente da mamãe: Mas como dar presente se eu não
trabalho, menino?
-Ah, eu quero um presente seu também, madrasta! Hoje, toda mãe
trabalha! Até as aposentadas, até as madrastas...
-Mas seu pai não vai te dar uma camisa?!
-Não, tia! Eu quero um presente das suas mãos!
-Tá, garoto! O que você quer de mim?
O pai dá uma piscadela que o dinheiro dá para mais presentes. Por
instantes, meu irmão fica latente, engenhoso, a encarar mamãe. Ela tem
medo de um pedido daqueles, mas logo meu irmão a acalma:
-Eu quero dois frangos!
-Quer o quê?
-Dois frangos!
-Dois frangos?
-Sim. Dois frangos.
-Mas...Que modéstia é essa?!
-Tia, eu disse dois frangôs!
-Mas que garoto! Você não quer uma calça, sapato ou computador de
segunda, não? -Já disse e não recuo, tia: hoje é meu aniversário e quero
dois frangos, só pra mim.
Mamãe ergue as sobrancelhas e as bolas dos olhos muito pretas para
o alto e um pouco para esquerda como quem pensa. Fica intrigada. Nunca

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faltou frango em nossa casa! Por que o olho grande? Indaga-se. Porém,
manda buscar quatro frangos. A curiosidade fisga os seis membros da
família. Alastra-se feito bertalha, chegando às casas dos amigos. A internet
encarrega-se do mundo:
-Dois frangos?!
-Sim. Dois frangos! De presente de aniversário.
-Que presente mais estranho, não acha?!
-Deve ser graceta de moleque!
-Nada! É olho grande mesmo! Maluco ele não é!
-Pode estar querendo dizer algo importante à família!
-E esses garotos têm lá coisa importante a dizer para a vida?
-É mesmo!
O apelido pega rápido. Em meia hora o planeta já sabia:"Olho
Grande" queria dois frangos de presente de aniversário.
À tardinha, hora da festa, meu irmão senta-se com os dois frangos,
enquanto os outros chafurdam no bolo. A casa é pequena, mas cabe
prefeito, presidente da Câmara, juiz diretor do Fórum, TV local fazendo
transmissão direta. Todos querem ser filmados ao lado do olhudo. "É um
acontecimento inédito em nossa cidadezinha”, diz o repórter. Meu irmão
nem quer saber de bolo. Senta-se e lambe as coxas como se nunca as
tivesse visto. E a câmera em cima. Ostenta-as , admirando, como se fossem
dois troféus. E a câmera em cima. Saboreia o peito com os olhos e exclama:
"Este é um feliz aniversário!". A câmera em cima. Apoia os cotovelos
sobre a mesa, exibindo as coxas como se fossem dois porretes para
esmurrar a fome. E a câmera em cima. Outro irmão chega a pedir uma
coxinha, aliás, coxona, mas mano velho disse Não: Esses aqui são meus. Só
meus. É o meu presente de aniversário. E dado por nossa mãe. São frangos
privativos do aniversariante. E a câmera em cima. E tem mais: eu tenho
direito nesses outros dois frangos aí também. Eu sou da família logo tenho
direito! Esses aí, hoje, são frangos públicos. Quando eu acabar daqui,
vamos comê-los, juntos. A câmera em cima.
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– Tá vendo – disse meu outro irmão – é olho grande mesmo, mãe!
Reclamou Descartes
Ninguém diz nada audível. Só murmúrios de chalaças. Olho Grande
come tudinho, exceto costela e asa. Mamãe pergunta se ela pode dividir os
dois frangos restantes. Ele balança a cabeça que sim. Ao dividir, mamãe
não resiste e dispara:
– Vem cá, você não vai dizer o porquê de pedir dois frangos de
presente de aniversário não, doidinho?
Mamãe diz isso com os frangos já divididos, distribuídos em
pratinhos. Em sua mão direita só resta o prato suspenso no ar, aguardando a
resposta do Pequeno Ismael:
– Ah, tia, minha tia, minha madrasta! Há 15 anos eu como costela e
asa nessa mesa.
Mamãe envermelhada. E a câmera em cima.

59
por que ICARA-í?

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Com muita igualdade
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Antes, li no jornal um poema de uma garotinha de 10 anos. Um dos


seus versos era: “um mundo sem desigualdade, e sim com muita igualdade”.
Logo depois os jornais vieram trazendo a comemoração dos 60 anos da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Direitos Humanos... Tinha até
esquecido. E não é ironia. É que toda vez eu lavava os penicos lá de casa e
me lembrava da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da igualdade.
E isso era todo dia pela manhã ao lavá-los com a vassourinha de piaçava e
detergente, mas os penicos sumiram. No meu tempo de menino era comum
penico embaixo da cama.
– Essa Declaração deveria ficar associada a um hostiário, um guarda-
joias, mas a um penico?! Vaso noturno, urinol, chulo cagarrão?!
Onde houver espaço para a igualdade aí ela entra, mas às vezes há
hóstias demais e a igualdade não pode entrar; às vezes há tantas joias no
guarda-joias que a igualdade tem que ficar do lado de fora. A igualdade é
espaçosa. Gosta de passear pelos relicários, gazofilácios, cofres; de vale em
vale, da China ao Brasil; pelos descampados, hemisférios, mas há os que não
gostam de plural e a igualdade ainda esbarra em sesmarias.
60 anos... Em que grau está a nossa Declaração? Sessentona ou
sessentinha? Pelo naufrágio do Muro de Berlim é Sessentona, pelo erguido
Muro de Israel é sessentinha. A Declaração Universal dos Direitos Humanos
é uma fragata no cais, onde um marinheiro começa a tratar a ferrugem de um
bordo e pintá-lo, mas quando vai para o outro bordo, antes de terminar, o
bordo pintado já está enferrujando. Enquanto o marinheiro do universo
cuidava do bordo Berlim, o bordo Israel enferrujava. E nunca temos a
inteireza da Declaração. Lembro de um sargento na Base Naval do Rio de
Janeiro... Do navio no cais e o vaivém das ondas... Uma coisa é o navio no
dique seco, outra coisa é o navio na água... É com o navio na água que o
tempo se torna palpável: a ferrugem. O sargento apresentava o navio ao
comandante com os dois bordos pintados, sem ferrugem, na água... Coisa que

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os cabos não conseguiam. Ele era o tal. O safo. Um dia de inspeção o
comandante ao tocar o bico do sapato num dos bordos, uma placa de
ferrugem despencou dentro d’água. Quanta tinta sobre ferrugem nesse país,
nesse planeta.
Mas era domingo, dia de feira, crônica e família reunida. Chegamos
da feira. Meu pai foi para o quarto deitar. Lembro que havia sol. Não me
cobrem as palavras porque eu só tinha dois anos e Igualdade, cinco. Portanto,
essa é uma crônica em parte muda, de imagens, movendo-se no tempo.
Mal chegamos e Igualdade foi logo abrindo os embrulhos dos
presentes. Eram dois chapéus de nylon, um azul, outro rosa e um penico rosa.
Igualdade me deu o chapéu azul e se entronizou no seu penico rosa e me
abaixei por companhia. Ficamos frente a frente e de repente ela interrompeu
essa rima pobre e foi para o quarto e de lá trouxe papai, puxado pela bermuda
branca. Brincávamos muito de trenzinho e ela era a locomotiva que me
levava para a casa da negra Dona Tita, a passadeira da redondeza; e era ela
também o vagão que me empurrava para frente, quando me ensinava a ser
locomotiva. Piuíííííííí! E veio do quarto trazendo papai a pequenina
locomotiva, rebocando o enorme passageiro.
Aguardávamos o almoço. Igualdade falava com papai e apontava para
mim. Papai, aprisionado pela bermuda, balançou a cabeça que sim e foi para
o quarto e saiu de lá arrumado. Igualdade me deu a mão e lá fomos de novo à
feira, pessoas gritando, mulheres se abaixando, apertando minhas bochechas,
beijando, exigindo que eu risse para que se abrissem as covinhas no meu
rosto. Era febre naquele tempo. Naquele tempo? Ô povo para gostar de
covas! São uns beija-covas.
Outra vez paramos diante do homem cabeçudo e dentes grandes.
(dentes que hoje vejo é de gente humilde, com restaurações provisórias
eternamente nos postos de saúde) Igualdade apontou para um mundo de
coloridos, onde o cabeçudo enfiou a mão e arrancou de lá um penico azul.
Ao chegarmos, a cena se repetiu: meu pai foi para o quarto e ficamos
na sala. Ela sentada no penico dela e agora, eu no meu. Igualdade balançava
a cabeça e sorria: um penico rosa e um chapéu rosa com uma peninha rosa
em dégradé ao lado e um penico azul, chapéu azul e peninha azul... Tudo

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combinando. Quem é de rosa: rosa; quem é de azul: azul. Naquele tempo as
cores eram muros tão altos como o ex Muro de Berlim e o fresco Muro de
Israel, mas hoje, nas vitrines da Rua do Ouvidor e vizinhança, quantos
blusões e camisas rosa bebê?! Combina com jeans, com o bege, com o
beijo... Mas com quem ela aprendeu isso? Os olhos meigos, o queixo apoiado
sobre as mãos... Papai sempre foi um Nietzsche inconsciente e mamãe não
ligava pra gente. Com quem Igualdade aprendeu a igualdade? Ah, é do
feminino essa coisa do combinar. E não era uma igualdade forçada, mas
desejada. Igualdade acordava abrindo janelas e cortinas e havia sol do quarto
ao banheiro.
Por aqueles dias Igualdade morreu. Minha irmã teve a duração de uma
crônica. À noite quem dormia? Eu chamava por Igualdade: I! Ô I! Minha
mãe também se foi e em seguida veio a madrasta. E como disse Drummond...
De tudo fica um pouco:
Minhas primas tinham vindo passar as férias escolares comigo e numa
tarde, dormíamos, e a madrasta me tocou pondo o indicador no centro da
boca e pedindo segredo me levou à cozinha e começou a bater um abacate.
Nasceu-me uma ruga entre os olhos. Disfarcei. Acompanhei. Joguei. Que
jogo, Baltasar Gracián, favorito de Shopenhauer. Disseste na tua Arte da
Prudência: “o jogador perfeito nunca move a peça que se espera, e muito
menos a peça que seu adversário desejaria”. Pois Movi exatamente a peça
que a minha adversária desejava que eu movesse e foi ela a envergonhada. A
madrasta... Quanta engenhosidade! Com um pano de prato engasgava o
cansado liquidificador Wallita de três velocidades para minhas primas não
ouvirem. Entanto, da cozinha dava para ver as três dormindo, mas eu não
enxergava Lucimar, Lene e Mirian. O amor me daltonizava. E para o
daltônico o vermelho e o verde são um. E eu só via Igualdade, Igualdade,
Igualdade. Não... A igualdade não estava morta. Dormia. Lázara, sai para
fora! As coisas passadas ainda são. Com pedacinhos de casca de laranja e
elástico para dinheiro, improvisei meu estilingue e fui ressuscitando as
Igualdades, uma a uma.
Naquela tarde ensolarada a vitamina teve de ser para todo mundo.

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Lerinha dos vaga-lumes
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Velhos tempos em que alguém mal espalhava cinco lâmpadas num


bairro e era eleito vereador... Hoje o povo está a fuzilar um pouco mais: é a
lâmpada, uma dentadura, tijolo, cimento, óculos, almoço no restaurante...
Porém, era nessa escuridade que Lerinha levava a melhor na hora do pique
– esconde; pique-lateiro. De repente ela se descolava da paisagem e dava um
chutão na lata: lateiro! Mas levava a pior na hora dos namoradinhos porque não a
enxergavam e acabava sozinha. Nada! O feminino dava um jeitinho. O fósforo
brilha porque se rala na aspereza. Percebendo a invisibilidade – Ih, nem te vi,
Lerinha! –, tratou de usar um biopiercing na caverna do umbigo. O morro
naquele tempo era repleto de vaga-lumes e Lerinha, na época do acasalamento,
pegava um deles e colocava no umbigo. Vaga-lume que a fazia sair das trevas
para a luz do olhar dos pretendentes. Destacou-se mais ainda, ficando conhecida
como a “Menina dos peitinhos que piscavam”. Na verdade, ainda não tinha
peitinhos, mas a danadinha convencia dois vaga-lumes, a ficar um no futuro
peitinho esquerdo e outro no direito, acendendo e apagando, rivalizando para ver
qual ia passar a madrugada com a fêmea no umbigo. Mas, antes de vaga-lumes
vivos... Confessa a menina: eu ralava muitos vaga-lumes no meu corpo até a
fosforescência, mas vovó me ensinou que eu iria acabar com todos os vaga-
lumes da terra se continuasse, assim como não haveria, hoje, mais ovelhinhas,
cordeirinhas, bodezinhos, rolinhas e nem pombinhos se os israelitas insistissem
em sacrificar esses bichinhos... Que culpa tinham os bichinhos dos pecados dos
homens? Três vaga-lumes. Ficou nisso, também, para não se tornar uma árvore
de Natal muito enfeitada e os freudianos acusarem Lerinha de conotações
sexuais, ensinou-lhe a mãe, ávida leitora de enciclopédias achadas no lixo e se
queixava: “Ainda jogamos livros fora nesse país!”.
Não. Não seria exagero nenhum Valéria tornar-se uma árvore de Natal.
Não é discriminação. Quem trabalha com teatro sabe: para ficar visível, um
ator negro precisa de muito mais luz em cima dele do que um ator branco. É
questão de técnica.

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Contudo, bastaram três vaga-lumes para Lerinha atrair o seu
pretendente. Eu! Chamava-me sempre para brincar na casa dela. E quando
entrávamos, na porta, do lado de fora, resplandecia um copo de café. Às vezes
cheio, pela metade ou quase vazio. E Lerinha me dizia que aquele café era para
as almas. E de fato era sorvido, pois a marca de café no copo, a cada dia, ia
descendo, lentamente. Lerinha dizia, com muito jeito e nenhum espanto, que as
almas sorviam devagarzinho. Saboreavam o pretinho gostoso como quem
delicia uma crônica, um conto, croniconto, um romance. Lerinha caiu na
besteira de ir à minha casa e saiu de lá a toque de vassouradas por minha
madrasta, a pedra. Todas as namoradinhas saíam corrida. Por quê? Fedra?
Não... Meu nome não é Hipólito, mas eu sou Hipólito. Que me arrastem
cavalos de Posêidon, mas em ti não ponho as mãos.
Fiquei sem graça de lhe dizer a verdade, mas o tempo aumentou as
intimidades com Lerinha e de beijinhos de criança passei a levar os livros de
ciências para a menina dos cabelos negros, lisinhos de henê. Ela não estudava.
Fui o primeiro professor de beijo, inclusive. Carinhosamente a chamava de
“Minha pretinha de alma branca!” Lerinha não passava recibo e devolvia a
ternura no equilíbrio: “Meu branquinho de alma preta!”. Resolvi aclarar-lhe a
mente e disse a ela que quem bebia aquele café era o sol. Lerinha riu. E com
toda convicção afirmou ter visto por diversas noites as almas chegando para o
café. Como era o sol, se várias vezes esquentou no fogo para as almas não
beberem café frio? Dava dor de barriga, ensinou-lhe a vó Maria! Continuei a
dizer, era o sol. E mostrei nos livros como o sol bebia café através do processo
da evaporação, mas ela teimou. Era natural. Apaixonada!
Fiz-lhe o desafio. De dia e de noite tirávamos plantão junto ao copo.
Criança, quase ninguém chama de maluca. E ela pôde verificar com os seus
próprios olhinhos amendoados que o café só sumia de dia. E perdeu a ilusão. E
fui para casa, certo de que no outro dia quando voltasse para brincar, já não
encontraria aquele copo de café, horroroso, no canto da porta. Apaguei a luz.
No dia seguinte voltei e não pude entrar. A pequenina casa de Lerinha
era daquelas construídas bem no fundo de um terreno 10x50m, sobrando muito
terreno para frente, onde estavam espalhados 600 copos de café. Cheinhos.
Fumaçando. Exército de pigmeus prontos para o combate. Ao perguntar por
que ela insistia em colocar café para as almas, porque espírito não bebe café,

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não bebe nada, não sente fome, nem sede, respondeu-me que perdeu a ilusão,
mas ganhou o sonho. Que agora punha café para o sol beber, porque estava
louca por uma longa chuva de café para deixar todo mundo pretinho e não
haver mais discriminação.

66
De Jandira a Djanira
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Também tive uma Teresa com penteadeira! E você dirá: Ah, Pequeno
Ismael, muitos já tiveram uma Teresa...
– Sim, mas a forma como a conheci foge ao cotidiano. Você já viu
alguma vez um Eliézer Bertalha?
Bertalhemos: Muitos evangélicos andam por aí dizendo que foram
chamados para pregar a reis e governadores, mas o apóstolo Paulo pregou
para o rei Agripa, da prisão; José e seus irmãos, o José do Egito, antes de
ser esse José, passou pela inveja, ódio, venda e prisão.
Uma Teresa pode vir no tempo das vacas magras e o ódio no tempo
das vacas gordas. O amor pode chegar num dia cinza e a morte numa tarde
completamente azul. Sei, o certo seria o amor montar sempre as vacas
gordas e o ódio, as magras, mas não é assim na poesia. Quando mataram
meu vizinho, a manhã era cinza e chovia, chuva fina. Combinava com a
vida que ele levava, mas na morte de Kaspar Hauser seria injustiça se a
tarde não fosse azul.
Ao ouvirmos sobre o início de um amor, quase sempre a vaca é
gorda: numa bela noite, belo dia, bela praia, belo baile...
Conheci Teresa e sua penteadeira no baile da fome. A fome também
dá seus bailes. Não era uma fome como a do Egito, no tempo de José. A
fome costuma dar pequenos bailes nos lares. Findava o “milagre
econômico” e a fome iniciou seu baile pelos lares da construção civil. Meu
pai, pedreiro, autônomo, ficou desempregado e à mesa, durante o primeiro
almoço de vaca magra, chorou. Apenas feijão. De dois terrenos 12X30
geminados, só usávamos 40m2 na frente. Para os fundos tudo era mato.
Capim africano, capim-elefante, do tamanho da espada de Golias. Guiei
papai a uma passagem secreta no capinzal e quando viu, se espantou. Uma
horta que tinha de um tudo. Alfaces enormes. Milho? Espigas enormes!
Aipim? Enormes. Tomates, galinha, frango e a bertalha. O espanto deu

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lugar à curiosidade. Eu era apaixonado por sementes e a madrasta não me
dava comida. Eu passava fome com a geladeira cheia. Dinheiro? No tempo
das vacas gordas, pai, José não gastava os poucos centavos da merenda.
Para a escola ia a pé muitas vezes e comprava, na casa de aves, envelopes
de sementes. Galinhas e frangos são os pintinhos trocados por garrafas.
Essa é a sua mulher meu pai, minha madrasta, falsa Jandira, nossa Djanira.
O Senhor ganhou muito e nada tem. Até o palito de fósforo nessa casa,
hoje, está no nome dela. E se o senhor tentar me defender:
– Eu vou meter o pé na sua bunda, entendeu, garoto? E se ele tentar
te defender, meto na dele também! Agora que tudo está em meu nome. Até
um palito de fósforo está no meu nome nessa casa! Aqui ó a escritura do 5º
Ofício! E é cópia, tá! Pode rasgar!
Tirávamos para o almoço. Agora meus irmãos que diziam sobre mim,
ele nasceu no lixo, comiam da minha horta de olhos arriados. Enquanto
colhíamos, meu pai não cessava de dizer que eu tinha as mãos boas para o
plantio e a criação. Fazer viver pintinhos de garrafa e ainda pôr ovos! Qual
o segredo? Olha o quiabo?! E esse jiló?! Seu adubo é de encurvar japonês.
É melhor do que calcário.
– Pai, é mel! Eu rego a Mãe-Terra com mel jamais encontrado na
literatura de agricultura, porque esta é uma agricultura literária e o mel
literário tem gosto de tinta.
E de colheita em colheita chegou a vez da bertalha com ovos. Nesse
tempo eu já pensava em namoradas. à noite, vez por outra, pelo basculante
do quarto, entrava a voz do alto falante de uma igreja, dizendo que Abraão
enviou o seu servo Eliézer a buscar mulher para o filho, Isaque. Eliézer
quer dizer “Deus é auxílio”, mas meu pai não era um Abraão com gados e
fazendas e um Eliézer. E naqueles dias não havia Eliézer eletrônico...
Papai apanhava os ovos e eu a bertalha. Colhia as folhas. Grandes
folhas em forma de coração, quando percebi que o pé de bertalha havia
pulado a cerca. Chamei meu pai, tentamos puxá-lo, mas ele não quis voltar
como se tivesse ido fazer um mandado para a Mãe-Terra e só voltasse
depois de terminado.

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Resolvi segui-lo: da cerca tinha trepado no telhado do Seu Ventura
Barroso; alcançou o coqueiro a 3 metros de distância, pelo alto, deve ter
sido auxiliado por algum pássaro, havia muitos bem-te-vis, sanhaços e
sabiás por ali. Do coqueiro alcançou o fio e, ladeira abaixo, o telhado da
Erínia Barros, a 12 metros de distância, pelo alto; esse pé de bertalha deve
ter firmado algum contrato com os pássaros para ir tão longe e pelo alto,
sempre pelo alto... Da casa da Dona Erínia, saltou 10 metros, a casa da
Hortênsia, nada bêbada, e alcançou no vale, a casa de Bartolomeu Campos
e em seguida um vermelho flamboyant em flor, ardendo na tarde e,
ladeirinha acima, ouvia-se o farfalhar de bananeiras e entrou pelo vão entre
o telhado e a parede de uma pequenina casa cinza, janela do quarto aberta.
Eu que vinha também pelo alto, sempre pelo alto, com as pernas de pau de
circo de um amigo, desci e dei com a extremidade do pé de bertalha
agarradinho a uma penteadeira, humilde, de duas gavetas, cheia de
florzinhas e perfumes, onde estava Teresa, que do grande espelho disse oi,
a minha primeira namorada.

69
por que ICARA-í?

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Minerva, a empacotadora
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Muitos já tiveram ou terão na vida o seu dia de raposa. Não se


computem aqui as raposas deliberadas. Falo daqueles em estado de raposa por
necessidade. O jesuíta espanhol, Baltasar Gracián, no seu livro “A Arte da
Prudência”, ensina que na falta de força, use a destreza. Não podendo vestir a
pele do leão, vista a da raposa. Olha, um padre ensinando a ser raposa! O que
diria Immanuel Kant?
O dia em que tive de ser raposa foi num sábado, no antigo supermercado
Maracanã, onde eu trabalhava como fiscal de salão e não conhecia o filósofo
Immanuel Kant e sua ética. Percebi que um cliente estava trocando os preços
das mercadorias por conta própria. As caríssimas garrafas de vodka sairiam
pelo precinho de garrafa de cachaça. Indagado pelos amigos o que ele faria se
fosse apanhado, disse que era PM e o que viesse de lá para cá, ele mandaria
daqui para lá e, abrindo a pochete, exibiu um 38, cabo madrepérola, igualzinho
ao do meu pai quando me expulsou de casa por causa da minha madrasta que
naquele instante empurrava o seu carrinho entre mim e o 38, abraçada ao ex-
mendigo, bem frescos, fingindo nem me ver...
Naquele tempo, o revólver 38 reinava sozinho. Era chamado pelos íntimos
de “Três Oitão”. Ouvia-se falar numa pistola aqui, outra acolá e na mais famosa
PPK dos enlatados de James Bond. Hoje o feminino tomou conta de tudo. Abre-
se o jornal e há mais mulheres aprovadas em concursos públicos do que homens.
Há mais pistolas matando gente do que revólver. Já existe tese de pós-doutorado
sobre a “Ascensão e Queda do Três Oitão”. O 38 virou coringa. Já existe,
inclusive, psicologia para tratar da crise do “Três Oitão”. Cá para nós, se
psicologia fosse boa não haveria tantas psicólogas separadas de seus maridos. E
o povão não perde tempo na metáfora. Diz que o 38 é o fusca da violência. Não
falha. Mais uma vez, um cá para nós. Se esse fusca enguiçasse de vez, o mundo
seria bem melhor, porém, o mais engraçado é que até nesse meio há
discriminação. Vejam vocês que o número de mortos por pistolas negras é bem
maior do que os mortos por pistolas cromadas e douradas.

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Mas no Maracanã, sempre cheio, disfarçado de cliente, eu abarrotava um
carrinho de compras. Se alguma vez tive o carrinho cheio no mercado, foi
assim, de mentirinha. Pois bem. Apelar para a força do leão, não daria. Ele era
um leão, truculento, sanguinário filho do deus Marte, bigodudo, cinco vezes
mais forte do que eu, um leãozinho, bigodinho, que por certo, na primeira
patada teria a espinha quebrada. Se eu chamasse o Terêncio, policial civil,
chefe da segurança e o resto dos seguranças, seria tiroteio na certa e, salvo
minha madrasta, que grande oportunidade de me livrar dela, dessa pedra, havia
tantos inocentes entre nós... Ah, se o sangue no país fosse apenas o espocar de
flamboyants no verão!
Mais a frente, surpreendi um meninão tomando ilicitamente um yogurte.
Daqueles de morango com geleia vermelhinha no fundo. Assustado com o meu
olhar o meninão só bebeu o yogurte e largou o copo, ferido, tombado na
gôndola e a geleia pingando, vermelha, sangue e a mancha crescendo no chão.
Pingando os lipídios, glicídios, protídios, occídios, tá-tá-tá-tá! Não, não. Que o
PM leve todo o supermercado, mas sangue, não. Se o supermercado estivesse
vazio, só com minha madrasta dentro... Mas vítima pode ser esse meninão que
mal degustou o yogurte e lá no inferno, por tudo o que sei, não há geladeiras e
yogurte quente é uma diarreia só. E se ele for para o céu, lá não se casam nem
se dão em casamento e esse meninão tem cara de que quer casar para ter uma
família à roda da mesa num domingo cronizável. Que besteira disse agora. Isso
é coisa de cronistável. Qualquer domingo é cronicável nas mãos de um
cronista. Resolvi deixar o PM se dar bem. Tinha de pegar o rato de outra
maneira. No fundo Minerva era quem guiava o carrinho e os meus
pensamentos. E carrinho vai, carrinho vem, muitos deles com um quilinho de
arroz, um tiquinho de café, um dedinho de açúcar, um pedacinho de sabão,
uma canequinha de refresco, encontrei o PM de novo. Ele estava em frente à
gôndola dos desodorantes e os amigos fizeram um meio círculo, ocultando-o,
enquanto experimentava as fragrâncias. Que nada! O esperto estava esvaziando
os frascos de desodorantes, um no outro, porque esses desodorantes vêm tão
vazios que dão para colocar dois dentro de um. Quando saíram, aproximei-me
da gôndola e contei 20 frascos vazios. Que derrame! Que malandro! Tudo bem
que o Maracanã era rico, mas havia um prêmio de cem pratas para quem
pegasse mais furtos. Foi aí que nasceu a raposa, a inteligência de Minerva. Ele
aguardava na fila. Juntei os frascos vazios e os coloquei na sacola. Naquele
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tempo havia mais empregos, havia as empacotadoras de supermercados. Que
saudade! Não fui herói sozinho. Já viu homem fazer algo grandioso sem a
ajudinha da mulher?! Contei o caso à empacotadora, uma deusa, chamava-se
Minerva de Araújo Geovú, também adorava aventura, inteligência, aceitou e
sutilmente trocamos as sacolas de desodorantes. Ali começamos o namoro. No
supermercado, ela já tinha sido namorada do Diomedes, Ulisses, Aquiles,
Menelau, mas agora o seu herói era eu, um simples fiscal de salão. O PM
partiu, festejando com os amigos. Alertei o Terêncio que logo disse: ele vai
voltar. Reuniu toda a segurança por entre os caixas como se fosse uma
comissão de frente de um mórbido carnaval. Dito e feito. O opala preto,
rebaixado, roda de magnésio, entrou no estacionamento e veio para a frente do
mercado. Mas o PM já saiu rindo. Riso largo. Terêncio perguntou se havia
algum problema. Não. Estava tudo bem, mas ele queria apertar a mão do
cidadão, porque ele tinha encontrado um cara mais malandro do que ele. E
erguia a sacola com os frascos vazios. Disse que o tal cara era um artista.
Chamou-me de artista. Confesso, fiquei vaidoso, porém, na dúvida, usei de
prudência e me contive. Hoje aperto sua mão através dessa crônica, PM, e
constato como Baltasar Graçián tinha razão: a destreza realiza mais do que a
força, e os sábios têm derrotado os valentes mais vezes do que o contrário. Na
guerra, Minerva é superior a Marte.
Por sua causa, PM, ganhei o prêmio de cem pratas no dia do meu
aniversário, 14 de março, Dia Nacional da Poesia. Comprei calças e camisas
novas e fomos andar pela cidade de mãos dadas, a empacotadora e eu, com os
presentes que você nos deu. É pena não existir mais o supermercado Maracanã
para lhe dizer, amigo: Agradecemos a preferência e volte sempre.

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Unidade ou morte
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No morro da Caixa D’água havia um casal que passava na hora em


que o Pequeno Ismael estava lendo seu livro de História Geral. Como o
casal passava é que chamava a atenção: ele na frente, bem na frente, e ela
atrás, bem atrás. O marido tinha vergonha porque a mulher era gorda.
Chamava-se Sonja. E ia ele na frente, bem na frente com os quatro filhos e
a mulher sozinha atrás, bem atrás e Pequeno Ismael ficava contemplando
aquele ICARA-í em movimento. Um ICARA-í que anda. O seu, achava o
pobrezinho, tinha parado no quartinho das ferramentas.
Saindo do morro para o mundo, havia uma mulher cujo nome era
Sofia Chotek que também tinha o seu ICARA-í, não por ser gorda, mas
porque era condessa e uma condessa não podia casar com um herdeiro da
Monarquia dos Habsburgos. Isso pequeno Ismael acabara de ler no livro
enquanto o casal passava sob a janela. O madrastio de Sonja provinha do
marido, já o de Sofia vinha da corte austro-húngara, deduziu, mas o
herdeiro, arquiduque Francisco Ferdnando, perseverou e casou com Sofia.
Aí veio o ICARA-í, icaraízão: “Sofia era evitada pela corte austro-húngara;
não podia sentar-se junto do arquiduque nas cerimônias oficiais; tinha de ir
atrás dele nos cortejos.” Sofia era Duquesa e Sonja, doméstica. É grande a
diferença, roupa de gala no morro só no Carnaval ou Festa Junina, porém,
se igualavam no ICARA-í! E ficava o menino conjugando: eu icaraízo, tu
icaraízas, ele icaraíza, nós icaraízamos, vós icaraízais, eles icaraízam.
Mas diante disso, Pequeno Ismael, entendendo bem o lado de Sofia,
se perguntava: e se apenas Sofia tivesse sido morta? Teria havido a 1ª
Guerra Mundial?
– Teria! Respondeu a professora em sala de aula. O que se queria era um
pretexto, Pequeno Ismael! Inglaterra e Alemanha estavam armadas até os
dentes. Teria não, professora! Sofia era uma icaraízada. Arquiduque só podia
aparecer ao lado da esposa em eventos militares.
– Menino como é que você sabe disso?
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– ICARA-í, professora! ICARA-í. Quando eles puderam ficar juntos
em público pela primeira vez, a capota do carro enrolada para todos
notarem, imaginar... deram dois tiros no Amor, quando o casal ia mais uma
vez para a Appel Quay... rua estreita e comprida... para uns a estrada do
amor é uma Appel Quay, professora: uma rua estreita e comprida e nela se
chora muito. E quem sabe, professora, Sofia ouviu que a sua estrada do
amor seria estreita, comprida e nela choraria muito? Quem sabe por isso
insistiu em acompanhar o marido e sentou-se de novo no automóvel depois
do primeiro atentado? Apesar dos ICARA-ís impostos a Francisco
Ferdnando ao casar com Sofia, nem a madrasta corte austro-húngara os
separou. Naquela manhã de verão de 28 de junho de 1914, somente a
morte, somente a morte os separou. Chora não, professora! Assim vão dizer
que esse livro é piegas. Eu que venho tentando ser trágico esse tempo todo
e vejo que ainda não consegui.

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Ao fazer a barba
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Já fui mordido por gato e cachorro, mas a que mais doeu foi a
mordida canina. E não fiz nada para ser mordido. De repente a cadela
apoiou-se em mim e mordeu. Do nada. Mas o meu nada pode ser o tudo de
outro ponto de vista e ficaram dois buracos de uma pastora alemã, cujas
cicatrizes ainda vejo ao fazer a barba. Que raiva! Sessenta e quatro injeções
na barriga, lá na Rua do Resende. Nunca mais passei na Rua do Resende.
Dizem que fico menino quando faço a barba, porém, as cicatrizes…
Não consigo morder certas lembranças. Não é fácil morder a própria vida.
Ainda não sei a arte de automorder-se. Mas chega um tempo de conflitos,
de escolhas: ou a privacidade ou a liberdade de expressão; ou a saúde ou a
liberdade de fumar; ou o não falar ou o direito de perguntar; ou a barba ou a
lembrança cinza. Andei fazendo a barba…
Dia desses, o tempo nublado, após fazer a barba fui à banca do Careca
ler as manchetes dos jornais. Lia que lia, buscando assunto para a próxima
crônica, quando chegou o filhote da Pretinha, fazendo festa. Antes de chegar
à mãe, o filhote me deu umas lambidas, mordiscou meu calcanhar, entanto,
arriei os olhos como os que têm olhos, mas não veem e só via um
engraçadinho filhote de cachorra no meu calcanhar e nada mais. Às vezes
gastamos dinheiro que não temos, comprando jornais para a próxima crônica
e às vezes a crônica está ali, de graça, mordendo o nosso calcanhar.
De súbito, Jimmy soltou-se da coleira e atravessou a esquina, indo
pegar uma flor amarela caída na frente de um bar fechado. Ainda enroladinha
e viçosa. Flor vendida por meninos e meninas à noite. Exploração. Jimmy
sacudiu a terra, voltou correndo e colocou a flor aos pés de Pretinha. Depois
dizem que os bichos apenas sonham. Que não têm imaginação criadora.
Tive um vira-lata, vira-e-mexe, chamado Tupi que adorava morder
as patas dos cavalos invasores de seu território. Os cavalos sumiram e Tupi
passou a morder as rodas dos carros. Esquisitices de bicho, diziam.

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Um dia um homem entrou armado para matar nosso Tupi. Éramos
conhecidos como a “Família P”: o pai era Pedreiro, a mãe (Dona Dália)
uma Perdulária, o filho, Poeta e um cachorro Pancado das idéias. O homem
ergueu a pistola para Tupi que passou para trás de mim geograficamente
como um Irã atrás da Rússia e os Estados Unidos invadindo.
• Sai da frente desse vira-lata maluco, Rússio, que ele nunca mais vai
morder pneus de ninguém. Quase capotei.
• Desculpe senhor, mas Tupi não é terrorista nem maluco! Maluco é
o senhor com essa arma na mão. Tupi farejou cavalos. Ele detesta
cavalos que invadam seu território.
• O quê?! Você está me chamando de cavalo?
• Não, senhor. Disse que Tupi farejou cavalos. Qual é o seu carro?
• Corolla XRS!
• XRS?
• Sim, um XRS, filho!
• Não precisava estufar o peito, senhor. Sabia que XRS, XR3, MI,
CS, LX, ELX, LXS LHC é tudo caô? 171? É só para dar a sensação
de conteúdo? É o que dizem por aí!
• Não desconversa, cadê os cavalos?
• Há! Os cavalos? Au!Au!Au! Tupi está dizendo que para ele o seu
carro é um tremendo Cavalo de Tróia; Au!Au!Au! Disse agora que
os cavalos estão no carro; Au!Au!Au! É só abrir o capô; Au!Au!Au!
Há 158 cavalos.
O homem baixou a arma de vencido, arrancou com o carro e sumiu,
gritando: malucos, malucos! Tudo 171, caozeiros são vocês.
Bem, Pretinha ciscou a rosa de Jimmy para longe. Suas pétalas
dariam um excelente refresco de rosas nesse inverno calorento. Parece que
não é só a “Família P” a maluca nessa história. Tudo parece maluco. Até
esse tempo. Tinha que ver como o homem arrancou com o seu Corolla
XRS, 158 cavalos. Um Cavalo. Aliás, desembestado.
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Pretinha é cadela grande, bonita e deram o seu filhote à professora
Layla que lhe pôs o nome de Jimmy. Não sei se existe saudade no mundo
dos bichos, mas é bem parecido o filhote ver a mãe e não parar de balançar
o rabinho e se aproximar com gracinhas, pulinhos, oferecer rosas…
Pretinha ficou indiferente, desviou-se, desprezou e diante da
insistência de Jimmy o mordeu e se afastou. A mãe mordeu o filho. Sim,
houve uma dor, talvez duas dores em Jimmy. Por dentro e por fora. Senti as
dores de Jimmy. Então de nublado abriu um sol, que sol, e os meus olhos se
abriram e enquanto todos diziam: não faz isso, Pretinha! Só eu disse, não
faz isso, Dona Dália,digo, Diamantina...

78
por que ICARA-í?

79
Madrasta
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– Eu quero meu enteado desempregado; que ele tenha problemas


financeiros para o resto da sua vida!
– Mizifia sabe que pode receber metade do que está pedindo para
esse marrequinho?
– Sei! Mas eu quero que o senhor tranque os caminhos dele ou o
mande pra bem longe. ICARA-í!
– Vejam que não sou eu que sou mau, eles é que me pedem. Olha
essa mulher pedindo uma coisa dessas! E o marrequinho não merece esse
oásis. Marrequinho é bom menino, mas Mizifia tá querendo fazer dele
oasita... único crime que marrequinho cometeu foi ser filho da outra... mas
Mizifia tá querendo... depois andam a escrever livros e livros por aí me
chamando de “O Grande Separador”. Tem gente que separa mais do que
eu. E apontava discretamente para Dália Jandira no centro de uma roda de
pólvora.

80
Enteado
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– Você aí da barbicha! Fique de pé! Ô vida estrangulada! Você é um


homem trabalhador, honesto, de família, mas a sua vida tem sido assim ó:
um passo pra frente, dois pra trás! Um pra frente, dois pra trás... Sabe por
quê? É uma mulher na sua vida que até hoje faz trabalho de feitiçaria para
você ter problemas financeiros para o resto da sua vida.
Pensei na minha ex-mulher, mas a missionária rebateu, como se
estivesse vendo os meus pensamentos:
Não é essa aí que o senhor pensou agora, não! É uma mais antiga! E
estralava o polegar no dedo médio.
Minha mente foi direto na madrasta e a missionária:
– É esta aí que o senhor pensou agora! Ela é uma pedra no seu
caminho, mas Jesus quebrou essa pedra hoje. Ela está muito doente e não
sabe. Coração duro, coração de pedra. Quando ela deitar não se levanta mais.

81
Orquídeas
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Mataram aula. Foram de trem para Raiz da Serra. Serra de Petrópolis.


Trem de pau, antigo, com homem fardado e tudo furando bilhetes. Foi a última
vez que viram um furador de bilhetes. O bilhete? Que bilhete, moço? Havia
muitos no chão. Era só procurar os não furados. Mas o vento... Procuramos...
furador de bilhetes desistiu. Descemos no ponto final. Quanto verde!
Quaresmeiras, ipês amarelo, vermelho, lilás e figueiras estranguladoras.
Entraram na cachoeira, mas em vez de mergulhar, Pequeno Ismael
ficou pasmado, boiando, cabeça para o alto, lá em cima, naquele céu de
folhas verdes, estrelado de orquídeas lilases, amarela, branca... Mais ainda
porque elas tinham em quem se apoiar nos troncos, nos galhos das árvores.
Pequeno Ismael é maluco! Veio pra tomar banho e fica olhando pro alto.
Olhando flor! Tá pensando na Valéria? Traz ela aqui e macula de uma vez
o nosso santuário! Me deixa, Zé Vascaíno! Vai lá pro seu Morro do
Carrapato! Cai fora Dida!
No caderno da escola estava escrito que a orquídea não prejudica a
árvore na qual ela se apoia; que as orquídeas vivem sobre galhos e troncos
das árvores. Sim... Os olhos lá longe, em casa, Pequeno Ismael não entendia.
Por que madrasta não me deixou viver nos seus braços, apoiar-me no seu
tronco. Madrasta era árvore frondosa. Meus pezinhos de orquídeas sapatinho
nunca iriam prejudicá-la. Não sou figueira estranguladora. Quando ela
chegou, eu disse: mãe! Mas ela não deixou. Madrasta! Madrasta! Sai daqui,
garoto nojento! Toda hora me beijando! Eu hein! E sai da barra da calça do
seu pai! Vai viver a sua vida! Seu pai com 5 anos já era chefe de família,
rapaz. E eu só tinha 6 anos. Meu pai tinha esse defeito. Mitômano. Eu não sei
como viveu Cristo dos 5 aos 33 anos, mas meu pai era um jovem doente,
acamado. Veio a curar-se bem tarde, já homem. Usava fralda. Ah se não
fosse as irmãs dele! Mas quem pode vencer o mito?
De repente o Dida me puxou para o fundo do lago, afogando aqueles
pensamentos e um futuro orquidófilo.

82
Navarco
_______________________________________________

Um dia fugimos para ver o mar, transatlânticos, estrangeiros,


marinheiros, velas, gaivotas...
Mas na hora o que prendeu foram as embarcações rebocadas. Fiquei
preso como um pássaro no visgo. Como podia uma embarcação tão
pequena como o rebocador subordinar um transatlântico de 23 andares?
Uma pulga-do-mar arrastar Moby Dick? E a pequena Jean Artur, nos filmes
de Capra, rebocar enormes Gary Cooper, James Stewart? E sem aviso, num
átimo, meus olhos foram lá em casa. Podia... madrasta rebocando meu pai
para lá, para cá, para onde quisesse, pois, tornou-se homem sem tração
própria. Podia. A mulher faz o homem, não é, Mr. Deeds?
Voltei à cena dos rebocadores. Uns puxando, outros empurrando. Um
rebocador tanto puxa como empurra. Madrasta puxava meu pai de mim ou
o empurrava de encontro a mim. Bem pertinho acontecia uma manobra de
atracação. Tudo errado: com o rebocador que empurrava o navio, mas de
encontro ao cais com violência; com o navio que não tinha defensas e com
o cais sem pneus para amortecer o choque. E o navio batia no cais... o pai
batia no filho... as espias feito braços tentavam abraçar o cais mas
rebentavam. Cais e Navio eram um ditongo bem unido, mas veio a potência
do rebocador e puxou, puxou até que os braços do Navio rebentaram e o
Cais ficou só. Um cais sem amortecedores. Assim, arranha-se, perde-se
muita tinta e a ferrugem corrói a todos.
Relampejava e de novo madrasta se intrometia na cena dos
rebocadores, rebocando meu pai. Rebocava sorridente. Dava para ver que
ela era a autoridade máxima do comboio, daquela navarquia. Que assim
fosse não houvesse danos. Danos a terceiros. Danos a mim. Que se danem.
São solidariamente responsáveis: o rebocador e o rebocado.

83
por que ICARA-í?

84
Exceptio Regulam Probat
_______________________________________________

De tudo que fui passando criou-se uma quase lógica dentro de mim.
Madrasta era má. Mais de oitocentas maldades contadas. A vizinhança
dizia que era mais. Um dia o senhor vai encontrar seu filho morto. Eu já
esperava pela nongentésima, milésima maldade. Cobrava pela comida, pela
roupa lavada, e ainda tinha que dar o sabão.
Uma noite, madrasta, meu pai e meu primo tramavam sobre o terreno
de São Bernardo. O tão falado terreno que seria meu, já que madrasta era
dona de tudo o que havia, falava papai. Pai bom esse.
Comecei a trabalhar cedo, 14 anos. Era excelente vendedor
ambulante. Tinha dinheiro que dava para pagar o preço da escritura à vista,
mas disse que não tinha e que deixasse aquele terreno, comprado meio a
meio, inteiro para tio Satú por causa de seus muitos filhos. Essa foi a
desculpa. A verdade é que naquela noite não tinham me visto chegar do
trabalho e tramavam para eu dar o dinheiro, mas a escritura não sairia no
meu nome e sim no nome de madrasta. O terreno foi comprado meio a
meio, meu pai e meu tio. Naquela noite... meu próprio pai... “é e aí a
escritura sai nome de Dália que é para a outra, a cobra, não ter direito a
nada.”
Madrasta também chamou a polícia, dizendo que eu era um bandido
de alta periculosidade. A polícia veio. De fato eu andava com um volume
entre o short e a camisa. Naquele tempo nem deixavam falar. Chegavam no
morro atirando, mas um policial me rendeu e outro puxou o suposto
revólver que na verdade eram caneta e folhas de papel almaço enroladas,
cheias de versos.
− A senhora nos fez vir aqui só para gastar gasolina minha senhora!
Seu enteado é poeta!
Quando Tupi morreu fiz o enterro e chorei muito, olhos vermelhos.
Ao entrar em casa, madrasta deslizou para o quarto e de lá veio como um

85
rebocador acelerado, empurrando papai para cima de mim, associando:
olhos vermelhos é maconha. Não, não. Quebraram a cara. Mostrei-
lhes atrás do capinzal, a vela acesa e Tupi, nosso cão, enterrado e uma
imagem de São Lázaro cheio de feridas, rodeado de animais.
Hoje não creio em imagens. Só nas imagens dos poetas. Essas fazem
milagres, mas eu tinha mais feridas do que São Lázaro e a desvantagem de
que todas eram por dentro e há dias em que nem a poesia te socorre.
De outra vez madrasta nem deixou papai tirar os sapatos e na entrada
da porta já foi dizendo:
– Seu filho anda querendo me rebocar.
– Meu próprio filho...
– É! seu próprio filho!
– Pai, é mentira! Ela é que é rebocadora! Fica peladinha no chão da
sala quando o senhor sai e eu tenho que pular a janela para ir à escola!
– Meu próprio filho...
– Disse que arrumaria um jeito de o senhor me mandar embora
daqui!
– Meu próprio filho...
– E que se o senhor tentasse me defender iria meter o pé na sua
bunda também!
– Meu próprio filho...
– Grita comigo quando ela fala e não olho para ela. “Quando eu falar
contigo, você olha pra mim, rapaz!”. E quando olho, pai, lá está ela com um
dos peitos de fora. O bico do peito duro. Pai, eu detesto peito chifre de boi,
meu negócio é peito empadinha!
– Meu próprio filho...
Por essas e outras, pendurei madrasta numa cruz entre Fedra e a
madrasta de Cinderela, mas a lógica não é a vida e madrasta ressuscitou ao
terceiro dia me dando um radinho de pilha de presente, num domingo em
86
que todo o comércio funcionava. Um rádio caro para a época. À noite liguei
o radinho e acendeu uma luz verde que logo apagou com a chegada da
energia intrusa do Luís dizendo em latim: Exceptio Regulam Probat! E
traduzia ele mesmo ao seu jeito: A exceção confirma a regra.

87
por que ICARA-í?

88
O peito empadinha - Descartes
_______________________________________________

Por esses dias, Pequeno Ismael revia seus filmes preferidos, quando
ao olhar a programação cinematográfica deu com o nome Fedra. Era a
mostra intitulada “Do Palco à Tela” que tinha a parceria da cinemateca da
Embaixada da França, onde o espetáculo teatral Fedra de Racine foi
adaptado para a tela e encenado em 2003 por Patrice Cháreau, com 140
minutos de duração.
Pequeno Ismael circulou a data com a caneta e no dia estava lá, na
fila do meio, esperando Fedra. Num certo momento da peça, Fedra desnuda
um seio diante de Hipólito. Não era peito empadinha, mas Pequeno Ismael
perturbou-se com aquele seio desnudo. Rangia os dentes. O bico do peito
da atriz estava duro. Desejava que a atriz ocultasse logo aquele peito, mas
ela o explorou por eternos segundos... e em menos de um minuto aquele
peito começou a falar com Pequeno Ismael: “vou meter o pé na sua bunda!
Por que você não me chupou?” E se eu o chupasse haveria alguma
surpresa? Viva o peito empadinha! Gritou o enteado como se fosse um
grito de independência ou morte. Ninguém se assustou no cinema. Ao
contrário, caíram no riso, repetindo: Viva o peito empadinha! Na saída o
comentário sobre o espetáculo era um só: peito empadinha. Não sei dizer se
o peito da atriz era chifre de boi. Pequeno Ismael é que é o peitólogo dessa
história.
Mas a primeira vez que o peito apareceu foi na hora do almoço. Sua
madrasta o mandou lavar louça. Pequeno Ismael era jovem e cabisbaixo.
Mas sua madrasta depois de um tempo andou querendo que ele erguesse a
cabeça. Pequeno Ismael, quando eu falar com você, rapaz, você olha pra
mim! Na porta da cozinha, Pequeno Ismael dá meia volta e ergue os olhos e
lá estava ele: Peito chifre-de-boi. Bico duro. A madrasta umedece os lábios.
A língua vem cá fora. Ele na porta da cozinha e ela na do quarto, diante do
espelho do guardarroupa. Fingia-se arrumar para sair. Esperava ser jogada
na cama e possuída pelo enteado. Sabia de ouvir os comentários de suas

89
namoradinhas que Pequeno Ismael era grosso e demorava... mas o rapaz
sequer teve ereção. Dá outra meia volta e vai lavar louça e mamãe cobre o
peito com o sutiã como quem fecha um caixão.

90
Dos mandados
____________________________________________________________

Fazia todos os mandados da casa. Fiz muitos, mas de dois eu não me


esqueço: o do carro do gás e o da cola.
O caro de gás vinha subindo o morro pela nossa rua e madrasta, em
pé, olhava para baixo, esperando para comprar um botijão. Mas como se
não havia botijão perto dela? O que madrasta tanto olha lá embaixo?
Chamou-me para fazer um mandado. Vai lá e diz ao moço do carro do gás
que ele vai ser assaltado. Desci de braços cruzados, passinhos, sem camisa
e cara emburrada. E o carro vinha subindo de porta em porta, buzinando. Vi
dois homens encostados no muro de um terreno baldio. Estavam de armas
empunhadas, esperando o gás passar. Ia dar meia volta. Os assaltantes me
olharam e nem sabiam o recado que eu portava. Ia falar com madrasta para
mandar um dos três filhos dela, os três sentadinhos no portão: Pitágoras,
Platão e Descartes. Para ser exato, madrasta tirou esses nomes de um
corredor, onde trabalhava numa casa em Botafogo e sempre limpava esse
corredor que ia dar na biblioteca e as paredes eram encharcadas de retratos
de Platão, Descartes, Leibniz, Spinoza...
Mas não era só o carro de gás que era assaltado, não. O correio, os
vendedores de panelas, carro de bebidas... e me lembrei do carro de doce;
das minhas bolachas de mel que não estavam subindo o morro com medo
dos assaltos. Descruzei os braços, estufei o peito e desci. Moço, o carro de
gás vai ser assaltado. Falei baixinho conforme madrasta mandou. Foi a
única vez em que me uni à minha madrasta: na hora do interesse e
conveniência. Queria as bolachas de mel. O carro deu ré sem fazer barulho
e foi descendo e subindo pelo outro lado do morro, onde estava madrasta,
veio o carro da polícia e o encontro com os bandidos foi barulhento. O
carro de doce voltou a subir o morro.
Mas assim que teve seu gás e eu o meu doce, madrasta voltou a me
chutar para escanteio. E não havia ninguém para bater o córner e me jogar de
novo na pequena área, no fogo da vida. Vida? Ninguém se mexeu para cobrar a

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falta. Por isso fico daqui desse escanteio sem poder dar ao leitor outros ângulos
do jogo, Leibniz. Não é fácil ser um narrador bola. Bola no córner.
O segundo mandado, madrasta mandou comprar cola da boa. Falei isso
para o dono do armarinho. Quando vi madrasta colando, vi que a cola era boa
mesmo. Assim que se distraiu, passei a cola em mim e corri, saltei no colo
dela, num grande abraço. Fomos parar juntinhos no hospital. Naquele breve
espaço de união senti o suor de madrasta e o gosto de seu corpo era amargo...
cheiro de tinta de navio, tinta anti-incrustante, veneno para um menino com
alma de mexilhão. Logo veio o médico e nos separou.

92
Na metade escura
____________________________________________________________

Onde hoje é o Brizolão Manuel Bandeira, ontem foi um campo de


futebol. As luzes da rua caminhavam até a metade do campo e cansavam. A
outra metade ficava na escuridão. Eu menino ficava sem entender e
perguntando: por que as luzes dos postes só iluminam metade desse campo
de futebol? Mas havia noites que em vez de as luzes avançarem, quem
avançava era a escuridade, passava da linha divisória do campo, chagava
até a entrada da grande área adversária, puro engodo, porque logo passava
meu primo pedalando e eu me distanciava de novo, saía correndo atrás para
empurrar... eu só servia para empurrar a bicicleta, dar mais velocidade ao
meu primo, Augusto Gordinho. Ele nunca me ensinou a andar de bicicleta.
Ia à frente e eu atrás correndo, empurrando... nem na garupa eu... acho ele
não tinha ideia, mas dia desses vi um menino passando numa bicicleta e
dizendo ao outro menino:
– Quer dar uma voltinha? Eu ensino!
E me sentei a olhar o menino sem bicicleta aprendendo a pedalar...
Mas era muito engraçado olhar o campo de futebol à noite, metade
iluminado, metade escuridade. Parecia aquele picolé minissaia, o campo
estava de minissaia e nem era carnaval.
Meu primo ficava dizendo, olha não vá para a metade escura do campo
porque lá existem caveirinhas barrigudas! Mas eu nunca tive medo de
cemitérios, sepulturas ou caveiras. Até hoje vou aos cemitérios e os acharia
simpáticos não fosse lugar de despedidas. Há pessoas que vão aos cemitérios
e voltam carregadas, pesadas, eu não, volto energizado, sorridente apesar de
tudo... talvez porque eu seja um morto-vivo e ainda não me dei conta. E
quem quer se dar conta? E eles deixam? Não, você não é um F...; você...
sabe... assim... você está incluído. Sim... incluído perversamente na luz,
murmuro. Mas um dia apertei os olhos e vi os tais caveirinhas na metade

93
escura do campo. Todos tinham bicicletas feitas de ossinhos e sussurravam:
Pequeno Ismael, Ismael Caveirinha, seu lugar é aqui!
E fiquei olhando, como pode? Bicicletas de ossinhos...
Foi diante do espelho que me toquei, digo, toquei nas minhas costelas
e me recordei das aulas de catecismo; que Deus tirou uma das costelas de
Adão e formou a mulher; que na TV apareciam pessoas que quebraram
suas costelas para ter cinturinhas! Ora, estava comigo a bicicleta. Arranquei
umas costelas, montei a minha e fui pedalar com aqueles ICARA-ís e
reparei que na metade escura do campo também há uma grande área e uma
pequena área.

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O refutador
_______________________________________________

“Deus não pode estar em toda parte, e por isso fez as mães.”.
(provérbio judeu)

Conversa fiada! Discordo desse provérbio: o diabo não sendo


onipresente foi quem criou as madrastas.
Luís da Cadeira de Rodas

95
A marmita do meu pai
_______________________________________________

Meu rosto no fundo de uma marmita inoxidável. Se existe algo que


pertence ao trivial é a marmita. A marmita do meu pai era daquela antiga,
retangular e desmontável. Chamavam-na marmita da farinha, pois, sendo
desmontável, o caldinho de feijão escapava, sujando os passageiros, dava
confusão; às vezes sujava o próprio que a transportava. Por certo foi
mente feminina que teve a ideia de cercar todos os cantos da marmita com
farinha. Funcionava. São as pequenas ciências do lar. Quem lavava a
marmita era sempre eu. A marmita está aí pra você lavar! Quem arrumava
a marmita na madrugada era eu. Fritava o ovo, gema molinha e colocava
em cima do feijão e arroz sem estourar. Gostava assim. Caprichava.
Minha missão. A marmita vinha desmontada. Desmontada ficava do
tamanho de uma agenda 17x10cm. Montada era um pequeno caixão
inoxidável espelhoso com 7 centímetros de altura.
Por falar em caixão, sem metáforas: meu pai morreu. Agora o Carlinhos
Grandalhão vai poder me bater. Não batia porque meu pai não deixava.
Aparecia feito escudo na minha frente. Mas nem tão mal assim. Lembrei nesse
instante que o Carlinhos Grandalhão já se tornou meu amigo. Ô Memória.
Naquele dia de visita nós o deixamos no hospital tão bem... Tinha
entrado mal e já estava falante, querendo saber se o Flamengo já estava no
G4... É como dizem os mais velhos: “Foi a visita da saúde!”.
Agora meu rosto no fundo da marmita que foi dele sobre a cama.
Marmita vazia e cheia. A tarde é cinza. De dentro da marmita muitas
lembranças saindo sem ordem. Boas e más...
Lembro que ele chegava todos os dias se lamentando. A polícia revirou
a minha marmita. No trabalho olhavam a comida remexida e diziam que ele
comia lavagem. É que morando no morro, a polícia revistava tudo. Até as
marmitas. Certa madrugada o servente do meu pai faltou e fui substituí-lo. O
policial tinha cara de deboche. Revirou tudo. Perguntou se não havia
maconha embaixo do alimento e foi revirando e rindo. Deixa estar. Capturei
96
o gatinho da Dona Filhinha e o acomodei na marmita do meu pai e
embrulhei. Meu pai sabendo. Gostava de aprontar também. Ao pé do morro,
na hora da revista, o policial já veio rindo. E aí? Não tem uma maconhazinha
embaixo desse rango aí, não?! Meu pai entregou a marmita e quando o
polícia abriu, o gato saltou na cara dele, saindo estrada afora e meu pai
rapidamente o imprensou: agora eu quero meu gato de volta!
Lembro da primeira palmada na bunda... Mamãe infernizou para ele
me bater mais. Ela já me havia levantado pelas orelhas nas alturas, sacudido,
mas queria mais. Agora ela como plateia. Há plateia para tudo nesse mundo.
“Volta aí pra eu ver o tiro que deram na cabeça daquela criancinha!”. E meu
pai veio violento veloz sem vírgulas e me aplicou uma palmada na bunda.
Quem disse que criança não percebe? Ali, vi que meu pai era meu amigo.
Amizade que só iria terminar mais tarde. A palmada veio, mas em forma de
concha. Doeu nadinha apesar das mãos calejadas de cabo de enxada, pá e
marreta. Na cama, chorou baixinho durante à noite e mamãe perguntando o
porquê: nunca bati no meu filho. E da sala tive vontade de gritar. Foi de
concha, pai! Nem doeu! Mas era o nosso segredo. Eu não contava sobre as
mulheres que nos paravam na rua e ele me batia de mão em concha.
E quando me perguntavam quem é teu pai! Eu dizia que era uma
frigideira, de longe se via o que estava dentro dele, mas veio a madrasta e
papai virou padrasto e quando me perguntavam quem é teu pai, eu dizia que
era uma marmita, profunda e coberta. Fundo falso. Fingia ser pai. As
palmadas em concha na bunda viraram tijoladas maciças na cabeça.
Dormia entre meu pai e minha mãe, beijava-os quando queria. Agora
viro para um lado e é marreta para beijar, viro para o outro e dou de cara com
serrotes, ponteiros, talhadeiras.... esqueci que estou dormindo no quartinho das
ferramentas. Esqueci disso. Um dia faltou luz e meu pai me colocou na bolsa,
pensando que eu era uma de suas ferramentas. No serviço meu pai me tirou da
bolsa e me ergueu como se eu fosse uma marreta, uma ”Sexta-Feira”, e iniciou
a marretar o ponteiro. Tinha que derrubar uma escada. Espirrou sangue para
todos os lados até que o dono da obra viu e disse, pára! Sobrevivi.

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Quando um pai morre se pensa na morte. O filho mais velho pensa
mais! Mas o meu encontro consciente com a morte não veio com a partida do
meu pai, veio com a chegada da madrasta.
– Desculpe, madrasta, a morte não veio com você, veio comigo, mas
você é o fio condutor dessa história e eu não podia quebrar a unidade deste
livro. Peço que aguente este libelo porque a gema estourou, meu pai morreu e
de herança só me deixou esta marmita vazia.
Entendi, pai! Agora é a minha vez, com o meu trabalho, de colocar
alimento dentro dela.
Já é noite e hoje estou tão encolhido sob o lençol que poderia dormir
nesta marmita.

98
O Farol
_______________________________________________

Pequeno Ismael estava para servir. Tinha passado nas provas e exames.
Recebeu passagem para ir embora servir à Marinha. Cansou de ouvir
marinheiros dizendo: “A Marinha é uma mãe!”. Era praticamente um ditado
na Marinha. E foi isso que o atraiu para essa farda: A Marinha é uma mãe.
Antes de embarcar teve a sensação de estar em vantagens sobre os
outros que choravam, abraçados às mães, vós e tias, pais, irmãos... Pequeno
Ismael foi o primeiro a embarcar. Estava contente porque agora tinha uma
mãe e poderosa, ao menos no Brasil. Logo de cara Pequeno Ismael
observou que sua nova mãe era uma mãe colorida que ora era cinza de
fragatas e corvetas, ora preta de submarino, ora branca hidrografia, ora
vermelha Barão de Tefé.
Naquela turma de Aprendizes-Marinheiros do Espírito Santo só
Pequeno Ismael tinha madrasta, agora as próximas turmas terão bem mais
com tantos divórcios no país.
Pequeno Ismael não tinha para quem dar adeus. Do lado de fora do
ônibus mãos de parentes, principalmente de mães como que algemando as
mãos dos filhos. A janela de Pequeno Ismael era a única que permaneceu
fechada, mas o choro do ICARA-í alcançava o último banco, onde ele
estava. Sem aviso o motorista ligou o motor e o ônibus foi escorregando e
as mãos foram se separando... Quantos ICARA-ís, mas só no de Pequeno
Ismael não haveria saudades...
Ainda na Escola de Aprendizes a Marinha chamou voluntários para o
curso de faroleiro militar. Era tudo o que sua madrasta desejaria saber: que
o enteado estava distante, num farol, ilha inóspita, dentro do mar, ICARA-í.
Não. Não. Vou cursar aviação, voar, macacão cheio de brevês,
motocicleta, óculos escuros, mulheres bonitas. Farol, não... Tem muitas
assombrações. E de Assombração basta a de dona Yolanda com o seu menino
da cabeça de repolho. Farol, não... Ter que ver todos os dias aquela torre feito

99
“i”, longe das vogais, das consoantes... Ver o foco luminoso iluminar as
moreias à noite. Isso, não. Todo o romantismo do farol vai ser mastigado pelos
dentes de madrasta. As moreias pareciam ter roubado os dentes de minha
madrasta. A assombração chefe do meu farol vai ser madrasta. Mastigando a
noite, nhac, nhac, nhac, as estrelas, nhac, nhac, nhac, a natureza, nhac, nhac,
nhac... Madrasta não dorme. Parece menina cheia de energia. Vai acabar com
os peixes do mar, nhacnhacnhac, à noite dá para ouvir seus pesados passos na
casa. Mas é a boca que faz nhacnhac, que sopra pó cinza, que profere
maldições pelas costas. Farol, não.
Passaram-se dois anos e Pequeno Ismael foi chamado para o curso de
especialização em aviação, mas o psicotécnico o contraindicou, selecionando-o
para um novo curso, o curso de faroleiro. E ficou feito um “i” em ICARA-í, o
“i”, farol distante da sociedade, Farol de Tebaida... a Marinha não é uma mãe:
para mim me foi madrasta. E Pequeno Ismael tornou-se rebarbado, bola 7,
indisciplinado, deixando a barba crescer, crescer, cresceu tanto que dizia o
piloto do helicóptero que lhe levava mantimentos: Este é filho de Netuno. Só
não sei se é profeta ou esquizofrênico, comandante, mas o livro é meio
esquizo, não? Um livro de separação numa hora dessas de solidariedade,
inclusão, globalização!
– Não, piloto. Não se mata um apartheid a pedradas. E não é inclusão
o ficar pelas beiradas, ser incluído perversamente na luz... a única cauda
que já vi brilhar neste planeta foi a de um cometa. Que rima triste. No mais,
são caudas de lagartixas servindo de alimento aos ratos.
– É verdade... E essa pergunta feito goteira que fica sem resposta,
comandante: por que ICARA-í?
Cabrunnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn!
Pequeno Ismael, há muito tempo você me faz uma pergunta. E hoje
Pai Abraão vai dar a sua resposta. A sua resposta está no Salmo 123.
Quando chegar em casa, abra a minha palavra e verá: Por que ICARA-í...

100
Salmo 123
_______________________________________________

A oração dos desprezados

A ti levanto os meus olhos, ó tu que habitas nos céus.


Assim como os olhos dos servos atentam para as mãos dos seus senhores, e
os olhos da serva para as mãos de sua senhora, assim os nossos olhos
atentam para o SENHOR nosso Deus, até que tenha piedade de nós.
Tem piedade de nós, ó SENHOR, tem piedade de nós, pois estamos assaz
fartos de desprezo.
A nossa alma está extremamente farta da zombaria daqueles que estão à sua
vontade e do desprezo dos soberbos.

101
Farol de Tebaida
_______________________________________________

No Farol de Tebaida é um subir e descer... A torre tem 171 degraus... pelo


número já se deduz que este farol não está incluso na relação oficial de faróis da
Marinha. Não adianta procurar... é farol da literatura. Farol onde a luz nunca se
apaga, a tinta resiste à maresia e a internet não tem força para empurrar os livros
para as prateleiras. No Farol de Tebaida não há retoques de pintura, nem precisa
dar brilho nos cristais e o capim não cresce... Todo o tempo é para a literatura.
Farol onde é mais profunda a solidão e o helicóptero o abastece de mantimentos
e os mantimentos de Tebaida são Livros. Aqui nesse farol se come livros. Júpiter
precisa engolir Métis para Minerva nascer... detesto ficar nas prateleiras. Gosto é
do vento despenteando folhas; de ficar lá em cima no farol, ver que perceberam
o oculto e o profundo... Se eu morrer, que seja ouvindo o mar, lá na torre...
agora estão ouvindo bater à porta?
De um golpe bateram à porta. Sargento Ismael levantou. Os olhos
esgazeados. Era o piloto que chegou ao farol, trazendo mantimentos. Ismael lia
o livro “Ao Redor De Machado de Assis”, em que o professor Hemetério José
dos Santos (Esse professor Hemetério não parece o Diabo?) acusava
Machado de ter abandonado a madrasta, Maria Inês, que era boa. E lendo,
Ismael dormiu e dormindo sonhou muitos sonhos; sonhou que estava
sonhando... muitas crônicas... que tinha madrasta.... Dormiu exatamente
sobre a acusação e acordou sobre ela. Recebeu os mantimentos e o
helicóptero foi embora. Sargento Ismael foi voluntário para a primeira turma
de faroleiro militar. Seu farol era dentro do mar. A sós com a Natureza.
Vindo do heliporto ficou se perguntando: Se a madrasta era tão boa, por que
Machado a abandonou? E do alto do farol, sob uma brisa mansa, releu a
acusação do difamador Hemetério: “Eu conheci essa boa mulata velha
comendo de estranhos, com amor, e conforto máximo, chorando, porém, pelo
abandono nojoso em que a lançara o enteado de outrora, nunca mais a
procurando desde a sua mudança de São Cristovão, lugarejo de operários,
para o opulento nicho de glórias, nas Laranjeiras”. Ismael virou a página.
Depois da acusação veio a defesa. Por Coelho Neto: ambos foram a um

102
enterro a convite de Machado em São Cristovão. E Coelho Neto: “No caixão,
o cadáver de uma senhora idosa. Machado teria deixado escapar estas
palavras: É minha mãe!” Na verdade era a sua madrasta, entanto, Machado
dizia: minha mãe.

Afora os cálculos, quem dera Aquiles encontrasse a tartaruga...

103
Este livro foi composto nas tipologias
Times New Roman / ITC Officina Sans Book, impresso
em papel Alta Alvura 75 g/m2 (miolo) e Cartão Supremo 250 g/ (capa),
pela Fábrica do Livro, em abril de 2010.

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