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MICHEL VILLEY

Direito

Prefácio e Notas de
Paulo Ferreira da Cunha

Tradução de

Fernando Couto
Antigo Dircctor do Colégio João de Barros

Colecção RESJURIDICA dirigida por


Paulo Ferreira da Cunha
I9{'DIC'E

Prefácio currente calamo à edição em língua portuguesa do


Direito Romano de Villey, ..................................................................... 5

Pontown
Em que o prefaciador se explica, ................................................ 6

Ponto dois
Em que a introdução se exculpa, e logo se defende ................ 7

Ponto três
Em que sumarissimamente se justifica a, presente edição,
e se apresenta Villey a um hipotético arqueólogo-jurista
do futuro ........................................................................................... 12

Ponto quatro
Em que se alude aos Romanismos, ........................................... 23

187
Direito Romano

Introdução ...................................................................... 29

Primeira Parte,
COMO SE CONSTITUIU O DIREITO ROMANO

Capítulo I,
O processo das acções da lei e a primeira prática judiciária.37
Organização judiciária, ............................................................... 39
O formalismo, ................................................................................. 41
As fórmulas mais antigas, ............................................................42
A lei das XII Tábuas e as novas fórmulas, ................................43
As recolhas de fórmula, ................................................................ 45
O conteúdo do antigo direito, ...................................................... 45
As qualidades do antigo direito romano, .................................. 49

Capítulo II
O processo formulário e os progressos da prática judiciária,
........................................................................................................... 53
As circunstâncias morais e intelectuais,. .................................... 54
A organização judiciária, ............................................................... 56
Um novo processo, ....................................................................... 58
A criação de novas fórmulas, ...................................................... 60
A "condemnatio", ........................................................................... 62
Outras criaçãE~s pretorianas, ....................................................... 64
Valor da justiça da Roma Clássica, ........................................... 66

Capítulo m
Nascimento da teoria do direito, ................................................. 71
A jurisprudência, ............................................................................ 72
O ensino do direito, ....................................................................... 75
Os princípios do direito romano, ................................................. 78

188
Índice

O plano das "lnstitutas", ............................................................ 82


A obra dos romanistas, .................................... .......................... 84
Valor da teoria jurídica romana, .......... ...................... ............ ... 86

Segunda Parte
ALGUMAS CRIAÇOES DO DIREITO ROMANO

Capítulo I
Classificações das pessoas, .................................................... 91
As soluções do antigo direito romano, ................................... 92
As transformações do direito de família, ................................ 94
A condição dos estrangeiros,.................................................... 96
A condição dos escravos, ......................................................... 98
As pessoas morais, .................................................................... 99
Os. incapazes, .............................................................................. 102

Capítulo II
Descrição das coisas, ................................................................ 113
Primeiras divisões, ..................................................................... 114
Sobre a influência da filosofia grega, ..................................... 115
As coisas corpóreas e incorpóreas, ........................................ 116

Capítulo m
Os direitos sobre as coisas, ..... ......... ..... .... .... ....... .... .......... .. .... 125
O dominium ex jure quiritium, ................................................... 126
Extensão, ..................................................................................... 128
Da apropriação das coisas incorpóreas, ............................... 132
A posse, ........................................................................................ 134

capítulo IV
As Obrigações, ............................................................................ 145

189
Direito Romano

Os delitos, .................................................................................... 146


Os contratos, ................................................................................ 151
A teorias do consentimento, ..................................................... 159

Conclusão, ................................................................................. 167

ANEXOS, .................................................................................... 177

BIBLIOGRAFIA, .. ..... ........................ ....................... ..... .. ............ 1 85

190
INTRODUÇÃO

Um homem medianamente culto (é a este género


de leitores que esta colecção se dirige) abre sem
entusiasmo uma obra sobre o direito romano. Aceitaria
sem grande repugnância que se lhe falasse do direito
moderno; que se lhe mostrasse como as nossas leis se
esforçam por organizar em sua técnica douta as nossas
sociedades modernas; mas recua perante o direito
romano. As controvérsias dos romanistas passam por
desprovidas de agrado: só deveriam dar-se ao trabalho
de as afrontar alguns especialistas, eruditos curiosos da
história das sociedades mortas.
Pelo contrário, nós mostraremos ao nosso leitor
q~~~ velhas leis romanas não são estranhas aos nos-

29
Direito Romano

sos horizontes habituais; que permaneceram em grande


pa_rte sempre actuais na Europa .

*
* *

É uma verdade hist_órica, que me não compete


aprofundar, a nossa dependência relativamente à anti-
guidade. Durante sécuios, as inteiigências do Ocidente
beberam a-siiá filosofia, a -sua poetica e mesmo a sua
~~i:icla-na culturag.reco-roíTI~cia. Óra, esta não produziu
somente um corpo de pensamento sobre o mundo, que
nós ·v-amo_s___prac·u-râr.na-suàTHeraturà;. m~~ úrji_ Çireito,
quer dizer uma ~rt~Q~_grgariiz_ar a sociedade, os direitos
de cada um dos seus membros e as suas obrigações. O
direito romano, mais servilmente ainda que a filosofia
grega, foi por nós adaptado. O mundo moderno alimen-
tou-se dele; a sociedade moderna, o direito moderno,
são c-O"nstffu-ícfõS-sObre-·as ·süasbáses. -

*
* *

Através do período bárbaro, a Igreja cristã esfor-


çou-se por conservar o direito rom-ano. Em seguida, a
lenda quer que nó dealbar do _século XIL __ Q_t,J_rnnt~ o in-
cêndio da cidade de Amalfi, um manuscrito da mais im-
portante compilaçao-·de leis romanas.o Digesto, tenha
sido reencontrado. As Universidades-apoderaram-se

30
Introdução

dele. ~_§_J.§!Ls._ro maf_l_§_!?_ fo r?:fl:l__éls_ {J nic9~._ ç:_q_!!!__Q___gi_r~!to ca:::_


nónico, consideradas dignas de serem ensinadas. De
modo n-énhum apenas porque os homens da idade mé-
dia acreditavam no Império romano sempre vivo, e as
suas leis sempre em vigor: isto vale para a Alemanha e a
Itália, mas funcionou antes em sentido contrário no que
diz respeito à França e à Inglaterra. Mas então, os juízes
não tinham o hábito de obedecer aos códigos.Por falta
dum suficiente conjunto de leis obrigatórias, eles julga-
vam bastante livremente e segundo a justiça. Ora.aos
seus olhos, assim como os segredos da filosofia e da
ciência estavam dissimulados no tesouro da literatura
antiga, a justiça não residia senão no direito romano.
Nele vieram encontrar modelos de sentenças; os advo-
e
gados~argumentos os nofarfos~-fo-rmulãs de-confràtos.
Ne~ _~~~Jc?rafiiJrS~Qírar-6~_- r~ª~~fêfr_~s-~~s ºrª~º~ç9~-s.
mais tarde códigos ou leis. Não existem mesmo, inclusi-
vame-nf9, redactõr_e_s-dos cÕstÚ-mes medievais.que não
tenham no direito _cçimaQC?,~peTo-menóS,~º-s_§_~=p[ano~e-?
sua lin_g_L!ª_Q(3f!l.
A -~l:!rc:>pª--ª1Iª\Jf3S?OU _g_itg _§_é_c;ulos ini_riterruptos de
cultura romana. Em todas as Universidades do Antigo
Regime, em-França, o direito romano conserva o seu
~_9_!_l()pQ_l!9 ~ ;Jinha ainda um lugar destacado nas nossas
faculdades .no transcurso do século XIX; a doutrina
inspirava-se nele e mesmo após a redacção do Código
ch/il~ - nao-se-desdenha trazer aos
fri6Unais trance ses ci-
1
l·-'

lÉ preciso esperar por 1679 para ver criada uma cátedra, aliás única, de
direito francês na Universidade de Paris.

31
Direito Romano

tações de textos romanos; os nossos avós ainda apren-


diam a mesma arte jurídica, extraída das mesmas fontes,
que os juristas da Idade Média e do Antigo Regime.

*
* *

Esse tempo acabou. Os programas mais recentes


das faculdades de direito franceses dispensaram a
maior parte dos nossos estudantes do estudo do direito
romano.
Pode-se adivinhar porque causas: o _r~cuo do la-
tim( e o direito romano não pode seriamente estudar-se
-senão na sua língua original) - q materialismo histórico
do qual a opinião contemporânea se encontra invadida
(está-se persuadido de que uma nova intra-estrutura
económica deve segregar uma arte do direito integral-
mente nova) - o progressismo (porque o impulso das
ciências físicas-desde -há- três séculos é formidável e
porque sabemos hoje construir foguetões, não teríamos
mais nada a aprender de Gaius ou de Ulpiano ... ).
Pela nossa parte, não estamos seguros da opor-
tunidade desta reforma. Não somente priva os franceses
duma linguagem comum a todos os juristas da Europa,
mas também duma técnica indispensável à formação
dos juristas.
Se s~__gJhar apenas às soluções, certamente que
uma boa parte-das do direito- romano estão . caducas.
Mas-nao-focias-, verificar-se~á. Sobretuao; Os Juristas ro-
m?nos-ilnham distínQ~id_t:> __ ós~_i:>!!~_c::íe_~~~-9-~~ª-- arte do

32
Introdução

justo, definido as suas finalidades, o seu domínio pre-


~j~p_,__o seu métod(); criado a sua linguaf;em-Os fe-rmos-
fundamentais do direito de que a ciência do direito ainda
usa ·=-pro-prledade, sucessões, testamento, ou obriga-~
ÇOes, contrato, mandato, sociedade - são sua invenção.
Nada diz que este método e esta linguagem estejam ca-
ducos. E nós teremos que nos perguntar se a melhor
maneira de ainda aprender hoje a julgar não é voltar à
fonte da arte juíis~frucien-da.fTõmana. --
---Nesfa-pontO~-deve-mOs prevenir o leitor que o ca-
minho corre o risco de ser árido: porque se trata de his-
tória antiga, e o direito é uma técnica muito especiali-
zada.

33
Primeira Parte

COMO SE CONSTITUW
O DIREITO ROMANO
Capítulo 1

O processo das acções da lei


e a primei:ra prática judiciária

Transportemo-nos para começar à alvorada da


história romana - nesta pequena cidade cujas narrati-
vas semi-lendárias de Tito Lívio tornaram ilustre a histó-
ria - à Roma de Rómulo, dos Horácios e dos Curiácios,
dos Tarquínios, de Bruto e dos primeiros cônsules e di-
tadores romanos.

37
Direito Romano

Os romanos estavam persuadidos, e com bastante


razão, que os !!Jn_~amentos do seu direito estavam já
postos ~~st_ª Ror:na primith,_ia. Assim como os embriões
da futura grandeza militar romana, que eles procuravam
nas virtudes guerreiras e patriotismo desses tempos an-
tigos, também o seu direito, tão maravilhosamente rico e
sábio, devia ter nascido com Roma.
E, todavia, um simples olhar lançado sobre as
fontes jurídicas do antigo direito é suficiente para nos
desconcertar; poucas leis - a lei das XII Tábuas, a mais
célebre desse tempo, não devia c-ompreerider mais de
uma centena de muito breves trechos, é assunto muito
especCãT(''se-aiguem-pàrffl.J um osso a _um cidadão livre,
pagar-lhe-á 300 asses" "Se é culpado de violências li-
geiras, pagará 25 asses"); não encontraremos ali os
grandes princípios do antigo direito. Não há nada de
c(J"mparável, por exemplo, entre-a lei das XII Tábuas e o
nosso Código Civil que, nos seus dois mil duzentos e
oitenta e um artigos, pretende dar uma exposição em
conjunto do direito privadol.
Este frágil desenvolvimento da teoria jurídica ex-
plica-se muito bem, numa época de incultura. Homens
ªintj_?__(:)_o~g() __ !_~_t!ados, como eram os antigos Romanos,
seriam bem- incapázes de tornar nítida consciência dos
princípios dlrectores ªªsua ordem soCial; por maíorla de
ra3á{j~--de-fa.z-ererli-umª expos-iÇao- sistemaITcá.---s-8 já eles
formam um povo h_ábil na arte jurídica, se as bases do di-

lAinda seria preciso acrescentar a estes mil artigos, os do Código comercial,


do Código do Processo Civil, do Código do Trabalho, etc.

38
O processo das acções da lei

reito moderno existem já entre eles, é unicall"!E!llt_§!_ n~


prátic_~. Sempre, a prática do direit_g_ prec_~q_~_ªJei_orL~.
Ã. jÚstiça romana funciona, o que nos pode parecer
esfranii6-,--§_-~~-=_p-()s_s_ülr-~2_g_r_~iª __()g_!"_ª_t§!_g.!_~_l_ativa bem
desenvolvida; e, no entanto, duma maneira segura.

O:rganização judiciária:

[1.lgumas _indicaç_ões - aliás muito incompletas e


fragmentárias - do jurisconsulto Gaius [>ermitem-nos - - - - - - - ----
fazer algurna ideia do muito antigo processo romano.
------
um·sinal nos impressiona neste processo: o seu
_ç9_r_á_ç_!~r largan:iE!~~~_JJJjy~-ºº· Hoje os poderes públicos,
por in!_~!._ll]_~_~_i() do? juí~es, __ ~~sLJ_rl1_~-fu~º~-_§~Çarg6 de--fazer
reinar a------·
ordem; citam os litigantes, examinam o caso, vi-
giam a execução da sentença. Na Roma primit_!_va não
era assim. O litigant_~_!eis~do ___~__ 9LJ~· perseguindo a resti-
tuição do seu direito,_ di_r~gia ~processo. Alguns vêem

~Nós limitamo-nos aqui a estudar a prática judiciária: como os cidadãos da


Antiga Roma asseguram, de facto, a justiça. Se se desejasse ser completo,
conviria examinar ainda como vendem, transmitem propriedade, contratam
uma obrigação: a mancipatio, a sponsio, o in jure cessio, etc. Esta prática
marcou também as vias à futura teoria do direito. É mesmo um pouco artificial
separar, para o período das origens, o processo destes actos extra-judi-
ciários.

39
Direito Romano

aqui o vestígio dum processo inteiramente "privado" ,


onde a pessoa que se sente ofendida faria justiça a si
própria, ajudada sem dúvida por parentes e vizinhos,
pela violência e pelas armas; tal terá sido a forma pri-
meira da justiça.
Para falar verdade, na Roma dos primeiros reis e
dos primeiros tempos da república, não se vive o regime
da vingança privada. O litigante, se persegue ele próprio
e pela sua força pessoal o objecto da sua reclamação,
se age pessoalmente, deve pelo menos ~-L:Jbmeter-se a_
certas r~Q!_?S:_ O~~!a9q_o~riga-o a f(l~E3.r_ ~_c:l!1!r.c:>_!~~-? regu-
laridade da sua acção; são estabelecidos magistrados, a
fim q_e-~p:fesidfrem- á boª ordem--dà-JustJ.Ça;---sa·a~ no pe-
_r:í_o~o real, o rei, que secunda, duma maneira difícil de
precisar, o colégio dos altos dignitários; depois os
g_Ç>n_sulf3?~~-r:!fií!J,_a partir do ano 367 antes da-nossa eréf~·
o pretor. O pretor, doravante, recebe no tribunal os cida-
ciãõ-sproíltos a-fazer-se-lhes justiça; escuta as Suas
R~etensõe§i_?_L!~9Ii:z:ª~º?~- ou n~o. a pross-eg~r~~'!l. a ac-
Ǫ9~. impõe-lhes ordinariamente cessar com toda a vio-
lência antes de ter feito verificar a exactidão das suas
afirmações por um _§rbitro, qu~ E3!11__f=t9_rT1ª usa o nome
j'!J~.

40
O processo das acções da lei

O formalismo

Ora eis o ponto notável deste processo, por onde


de resto ele se assemelha a todos os processos arcai-
cos, por exemplo, ao dos Francos. O pretor não dá o seu
CO_n_Q~!-~Q_a todos OS pedidos, mas SÓ àqueles que po-
de_rn exprimir-se -~-~-r:-!lA_~-ª~ f~rm_L11~-?_ §.9mitidas. O cida-
dão romano que intenta uma acção, deve necessaria-
mente §LJbíl!_E)_t~_é-~_~_rj_tos; utilizar um dos rituais forma-
listas, que o uso reconhece e de que o jurisconsulto
Gaius, na passagem acima citada, nos dá uma descrição
aliás muito incompleta. Se se trata, por exemplo, dum
proprietário, que quer reaver o seu escravo dum ladrão,
é preciso que conduza o escravo ao tribunal e, colo-
cando sobre a sua cabeça uma vara, em sinal de pro-
priedade, pronuncie uma longa fórmula de que eis o
essencial: "Eu digo que este escravo é meu, em virtude
do direito quiritário": AIO HUNC HOMINEM MEUM ESSE
EX JURE QU/RITIUM (Gaius, IV, 16).
Para intentar um processo qualquer, é preciso po-
der introduzir a- su_a_p_r-efé_n_sao--n.uma _ _a_ésfaS"-'fórmulas
admitldas--peló costLime -ac-iúfes_
e p_efo-préfor: -Este não
âceita seiíaà um certo número de fórmulas; isfo significa
em linguagem moderna, que o antigo processo não I._8._-
conhecia s~_rJãg__l:!m__!l_~_íTl~!º-~-itado d~ __glr~_it<?~· Porque,
por exemplo, à propriedade adapta-se a fórmula "MEUM
ESSE EX JURE QUIRITIUM"; a outras pretensões, por
exemplo,a um credor apoiando-se sobre um sponsio, ou
promessa solene do devedor, conviria esta: Eu digo,que

41
Direito Romano

tu deves tal soma em virtude da sponsio-AIO TE MIHI


DARE OPORTERE EX SPONSIONE. Tantas fórmulas
tipo admitidas pelo uso judiciário, quantos os direitos
sancionados em justiça. A lista das fórmulas contém a
das pretensões reconhecidas pelo direito. À falta d_uf!la
legislação viva, todo um regime jurídico reside nas fór-
m-Ülas. ---- ------------------ ··--· - --- - - .

As fórmulas mais antigas

Concebe-se a importância atribuída, para os estu-


dos destes humildes princípios do direito romano, à his-
tória das fórmulas. A nossa ciência, nesta matéria, per-
manece muito imperfeita.
É de acreditar que certas fórmulas devem recuar a
uma muito alta antiguidade (a justiça da cidade é,
certamente, em Roma, anterior às XII Tábuas; anterior a
toda a lei). A sua criação perde-se na noite dos costu-
mes ancestrais; pode-se apenas supor que os sacerdo-
tes intervieram nela; alguns autores atribuem às fórmu-
las um carácter mágico ou religioso, que explicaria o ri-
gor com que o seu texto é respeitado. Em todo o cas0,_9?_
P~!l_tíf!ce_?• q~E)_19rmª!1:1 ~í!l R9de_roso colégio cje sacerdo-
tes na Roma primitiva, e que são os guardiães das anti-
!l_é!_s__tradições e dos ritos do povo romano, são especial-
~_§!nte encarregaqos _desta conservação; antes de agir
contra o seu sacerdócio, ~Jitigante consulta-os e pede-

42
O processo das acções da lei

-lhes uma fórmula; os pontífices, dizem os textos, foram


os primeiros fLú~isconsliifo-s~----------- - - -
--- -- -Mas o-s Pontífices não estão limitados a velar a
estrita observação das antigas fórmulas; também criaram
n_ovas. No início da república verifica-seque -os--p-oniíff-
ces se dedicav·a:m--airldà-ã esse trabalho. Eles fizeram,
como nõsdizem, modeioà-de leis; ,;acomodaram" às leis
os textos das fórmulas~ É aqui que a lei das XII Tábuas
apresenta para nós uma grande importância.

A lei das XII Tábuas e as novas fórmulas

Os historiadores romanos contam que, p_oucq _tempo depois


9a república, próximo do ano 450 antes da nossa era, q?__ rQ!lJ~nos _te-
r@.m decididg c::;qm;_t]1ui!_'::lrn co~p_o_de leis_ escritas. Seriam os plebe~~·
segundo Tito Lívio, é!P_e9Jr_~~!Cl_r~~agç~Q. é:l fim de se ass~gurarem de
que uma j~~!!ça igual se aplicaria é:l todos. Roma teria querido seguir o
exemplo das cidades gregas, que possuíam as suas leis escritas,
Atenas as de Solon, Esparta as de Licurgo; também sucedia o mesmo
às cidades da grande Grécia, da Sicília, colonizada pelos Helenos, e
tão próxima de Roma. Embora ela tenha sido contestada, nós
acreditaríamos de boa vontade numa primeira influênc!-ª_9T_efl_é3._ na
origem desta primeira criação teórica, por modesta que seja, do direito
--------- -··--··· -- --···-- . . ------·----·--··-·-······-···
romano.

Portanto, ter-se-iam, de harmonia com a vontade do povo,


nomeado decênviros "decem viras" para irem investigar as leis às

43
Direito Romano

cidades gregas, a fim de que a cidade pudesse estabelecer as suas


próprias leis. ~~9~il!los a narrativa do jurisconsulto Po_'!IP~_lllu~. que
vivia no ~écu_is>__!!_9? ~OSS§I ~ra, e deixou um pequeno tratado das
origens do direito romano. "Qs decên~ir()~ cr_iaram cje_~_!ei§__~ fize_!:_~1TI­
-nas_ç1rél~élr ~m_!ábuas de mari!f!l· disp?stas perto das tribunas em
pleno Forum, a fim de que cada um pudesse ter conhecimento delas.
No ano seguinte, acrescentaram-lhe duas". Assim teriam nascido as
XII Tábuas.
Não temos o texto desta antiga lei. Os arqueólogos não a en-
contraram nas suas buscas do Forum, e não as conseguiram: Tito Lí-
vio diz que as ?<!I Tªb!:'_'!~ cj_e~él.P_?recera~ em 3~0 antes da nossa era,
quandQ_ R~rf!él_!oi_l~~~-~~i_?~él_p_e~~-ºél~l~_s~~· Mas os antigos autores
fazem dela muito numerosas citações, numa linguagem mais ou me-
nos rejuvenescida, e repondo ponta com ponta estas citações, pelo
preço dum imenso labor, reconstituindo-se em grande partel a lei
que os romanos veneravam acima de tudo; que aprendiam ainda de
cor nas suas escolas, na época de Cícero; que nunca deixaram, até ao
fim da história de Roma, de considerar como a base do seu direito.
Ora as XII Tábuas, sem apresentar a exposição teórica do di-
reito, que se não deve esperar duma época primitiva, têm exercido
efectivamente uma grande influência sobre a prática judiciária. Sem
dúvida pouco podemos apreciar, por desconhecermos com um mí-
nimo de garantia as instituições anteriores, as transformações que
provocaram no direito romano. Mas elas_!_~_?_'!l__!lél_maioria das _!:llél~~r~él.S
~cji!:__ei~()_ privado: E sabemos que serviran:i_S!~ mod~lo aos pontífices
P_é!_íél _Cl_~~i_é!ç?o ~ul!la série de novéls fórmulas. O aparelho do processo

lGirard, Textes de droit romain, pág. 9 a 23.

44
O processo das acções da lei

parece ser sobre esta base fortemente enriquecido, talvez mesmo to-
talmente e definitivamente reconstituído.

As recolhas de fórmula

Restava uma tarefa a cumprir, já de ordem semi-


jurídica. Compilações de fórmulas são constituídas. Um
secretário de Apius Claudius, um certo Cn. Flavius,_Q!-
vulga uma de entre elas em 304 antes da nossa era; até
e-ntão--âs.1orrrü:ifas-tínfíam-sTêf6
· - · ----- . -·----·---·- -.
.. -----···-··
... ·-----. --
rrlarifidas-sec.retas
--···"" ·-·-- -· - ·- -·-· --·· --
.
nos âr~
g_yivQ_~_çj_Q_!?__ RO~!I~~~-s. Poucas de entre elas nos chega-
ram - o jurisconsulto Gaius no seu pequeno tratado
histórico do processo, dá-nos, mais ou menos comple-
tamente, mais ou menos fielmente, alguns exemplos; o
autor dum dicionário de abreviaturas usadas nas escritu-
ras jurídicas, Valerius Probus, cita algumas outras. Os
mais antigos jurisconsultos têm comentado e interpre-
tado as fórmulas. Elas são___ ~~-- bases pesse primeiro
direito dos j~_r:~§.Ç_Qn~l:Jl!Q~J__ g_~_e_§~_ C::~?.!:D_?_Q_p'ir~ito _Çjl(il.

O conteúdo do antigo direito

Tentemos, pois, apreciar este antigo direito civil


fundado sobre a prática das fórmulas, e que os juristas

45
Direito Romano

latinos se esforçaram já por expor dogmaticamente.


Trata-se dum direito arcaico, mas onde se revelam já os
g_e~m-~~::cI_o -aF~~õ-mqéfe.{n9-=--e müitas das suas quali-
dades.
No arsenal das fórmulas orais, cada chefe de fa-
mília romano encontra uma protecção eficaz para os
seus principais interesses. Nós dizemos cada chefe de
família, pois esta categoria de pessoas foi a única pri-
meiramente protegida. foso-nao- nos_s_urp"reenderá, se
consTCfêfrarmo-s ó-carácter
- oligárguico da - antiga
-·---- ---·-· ---·-------
....
constitui-
----··--..-·----··
..

ç_?_o rom<=!_Q_a. B2ma fp_i_ f~ri_d_a_d~ grj_g[_l)almente pela reu-


nião de tribos, é um agregado de diferentes famílias, que
se-submetem- à disciplina comum, mas não abdicarão
por isso de todas as suas liberdades no altar do Estado,
e em primeiro lugar não renunciaram aos seus bens.
Sobre o seu pequeno domínio agrícola, sobre todas as
coisas de que é proprietário, º----P_at?_rL~!!!í{i§_~ R()S~~i uma
autoridade co~p~!§__~--~-~cll:JSi~a. que o comparava por
vezes à--------·-··--·--------·----·
soberania dum Estado --- sobre o seu--··território-. e do
qual se tem procurado a origem na soberania das anti-
gas tribos sobre as suas terras. Isso não quer dizer que a
moral, o interesse geral da cidade, não obrigam o pai de
família a usar os seus bens duma maneira útil e racional;
S~QJ!Ç>__9 __ f_aziél~- a __ opinião_pú~licél, _os sacer~qte_s, o cen-
sor, poderiam lançar sobre ele a desonra. Mas do ponto
de vfota-do diÍeito civil, perante o pretor, e em justiça, ele
é o senhor - senhor para usar mal da sua coisa, porque
é o único responsável, senhor para a alienar como quer,
de a transmitir e partilhar entre os herdeiros e legatários
da sua escolha. Q_pJggrig _~StB:dO_ não poderia violar, por

46
O processo das acções da lei

exemplo aplicar um imposto, a propriedade exclusiva do


~aj-_~e-1anj_í!~ª· se a1!iuen1--afentá
ccfr1fra-6 seü-dOiriínio,
basta ao proprietário elevar nas fórmulas rituais esta
pretensão muito simples e sem variações; rem meam
esse ex jure quiritium-- que a coisa é sua em virtude do
direito quiritário.
Q---2--ªi_ º_(3 __tª~l!lª_gº?'.ªV? ?i_r:!d? çlu m poder quase
tª-9-~Q_n:iple1º_§9bt~ 9§ !TI~!'llt>rQ§ tja §Ua _fam_ília; escravos
-
.i.:11.-.--
11111u;:, UU
-·· _... .. lt....- .... - -
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::>Ud

idade - filhos de outras famílias que lhe tivessem sido


vendidos como trabalhadores - filhos submetidos à sua
tutela. Nesta rigorosa força paternal, reconheciam-se
ainda vestígios da antiga soberania do chefe da tribo;
nota-se sobretudo que as necessidades práticas duma
economia quase exclusivamente agrícola exigem esta
forte coesão, esta disciplina no interior de cada casa, de
cada domínio. Aqui ainda os costumes completam as in-
suficiências do direito. É-se levado a distinguir o poder
do dominus, que se exerce sobre os escravos, sem
restrição alguma - do poder do pater em sentido estrito
sobre os filhos, da autoridade marital, chamada manus,
sobre a mulher casada. O uso admite cada vez menos
que o pai castigue cruelmente, ou mate, ou mesmo
venda os seus filhos, por maioria de razão sua mulher. A
lei das XII Tábuas proíbe vender seus filhos mais de três
vezes; isto escaparia à autoridade paternal. A lei traz
ainda alguma protecção aos pupilos, permitindo-lhes
pedir contas à sorte da tutela. Portanto, duma maneira
geral, sobre o plano jurídico, sobre o plano do processo,
o poder paternal sobre os membros da família

47
Direito Romano

permanece absoluto; ele exprime-se nesta fórmula sim-


ples e rude que é a mesma pela qual se reivindicam as
coisas: "meum esse aio".
O pai de família pode ter uma terceira espécie de
poderessobre- outros homens esfra-nhos -á-súa-faríiíifa,
outros chefes de família, que são seus devedores em
consequência dum contrato ou ainda por--terem-cO-metido
qualquer delito. Ainda aqui o direito romano antigo or-
ganiza com uma dureza rígida a perseguição das dívi-
das; com a condição de respeitar as formas do processo,
o credor não satisfeito pode chegar a mandar matar o
seu devedor; se há vários credores, o cadáver seria di-
vidido em pedaÇos.- Partes Secanfo;-ciii uma lei das XII
Tábuas. Coübe--aos costumes a função de temperar o
rigor próprio do direito. As X_!_! __T?~uas esforçam-se por
humanizar o processo concedendo ao devedor algumas
moratórias~-e-faCITffando-lhe o recurso à ajuda de amigos
ou de parentes. -A--preie_íl_s_ão--aõ_c_r:e-aor--deve- finalmente
--·--·- ·-----
estar assegurada com pleno sucesso. Mas não incumbe
menos ao direito da cidade proteger a liberdade do ar-
guido; porque não conviria que se possa perturbar um
cidadão romano na sua independência, atacando-o sem
uma razão certamente legítima. Os __ Qí]i_q9s __c.téditq_s
contrªtldªJ§JE)g~_n_h~_çLsi9_!:)_~Q:I justiça são_ os que foram
~~ta~_§L§_s:l_g9_§_dUíl)_a_ rnªnE)ira solene, seguindo certas
formas bem precisas (por exemplo, as da sponsio)
frequentemente perante testemunhas; as que são indis-
cutíveis na sua existência como no seu montante. Os
únicos delitos abrindo uma acção em justiça são os ex-
pressamente descritos nas XII Tábuas: as diversas va-

48
O processo das acções da lei

riedades de roubo - a violência grave provocando uma


fractura (os fractum) ou um simples ferimento (membrum
ruptum) e o prejuízo causado pelo corte de árvores de
outrem (arbores succisae) ... Para cada um destes actos
bem determinados, a lei precisou o montante da obriga-
ção do culpado, forçado a reparar a sua falta. A fq_[Qll.Jla
co!:Jstr~_íQ_é!___pel_o§ _p()_~!iflQ~~§Q~-~~ ITl_QQ§J~__Q§J_E:)i deter-
m----------·--
i na com- certeza
·-·· - -·-
o montante do -crédito
----· -··-----···-·-· -··-----------
da vítima e a
causa legítima deste crédito, sem a qual não haveria ac-
ção possível.

As qualidades do antigo direito romano

Um tal sistemé!_ jurídico não pode parecer-nos se-


não particularmente arcaico_. Tanto rigor contra os deve-
dores choca-nos e supõe pouca humanidade. A ausên-
cia total de independência-entre ~9s -m€úri~~~s--~ª_família
submetidos à omnipotência do pai é própria duma civili-
zação primitiva, em que o indivíduo ainda não goza, en-
quanto tal, de liberdades. Q_f9rrnalis111º' por toda a parte
difundido, parece-nos incómodo; para dar existência a
uma obrigação, contratar uma venda, um arrendamento,
agir em justiça, é preciso seguir um cerimonial muito
complicado. Sem dúvida o comércio era ainda raro
nesta época, cada família vivendo em princípio em si
mesma, numa ssicie_2ªç!E3_ econc)micél quase _e~clusiva­
l_!l~n_t~ _agrí~~I~:-

49
Direito Romano

E, portanto, certos princípios e qualidades do di-


reito moderno estão já, como o afirmei anteriormente,
presentes na antiga Roma. Um dos maiores espíritos
que se debruçaram sobre estes problemas, o al§_nião
1b_8-ring,__ produziu um trabalho que é um grandioso mo-
numento à glória do direito antigo dos romanos: O
Espírito do Direito Romano. Extraímos deste riquíssimo
livro, mas um poucoindigesto para o leitor, algumas
reflexões sobíe o valoí do velho direito quiritário.
Reconhecemos-lhe duas qualidades importantís-
simas e ademais solidárias.
Em _Q_rj_IJle_L~:-9_!1:1.gar, reconhece e favorece a liber-
da_de!_a verdadeira liberdade, aquela ~-~ _co_nsiste, para
cada __pai de f?.ll]~lia, diz-nos lhering, en:i_possuir uma es-
fera de actividade independente; o romano é o único
resp-onsaverdà-maneír຺co-rl1o exerce os seus direitos
s-obre a súa- pr-opriedade, sobre a sua família. -O Estado
re-éOnhece~llle sem- reservas e sem variações- a sua zona
própria de autonomia de que usa à sua vontade, como
homem independente e livre. Salvo as coacções morais,
dos co~1um_~-~.9_é:l ()pinião_ pública;--màs--esfáscoacções
não jurídicas, exteriores ao domínio judiciário, não visam
mais do que a sua honra, e respeitam, em suma, a sua
liberdade;
Em segundo lugar, o jus civile quiritium é um di-
reito de- co-nfornos precisos. Po~-~~ _lug_ar__para o arbítrio
do juíz, na repartição dos direitos. Eu p_q_?_~o estabelecer
q1:1e fal coisa é minha, por meio de critérios exteriores,
certos, indiscutíveis. Para que eu tenha direito à tal
soma, que me prometeu o meu devedor, é preciso que

50
O processo das acções da lei

tenham intervindo solenemente os ritos não ambíguos


da sponsio. Para que eu seja proprietário duma terra,
que me venderam, é precisa a intervenção perante tes-
temunhas da cerimónia solene chamada a mancipatio;
ou ainda que seja do conhecimento de todos que tenha
adquirido pacificamente esta terra desde há dois anos.
Assim o determina com precisão a lei das XII Tábuas.
s"era--siifü::Tenfo qúe eu estabeleça a existencia desta
condição faciimente verificávei, e nenhuma subtii
controvérsia poderá mais ser-me oposta. Este carácter
de certeza e de precisão do antigo direito romano -
bem isolado da moralidade das regras plenas de varia-
ções e de complexidade - contirfJla_Q_p~te(-f?f!l_if~?_5__í}_í3._
poss~_9ª_§_~ª-P!QRQ?-__ Rc:lt1E!·
Nós temos muita competência para comparar o
sistema jurídico romano a outros sistemas jurídicos: co-
nhece-se, por exemplo, o direito de certos povos orien-
tais e entre outros dos Babilónios dos quais se encon-
trou, sobre uma estela de pedra, o antigo Código de
Hamurabi. As liberdades individuais aparecem-nos aí
menos severamente protegidas; o direito estrito menos
bem separado da moral. A lei das Xl_L_Iéibuªs é!D_~olt!av_?­
se (ao romanista italiano Bonfante que fez esta compa-
ração) -----···-----
como -um-·- testemunho
..
do espírito- ocidental cj_E)__ li-
- -- --- -- -·-··----··-----------·-- - -
·- ·-·· ---·-··---·~·-·· .

Q~!C:l<3.c_iEL Q__antig_Q__9_i_!~i~o quifj_tário, saiu do génio nacio-


nal dos romanos, assentou algumas bases da civilização
ocidental e é bem, pelos seus traços fundamentais, a
fol}j~--ºº _glcei~o mgderno. Mas antes de mais nada, é
preciso mostrar o ponto de partida do desenvolvimento
do direito romano clássico.

51
Capítulo Il

O processo formulário
e os progressos
da prática judiciária

~§_ ba~es __do __çll_r~ito ~omano r~~~-~!!1 ªº-~ tem~os


ªntigg_~__ 9_os r~i~_ E!--~~~__pJlm~ros _mª9istrados republica-
nos. Mas o seu pleno desenvolviíl}g[J_t_g _!?_Ít(J_a-_?~ no pe-
ríodo-dito clásslco-:·------------- ----- - -
----Seguindo - o uso mais corrente, demarcaremos
este período de cerca do ano 150 antes da nossa era -
1_50 é qya~~-ª--9-ª-~ª--2-? g_u_eq_ª _q~_Gar.t~9'?~_-E -~ __ inícfO-~as

53
Direito Romano

grandes conquistas. Em algumas dezenas de anos,_Q_s


romanos apossaram-se de Cartago e dos territórios con-
tí9Uo~~~_Q-~~.~i?, da-Asia-Menor-:da-Espanha·:ci~i-Gália,
finalmente, de todas as terras que marginam o Mediter-
râneo. Criarão um império imenso, e - o que é mais
notável - serão capazes de o conservar durante meio
millénio. Certamente que a prodigiosa expansão do es-
tado romano causa uma crise grave no interior da
"inann·
'-'''"" '""'-'•
3nAc-
t-''-''-'
ac- l11+as in+e,.;""'""""
..., ,....,, , "
,.,U"" ....,,.,,.,,.,.,m ,...,.... ,...;..,..'"'1,.,,....
"'-''':""• '-1 e; "'ª'""ª' 1 u;:, ;:,11111-110;:,
nomes dos Gracos, de Mário e de Sila, de Pompeu,de
Catilina, de Júlio César, um novo regime político deve
tentar restaurar a ordem. Os imperadores manterão o
conjunto das províncias intacto, na paz romana.

As circwistâncias morais e intelectuais

Não espantará que -~-s~-~ _p_erío_9_o_ tenha visto


grande progresso do direito romano. Duma maneira ge-
ra(é ~~rc~~-<i p~- lJ~~2od~ro~o_-~esenvolvimento intelec;>
tual. A influência da Grécia conquistada foi aqui, como é
sabido:--conslde-ráver--os "gregos t(nham sido os mestres
na arte do pensamento. Na sua escola, porque a con-
quista os mistura incessantemente com os gregos, os
romanos cultivam-se; abandonam mais ou menos as
suas velhas superstições, entregam-se à reflexão inde-
pendente; produzem uma literatura, uma poesia, uma

54
O processo formulário

história, uma filosofia - que muitas vezes não é, como a


de Cícero, senão uma adaptação da filosofia grega.
Este refinamento geral da inteligência tinha de
produzir seus frutos na arte do direito. Existe em Roma
uma ?SÇQ!ª. ç!_~--~-ºrn~ns - os mais capazes de influen-
ciar sobre a via jurídica - que estão impregnados do
saber grego. Mau grado o apego que professam - pelo
menos na aparência - em relação à tradição romana,
não
---· acreditam------
mais no sacrossanto -·--
vaior dos veihos ri-
-···---- ---·---·--------. - ----·-···· -·-···-· ·---·-

tos do direito __q~~rlt~rip, assim como não crêem mais na


velha religião romana. Com__2re~ndeQ)_q~~---º- alv_q__ºQ __di-
reito ~_!_~m de_!!_nitJ_\/.9.2._a uJjlidacj_~ dos __hQ_~~ns, o seu bem-
estar, a sua prosperidade, o seu bom entendimento -
mesmo se esta utilidade exige que se libertem das anti-
gas tradições conservadas por uma espécie de crença
religiosa, mesmo se esta utilidade exige que se quebrem
ª~ ~~-9-~~él~ · cioJO.rm q
a:ns·rn-º· -~E-- u9-_r~-R~fI?Ei~liJ~~1~~i- c§~9
dizem os filó_~_Q[<?._~_gte_g9_~. manter entre os cidadãos uma
certa igualdade, proporcional às qualidades e ao valor
de cadá-'um; abnràos estranhos o càmpo dá-pr'()feC:Ção
ilddig_i<irlª~- Plº_move-r o--r_~~-fto_-dª~p~~'Zf§~::Sf?_~~~.o- culto
da boa boa fé, a humanidag_e_!
-----·--···----·- -
__ªJo.9.l:!.!9ª-1!º-iª,_ -ª-''pjªçjade"
e n!r~___pª_r:_~ntes próximos.
Graças à acção da elite romana, também extraída
da fonte do génio grego, g direito romano vai aperfei-
çoar-se, humanizar-se, dilatar-se, sobre os alicerces do
~fr~iio~_~ntigo:_ ·· · ·· ------ · · · ·--- - ---- ---- · ·· · · -

55
Direito Romano

*
* *

.---· - g ainda, essencialmente, L!m direitq__ .Prático. O


objectivo dos juristas romanos não é levar mais avante
as -esp-eicú1aÇões-cio-s--fifósofo_s _g_reg-Os:---E: cie
realizar (o
qüe--os--gregos-nl.Jncã.--fizeram). as·
-prfffdpiq~-_ ideai§ da
equida_9~_~da º-~ª-Q!-9§0L~-~ç@:g __~g~@I. E manter de facto
a ordem e a paz na cidade romana; e, para além dela,
no-mundo romano. No final de--contas~ é arranjar um pro-
cesso que--funcione efectivamente duma maneira útil e
equitativa.

A organização judiciária

A organização judiciária não sofreu depois da


é_Qºº-ª- aQ!_1g9 _prof u_11d_ªs_Jr?_íl?f ()_rfD.?Çq_~-~'. J~-=~~:rri_R~e_ o 1iti-
gantE3-__9~E3-_Qjrig_~__c:>_QIQÇ_gª-§9; cita em juízo o seu adver-
sário; conduz a acção contra ele, persegue judicialmente
a execução da sentença. Talvez fosse melhor confiar
assim na iniciativa privada do que esperar demasiado
dos cuidados dum funcionário.
Sobre o F:9rurri___r_p_mano, onde a partir de certa al-
tura tinham lugar os processos, o pretor tem o seu tribu-
nal. O seu tr_?~alho é sempre "fis_ç_ª-lizar" qs actos do par-
ticular; controlar se ele se submete correctamente aos
ff~íllffes do proces~(); impor o recurso a um árbitro, ao

56
O processo das acções da lei

juíz privado do direito romano. Notemos apenas que, pe-


rante a__?!I~~ n~i?~~~-J~!.-~E~~~~~~_nú f!1 e~g __ cf_e__ p~~!~~es
~rnmentou, que U!11 pretor_ _p~~~g_rJ_IJQ__ ª:Parec~_L:J •. _er:i~cir­
regado especialmente do~2!.9CE?_S_SQ.§_ ondg_§_?o_L~~~~s­
sado§__ºs_ E3~!r-ª0..9_~itQ?__ b_é!.~Hª-ntE?..§_gº_iDJ:!Qg_Q_[Q_rrgn_o, que
não beneJlfiam __§_l!i_da da assimilação aos romanos de
velha raça, não tend9_ ªLr:i9_ª_r~ç_g_Qjg_Q_~_ç~[ª$...'..~-ª-§.J~ro­
v_íri_çlt!§-'-_Q__99_'{_E?..Urnc:lor - ou qualquer dos seus auxilia-
res, por vezes um propretor- têm o ofício de pretor.
--·--------·-----·------····· .
Enfim, é preciso um corpo de homens sábios para
conservar o conhecimento das formas processuais; a fim
de que o litigante se informe junto deles, quando quer
intentar, nas formas requeridas, a sua acção; para que o
pretor, homem político sem grande competência técnica,
geral_ ~ e~t_~-~~9.~~-~~cf_Q--p~e)o~_ cuftQ=:~E?J:isi.g_Q~if~--~~=~ -~ª~o)
possa também aconselh_ar-se. No antigo direito essa
função era exercida pelo colégio dos pontífices. Agora é
cumprida pelos jurisconsultos. É aí sem dúvida a
inovação mais importante de consequências, porque
este~juris_çQ_nsultq_§_~Ç9?~~~-tes _tj?__Ǻ.!J§.~l"_'{_ª_ç_ã_Q --~ d_a
criação de novas fórmulas, constituem exactamente o
grupo--ae-Jürisfas qúe___aI)andonaram o antigo ritualismo
romanq_pa~~ ~?Ç_ri!_iç_ª!.i]l~~ofLª· Eles estara-oà-caheÇa
do progresso do direito.

57
Direito Romano

Um novo processo

Uma outra novidade - que toca o processo - vai


facilitar grandemente o enriquecimento do direito; estou
a referir-me ao abandono das fórmulas orais.
Outrora, as pretensões dos__EFg_C!_n!_~§_Q~~!ª'!l- _qbri_-
_9-?!Q_~iar:!.l_e_Qt§l __ {3_~0i~.i r:.~~ n~~-~~-~_s___ !~!.f!"l~ l~~--9~~i~--- ~eco-
- ' - -~=-1f""! _ __ ,_ ., __ : • • .......1:-:A ... :- e ,.... li,.,.+,., ,..1,.,,.,. .JA..-m11l""'S +· nha
llllt::l,;IUd::> j.Jt::IU U::>U JUUl\..,IQllU. L a llvla uav IUllllUICl l 11111
um_ã___granc:fe··-rm·poâância~ correspondendo a cada
fórmula, em suma, um direito reconhecido pelo Estado.
Sabemos que é sob esta ~<2~1!!?_!.!:!Qi!!J~!1Jé?:':_9U{3__!:'_?SÇ_~'=1 o
direito romano.
- Ulteriormente, por uma certa modernização, as
~Qrm1:1_1g~_9_r§3:i~_x§9__~.~~do substituídas por fórm~l~s escri-
~as. Supôs-se que a mudança teria sido provocada desta
maneira: "os peregrinos",isto é,os estranhos à cidade
romana, não podiam utilizar as velhas fórmulas orais. A
antiga cidade não estava preocupada em lhes reconhe-
cer direitos. Mas em seguida às grandes conquistas, as
circunstâncias mudaram.
Há agora numerosos - estrangeiros,
- - ·--- itálicos, hele-
nos, que fazem parte do mundo romano sem terem
recebido a cidadania. Vêm_29voar a cidade @._Rom_ª· e
tr~fi~ª!ll_<?..9rn_ g_§.._r.Q_QJari_o_~. r:ig __ r_[co mercag9 em que se
tornou '!. _çapital cjo _lrnpér.io. Têm de facto conflitos
jurídicos entre si e com os romanos.Procuram o pretor
responsável pela ordem na cidade. Que fará este? Ele
não pode organizar o litígio dum peregrino segundo as
formas que não são acessíveis senão aos romanos.

58
O processo formulário

Resolverá Lf!lltª!!º-º--º· m~_ê_QQ_S._s.fy_ª_L_Q_J>_roçg§_§Q_IQ_íD_ª.D-º;


suprimindo_apenas as formalidaºes-ª~caig9s __~Jn~~i~<to
velhQ_gJ!_eit_Q____q~_irLt§r~. que não têm mais aqui razão
alguma para serem respeitadas; in2J)iral}_9._C?_:~-~. sempre
que possível, nos costum~§__!!J-9l~U~.rático~-~9:._Q.r.~c_ia,nos
hábitos dos próprios peregrinos.
O pretor acolhe, pois, o estrangeiro no seu tribu-
nal; dar-lhe-á um juiz como faz ao cidadão romano. E
-:- u11
(1:::1;:, --d-t: :::it:
-- -'-- ___ _..;.,. - ;..,~1• .::..-.n:n ,.....,n,...,.... ""mn +..-,....h,...lhn.-.
1aL :::it:11u1 a 1111 u1;;:11\,,1a !::Jlt::!::Jª• ""u111u L1aua 11uv
recentes o demonstraram), convidará os litigantes a ins-
creverem, numa fórmula escrita, as suas pretensões
exactas das quais o juiz deverá confirmar o fundamento
e as condenações precisas, cuja conclusão lhe é pe-
dida.
Que pretensões jurldicas poderão ocorrer num
processo? Por princípio, pelo menos originalmente,o
pretor não admite proteger melhor o estrangeiro do que
o romano. Ele não quer reconhecer aos estrangeiros.no
máximo, senão os direitos reconhecidos aos cidadãos
romanos. Também não admite fórmulas, originalmente,
para além das que são modeladas sobre as antigas
fórmulas orais e exprimem uma pretensão já recebida no
sistema das fórmulas orais.
Tomemos um exemplo muito simples: um pere-
grino vai procurar o pretor para reclamar a coisa de que
se julga proprietário e que se encontra em poder de ou-
trem. Uma pretensão desta espécie é admitida entre ci-
dadãos romanos; de facto,o romano pode utilizar em .tri-
bunal a fórmula oral seguinte: "eu digo que esta coisa é
minha em virtude do direito quiritário,etc". Do mesmo

59
Direito Romano

modo, o pretor aceitará que um peregrino resolva uma


instância judiciária redigindo, endereçada ao juiz.a fór-
mula escrita seguinte:
"Parece que tal coisa é coisa de tal litigante, em
virtude do direito quiritário,etc. (cf. página adiante) juiz:
condena o arguido a pagar-lhe o valor desta coisa". As-
sim o processo será obrigado nos mesmos termos que
vogoram entre cidadãos.
Esta nova maneir9 de regular os processos - a
que chamam o processo formulárig _____ :_Pod~_ªliás s_~__Q_b-
ser_vaqg._ mesmo n9s QrDC§ssos dos cidadãos, por causa
da sua comodidade.E--umã-long-ã--tíTs-ióda-,que muito
ocupou os romanistas, mas que nós não temos que des-
crever. É suficiente dizer que as leis votadas pelo povo
marcam duas grandes étapas; a lei "Aebutia", que data
do tempo dos Gracos e uma lei Júlia, de Augusto. A
única coisa que aqui nos interessa.é que o novo sistema
se revelou muito mais favorável à eclosão de novas
f_ór~1JJ?_s2__ p~~§_~fO~~Q-~:~iJg~~~i-~~~!() -~<? _cii_reito.

A criação de novas fórmulas

De facto, os pretores, guiados pelos jurisconsul-


tos, também se mostraram inclinados a admitir novas
fórmulas escritas ,quando o não fizeram às fórmulas
orais no tempo dos pontífices. Seja porque ------··
o abandono
do~~~~!~?~_!~g~_ tenha sido o prinieiro passo determi-

60
O processo formulário

nant~ _n_Q_9arnJ_Q_~_Q__çl_ª--~Ql_é?-ricipação; seja porque _?s fór-


mulas -~-~ç~J!as parecem @POU~§I___éiJ~.fll dj_~_~Q__§_QQ~~---1:-l_'!!_éi
co_Dyen_çãQ __ ~ntr*ª-º-~-J_itj_g_ª.Q_tes; a aparição do processo
formulário abre um novo período de criação de fórmulas.
A bem dizer, não se toca no antigo costume senão
prudentemente. Já referi o respeito aparente dos juristas
clássicos pelo direito quirffárTo~A mála·r-partedas.. fc5rmu-
las escritassa-ê)-(fúránfe muito tempo fórmulas ditas
civiles, quer dizer, repousando sobre o antigo direito
civil, copiadas, quer da lei, quer das velhas fórmulas
orais. Mas, pouco a pouco, ousa-se levantar a mão
sobre o seu texto tradicional, e acrescentar-lhe
aditamentos, ou modificações, aparentemente ligeiras,
mas implicando no fim de contas transformações
profundas.
As ideias novamente recebidas e as transforma-
@s sociais e econQ_rD~i!S, a humanidade, a utilidade,
exjg_~Q}__g~§l__§~ __éitribua aouer~jnos os direitos outro_!ª
reservados aos cidadãos, por exemplo de propriedade?
Inserir-se-á na fórmuTã-~ uma curta frase, que convida o
juíz a raciocinar como se o litigante fosse cidadão e não
peregrino; aquilo a que se chama uma ficção. Isso dá a
seguinte fórmula que sempre temos vindo a citar in-
completamente:

"Se parecia que tal coisa era coisa de tal litigante,


em virtude do direito quiritário.
"Se o litigante era um cidadão.
"O juíz condena tal pessoa (o réu) a tanto".

61
Direito Romano

Outro exemplo: a antiga prática impunha estrita-


mente ao devedor o pagamento da sua dívida, desde
que as formalidades precisas da sponsio tivessem sido
cumpridas. Que decidir, todavia, se ele não está com-
prometido senão em consequência dum pequeno erro?
Porque o seu credor o tinha enganado, tinha sido cul-
pado de mentiras, ou maquin.ª-çg~-~ _fraudL:Jlent_?S a seu
respeito, a que os romano~ cha!IJ_ª-'!l_L!_r:n_-º'.<?l.9?
Não manda a equidade que a dívida seja anu-
lada? Chegar-se-á a este resultado acrescentando à
fórmula estas simples palavras, pelas quais se prescreve
ao juíz não condenar senão na ausência de dolo - e a
que se designa uma excepção:

Parece que X deve mil.


A menos que tenha havido um dolo do credor.
Juíz, condena X a pagar mil ao litigante Y.

A "condemnatio"

Que o leitor nos perdoe prosseguirmos ainda al-


gum tempo este estudo técnico das fórml!l~s; nela se
ai o ja ----~----~-~9E~9g__ _2_? __ !gr_rl]_aç_ã()_ .h i stó f_ica _tj f?___!Il LjjJas
regrc~s _c:J-9 no!3-~.9 __g_\r~it9_:_
Ao lado_Qª-fDJ~ntio, quer dizer, numa curta frase,
que exprime a-Pretensão--"-" ---- - ·-
- ~. --·-
do litigante
... -- -·---·- ···-
-·-~· ···- . -
(que tal coisa lhe
pertence, ou que tal soma lhe é devida), as _no_vatl(>_rmu-

62
O processo formulário

las escritas compreen~~!!l uma _Rarte cha~_ada co_!'-


d em CJ_§J~QL. .Q_ílde. §_~-~-~li m~ª-9-~-'ª--1?_~§.tª-ç-ª_QJ~ r.~.S:J~a
deve ser condenado o réu se ~ensão é verificada.
Outrora não era necessário precisar desta ma-
neira a sua missão ao juíz; este condenava duma ma-
neira automática, à soma precisa prevista no contrato
formalista das partes (por exemplo uma sponsio), ou
pelos termos da lei. Por exemplo, as XII Tábuas previam
uma tarifa de pena estritamente aplicável ao autor de
injúria; se é culpado de os fractum, deve pagar à sua ví-
tima 300 asses - duma injuria ligeira, 25 asses. Mas o
sentido bem mais fino da equidade, que é o apanágio
dos clássicos, conduz a condenações mais variadas.
Q_pretor intro_9J:_J_~Dª _2.onde[!!~atio da_!óríl]ula tal
ou tal frase.que dá ao juíz a missão de groporcion_é!~_9
mon_ta_Q!_~ __cj_ª_p_gna-ªº--º-ªD.9__ ?.Q.frido, cgnfor_'!l_~__§§_r..~9E§S
dé!_~q~_!daq_~'.- Quantum pecuniam vobis bonum aequum
videbitur ob eam rem condemnari diz a fórmula da nova
acção de injúrias. Ou se ordenará ao juíz que aprecie a
obrigação exacta do devedor segundo as exigências da
boa fé, introduzindo na condemnatio estas simples pala-
vras: ex bana fide condemna. Ao juíz, guiado pelos juris-
consultos, competirá, aliás, avaliar duma maneira igual
para todas as exigências da boa fé nas questões; resulta
desta regra, por exemplo, que se eu devo cem a Titius, e
Titius por seu lado me deve cinquenta, eu não devo ser
condenado a mais que cinquenta (o que se chama hoje
a compensação). A brandura, tão enaltecida pelos filóso-
fos gregos (antes de o ser pelo cristianismo), reclama
que a mulher credora de seu marido, ou o associado de

63
Direito Romano

seus co-associados, não os reduzam à extrema miséria.


O pretor introduz algumas palavras na fórmula, pelas
quais prescreve ao juíz não condenar senão id quod fa-
cere potest, a soma que o devedor tem verdadeiramente
possibilidade de pagar. .
Assim, as fórmulas recebem ~i_L_lj_g_13-Lra~_r:n.ggif!~?­
ções; a menor palavra engendra aqui qualquer nova
in~tit~l_ç_ãQ.jurídica; jurisconsultos e pretores -eTaboram
uma técnica sábia e precisa da fórmula; aparentemente,
as fórmulas tradicionais recebem apenas ligeiras adi-
ções, no género das que tomámos para exemplo;-·mãs
no-ründo o conteúdo do direito
--··--------··-·----•--••--..
romano sai todo trans:.
""• •"'"""""' ··--· --·-·-·· ''
r---··-~··- ·~· •
formado.

Outras criações pretorianas

Na sua pressa de fazer reinar uma justiça equita-


tiva e útil, os pretores romanos recorreram com bons re-
sultados a outras inovações. Passamos sobre estas fór-
mulas inteiramente novas, sem ligação com a lei nem
tampouco com as antigas fórmulas do direito civil, que se
denominam as fórmulas in facty_m; que gão prq~~cç?o
judiciária a situações _Q§.<?--2~9-~i~t.§_?_E~~9-~~!!gQ_<;lireito
civil!._ A ciência do direito romano consiste precisamente
no estudo aturado das diversas fórmulas e dos diver-
sos meios do processo romano, forma primitiva sob a

64
O processo formulário

qual apareceram os direitos, primeiro aspecto sob o qual


o nosso direito está constituído.

Mas queremos demorar-nos um pouco sobre algumas das


mais audaciosas destas criações pretorianas. O pretor não tem
somente nas suas atribuições a jurisdictio, quer dizer, o ~~~q.9_(j_g_de
controlar se as formas empregada~J~§.!Q..S_litigantes sãQ__r~fl.':!.@~e_~;
duma maneira mais geral, é encarrega_d_q_d_~E_()~!~!ª· da manutenção ~é!
bo~ordem n~_~id_a~~- ~e goza do imperiu_!T], dum poder geral d_e_ co-
r:na_~~o. Em virtude do seu imperium, ele dá ordens aos ciq_é!9ãos. E
i~!5º contribui muito fortemente, sobretudo nos três últimos séculos
da república, p..§.r.~nriquecer o direito romano.
O pretor ordena ao proprietário duma casa, ameaçando ruína,
prometer uma indemnização (por sponsio) ao seu vizinho, para o caso
do desmoronamento lhe causar qualquer dano. Assim, o vizinho ob-
terá uma reparação, que o direito civil não previa directamente.
O pretor proíbe que se ataque a posse. O "possuidor" não
estava protegido pelo antigo direito civil; não tinha acção, nem
fórmulas apropriadas à sua situação, quando a coisa não era sua pelo
direito de propriedade. No entanto, a utilidade, a boa ordem social,
mandam que nenhuma violência se faça aos possuidores. O pretor
providencia prometendo-lhes regularizar a sua qualidade, a sua proi-
bição, contra quem quer que os ameace 1_
Ordena que uma situação fundamentada sobre a violência, ou
sobre o dolo, ou sobre a fraude, ou sobre a fraqueza dum menor, a
ausência dum soldado, seja reparada, anulada, inteiramente apagada.

lver página mais adiante.

65
Direito Romano

Ele próprio tratará do caso e, se for caso disso, velará pessoalmente


pela reparação, a que se chama restitutio in integrum.
Por comportamentos muito diversos, duma maneira um pouco
incoerente, a prática judiciária romana enriqueceu-se e aperfeiçoou-
se.

~ Valor da justiça da Roma Clâssica

Tentamos agora apreciar esse direito em adapta-


ção,que não receberá mais transformações essenciais;
sob uma outra forma, é chamado a transformar-se no
nosso.
Permanece a2oiado sobre as __q~~E?S do di~eito
quiritário _e conserv:-ª--_.?JJna_L_~-~l!ªS __ _g~_ªl_icj_§de_§_: a
certeza, a precisão. O romano sabe ainda muito exac-
tamente--qu9--bens constituem a sua parte. Está seguro
do seu direito, nele encontra uma fórmula. Outrora as
fórmulas orais estavam guardadas nos arquivos secretos
dos pontífices, e um pouco mais tarde foram divulgadas.
Agora, que os preteres não hesitam mais em enriquecer
o número de fórmulas e lhe acrescentam interdições, es-
tipulações pretorianas, restituições ad integrum,
'ª-!1-~gntr?i'S~_:-á __Q__ catálogo num écíito, afixado por cada
pretor à sua ent~a~-ª- .P.~r_a_ C? _carg()_- escrito em letras
pretas, com as rubricas a vermelho, sobre o álbum
branco exposto no forum. ~ó __ _e_xc_~p_cionalmente um
pr~-~~_r___~ _au_tg_~i_:!'.?~E ---~--J?ze_r uso de-}Orm_u_f?~~--: ~~g

66
O processo formulário

prometidas previamente no seu édito: a dar _1:1ma fQ_rllJ.ula


decretai. Não pode-ria ainda fazê-lo sem o acordo da
opinião COí!l~_i!!_ ___da_ -~Jl!~__ jlj_ríçl_iga, juntamente com a
"autoridade" de um ou v~r!Qª-J~.d§QºQ.§_ldt!Q_§-= A mesma
1::>rotec_ç?o contr_ª-º--ªEl?Hrªrio ,que era a grande virtude d9
Ã~TI9Q_.º!~_!?)to, subsiste no direito clássico:---------------
Mas ficando tudo assegurado e igual para todos, a
protecção judiciária tomou um desenvolvimento muito
maior. Diversificando ientamente os textos das fórmuias,
~ crian_d~~~-~-~~~-~~·--º-~--~.9..~-9§..1ip()ª,_-~E?tore_~~-?~1?.ª~
r~m ~<?.~_?l_~_r.g_~~- c:;o ~~-i-~E:l_r.~v~.1~~~~~ _9 .~?_rnpo_ d.E3- . . a~ç?o
da justiça. Estende-se agora a todos os homens, salvo
aos escravos; os peregrinos ,que a cidade àntiga não se
preocupava em proteger, gozam agora, com a ajuda de
fórmulas fictícias, dos mesmos direitos privados dos ro-
manos, e o filho de família vê abrirem-se-lhe acções.
A justiça cria ainda __~~--!n_?J9_r_r.:i_Q~~!..Q__ _Q~__dir8-l1Q.§.-
Citámos exemplos dessas criações umas atrás das ou-
tras criadas pelos pretores. O simples detentor de posse
vê a sua situação de facto sancionada pela interdi-
ção; novos tipos de propriedade aparecem 1. Criando
fórmulas, o pretor deu existência jurídica a um grande
número de novos delitos, abrindo para a vítima o direito
à reparação. Ao mesmo tempo surgiu uma floração de
novos créditos; para ser credor não é mais necessário
recorrer às formalidades maçadoras do nexum ou da
sponsio. Os jurisconsultos fizeram admitir fórmulas que
sancionam, em certos casos práticos, a simples

lver mais adiante.

67
Direito Romano

promessa; a moral não afirma que as promessas devem


ser cumpridas? Assim nasceram a venda, o aluguer, a
sociedade, e todos os contratos necessários a uma
civilização próspera e comercial.
Logo que se trate de avaliar os direitos dos credo-
res, as condenações precisas a impor aos devedores, a
justiça da época clássica faz prova duma subtileza bem
desconhecida dos antigos romanos. Ela preocupa-se em
ju!gar seguindo a equidade, seguindo esta sábia
igualdade, que tem em consideração a~_ç_qn_g_iç§es es-
peciais em que as _partes s_~--~!:i.22_~-~E_?m, e que se gp_õe à
estrita e mecânica _lgualdade s!_Q_~n~~~ g_!_r~ito. Um bom
jurista não confunde nunca a igualdade "aritmética" com
a justiça. Agora o pretor evita tratar, segundo a norma
geral, o menor que, falho de experiência, se deixa enga-
nar pelo seu co-contratante; proteger-se-á o militar, o
embaixador, cuja ausência de Roma o impede de zelar
pelos seus afazeres. Sabe-se ter em conta as circuns-
tâncias, de tudo o que a boa fé interfere no devedor,
perdas e danos que deve por se atrasar, legítimas des-
culpas que pode ter para diferir o pagamento; da com-
pensação, do estado de miséria do devedor. A jurispru-
dência distingue todas estas hipóteses jurídicas com
uma grande riqueza e uma grande precisão.
Estes poucos exemplos por si sós mostram como
o sistema das fórmulas chega para assegurar uma jus-
tiça maravilhosamente sábia. Convém na verdade admi-
rar o esforço poderoso e realista suportado pelos roma-
nos pará- porem a justl~§_§i [Q_ri~I~-~?.r; __~-~~Q!_iqp prático
com_g~e se~~berta~~º~-~~1!.§_~~~-~o_formalismo; as ai-

68
O processo formulário

J:as concepções morais que os dirigem. Vêem-se tantos


sistemas-Turícilc-os,qu_e_re9iiam co_m_ta.ílta minúcia, para
a boa ordem da sociedade, os direitos e obrigações de
cada um, sem asfixiar a iniciativa individual?
A organização da justiça romana aparece-nos
como uma obra-prima. É digna de dirigir esses gregos,
esses asiáticos submetidos, que deram a Roma a cultura
intelectual, e que não teriam aceitado submeter-se a um
direito arcaico. Ela dirigiu a sociedade romana à
prosperidade e à ordem e fez amar por todos a paz ro-
mana; é um dos factores desse fenómeno histórico es-
pantoso: a conservação dum tão vasto império durante
cinco séculos. Merecia que nós outros, modernos, ten-
tássemos conservar qualquer coisa, e de lhe fazer so-
breviver o essencial, mesmo se a sua cópia literal, nas
novas circunstâncias e processo diferente, que é o
nossol, não for mais possível,

1Desde o período imperial se difunde progressivamente em Roma um


processo muito mais simples, dirigido pela autoridade pública, então
chamado processo extraordinário, que serviu de modelo ao nosso.

69
Capítulo III

Nascimento da teoria do direito

Vamos agora referir-nos a um terceiro estádio no


desenvolvimento do direito romano; sem pretender,
aliás, uma cronologia muito rigorosa. A partir de cerca do
século 1 antes da nossa era, quando op-reto-r.ain-da ri·a.o
acãfioú- -de erfrlque-céraprática judiciária, o direito ro-
__ 91:1_§!__~~ . . . pode-
mé!_QQ_f_g_l!!~Ǫ ª--~~-ç~º-~! u_rn.ª. rl<?Y.?f.<?r~?.__
ria chamar científica
----Trati-_s_e_ de··- um dos dois ou três acontecimentos
que produziram as maiores consequências sobre a his-
tória geral do direito, e pode causar espanto ver a

71
Direito Romano

ciência moderna consagrar-lhe tão pouco espaço. Se,


entretanto, o direito romano não tivesse sido mais -do
que uma prática, ºúma-·arte-"toda-empfrfca ele- regular os
processõs~,-·"·'Jarr1ais poderia ter sobrevivido à civilização
romana. Se os-1fr1Tcõs-féxfos-Türfrffcós-·-·ae1Xºàd6s pelos
romã-nos tivessem sido os textos das fórmulas, com as
interpretações que lhes oferecem os jurisconsultos,
nunca esses textos teriam podido reencontrar aplicação
na Idade Média. Tendo o processo mudado, a utilidade,
a facilidade de execução prática das fórmulas, não
teriam sequer sido compreendidas, e a subtil arte
jurídica romana teria caído verdadeiramente no
esquecimento.
Mas em Roma produziu algo de novo, desconhe-
~~_(?_!:IA__Q.!ég!~-~--ª!~__ g_~_tc?99!S_.os_cji~~ffos m~Í~-antigos:
uma l~eraturB:__j.!:!_~íQ!ca.

A jurisprudência

O Jus civ_ij_e em sentido próprio, diz um texto de


Pomponius (O, 1, li, 2.12), não é constituído por leis ou
fórmulas de processo, mas 12el? _O_l;>ra dq_§_i.\:!_risQ~_tjEHlt~s
A originalidade de Roma está em dispor no serviço do
aparelho judiciário (o que não tinham os citados gregos)
duma classe de &rl§.9()_n§ultos. Pessoas de escol, _cuj9
~.9r1~~!.b_g,_!9_z._.au1ºrigé!_9e, mais tarde providos pelos im-
peradores duma auctoritas oficial, eles gui~~--1:)-~ litigan-

72
Nascimento da teoria do direito

tes, dão aos juízes e aos magistrados responsa, quer di-


zer: consúftas;'''iTi'~~rto(~sc'r_iiye·~n; tr?fados _de--ª~§jt'õ'.'- .....
Vários_ad~.!i@_íll.-ª._c~.L~.9.rl.9_ªçf_e: no final da re-
pública, Ouintus Mucius Scaevola, Servius Sulpicius,
depgls Labe9_~ sa~lQLis.-.CeTsq_, ~-~JLªn9~ QQ~~-~ç-~Ic)~_Tí}' . . __ cia
n..Q ssa-··· E3-T.?., ... UJpJa, ~O.• .. ~-9.~JQ~ -~9}:!...J:_ªp.Ln ia_o_o. E 1es
escreveram obras de géneros muito diferentes:
responsa, quaestiones, vastas composições tratando do
conjunto do jus civile, ou comentando duma ponta à
outra o édito do pretor; mais tarde Digestos colec-
cionando o comentário do édito do pretor ou diversos
textos de leis e o exposto do direito civil. No Baixo-
Império foram compiladas vastas recolhas de escritos de
jurisconsultos: e esta imensa literatura teria hoje
desaparecido, se não tivéssemos reencontrado a
recolha feita por ordem de Justiniano, sob o nome de
Digesto, que nos transmite em desordem, e não sem
alterações, alguns milhares de fragmentos ...
É dum género muito original que resultou esta lite-
ratura da jurisprudência romana, que recentemente foi
analisada pelos alemães Schulz e Max Kaser. Não
científica e sistemática: nada de comum com os tratados
teóricos da Europa moderna. O jurisconsulto romano
maritém- se nip're 9-siü-~olhar--tTxo-sobre-·ÜCasoco'íl§j~o·~
acerca do _g_l}al é habitualmente cons_~!!ªº9· Usa um
método
- - - - - -tacteante .
e controversial,
--- - -'"·-·--·--. -- - ---·- --··- --- ---·
-·· ·--
.... -··· ..
compara com-càsOs
-· ·--. - --·· .. ···--·--------·-··- -.-·- ....
··- ~

2ª.f.?Çid9?t confronta esta ou aquela solução com a


proposta por um jurisconsulto precedentemente.

73
Direito Romano

Questiona, discute, pratica menos a dedução que a


discussão dialéctica I.
Mas,"'tendo de dar o seu~-º-~r ,não sobre o
conjunto do processo (porque é do juíz que depende a
sentença final), mas apenas sobre um elemento abs-
tracto do litígio, um ponto de direito, ele esforça-se por
l_he dar um tratamento semelhante ao que pode-rlam--re-
Ceber-c-ãsos-aná.log-os,. aUm--cfe. que-a -justiÇa seja igual
para todos.,{\Assim produz as regras gerais: "Toda a de-
finição, diz um texto célebre do Digesto (O. 50.16.203) é
perigosa em direito civil; ela presta-se a ser refutada".
Outro adágio: "Não é preciso querer tirar o direito da re-
gra, mas a regra tira-se do direito". (D. 50.17.1 ). As m_~­
ximas que são o produto do trabalho dos ju~j~gonsultos
nãg se__g!:l_E:1.~_Ql__jé!_rl}ªi?.. !QY..'=1.~!i2.9~. çlu_íllª.?:U.toridade__ í:!_b-
§..Ol u..!_a; elas mesmas estão sujeitas à controversa
dialéctica.
Nascido da experiência, sempre submetido ao
controlo da experiência, o direito romano não se apre-
senta como um edifício acabado; como um- ordenamento
lógico -aeregºras'lmpTàc-áveís ..e. fixas, uma "ciência" no
sentido do termo, uma "ordem normativa". É uma ----------·-- investi-
gação,JJ_m~_..Y-i_§.

lct. Th. Viehweg, Topik und jurisprudenz.

74
Nascimento da teoria do direito

O ensino do direito

Subamos mais um degrau. Para obter a


explicação dum novo progresso, é preciso que abando-
nemos o comitium ou o forum, nos quais até aqui obser-
vamos o pretor prestando a justiça, ajudado pelos juris-
consultos. O "jurisprudente" não é apenas o homem ex-
periente, aos conseihos dos quais devem ter recurso liti-
gantes, juízes e magistrados. Conta-se que Labeo, ju-
risconsulto célebre do início do Império, dividia a sua
vida em duas partes: seis meses de actividade prática,
em Roma, e seis meses consagrados aos trabalhos
científicos na sua casa de campo. É verdade que esse
Labeo é um helenista, cujos escritos estão recamados
de termos gregos e que dedica talvez um interesse ex-
cepcional à filosofia. Mas todos os grandes jurisconsul-
tos romanos, a partir do tim-dá--re·p-úfiiTca,--fazem trabaTffo
cie-nHfiCo~----·--------···-- .,_ · ··--- -· · ···------- -- -
Não encontramos para tal outra razão a não ser
uma_ necessidade pr$ti_ <?-9.:_ Porque o jurisconsulto não
pode··~fretender estarº-sempre presente nos assuntos
judiciários, e fazer beneficiar sempre os juízes da sua
experiência. É preciso que ele pense em formar
dis_g_[P-_ylos__;_ muito cedo ~onvida alunos a assistirem às
suas consultas _gQ!21ic_?s; no princípio do Império, nasc:E~frn
escolas, segundo o moçlelo_ _Q_ª§____ ~§9_olª-~-_g_r~_g-ª§__c;!_ª
retórica
--·-·· -------- ·-·--· e -·de
.. -
filosofia.
-
As duas escolas rivais dos
~~s e dos Proculianos dedicam-se a conservar,
à desenvolver e a expandir as doutrinas dos seus

75
Direito Romano

grandes fundadores. Depois, o jurisconsulto deve


pensar em guiar, de longe, o patrício exilado nas
províncias longínquas: o propretor, o governador, que
deverão prestar a justiça num qualquer tribunal das
Gálias ou da Ásia Menor. Em sua intenção, _@dige
grandes tratados práticos de direito. Assim, assiste-se ao
desen.volvimentodaliteratura -ju-rídica em Roma, e ao
progredir a ciência do direito.

o mêtodo segundo Cícero - O início é claro. É expor


a arte do direito da maneira mais cómoda, mais rápida,
mais económica.
Os meios foram, parece-nos, notavelmente cons-
cientes. Se os queremos descobrir, abramos muito sim-
plesmente a obra de Cícero. Este não era um jurista pro-
fissional; ele confessa algumas vezes a sua ignorância
da técnica das fórmulas e algumas vezes exibe des-
prezo pela disciplina dos juristas, que ele julga de se-
gunda ordem.E, todavia, os grandes progressos, que se
efectuaram no direito romano, sob os seus olhos e mui-
tas vezes pela iniciativa dos seus amigos, não o deixa-
ram de modo algum indiferente.
Sabemos que tinha escrito uma ordem de que
apenas nos resta o título De jure civili in artem redi-
gendo: como o direito civil deve ser constituído em arte,
quer dizer em corpo de doutrina. Não é impossível ima-
ginar o conteúdo do livro de Cícero, com a ajuda de
fragmentos esparsos nos seus outros escritos.no Brutus,

76
Nascimento da teoria do direito

nos Tópicos, mas em nenhuma parte melhor talvez que


no De Oratore, XLI, par. 185 a 192.
Nele, Cícero_ d~plora _Qii_QJ§l~?-~e-~-~--ª_§__g~ªl]_9~s
dific!:!_Ld~Q~§_q~_e_g_t:)E?_9gr__~'.!çonJ~? _Q__~E__é!_~_?_!_~dar o d_i re_ito
civil (par. 185); isso advém de que os conhecimentos ju-
rídLcoS____§__§~ão __§_~_q§l.__ !!!~_!!9 __ g_i~;_g~_~s~ não !i3nd_Q_§ff~fr~_
nunca objecto de síntese (186); só uma experiência da
vida judTciarT~i-põcfo--conduzir à ciência do direito (191-
-192).
Mas não conheceram todas as ciências esse es-
tado rudimentar? A música, a geometria a astrologia, a
gramática e a retórica (187)? É u~?.-~rte, dum género
especial, que -~~.?in_~-~!!!J9-9-9-~__ 9_~ __ 9_~-~L~_ios a rel:!nir os
conhecimentos dispersos num co_IQ_Q.-º.?__Q_Q~trin?: arte
"~ os filósofos assumem inteir_amente", arte da cori~­
trução científica (188). Não nos espantemos de ver Cí-
cero recorrer ao_s_ ensinamentos dos filósofos gregos, ele
que tanto se dedicou a traduzir e a adaptar à moda ro-
mana a retórica e filosofia gregas.
Para constituir o direito civil em "arte" clara e fácil,
é preciso primeiramente definir bem o que é o direito:
Cícero dedicou-se-lhe (par. 188). É preci~~ seguida-
mente dividir a matéria em duas ou três partes, segundo
um plan_º--_ h~rmº~j~gd-~---:~.9_Ql_ÇJdo: "resumir todo o dirêHo
civil a alguns _g_én~_~os, muito pouco numerosos" (189 e
190). Depois classificar todas as noções em géneros e
em es_Récies, in genera et species (i/Jlcif'e -6--mefodo___das
ciências -naturais. Assim se classificam as plantas e os
animais. Defj!!_ir ~l!l_S__§_g_~_Ld_ª_~ada -~~gãq (ibid.), como fa-
zem os matemáticos relativamente aos objectos da sua

77
Direito Romano

ciência: geralmente a definição resultará, para cada es-


pécie, da indicação do seu género e da sua diferença
específica. E por distinções, divisões, o sábio chega às
regras (Brutus, 182). Retenhamos estes textos. Pouco
nos importa que eles sejam servilmente traduzidos do
grego; que os jurisconsultos do círculo de Cícero os te-
nham talvez conhecido antes dele, e antes dele posto
gm prática. Eles marcam uma meta na história do direito.

Os princípios do direito romano

Quem quer avaliar até que ponto o direito romano


se tornou uma arte, no sentido muito especial que Cícero
tem dessa palavra, quer dizer uma doutrina coerente,
lance um simples relance de olhar sobre as lns_t~ty_tas
romanas de direito. Assim se designam os principais
manuais elementares usados nas grandes escolas ro~
manas--:-ouascie-erífre"elas chegaram-ãte-nos:-as lnstitu-
ta.Scfe-Gaius, que dâfàm-dó-sécu_!Q_JI posT--:ç~-que ti-
vemos a sorte de encontrar no século XIX, as lnstitutas
de Justiniano, redigidos com a ajuda do manual de
Gaius e de alguns outros, mas mais perfeitos ainda que
o manual do século li, pelo menos do ponto de vista que
nos ocupa. A influência dessas duas obras foi tão pro-
funda, não somente para os juristas da Europa moderna,
que aí receberam durante cinco séculos os rudimentos
da sua educação jurídica; mas anteriormente mesmo

78
Nascimento da teoria do direito

tiveram valia para os próprios juristas romanos. E o valor


próprio das lnstitutas não deve ser desprezado.
Porque o clássico manual de ensino romano rea-
liza os desejos de Cícero. Toda a ciência do direito se
organiza aí numa pirâmide de noções tanto quanto pos-
sível definidas.
No vértice superior da pirâmide, o próprio direito,
objecto da nova ciência. Para o definir, o situar em rela-
ção a outras disciplinas; os romanos aproveitaram o
ª2oio da filosofia grega~Sobretucfo~---pare-ce---ílõ-s,
aproveitaram a de Aristoteles~rans-mlfida na retórica
judiciária: porque Aristóteles nas suas Éticas, a sua
Política e a sua Retórica, tinha especialmente dado a
análise da experiência jurídica dos citados gregos,
bastante próxima da romana. Além disso, encontram-se
ª
Q_Q~ n:i n_u C!i§ __ º-9§ j~i s~__Q§_~H9_~_ r_g _r:Q_?:~Q?__ -ªlg~ 11§._t_~ªÇ§s
mais superficiais duma in!!_u~DcLa._Q? mqrªLª§t.óica.
- . - . PorqÜe-1ruma-actividade, e não somente um facto
(não apenas um corpo de regras já constituídas), o di-
reito é definido pelo seu fim. O fim do direito é a jus__tiç_a,
no sentido restrito que Aristóteles distinguira sob o nome
de "justiça particular". Quer dizer que o ofício do juíz -
mais geralmente do jurista - tende a uma partilha - a
melhor possível - dos bens, dívidas, cargos ou honra-
rias entre cidadãos (especialmente entre litigantes).
Suum cuique tribuere, (1.1 pr. -1.1.3., cf. D.1.1.10). O ju-
rista é "sacerdote da justiça" entendido nesse preciso
sentido (O, 1.1.1.1.). O direito é a arte que persegue este
fim: jus est ars boni et aequi (O, 1.1.1. pr., tirado das lnsti-
tutas de Ulpiano).

79
Direito Romano

r Como resolver o problema da divisão boa e equi-


tativa entre os interesses concorrentes? Os romanos fa-
zem a sua doutrina dita clássica do "direito natural", tal
como a encontravam exposta entre os autores gregos e
especialmente em Aristóteles, porque ela era muito rea-
lista, e a mais apta a tomar conta da sua própria expe-
riência ... Existem realmente em cada cidade textos posi-
tivos, porque todo o campo social comporta (e isso
mesmo é natural, observa-se na realidade) autoridades.
Os textos "admitidos" voluntariamente (até mesmo em
parte arbitrariamente) pelas autoridades públicas consti-
tuem uma primeira série de fontes, particulares a cada
cidade: jus civile, numa das acepções do termo. As /nsti-
tutas enumeram as espécies de textos positivos próprios
da cTciade-rõman-a:São as7eTs___ ou os plebls-cltos (saídos
êmRõ-ma-do -votó-cias--assé.mbTefais--popúlares, depois de
terem sido previamente propostas pelos magistrados),
en:i __ ~~g!Jidª-_g_§__?en_§_(º-~-~22!1_~uf~Q-~-'-··ª?_q9l)s_Utuições im-
periais, os éditos de diversos magistrados, . as opiniões
~\JJ9JL~ilÇT~~ª-º~-J~~ço-nsuffos-Vnsi.-T2.3.): ·· · ·
Mas o ju~J?_t~_ ~9í!l.ªQg___§.§t§ _ço_r:i?ciente dE!_ 5lLJE! c:f~v_e
olha~-ºªl-ª-ªL~Ql __Q§_§_§_E:!_? tE!_)(~_C?_?, que uma outra fonte de
soluções justas, mais rica, mais fecunda, mais-vlva~-e-nri­
quecia a-sua-obr-a~-E~argue J_~g_?--9_~direito natural, tirado
da natureza. Espontaneamente, naturalmente (o homem
é naturalmente sociável segundo a doutrina de Aristóte-
les), formam-se justas relações sociais, das famílias, dos
grupos de vizinhos ou de comerciantes, das cidades
bem organizadas. Nada mais há por parte dos juristas
~ue observá-los para lhes descobrir modelos de boas

80
Nascimento da teoria do direito

soluções jurídicas. Por esta via, ele descobrirá não so-


mente modelos de direito apropriados às condições da
vida romana, mas outros que podem ser observados e
são válidos para todos os homens, de qualquer povo a
que pertençam (constitutivos do jus gentium); e mesmo
- segundo um texto de Ulpiano, aliás isolado (que re-
serva para este caso extremo a expressão jus natura/e)
-- tipos de relações sociais, como a união dos sexos, as
relações dos pais com os seus filhos, que pode existir
também entre os animais (lnstitutas de Ulpiano, O,
1.1.1.3.). O d[!eit_q__ ~xiste__ na _l}_atureza, é "o que é justo"
(O, 1.1.11) no respeitante a relações sociais no mundo~
A ju_d.§J?_rudência é_ __~im~_Lr-ª.!:':l_ente descriçª-Q __ g_o
mundo existente. Embora a influência do estoicismo (do
qual o último texto de Ulpiano parece ser também um
testemunho) tenha insuflado no espírito de certos juristas
alguma tendência para o racionalismo - o direito ro-
mano é o contrário dum direito logicame-nte-consfruído
sOErepílnc ípio~ a_e~!9-~fEm-uTffma-·lnstanC:Tá,-apüfa-=se
n~ma série de ob~~i"açõ_~_s, efectuadas em sentido di~
verso da vida real, fonte de opiniões discordantes, a
confrontar dialecticamentB. A obra d0sjüristásrõmanos
é essenClãTmente-reaTista~- Se Pomponius, num texto já
citado, escreveu, que o direito civil no sentido próprio é
obra exclusiva dos jurisprudentes, que o não extraíram
das leis (sJne scripto in-s.ote /ole..rpmtatioo.e P..IY.cfentium
copsistit, D, 1.2.2), eles tiraram-no da observação~ da
natureza: da constituição natural dos agrupamentos so-
ciais, dos tipos de relação de interesses, de parentesco,
de vizinhança, ou de processos espontaneamente sur-

81
Direito Romano

gidos, costumes, bons hábitos existentes no povo ro-


mano (mores populi romani). A jurisprudência repousa
em última instância, e sobretudo no conhecimento das
coisas (notitia rerum, lnst., 1.1.1. - D. 1.1.1 O extraído
dum manual didáctico de Ulpiano).

O pla..-rio das ''L..,,stitutas''

Assim o jurista teórico, vai compreender o objecto


e os meios da sua disciplina.'YA sua tarefa é descrever o
mundo, enquanto ele oculta modelos de relações jurídi-
cas justas~ Depois de Gaius, o manual de Justiniano faz
uso dum plano muito simples, ainda hoje praticado.

t Três coisas devem ser examinadas sobre o vasto


eatro, que é o mundo do direito: primeiramente, quais
são os actores, os homens que negoceiam, litigam,
exercem direitos (personae). Em seguida, o cenário da
cena, os objectos, materiais ou não, de que podemos
fruir ou traficar (res). Finalmente, em terceiro lugar, as
acções que as pessoas podem praticar, as palavras e os
gestos dos actores, as fórmulas de que se utilizam num
processo, um acto jurídico (actiones). Omne autem jus,
quo ultimur, vel ad personas attined, vel ad res, vel ad
actiones. Notamos que este plano tripartido era admi-
rado nas obras de retórica e de ciência gregas.
- É a vez agora das diferentes espécies de pes-
soas, de coisas e de acções serem etiquetadas e classi-

82
Nascimento da teoria do direito

ficadas em boa ordem: assim o boticário arruma sabia-


mente os seus frascos, por ordem de grandeza, na sua
botica. As divisões suceder-se-ão umas nas outras.
Gaius comunica-nos mesmo o eco de algumas disputas
escolásticas, sobre o número dos géneros de acçõesl,
de tutela2, de roubos3, de legados4.
Nós notamos, mesmo nestes tratados didácticos;
quanto o direito romano permanece maleável, aberto a
+l"\M"S ,.,e'"' inl"'\.,,,.,,...;::..,....,.... e,....+,...,... _.,.,....r"l.,..1,....,.... - ·
·-r1 ... ,....,.... ,....,....,...:_, ...... ,....,....,....
lUUCl CI.;) lllUVO.~Ut.:>. L.:>Lt.:> !::JIO.llUt.:> \..jUClUIU.:> a;:,;:,1111 Lla~a-

dos, deixam ficar permanentemente aberta a possibili-


dade de modificar-lhe o conteúdo: e por exemplo enri-
quecer a lista dos bens quando as mudanças económi-
cas fizerem surgir novas espécies de riquezas a recla-i
marem um regime especial. Ou ainda, quando mais
tarde a escravatura romana desapareceu, substituir a
descrição dos escravos pela dos servos ou dos servido-
res. Ou acrescentar às pessoas as "pessoas morais".
A partir da época moderna, a "dogmática jurídica"
terá perdido esta flexibilidade. Os tratados teóricos de di-
reito tenderão a revestir a forma de sistemas dedutivos
de normas, sistemas acabados, fechados em si mesmos,
não deixando mais que um lugar limitado à iniciativa do
jurista. Enquanto que em Roma o direito não tem um ca-
rácter sistemático, permaneceu sempre uma arte, a per-

IGaius, IV. 1.
21d. 1. 188.
3 ld. Ili. 183.
4 ld. li. 192.

83
Direito Romano

seguição incessante do justo apropriado às circunstân-


cias.

A obra dos romanistas

O leitor já sabe que a história do desenvolvimento


romano não se confina a Roma; e que na verdade a
maior parte das nossas noções jurídicas (tais como o di-
reito de propriedade, direito real e direito pessoal, con-
trato, etc.), no seu estado definitivo, têm por autores os
romanistas. Parece-nos mesmo ilusório pretender estu-
dar o direito romano, abstraindo o contributo desses ro-
manistas, porque não poderíamos escapar à sua in-
fluência.
Como dizíamos ao começar, o ressurgimento do
direito romano data do fim do século XI. Então, à Uni-
versidade de Bolonha foram postos à consideração o
Digesto e as lnstitutas, o conjunto do Corpus Juris Civilis.
Os textos romanos foram estudados com um ardor sur-
preendente, na Igreja e entre os laicos, e em breve em
toda a Europa; e as melhores jurisdições pretendem
exigir aos juízes o conhecimento do direito romano. Foi a
época dos glosadores (séculos XII e XIII), em seguida a
dos pós-glosadores e conciliadores (séculos XIV e XV),
os mais célebres dos quais foram Baldo e Bártolo. É
preciso admirar a extensão da sua ciência e não menos
a sua fidelidade ao espírito jurídico romano; se isso não

84
Nascimento da teoria do direito

bastasse, rompidos os métodos da escolástica, eles im-


pelem ainda para mais longe a arte da dialéctica, das
definições precisas, das divisões, da técnica da contro-
vérsia. Mas, no conjunto, eles transmitiram-nos fielmente
a arte romana da jurisprudência, mantendo no direito o
seu carácter de arte flexível e aberta, e não deixando de
adaptar as suas soluções às circunstâncias económicas
e sociais novas da Europa.
Do século XVI ao XIX, o direito romano mantém-se
o fundamento da educação dos juristas. Mas é preciso
aqui notar que uma nova classe de professores tende a
apoderar-se do ensino e da teoria do direito: pessoas na
maior parte desprovida da experiência dos juristas ro-
manos, ou do sentido de observação das realidades ju-
rídicas, que era o método de Aristóteles. Tal foi a fra-
queza dos autores da Escola, dita de direito natural mo-
derno, os Pufendorff, Thomasius, Wolff, etc., que eram
bem mais professores de filosofia, de moral ou de teolo-
gia (alguns outros, de matemáticas) que juristas autênti-
cos. Sobretudo, esses autores alimentaram-se de toda
uma outra filosofia que não era aquela na qual se
haviam inspirado os juristas romanos. Eles tendem para
o racionalismo, e mais tarde para o idealismo, o
subjectivismo, metem-se a pensar o direito a partir do
indivíduo. Sacrificam à admiração do seu século pelas
ciências exactas. Até em França, Jean-Baptiste Domat,
jansenista amigo de Pascal, que foi o autor das Leis civis
postas na sua ordem natural, se preocupou mais em
reduzir o direito a sistema, à maneira cartesiana, do que
em cultivar o génio próprio à jurisprudência romana.

85
Direito Romano

Seguidamente, vieram os Pandectistas, no de-


curso do século XIX, imbuídos da filosofia kantiana, e
que realizaram na Alemanha um imenso trabalho,
criando novas definições da pessoa, dos direitos, dos
contratos, levando~nos inconscientemente, e sob o pre-
texto de nos apresentar a ciência jurídica romana, uma
"teoria geral" radicalmente diferente. Pela obra desses
teóricos, a doutrina jurídica romana foi objecto duma
completa íeforma, e submeteu-nos à sua influência. Por
exemplo, o que o grande público costuma hoje entender
por "direito natural", não tem senão remotas relações
com o antigo direito natural; e os nossos conceitos de
propriedade, de contrato, de pessoa jurídica, não são
mais as noções romanas; os nossos manuais não nos
transmitem mais do que um direito romano falsificado,
porque visto sob óptica diferente, sob novas categorias.
O desenvolvimento do direito romano não é um pro-
gresso contínuo. Sofreu, a partir do século XVII, um
grave desvio.

Valor da teoria jurídica romana

Voltemos a Roma e tentemos avaliar o valor do


trabalho teórico dos jurisconsultos e o fruto que dela co-
lheu a civilização moderna.
A tendência hoje reinante entre os autores é de
lhe prestar pouca atenção. Prefere-se - negligenciando

86
Nascimento da teoria do direito

as lnstitutas e voltando-se mais para outras fontes, es-


pecialmente para o Digesto - elogiar o espírito prático
dos romanos e a sua desconfiança perante a abstrac-
ção. Importam-se pouco com os seus princípios.
Nós devemos aos romanos a existência duma
teoria do direito. Antes da época de Cícero não existia
senão uma prática jurídica. Hoje, "o direito" é, além
disso, uma teoria, que se aprende nos manuais ou nos
f"nnigf"\c
V...,....,., VVI
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'\.ollll'-4 111'-"11...., 1'-"
L...- ......

de conceber o mundo, as suas pessoas, as suas coisas,


sob o ângulo jurídico, como as matemáticas e a física
são uma maneira de aprender pelo espírito as coisas
sob um outro ângulo. Foram os romanos os primeiros
que, ao que parece, tiveram a ideia de construir o direito
sob esta forma fundamentalmente nova.
E na verdade nós alterámos, corrompemos, a arte
jurisprudencial romana. No entanto o fundo da nossa
técnica permanece agarrado a Roma. E muitas vezes
esquecemos a maneira como esses conceitos e esta
teoria foram construídos, entre o século li antes da nossa
era e a época de Justiniano, pelos sábios de Roma, utili-
zando conscientemente e laboriosamente os métodos
dos filósofos gregos.
Todas as grandes forças do mundo antigo pare-
cem, pois, ter concorrido para a formação histórica do di-
reito romano. O velho formalismo romano, o rígido res-
peito pelas liberdades individuais, deram-lhe o seu pre-
ciso carácter de certeza, separaram-no vantajosamente
da moral, das regras menos precisas e sempre discutí-
veis. O sentido da justiça, que floresceu em Roma na

87
Direito Romano

época das grandes conquistas, tornou-a relativamente


apta a satisfazer as necessidades de toda a sociedade
civilizada. A lógica grega deu-lhe uma forma, que torna
possível a sua transmissão. Estas breves notas relativas
aos factores da formação do direito romano permitem já,
talvez, pressentir a grande riqueza e a autêntica quali-
dade do legado de Roma aos juristas modernos 1.

lo leitor que quiser ter uma visão menos incompleta das fontes do direito
romano, deveria também documentar-se sobre o que foram as constituições
imperiais. A partir do século 1da nossa era, estas contribuíram para enrique-
cer ainda o direito romano, outras vezes para o humanizar, algumas outras
para o helenizar.

88
Segunda Parte

ALGUMAS CRIAÇÕES
DO DIREITO ROMANO
Capítulo 1

Classificações das pessoas

Qualquer tratado moderno de direito começa por


uma definição e um estudo das pessoas. É o plano
actualmente seguido em geral que Gaius deve ter
imitado de qualquer livro de retórica grega, e que a
Idade Média reencontrou nas lnstitutas de Justiniano. Os
romanos não se preocupam, aliás, com uma definição
abstracta da pessoa; não são ainda "personalistas", não
proclamam os direitos da "pessoa"; a palavra pessoa
servia para designar, na linguagem do teatro antigo, a
máscara do actor; para os juristas, designa o indivíduo,
enquanto desempenha um papel na cena jurídica, e os

91
Direito Romano

modernos precisarão: que pode ter direitos e obriga-


ções. Mas vive papéis diversos.
É, diz o Digeste (1. 5.2), para as pessoas que o di-
reito é feito. A primeira tarefa dum tratado científico será
enumerar e distinguir bem as diferentes espécies de
pessoas. Todos os indivíduos ocupam situações diferen-
tes perante o direito; nenhum beneficiará talvez da
mesma protecção, será admitido em igualdade a ser titu-
lar de direitos. Por essa razão o Digesto comporta um tí-
tulo sobre o "estado" dos homens "De Statu hominum"; e
o jurisconsulto Paulo distingue três estatutos (Digesto, 4.
5.11 ). Gaius faz também toda uma série de distinções
entre os homens livres e os escravos - entre os cida-
dãos e as diversas espécies de estrangeiros - entre o
pai de família e seus subordinados. Estas distinções,
que correspondem a um estado histórico caduco, não
são mais reproduzidas no direito moderno. Merecem
contudo exame: comparemos neste capítulo o direito
romano com o direito moderno.

As soluções do antigo direito romano

Já tivemos ocasião de notar que o antigo direito


romano não concede protecção senão aos pais de
família romanos, que pela sua associação haviam
formado a cidade e se reservam o benefício das suas
instituições.

92
Classificações das pessoas

Isto exclui três categorias de pessoas:

Primeiramente, os escravos, que são, pratica-


mente, os estrangeiros aprisionados na guerra e todos
os seus descendentes. Segundo os rudes hábitos primi-
tivos, os prisioneiros de guerra perderam toda a espécie
de direito; eles são a coisa do soldado que os capturou,
ou do romano que os comprou na cidade vitoriosa; os
seus senhores podem feri-los, matá-los, dispor deles a
seu bel-prazer; não poderiam ser proprietários (o que os
não impedia de ter uma função - serem, em sentido
romano, pessoas).
Em segundo lugar, os estrangeiros. Também eles
não poderiam usufruir dos processos judiciários reser-
vados aos romanos, quando viessem a Roma; é apenas
na sua cidade natal que eles têm direitos. Verdadeira-
mente, o antigo direito romano concede já a esta solu-
ção rigorosa alguma moderação: distinguem-se diversas
categorias entre os estrangeiros. Os mais próximos dos
romanos, os que estão ligados a Roma na Confederação
latina, os Latinos, vêem ser-lhes conferidos diversos di-
reitos: o conubium ou direito de contratar casamento
com os romanos - o commercium, direito de realizar
actos jurídicos - a legis actio, direito de agir em justiça
segundo os ritos do antigo processo. Uma ou outra prer-
rogativa pode também ser concedida, pela via dum tra-
tado geralmente recíproco, a outros estrangeiros, cha-
mados peregrinos. Nós encontrámos, por exemplo, o
texto dum tratado semelhante concluído entre Roma e
Cartago.

93
Direito Romano

Em terceiro lugar, enfim, o estatuto de indivíduo


autónomo de direito é recusado, nas famílias, a quem
não for o pai; assim o exige a forte organização familiar
duma sociedade agrícola, dividida numa multidão de
pequenas explorações submetidas à autoridade dum
chefe. Os filhos e filhas, qualquer que seja a sua idade,
enquanto o pai viver; as mulheres, logo na altura do ca-
samento.caem sob o domínio da nova família (assim
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parto
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das famílias romanas); os servidores; nenhuma destas


pessoas poderia ter bens, nem outros direitos individuais
quaisquer que pudessem exercer em justiça. Elas não
são sui juris. Isso não quer dizer que de facto não encon-
trem uma protecção nas regras da moral ou da religião
romana; que a sua condição de facto, assim como a dos
escravos, seja necessariamente miserável; mas o direito
civil quiritário não foi edificado para eles.

As transformações do direito de fanúlia

Resta portanto seguir, através da idade clássica e


pós-clássica, as transformações trazidas aos rigores do
velho direito, que conduziram às soluções do direito ro-
manístico moderno.
Isso começa por transformações no interior da
família romana. O desenvolvimento do comércio, a in-
fluência duma filosofia já muito individualista, não permi-

94
Classificações das pessoas

tem manter o filho na sua situação subordinada. Pela


prática da emancipação, imaginada pelos jurisconsultos,
e que liberta os filhos das ligações com a sua família, o
pai poderá libertar os filhos da sua autoridade. Mas,
mesmo quando se não procede à emancipação, se os
filhos permanecem no interior da sua família, eis que os
hábitos de sociedade lhe permitem gozar dum certo pe-
culio: duma certa importância que lhes advém, quer dos
seus trabalhos pessoais, quer da liberdade paterna. So-
bre esse pecúlio poderão efectuar actos jurídicos, ven-
das, compras, empréstimos. Com maioria de razões os
imperadores reconheciam aos filii famílias, agora ofi-
cialmente, um direito sobre o seu soldo militar ou o seu
vencimento de funcionário. Abre-se-lhes o acesso aos
tribunais, uma série de acções em justiça é-lhes permi-
tida. O que resta do antigo domínio paternal aparece
visto com desfavor. E os jurisconsultos observaram que
a patria potestas é uma instituição do direito civil, particu-
lar aos cidadãos romanos ( Gaius, 1.55. lnstitutes de Jus-
tiniano, 1.8.2): e é desde então atacada ao ser desig-
nada como contrária ao direito das gentes.
Quanto à mulher casada, um novo regime a li-
berta, lhe traz, em relação ao seu marido, a indepen-
dência jurídica. Isso ajusta-se aos costumes naturais
feministas do fim da república. Será preciso que o uso
dos contratos de casamento crie um tipo de bens espe-
cial, o dote, administrado pelo marido, e portanto prove-
niente da mulher e destinado a voltar a pertencer-lhe.
Isto para manter uma direcção de facto necessária na

95
Direito Romano

vida do lar. Mas em direito, a esposa romana é tornada


igual ao seu marido.
O direito moderno não deixou de acolher estas
inovações, antes de acabar em soluções radicais. A au-
toridade paterna romana pôde subsistir até ao Código
Civil em certas províncias francesas, ao mesmo tempo
por um excessivo servilismo para com o direito romano,
e porque o regresso a uma economia quase puramente
agrícola a legitimava de novo; nas províncias do Norte,
dizia-se desde o século XVI, que "autoridade paterna
não tem lugar" ("puissance paternelle n'a lieu"). A mulher
casada, no nosso código civil recentemente revisto,
encontra-se rigorosamente autónoma; o direito cristão
tinha podido colocá-la numa situação subordinada,
impor-lhe oficialmente "obediência", feri-la de inca-
pacidade no domínio patrimonial; nunca foi questão, em
direito moderno, negar-lhe aptidão a ter direitos.

A condição dos estrangeiros

Não menos surpreendente é a evolução respei-


tante aos estrangeiros. Já o direito antigo tinha tendên-
cia a conceder, por acordos particulares, aos homens
das cidades estrangeiras o benefício das leis romanas.
O que será, quando os peregrinos, gregos, asiáticos,
gauleses, espanhóis, africanos - foram incluídos no
imenso mundo romano, chamados a acompanhar dia-

96
Classificações das pessoas

riamente, na prática dos negócios, os cidadãos roma-


nos?
Tudo conduz ao abandono do antigo egoísmo. O
interesse do comércio, a florescência de novas filosofias
humanitárias (para os estóicos, que se elevam a estas
altas concepções antes do cristianismo, todos os ho-
mens são iguais), a cultura superior de alguns povos
vencidos, a conveniência política. Um primeiro passo foi
dado quando os jurisconsultos reconheceram a existên-
cia dum direito das gentes, válido para todos os estran-
geiros; certos actos, ditos "do direito das gentes" - a
venda, o aluguer, a sociedade, estão, pois, abertos aos
peregrinos, e também o recurso em justiça pela via do
novo processo formulário. Para as acções do direito civil
antigo, basta ao pretor modificá-los acrescentando-lhes
uma ficção"l para os tornar aplicáveis aos peregrinos.
Mas não é o bastante. Roma distribui generosamente
aos povos vencidos o privilégio apetecido do direito de
cidade; S. Paulo, do tempo de Cristo, é cidadão; lembre-
-se como o imperador Cláudio dá a cidadania aos
gauleses. No ano 212, o imperador António Caracala,
por uma medida geral cuja razão era, aliás, sobretudo
de ordem fiscal, concede-a a quase todos os habitantes
do mundo romano. Não restará ninguém não cidadão,
no tempo de Justiniano, a não ser estrangeiros feridos
de incapacidade jurídica, e alguns condenados por
crime grave.

1Supra, Valor da justiça da Roma clássica.

97
Direito Romano

O nosso direito moderno recebeu o benefício


desse longo progresso. Houve e haverá ainda tentativas
para privar certos homens da participação no direito: na
Idade Média, em nome da religião - numa época re-
cente em razão da raça. Mas esses males não nos vie-
ram de Roma.

A condição dos escravos

A terceira exclusão dizia respeito aos escravos. As


mesmas circunstâncias económicas e intelectuais jogam
a seu favor. Séneca, numa célebre epístola a Lucilius,
afirma a sua qualidade de homens, iguais aos outros
homens. Mas Roma não os fez objecto de direitos.
O interesse das classes dominantes não benefi-
ciava com isso; uma multidão de escravos mais ou me-
nos miseráveis trabalha ao serviço duma população
ociosa. A escravatura parecia uma necessidade social.
Alguns grandes filósofos, tal como Aristóteles, assim de-
cidiam. Pelo menos a libertação, fortemente praticada na
época do desenvolvimento da civilização romana, e em
seguida sob a influência dos sentimentos cristãos, dimi-
nui o número dos escravos. E a instituição costumeira do
pecúlio (conjunto de bens deixado de facto à sua dispo-
sição) suavizou a sua sorte; porque os filhos de família
não são os únicos a ter um pecúlio. Os imperadores cas-
tigaram a crueldade dos amos. Também não é nada

98
Classificações das pessoas

demais que certos juristas tenham reconhecido que o di-


reito natural seja contrário à escravatura. Isto constitui -
diz o Digesto - uma instituição do direito das gentes
contrária à natureza (Digesto, 1.5.4). No que concerne o
direito natural, o escravo pode obrigar-se, como qual-
quer outra pessoa jurídica. (É assim que nasce a célebre
teoria da obrigação natura~.
Os textos romanos sobre os escravos não tiveram,
pois, dificuldade em se aplicar aos servos da Idade Mé-
dia que usam o mesmo nome (servi). Já fortemente sua-
vizado graças à influência cristã, a servidão desaparece
em França, no século XIII, a favor das circunstâncias
económicas, muito tempo antes de ser negada pelas
declarações verbosas do século XVIII. O direito romano
reconhecia uma pluralidade de pessoas; o nosso idea-
lismo moderno reduziu-as à unidade.

As pessoas morais

Os textos romanos sobre as pessoas não teriam,


pois, hoje aplicação para além de algumas regras de
pormenor, como por exemplo a que reconhece uma
certa personalidade à criança antes do seu nascimento.
"lnfans conceptus pro nato habetur quotiens de ejus
commodis interest''.
Mas existem, no sentido técnico da palavra outras
pessoas além dos indivíduos. Fala-se hoje de pessoas

99
Direito Romano

"morais", de pessoas "jurídicas" (no sentido restrito), de


pessoas "imaginárias"; são, por exemplo, agrupamentos,
estabelecimentos de beneficiência, fundações de cari-
dade, que têm um património, que têm direitos, que os
exercem em justiça. Assimilam-se, portanto, às pessoas.
Que isso seja ou não em virtude duma "ficção", que a
intervenção do Estado seja necessária ou não para fazer
admitir esta assimilação, pouco nos importa aqui: a dou-
trina moderna está repleta de análises abstractas, de
nevoeiros germânicos nem sempre fáceis de desvendar.
Esta teoria moderna, segundo o seu próprio tes-
temunho, tem a sua origem no direito romano: não é
preciso mais do que ler um tratado da personalidade ju-
rídica, como o de Saleilles, para ver que as bases são
romanas.
O direito romano conhece as pessoas morais. Não
que a teoria seja então prolixa; foi preciso esperar que
ela se elaborasse na Idade Média e na época contempo-
rânea, e é por isso sem dúvida que é tão defeituosa; a
palavra das pessoas pode faltar, substituída algumas
vezes pela das Universitates, para designar os agru-
pamentos agindo como um único ser sobre a cena jurí-
dica. Mas de facto, os agrupamentos existem, e a sua
acção é reconhecida.
De maneira alguma sucedia o mesmo no Estado
romano; ele não actua com os mesmos meios que os
particulares e não poderia condescender em se
apresentar como uma pessoa de direito privado. Os seus
bens "res publicae", coisas públicas, recebem um regime
especial. Assim como os municípios do império romano.

100
Classificações das pessoas

Quer dizer que, para simplificarmos, certas cidades


englobadas no Estado romano , habituadas a agir como
tais, a ter um património próprio e direitos próprios, sobre
o plano internacional, se encontram muitas vezes
projectadas para a conquista no terreno do direito
privado. Representadas por qualquer magistrado, elas
actuam em justiça em seu próprio nome; e o Édito do
pretor admite-o expressamente. Mas essas "sociedades
de publicanos", tão importantes na vida económica do
fim da república é que fazem pensar no avanço das
nossas grandes sociedades por acções. Uma grande
quantidade de associações, colégios de artesãos,
colégios funerários (sabe-se que as igrejas cristãs dos
primeiros séculos tomaram por vezes essa forma), que
múltiplas inscrições nos revelam terem pululado na
Roma Imperial.
No Baixo-Império cristão, a mesma personalidade
jurídica existe praticamente em benefício das igrejas ou
das piae causae, as fundações de caridade. Os impera-
dores autorizavam-nas a receber dádivas e legados.
São aceites a agir em justiça como particulares. E o Di-
gesto recolhe num título especial (livro 19, título IV), o
que diz respeito às acções em justiça de todas as espé-
cies de Universitates: isso prova até que ponto se tem
consciência que todos esses agrupamentos, ou funda-
ções, têm um carácter comum, o de constituirem pessoas
jurídicas.
Aos glosadores da Idade Média resta completar a
teoria. Fazem-no, pensando sobretudo na Igreja católica.
Ela tem direitos, um património. Ora, como conceber a

101
Direito Romano

sua situação no teatro jurídico, a ela que se não con-


funde nem com o conjunto dos fiéis, nem com o corpo do
clero, nem mesmo com a pessoa do seu fundador Jesus
Cristo, sem recorrer à noção de pessoa moral? Bártolo
emprega pela primeira vez o termo "pessoa fictícia". Do-
mat, Pothier, nos seus tratados sistemáticos do direito,
começam a colocar as pessoas morais ao lado das pes-
soas reais, os indivíduos. Conhece-se o desenvolvi-
mento que esta teoria tomou, no mundo contemporâneo,
em consequência do florescimento das grandes socie-
dades comerciais; no recente Código civil soviético, a
teoria atinge proporções consideráveis!. É de assinalar
que as suas bases se encontram no direito romano.

Os incapazes

Porque não existia em Roma a nossa noção idea-


lista abstracta da personalidade, não se encontra nela
uma definição de capacidade jurídica. Mas, realistas,
extraindo o direito do espectáculo da sua sociedade,
dedicando-se exclusivamente a descrever as diversas
espécies que compõem o pessoal da cidade, os juristas
romanos perceberam que entre as pessoas jurídicas
existem as que são incapazes, por qualquer circunstân-

!Lembramos ainda a recente tentativa, fortemente justificada do ponto de


vista teórico, de atribuir a personalidade jurídica à família.

102
Classificações das pessoas

eia de facto, de exercer normalmente os seus direitos, e


que é preciso (tudo para lhes preservar o usufruto teó-
rico dos direitos) proteger e pôr sob tutela. Enumerando
longamente os que estão "em tutela e curatela", (lnst. 1,
192 a 199), Gaius dá-nos a futura lista dos incapazes.

1. A incapacidade da mulher - Pode-se pensar em


estabelecer incapacidades de categorias muito diversas
de pessoas. Por exemplo, o direito, da Idade Média,
francês declarava incapazes os judeus, os heréticos.os
lombardos, os bastardos; cada classe social tinha
mesmo o seu regime jurídico; as mesmas leis não se
aplicavam para os clérigos, os nobres, os plebeus; aos
estudantes, aos doentes, aos pobres; por outras pala-
vras, existia uma rica floração de incapacidades jurídi-
cas. O regime que distingue segundo as classes, as pro-
fissões, a riqueza, a saúde, pode por outro lado parecer
muito objectivo e realista e far-se-iam as mesmas obser-
vações em outras legislações semelhantes. Nesta maté-
ria como em outras existem diversos sistemas jurídicos
passiveis.
O direito romano também conheceu tipos de inca-
pacidade hoje desaparecidos. A mais notável é a da
mulher. No antigo direito a mulher é incapaz. Não so-
mente na hipótese onde se encontrava submetida ao
poder paternal, dum ascendente ou do seu marido:
porque então ela não seria mesmo sui juris, para
empregar os termos do antigo direitol.Mas até na

lver mais atrás" As soluções do antigo direito romano".

103
Direito Romano

hipótese onde, pelo jogo das sucessões, a mulher se


encontre independente, à testa do lar, lhe é recusado
exercer livremente os seus direitos. Isso explica-se: a
fragilidade ou os costumes impedem-na de cumprir as
tarefas do chefe de família. Ela, que não entra no
exército, não poderia por outro lado ter todas as
prerrogativas reservadas aos cidadãos. Sem dúvida
também se receia que pelo seu casamento faça sair da
família os bens hereditários. Em suma, a mulher não
poderá jamais vender os seus bens, emprestar, agir em
justiça, duma maneira normal: põe-se sob tutela.
Na época clássica (da qual datam os primeiros
textos conservados sobre a matéria), esta incapacidade
aparecia como uma sobrevivência mal justificável.
Gaius, que a verifica no século li, nota que é uma dessas
velhas instituições, que fazem parte do direito civil, mas
que nenhuma razão válida legitima; dever-se-ia fazer
como na economia: "a crença comum, segundo a qual
as mulheres teriam necessidade das directivas dum tutor
em razão da sua ligeireza de espírito, é uma razão mais
especiosa que verdadeira. De facto, é correntemente
que se vê em Roma as mulheres conduzirem os seus
próprios negócios" (1.190). Assim, o direito clássico, pe-
los seus processos sinuosos, com os quais usa corrigir o
direito civil, esforça-se por reduzir a sua incapacidade:
os actos jurídicos de aparição recente estão abertos à
mulher sem necessidade da intervenção de tutor. Per-
mite-se à mulher intervir na denominação do seu próprio
tutor, e goza mesmo dum recurso contra as suas deci-

104
Classificações das pessoas

sões. No Baixo-Império a tutela, por desuso, desapare-


ceu, e com ela a incapacidade.
Certas épocas (por exemplo na época bárbara)
ressurgem, pelas mesmas razões, as antigas soluções
do direito civil romano. O nosso direito e os nossos hábi-
tos combinam-se naturalmente com o direito de Justi-
niano: deixa de haver incapacidade fundada sobre a
razão do sexo.

2. A situação do louco e do pródigo - Desde a época


antiga das XII Tábuas, uma situação jurídica era conce-
dida ao louco, "furiosus" - não se trata sem dúvida se-
não duma loucura grave e certa. Não se pode deixar ao
louco a direcção dos seus afazeres. Será colocado, diz a
lei das XII Tábuas, sob a autoridade dos mais próximos
membros da sua família. Mais tarde designar-se-á pelo
nome de curador a pessoa encarregada dos seus
assuntos (é ainda o nome que se usa no nosso direito) e
arranjar-se-á a curadoria de tal maneira que sejam
protegidos os interesses do louco.
Contrariamente a outros direitos, o direito romano
não atribui incapacidade às outras doenças; é dema-
siado cioso na defesa da liberdade da igualdade dos ci-
dadãos. Só o pródigo, aquele que levianamente dissipa
os bens que recebeu dos seus antepassados, enfrenta
os rigores do direito; os usos romanos de rude economia
opõem-se a essa desordem, e a família vigia contra as
imprudências do seu chefe passageiro. Numa cerimónia
solene o pretor interdita, após inquérito, o pródigo (a
interdição judiciária do louco ainda não é conhecida do

105
Direito Romano

direito romano); será colocado, como o louco, sob tutela.


Todos estes termos passaram, tais quais, ao direito fran-
cês.

3. os impúberes - Mas a mais importante das inca-


pacidades do antigo direito é a dos impúberes. A
criança, que não atingiu a idade da puberdade e vestiu a
toga viril, é muito evidentemente demasiado jovem para
pleitear, !?ara exercer as diversas atribuições da pessoa
jurídica. E antes de mais nada privado do acesso às as-
sembleias públicas, aos comícios, onde se praticam
muitos actos do direito civil. Também ela, convém ser
posta sob tutela.
O direito clássico conserva naturalmente a inca-
pacidade do impúbere. E precisa-a: os jurisconsultos
discutem sobre a idade em que será considerada como
chegada a puberdade. A escola dita dos "Sabinos" quer
que isso permaneça uma questão de facto. Mais inova-
dora, a escola dos "Proculianos" já tende para fixar uma
data para a maioridade, que seria dos doze anos para
as raparigas e catorze para os rapazes (Gaius, 1.196).
Quanto à incapacidade em si mesma, limitam-na: ela
não será absolutamente igual para o infans, que não
sabe ainda falar (o que é o sentido etimológico da pala-
vra infante), o infantiae proximus, o que está ainda pró-
ximo da infância assim compreendida, a pubertati proxi-
mus. Os impúberes poderão pelo menos concluir certos
actos jurídicos, os que "tornam melhor a sua condição" e
não os põem em risco de os empobrecer. Estes actos
estão classificados. De qualquer maneira, muito poucos

106
Classificações das pessoas

actos jurídicos podem ser permitidos a crianças tão jo-


vens.

A tutela dos impúberes - Porque o impúbere não


pode exercer pessoalmente as acções e os direitos que
lhe pertencem, é preciso substituí-lo.
A solução do antigo direito é simples. A criança é
incapaz de exercer o seu papel de chefe de família; al-
guém a substituirá; será o parente mais próximo da
mesma família, ou a pessoa designada pelo precedente
chefe de família, no seu testamento, porque o costume
romano é que antes de morrer o pai regule minuciosa-
mente, pelas cláusulas do seu testamento, a sorte da
sua casa. O homem chamado a substituir o impúbere in-
capaz é nomeado tutor; agirá como dono da casa sobre
o património familiar; disporá dos rendimentos, intentará
as acções - tem poder sobre o impúbere como sobre os
outros membros da família. Força e poder, vis ac
potestas. Assim Servius Sulpicius definiu ainda a tutela
no fim da república, na época da primeira voga de
definições. Em suma, o tutor exercerá sobre a família e
sobre o próprio pupilo, uma verdadeira autoridade pa-
terna, com pouca diferença porque o é a prazo, que ces-
sará quando o pupilo atingir a idade da puberdade.
Mas bem depressa a tutela será remodelada num
sentido favorável aos interesses do impúbere. A huma-
nidade impõe que se pense nos seus direitos, dos quais
precisará, pois a incapacidade não lhe afectou a exis-
tência. Ele é o verdadeiro titular do património familiar.
Desde então, duas acções derivadas das XII Tábuas pu-

107
Direito Romano

niram o tutor que, ao largar o seu encargo, não efectuou


correctamente a restituição. Logo que na época clássica,
as tendências individualistas prevaleceram, as quais
fazem passar para segundo plano o interesse familiar e
para primeiro o interesse particular do impúbere, esta
responsabilidade foi aumentada. O tutor geriu o negócio
do seu pupilo e deve prestar-lhe contas: o pretor
concede ao pupilo neste propósito a acção tutelae;
obriga, pela via duma estipulação pretoriana, o tutor a
dar uma caução, a fornecer garantias ao pupilo. Por ve-
zes, não hesita em chamar a si a nomeação de tutor.
A doutrina jurídica tira a consequência destas ino-
vações. A tutela mudou de carácter; não é mais um di-
reito, uma dominação, mas um encargo, um munus, que
não será confiada senão a cidadãos de mérito; tanto
quanto possível, àqueles que parecem mais capazes de
proteger a criança. O fim da tutela, é agora o proteger
aquele que, em razão da sua idade, não se pode defen-
der: ad tuendum eum qui, propter aetatem, se defendere
nequit (lnstitutas de Justiniano, 1, 13, 1). Os juristas ro-
manos, que usam voluntariamente da definição por eti-
mologia (duma maneira aliás muito fantasista, no julga-
mento dos modernos filólogos), dizem que tutor vem de
tuitor, quer dizer protector.
Assim se completa o regime da incapacidade dos
impúberes. Toda uma rica regulamentação, da época
imperial, prossegue no arranjo. O direito moderno re-
tomá-lo-á tal qual, nas suas grandes linhas, após o
eclipse que representam a época franca e a Idade Mé-
dia, em instituições muito diferentes.

108
Classificações das pessoas

4. Os menores de vinte e cinco anos - Havia uma


grande lacuna nesse direito romano, tal como se des-
creveu até aqui. Visava somente o caso dos pupilos im-
púberes, quer dizer mais novos que doze ou catorze
anos. Conviria deixar os jovens de quinze anos sem
protecção jurídica particular? O teatro de Plauto mostra à
medida dos seus desejos os usurários de Roma especu-
lando sobre a ligeireza de espírito e a generosidade
sentimental, que é própria dos jovens; representam aí o
papel de pródigos. E isso desagrada aos defensores dos
velhos hábitos romanos. Os juristas da época clássica
encontram-se perante essa necessidade social; elevar a
idade de capacidade jurídica das crianças. A evolução,
que se verifica a este respeito ,é um exemplo notável da
maneira como se desenvolvem em Roma as instituições
jurídicas.
Vemos o pretor - sob o impulso duma lei um
pouco anterior a Plauto, a lei Laetoria, prometer uma
nova acção; é feita contra os homens que enganaram,
lesaram, seduziram, um adolescente, negociando com
ele. O adolescente deve ser menor de vinte e cinco
anos, minar viginti quinque annis, donde proveio a
nossa palavra menor. O culpado é punido com uma
pena pesada. O pretor não se contenta com isso. Usa a
restitutio in integruml. Quando um acto jurídico é pas-
sado com um menor (quer se trate duma venda, dum
empréstimo, ou mesmo duma acção judiciária) e que o
menor, tarde demais se julga lesado, o pretor convoca

1Ver mais atrás, Outras criações pretorianas.

109
Direito Romano

as partes a vir perante si, examina a causa, verifica ave-


racidade do dano, que se abusou dum menor, que o
acto não se efectuou correctamente; e, se há lugar para
isso, anula o acto, suprime todas as consequências, or-
dena "restabelecer" a situação anterior.
Que se passa então? Com medo de caírem sob o
efeito da nova acção, ou da restituição pretoriana, os
romanos não ousam mais contratar com menores. Os
menores não encontram mais pretores ou compradores.
A menos que confiem o cuidado de gerir o seu negócio a
uma pessoa idosa que responda pelos seus actos;cada
vez menos, se não se fazem assistir por uma tal pessoa.
Assim como aos pródigos, incapazes de agirem sós, dar-
se-á aos menores um curador. A sua curadoria genera-
liza-se talvez sob a influência de instituições próprias
dos povos da parte oriental do Império. As lnstitutas de
Gaius já falam de menores, ao lado de diversas catego-
rias de incapazes. Sob Justiniano, a curadoria dos me-
nores é pouco mais ou menos comparável à tutela dos
impúberes; as duas condições são semelhantes. Em
suma, a idade da plena capacidade elevou-se de doze a
catorze anos, para vinte e cinco anos.

Direito moderno - O direito moderno adaptou


este resultado. Alguns pormenores somente foram
modificados. A evolução ,que tendia para confundir a
sorte dos impúberes e dos menores, é agora pros-
seguida. "Tutela e curadoria é tudo o mesmo", dizia
Loysel no século XVI. A doutrina classificou mais
nitidamente o adolescente entre os incapazes. A idade

11 o
Classificações das pessoas

da maioridade foi rejeitada, após algumas flutuações, de


vinte e cinco para vinte e um anos. A organização da
tutela recebeu dos costumes cristãos da Idade Média
alguns aperfeiçoamentos: um conselho de família vigia o
tutor. Mas o conjunto é romano, e isso é tão verdadeiro,
que desde o século XV os nossos costumes franceses
são mudos sobre a tutela, sendo esta matéria tida como
regida pelas leis romanas. Duma maneira geral, as
incapacidades admitidas no nosso direito sã.o as do
direito Justiniano.

111
Capítulo Il

Descrição das coisas

As "lnstitutas" continuam pelo estudo das coisas,


quer dizer dos bens, para a fruição e a posse das quais
nascem conflitos entre as pessoas, sendo a função do
jurista atribuir a cada um o que lhe pertence. Como vê o
jurista as coisas, distingue as suas diversas espécies?

113
Direito Romano

Primeiras divisões

As "lnstitutas" enumeram-nos no começo do seu


livro li: primeiramente, há as coisas sagradas, que per-
tencem aos deuses, e os túmulos, que pertencem aos
manes ou deuses inferiores. O dir!3ito moderno rejeita
esta análise, contudo muito fina e de inspiração muito
elevaâa, que o direito medievai tinha conservado: para
um jurista da Idade Média, as igrejas pertenciam ao
santo patrono onde eram guardadas as relíquias, as ter-
ras do papa a S. Pedro, a terra Santa a Jesus Cristo.
Depois, há as coisas públicas, muito importantes, que
pertencem ao Estado e a Roma, são subtraídas ao di-
reito privado (eis uma muito útil categoria, que parcial-
mente perdemos) - e as coisas comuns, tais como o ar
e o mar. Estão todas fora do campo do direito privado, e
"fora do comércio".
Quanto às coisas do direito privado, depressa va-
mos verificar que a sua lista é acrescida no decurso da
história romana assim como a das pessoas. Do mesmo
modo que o direito quiritário priva os peregrinos de toda
a protecção jurídica, também se desinteressa pelas coi-
sas não romanas, mais tarde "não itálicas", inumeráveis
terras da província, há longo tempo classificadas coisas
públicas, insusceptíveis de propriedade quiritária. Mas
pouco a pouco entraram na esfera do direitol. Uma úl-
tima categoria de coisas chegou mais tarde a enriquecer

lver intra.

114
Descrição das coisas

o direito romano; estou a referir-me às coisas incorpó-


reas, que aparecem na doutrina e prática jurídicas, perto
do fim da República, a favor de doutrinas filosóficas.

Sobre a influência da filosofia grega

Sabe-se quanto, na época ciceriana, o ensino das


filosofias impregnou o pensamento jurídico romano; os
conceitos gregos recobriram o direito, tornaram a servir
com precisão para a construção da nova ciência jurídica.
Os gregos têm uma filosofia das coisas. Como ela
foi utilizada particularmente pelos jurisconsultos, ver-se-
-á na curiosa obra de Sokolowski sobre "a filosofia no di-
reito privado" romano. Por exemplo, todo o mundo sabe
que a filosofia distingue em cada coisa a forma e a ma-
téria. Isso não será inútil para os nossos juris-
tas.Suponhamos que um escultor se apodera da argila
de outrem e a utiliza: a quem pertence a estátua? Os se-
guidores da escola de Aristóteles respondem: ao escul-
tor porque em cada coisa a forma é o essencial e o es-
cultor é o criador da forma. Os jurisconsultos, pelo con-
trário, que se aproximam da escola dos estóicos, e que
são na espécie os Sabinianos, sustentam que na coisa o
essencial é a matéria: a argila, portanto, que resta ao
seu primeiro proprietário. Suponho que, na prática, se
pelo menos a estátua não era demasiado má, o juíz teria
pendido para a opinião dos aristotélicos por razões tal-

115
Direito Romano

vez menos metafísicas, menos severamente lógicas


também, ou pelo menos, exprimidas duma maneira me-
nos lógica. O direito moderno também decide o litígio por
argumentos de bom senso e de interesse prático. Mas
voltemos às coisas incorpóreas.

As coisas corpóreas e incorpóreas

Os filósofos da escola de Aristóteles ensinam que


existem duas categorias de coisas: aquelas que os sen-
tidos percebem corporalmente e as que o espírito per-
cebe pela abstracção. Cícero encarrega-se de difundir
em Roma, em algumas passagens pedantes, a doutrina
grega; ele distingue as coisas que se podem ver e tocar,
por exemplo uma propriedade rural, uma casa, um
escravo, e as que unicamente são compreendidas pelo
espírito, por exemplo a tutela, o parentesco. E Séneca
por sua vez adaptou a lição grega. Procuremos, desde o
século li, nas ,lnstitutas de Gaius (li, 12, 13 e 14). Entre
as divisões das coisas, diz ele, é preciso dar um lugar à
das coisas corpóreas e incorpóreas.
Há, primeiramente, coisas corpóreas, as que se
podem tocar: um campo, um escravo, um vestuário, o
ouro. Após um longo período, essas coisas entraram na
esfera do direito romano. Mas não tem o direito também
as suas coisas incorpóreas? Gaius dá-nos uma lista das
descobertas há ainda pouco tempo pelo engenho dos

116
Descrição das coisas

juristas: o património hereditário (concebido como tal,


abstractamente, como um conjunto de direitos e de dívi-
das, o usufruto, os créditos, as servidões. Certamente
que o regime desses bens incorpóreas não poderia ser
completamente o mesmo que o dos bens corpóreos: as
duas categorias de coisas devem ser distinguidas. Mas
também subsiste nas coisas incorpóreas toda uma nova
categoria de bens que vêm engrossar o número dos
objectos de direitos.

1. As servidões de passagem - Leiamos a lista de


Gaius. Ela estende-se particularmente sobre um exem-
plo, o das servidões de passagem, de que nos oferece
mesmo uma enumeração.
A história das servidões de passagem é hoje co-
nhecida nas suas grandes linhas. Tem origem numa
época recuada, dos tempos antigos onde, em seguida à
partilha das terras outrora comunsl, a apropriação pri-
vada dos campos se expandiu. Certas terras, assim se-
paradas das terras vizinhas, não tinham passagem até à
estrada comum, ou a água necessária para a sua agri-
cultura: estamos na Itália central, dum país de irrigação.
O proprietário da terra deverá reservar-se o privilégio de
passar através do campo do seu vizinho, ou de ir buscar
água. Os juízes da época antiga deram desta situação
uma análise bastante grosseira: o nosso proprietário, di-
zem eles, deve assegurar-se da propriedade do cami-

1Ver adiante "O domínio ex jure quiritium".

117
Direito Romano

nho que atravessa o campo do vizinho, ou da fonte que


lá se encontrai.
Vem importada da linguagem dos gregos, a noção
das coisas incorporais. Ela é para os nossos juristas um
raio de luz: o que o proprietário quer do nosso campo,
não é necessariamente o caminho em si mesmo ou a
fonte do seu vizinho: coisas corpóreas; é somente a fa-
culdade de tirar água da fonte ou a faculdade de passar
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1

reas. Mas as coisas incorpóreas não têm também, se-


gundo os filósofos, a sua existência? Também não se
pode adquirir a propriedade? Uma propriedade cujo
objecto, não será mais o caminho em si mesmo ou a
fonte; mas a vantagem de tirar do caminho uma quali-
dade, um serviço do caminho. O pretor dará uma nova
acção, pela fórmula da qual se reivindica não mais a
própria coisa, mas o "jus", o "iter" (a passagem) ou o
haustus (tiragem de água). Tal é a servidão de passa-
gem, como o sabem analisar pelas primeira vez os juris-
consultos da época de Cícero (ver particularmente Di-
gesto, 8.3.30).
Esta nova análise é própria para enriquecer ma-
ravilhosamente o direito. A lista das coisas incorpóreas
vai engrossar-se rapidamente com um grande número
de servidões novas: eu posso ter um direito, não apenas
sobre a faculdade de ir pela propriedade do meu vizinho

lpasso sobre o ponto de saber se esta propriedade era" dividida" e comum


com a do vizinho: porque este pretende também utilizar o seu caminho ou a
sua fonte.

118
Descrição das coisas

(servidão de passagem) e sobre a de tirar água (ser-


vidão de extrair água), mas sobre a de fazer passar uma
canalização (servidão de aqueduto), de apoiar a minha
casa sobre o seu imóvel (servidão de apoio); de ver
através do seu jardim (servidão de vista); de impedir
uma construção que tape a vista das minhas janelas. Eu
posso reservar-me o direito de habitar a sua casa, sem a
ter para mim na totalidade (habitação); usar de uma das
suas coisas (uso); e de também utilizar as produções (é
o usufruto).
Assim se multiplicaram, pela adjunção de novas
coisas incorpóreas, os objectos possíveis de direito, as
coisas no sentido jurídico do termo (o que em francês se
chama os bens). Resta à ciência jurídica reunir todas
estas novas criações recebidas pela prática ao conceito
único de servidões: o que se aperfeiçoou, parece, so-
mente sob Justiniano. Sob este nome nos foram deixa-
das. A teoria das servidões, tal como se pode ler no
nosso código civil, é toda tirada do direito romano. E o
próprio nome "servidões" (servidões de extracção, de
aqueduto, de passagem de águas) transporta para os
nossos climas o perfume dos países do mediterrâneo,
dos países da irrigação e de violentos aguaceiros.

2. A hereditariedade, o património - Antes de citar as


servidões entre as coisas incorpóreas, Gaius assinalava-
nos a hereditariedade, o património hereditário. Esta no-
ção é também produto dum longo progresso.

119
Direito Romano

Seria muito incómodo tratar separadamente cada


um dos valores que formam o património dum defunto e
que devem passar em bloco ao herdeiro. Desde a lei
das XII Tábuas o vocabulário jurídico designa este con-
junto de bens pelas palavras família pecuniaque. Famí-
lia, seriam, segundo certos autores, todas as coisas
mancipi, os escravos, os animais domésticos, talvez as
herdades. Pecunia, designaria res nec mancipi, a pala-
vra vem de pecus, rebanho. Aplica-se também ao di-
nheiro rapidamente. De todas as maneiras, família pe-
cunia, que não designa senão o conjunto dos bens cor-
póreos do defunto; este conjunto, que forma uma uni-
dade, assim como um conjunto de carneiros forma certa
unidade, o rebanho (uma única coisa formada de partes
distantes, um corpus ex distantibus, como diriam ainda
os Estóicos).
Mas, em breve, o espírito jurídico se clarifica: a he-
reditas vem colocar-se na lista das coisas incorpóreas.
Ela é uma verdadeira abstracção que não tem realidade
sensível, que só o espírito pode conceber, compreende
não só todos os objectos concretos de que o defunto era
proprietário, mas os seus créditos, mais as suas dívidas.
Pode-se reivindicar em bloco todo o património do de-
funto, o passivo nele compreendido, pela acção cha-
mada hereditatis petitio. Pode transmitir-se num só acto
esta "universidade" de dívidas e de direitos, a título uni-
versal, como se transmite "a título particular" uma casa,
um campo, um escravo: as regras de transferência são
apenas originais, como de cada vez que se trata duma
coisa incorporal. Estes termos, que em Roma não foram

120
Descrição das coisas

descobertos senão na época do Baixo-Império, são


ainda os do nosso direito.
Assim nos encaminhamos para conceber esta ou-
tra coisa incorpórea, tão importante no nosso direito;
descobrir o conceito geral de património. E assim como
a lista das pessoas era acrescida, quando se tem a ideia
de acrescentar aos simples indivíduos as pessoas mo-
rais, também a lista dos objectos de direito se aumenta
duma série de audaciosas concepções. Estes progres-
sos permaneceram no direito moderno, e não lhe são
negligenciáveis.

Móveis e imóveis - No entanto, nem todos os


bens no "comércio", todos os que entram no império do
direito privado, serão submetidos ao mesmo regime. Im-
porta classificá-los, assim como se classificam as pes-
soas jurídicas, segundo o que elas são, ou não, capa-
zes.

Nós não poderíamos continuar a afirmar aqui que no nosso di-


reito tudo provém do direito romano. A principal divisão do nosso di-
reito classifica os bens em móveis e imóveis. Esta divisão tem a sua
origem no direito rom?no, não é desconhecida do direito imperial. Mas
não tomou o seu grande desenvolvimento senão na Idade Média,
numa época em que a posse das terras e das casas constituíu, por
força da absoluta predominância da agricultura, o essencial das fortu-
nas. Era preciso que o direito protegesse com uma gravidade particu-
lar os direitos sobre os imóveis; que submetesse a sua alienação a
condições especiais; que zelasse pela sua conservação nas famílias.
O antigo regime, o Código Civil, conservaram esta distinção, embora

121
Direito Romano

as fortunas mobiliárias tenham tomado progressivamente uma


importância pelo menos igual às fortunas imobiliárias; que a sua razão
de ser tenha, desde então, em parte desaparecido. Foi preciso de
resto artificialmente incluir, quando as coisas incorporais fizeram por
sua vez a sua entrada no direito francês, tal direito ou tal crédito entre
os móveis, um outro mais importante nos imóveis, embora os direitos
e os créditos não sejam no sentido etimológico da palavra, nem
móveis nem imóveis. Para continuar a englobar o conjunto dos bens,
a distinção é complicada ató ao infinito; esta não é muito feliz. Ocupa
pouco espaço, ainda uma vez, no direito romano, e Gaius, na sua
exposição das divisões romanas das coisas, não a menciona.

Res mancipi e res nec mancipi -Assinala pelo contrário uma


outra divisão particular do direito romano e que pôde cumprir na Roma
primitiva um pouco o papel da precedente. É a das coisas mancipi e
nec mancipi. Estas palavras não têm tradução francesa. Eram res
mancipi, segundo Gaius, as coisas outrora mais preciosas: "as herda-
des e as casas situadas em Itália, os escravos e os animais que se tem
o costume de dominar pelo pescoço ou o dorso, por exemplo os bois,
os cavalos, os machos e os asnos; as servidões rústicas" ... nec man-
cipi, as outras coisas: peças de prata, animais selvagens "e até o ele-
fante e o camelo, ainda que seja dominados pelo pescoço e pelo
dorso, porque nunca foram conhecidos em Roma senão após o nas-
cimento da distinção". (Gaius, li, 14 a 17). As coisas mancipi (que for-
mam em suma o conjunto de bens constitutivos duma pequena ex-
ploração rural) eram mais difíceis de alienar; para transmitir a proprie-
dade, era preciso recorrer perante testemunhas, às formalidade sole-
nes da mancipatio. A alienação duma res mancipi era coisa grave, as-
sim como na Idade Média a duma terra ou duma casa familiar.

122
Descrição das coisas

O conteúdo do grupo das res mancipi teve aliás a boa fortuna


de intrigar os espíritos subtis dos romanistas contemporâneos. Al-
guém de entre eles emite a hipótese que as res mancipi teriam sido,
na origem, apenas susceptíveis duma verdadeira propriedade; ou,
dizem outros, dum direito mais arcaico que a propriedade, que se
nomearia o mancipium. Antes de conceber abstractamente a
propriedade, o espírito primitivo dos romanos teria concebido o
"mancipium", "superior" poder concreto de comando sobre uma
coisa. Manda-se num escravo, num servo, num boi, num cavaio -
num animal "dominado pelo pescoço ou dorso"; de maneira alguma
numa soma de dinheiro, num móvel. Assim, o primeiro direito de
homem sobre as coisas encarado de certa maneira concreta, não teria
podido adaptar-se senão às diversas res mancipi. A hipótese aplica-se
mal às herdades e às casas. Ela explicaria a origem da nossa distinção.
Pouco nos importa, de resto: a distinção das coisas mancipi et nec
mancipi cessou rapidamente de ser adaptada às condições da vida
económica romana: o dinheiro e os créditos (e por exemplo as acções
das sociedades de publicanos) formam uma parte crescente nas
fortunas.E os romanos, talvez mais práticos e inteligentemente
inovadores que os nossos juristas com respeito aos móveis,
abandonaram-na pouco a pouco. Pelo jogo subtil das fórmulas
judiciárias, o pretor conseguiu dispensar formas da mancipatio da
alienação das coisas mancipi. A distinção cessa de ser mencionada
nos tratados sistemáticos de Justiniano. Apresentamos as nossas
desculpas pelo afloramento desta matéria de pura erudição, quando
há no direito romano tantas criações ainda vivas.

123
Capítulo III

Os direitos sobre as coisas

Como repartir bem as coisas entre as pessoas,


atribuir a cada um o que é seu, é o problema do direito.
Os juristas romanos produziram regras muito numerosas
para ajudar a determinar qual será a coisa de cada um
(modos de aquisição dos bens). Mas, por falta de es-
paço, não é possível aqui tratar senão dos materiais,
graças aos quais foi elaborado o edifício.
E há lugar, antes de mais nada, para a repartição?
O comunismo sonha deixar um grande número de bens
comuns entre os homens, de os subtrair à apropriação
individual. Em oposição, o liberalismo moderno quer que

125
Direito Romano

cada bem tenha o seu possuidor, que o tenha integral-


mente pelo direito de propriedade. Intermediário, de al-
gum modo, o regime feudal dá a cada terra, a cada imó-
vel, uma multidão de possuidores com direitos: uma
confusão de direitos múltiplos e variados se instala so-
bre cada terra: direito do servo que explora, os direitos
dos senhores que beneficiam duma parte dos rendimen-
tos, direito do rei, direito dos padres e da Igreja, que le-
vam a dízima e esta ou aquela renda ... Qual é a solução
de Roma?

O dominium ex jure quiritium

Não é impossível que as antigas tribos, que forma-


ram Roma, tenham conhecido muito antigamente o co-
munismo. Tentaram inferi-lo de poemas de Virgílio ou de
Lucrécio, que contam uma idade de ouro primitiva, onde
a propriedade individual fora desconhecida. Existem ou-
tros indícios mais sólidos.
A verdade é que quando Roma se funda e se
constitui o direito civil, uma propriedade individual existe.
Cada um dos pais de família, cujo conjunto forma a
cidade, entende não abdicar da sua liberdade: e o
suporte desta liberdade, a terra hereditária, base da vida
de cada família. Deixo aqui o problema delicado da
consistência precisa desta primeira propriedade indi-
vidual e da sua origem.

126
Os direitos sobre as coisas

Quando um terceiro causa prejuízo à sua proprie-


dade, o pai de família encontra - como já se viu - uma
fórmula apropriada nos velhos ritos das acções da lei.
Ele conduz o seu adversário perante o magistrado, e
leva-lhe também a coisa de que se trata (ou, se é uma
terra, ou uma casa, qualquer pedra, ou pedaço de terra
ou de relva representativa da coisa) e agarrando-a na
mão pronuncia a fórmula célebre: "Eu digo que esta terra
é minha em virtude do direito dos quirites". No processo
formulário, uma acção análoga foi constituída,cuja fór-
mula copia a antiga fórmula oral :é a acção ainda hoje
designada pela palavra reivindicação.
O direito ao qual ele correspGnde parece ilimitado:
a fórmula rude e firme não comporta variações: "a coisa
é minha". O pai é soberano sobre a terra, sobre o seu
domínio. Isso não significa dizer que os hábitos não
convidam a usar a sua coisa duma maneira razoável;
sobretudo a família - o não dissipar os bens que devem
ser a origem da grandeza e da subsistência comum. O
romano deve ser económico, é uma questão de moral.
Mas a cidade, o direito quiritário, nada têm a ver com ele;
admitem bem quaisquer regras de boa vizinhança, para
impedir cada proprietário de prejudicar o seu vizinho;
mas em princípio o direito não tem que se preocupar
com a maneira como cada um gere a sua propriedade; o
Estado não ousa mesmo cobrar imposto sobre os bens
dos particulares, nem sequer recorrer ao que nós cha-
mamos expropriação por utilidade pública.
Esse direito tão forte recebeu até ao fim da re-
pública o nome de dominium ex jure quiritium, donde

127
Direito Romano

deriva a palavra domínio. Esta palavra na Idade Média


era ainda correntemente empregada no sentido de pro-
priedade.

Extensão

Contudo o dominium estava longe de se aplicar a


todas as terras, sobre todos os bens. Não somente as
terras públicas I (muito importantes e aumentadas com
as conquistas da cidade vitoriosa), as terras comuns
escapam-se-lhe de tal maneira que o primeiro regime
romano está mais próximo talvez do comunismo que do
sistema do Código Civil, inteiramente individualista. Mas,
duma maneira geral, a propriedade quiritária não podia
existir senão nas terras romanas, mais tarde apenas nas
terras "itálicas", jamais sobre as inumeráveis terras que
constituíam as províncias romanas. Era recusada aos
peregrinos porque constituía um privilégio dos antigos
pais de família. Mesmo estes últimos não as conseguiam
senão em condições muito especiais: era preciso deter a
sua terra em virtude, por exemplo, duma partilha ritual-
mente efectuada pelos sacerdotes da cidade. Ou ainda

los modernos têm tido tendência a desconhecer a importância das coisas


públicas em direito romano. Um exemplo: é questão candente, no momento
em que escrevemos estas linhas, nacionalizar certas fábricas francesas: de
as tornar res publicae. Não haveria nesta medida nada incompatível com o
espírito do direito romano clássico.

128
Os direitos sobre as coisas

fundamentar-se no "usucapião" - ter comprado a coisa


por mancipação (se se trata duma res mancip1), etc...
Mas na época clássica o pretor intervém sobre a
prática judiciária. Inscreve novas acções (além das in-
terdições) no seu édito; permite em novas circunstâncias
reivindicar uma coisa, como se reivindica a coisa de que
se é proprietário ex jure quiritium.

1º Dá acção pública ao proprietário duma coisa


que a não adquiriu com todas as formas rigorosas do
antigo direito (por exemplo que não efectuou, para uma
coisa "mancipi", a cerimónia complicada da mancipação.

2º Criou uma acção análoga em benefício do pe-


regrino. É suficiente uma ligeira transformação na fór-
mula, uma "ficção", pela qual o juíz é convidado a julgar
"como se o requerente tivesse a qualidade de cidadão"l.
E eis que a multidão inumerável de peregrinos, que
povoam o novo império, se vê desta maneira reconhecer
também um direito de propriedade sobre as coisas.

3º Enfim, a criação duma nova fórmula permite re-


conhecer uma propriedade sobre as terras provinciais,
sobre todas essas terras do Império que constituem uma
parte crescente das fortunas romanas. Esta última pro-
priedade foi a mais difícil de reconhecer: as terras da
província não eram por direito de conquista coisa do
Estado romano? Não lhe deviam elas imposto? E po-

1Ver mais atrás "A criação de fórmulas novas ".

129
Direito Romano

diam ser plenamente assimiladas às terras livres dos ci-


dadãos? Começou-se por reconhecer a certas provín-
cias o carácter itálico das suas terras. Uma moeda com o
emblema de Marsyas, símbolo do direito itálico, mostra-
nos que Beirute tinha recebido esse privilégio. Depois o
pretor foi mais longe. E eis que todas as terras, e o con-
junto dos bens no mundo romano se tornam objecto
possível de propriedade. O regime de propriedade está
---- ...-•:---'-
~1::111::1 a11..:.auu.

Resta à ciência extrair claramente a consequência


da nova prática judiciária; extrair a essência do sistema
das acções. As compilações justinianas não conhecem
mais do que um tipo de propriedade aberta a todos, so-
bre todas as coisas do direito privado; são designadas
por uma palavra moderna: proprietas.

O direito moderno. - O nosso Código Civil tam-


bém distribuíu propriedades plenas. Mas o sistema ro-
mano, que repartiu a grande massa das coisas sob as
dominações de diversos indivíduos, serviu melhor numa
época de individualismo e de liberalismo: porque a pro-
priedade individual é, no estado moderno como na ci-
dade antiga, a base da liberdade individual.
Somente o direito moderno nada mais fez, ainda
aqui, que reproduzir as soluções romanas. Empurrou
para bem longe as teorias. Tem sistematizado grande-
mente e perigosamente.
Já os glosadores da Idade Média, com um fim di-
dáctico, analisam a propriedade: o direito comporta,

130
Os direitos sobre as coisas

afirmam (retomando uma distinção repescada do direito


romano), três atributos: o usus, o direito de utilizar a
coisa, e o fructus, de recolher os frutos; o terceiro o abu-
sus, direito de consumir ou de alienar. Brevemente será
traduzida, sem-razão, por direito de abusar da coisa. O
proprietário é senhor de administrar o seu bem como
entender, de o destruir, ou de o utilizar para fins anti-so-
ciais. Ou então, pelo contrário, recuperá-lo-á, frase esta
das ínstitutas de justiniano, que a propriedade é um po-
der integral sobre a coisa: plena in re potestas. Extraem-
-se as mesmas consequências. E os nossos retóricos
burgueses do século XVIII proclamam que, por direito
natural, a propriedade é um direito inviolável e sagrado,
exclusivo, absoluto, sem limitação alguma ...
Pode ser útil notar que estas fórmulas absolutistas
não são romanas; encontram a sua origem, em lugar de
em Roma, na filosofia moderna liberal individualista (e o
que se chama correntemente "tipo romano de proprie-
dade" não deveria ser assim designado). Em Roma, de
facto, os poderes do proprietário sofriam diversas limita-
ções, provenientes não apenas dos hábitos familiares,
mas também do controlo do censor e mais tarde das leis
imperiais. Mas sobretudo, os juristas romanos parecem
ter-se abstido de dar alguma definição dos poderes do
proprietário: o fim do direito em Roma, era apenas repar-
tir as coisas e não de medir poderes.

131
Direito Romano

Da apropriação das coisas incorpóreas

Há outras acções reais (servindo para reivindicar


uma coisa), para além da reivindicatio e das três acções
análogas. Na reivindicatio diz-nos Gaius (IV, 3), reclama-
se uma coisa corporal, objecto da propriedade; mas para
outras acções, reclama-se uma coisa incorporal, um jus
(no sentido restrito deste termo). Uma acção é-me dada
pelo pretor para obter seja o jus eundi, a passagem atra-
vés do campo do meu vizinho, seja o jus aquam du-
cendi, o uso do aqueduto que atravessa a sua proprie-
dade, seja ainda o usufruto, o direito de usar e receber
os rendimentos da coisa de outrem.
É um segundo tipo de direitos reais, como nós di-
zemos hoje. Tem-se por vezes designado, o que é notá-
vel, pelo nome de dominium: os textos falam de domi-
nium usus factus, dominium usus.
Mas o que é preciso notar, é que a servidão em
Roma, e ainda hoje, tem qualquer coisa de excepcional;
que o direito é hostil ao seu desenvolvimento. As servi-
dões imobiliárias, por exemplo, não podem ser consti-
tuídas senão quando um interesse económico perma-
nente o exige. A ordem normal exige que uma coisa te-
nha um único proprietário (a menos que se tratasse
duma coisa "pública" ou "comum" ... ).

O direito dos locatários.- Uma situação semelhante é a do


locatário. Ele alugou ao proprietário, por exemplo uma casa, na inten-
ção de ter o gozo, o usus e o fructus, tal como o usufrutuário. Não se

132
Os direitos sobre as coisas

lhe deve também reconhecer um direito assentando sobre uma parte


incorpórea da casa, o usus e o fructus?
Tal não é a solução romana. O pretor não dá ao locatário uma
acção pela qual ele possa reivindicar o usufruto da sua casa com e
contra todos, como sendo sua. Ele dá-lhe apenas uma acção
"pessoal" contra o proprietário que lha alugou para obter o cumpri-
mento da sua promessa. Mas o acordo deles não interessa a tercei-
ros. Contra eles, só o proprietário poderia agir; aos olhos dos tercei-
ros, aos olhos do direito, a casa resta unicamente ao proprietário. A
propriedade absoluta, não dividida, deve permanecer o tipo normal de
relação entre homens e coisas. A terminologia jurídica moderna dirá,
duma maneira mais abstracta, que o proprietário tem só um direito real,
não tendo o locatário mais do que um direito chamado pessoal. Por-
que a solução romana conservou-se entre nós, embora desneces-
sariamente 1.
Em certos casos excepcionais, somente no Baixo-Império, os
imperadores acordaram em uma acção real a certos arrendatários a
longo prazo: praticavam-se então arrendamentos de muito longa du-
ração, as famílias dos rendeiros permanecendo quase indefinida-
mente agarradas à terra. Desde então, pareceu útil reconhecer juridi-
camente a ligação da terra ao caseiro, ligação oponível a terceiros. A
do proprietário abranda em relação à terra na mesma proporção.É o
esboço dum novo direito, oposto ao regime romano e moderno da
propriedade.
Os textos do Baixo-Império serão utilizados na Idade Média
para construir o direito feudal: várias pessoas, o senhor, o vassalo, o

lEla explica-se talvez em Roma pelas circunstâncias económicas: a grande


dependência de facto dos locatários em relação aos proprietários. Entre nós
não tem mais justificação.

133
Direito Romano

rendeiro, partilham-se os direitos reais sobre a mesma terra, o direito


partilha por princípio os benefícios da mesma terra entre várias pes-
soas. Mas, já o disse, esse não é nem o nosso sistema de direito mo-
derno, nem tampouco o puro direito romano.

Aposse

Outra noção, que é mais difícil de perceber. A pa-


lavra posse tem, na linguagem jurídica, um sentido téc-
nico particular que os profanos nem sempre conhecem.
Diz-se vulgarmente: eu possuo tal casa, tal soma de di-
nheiro, para significar que se é proprietário. Para os ju-
ristas, a posse é coisa diferente da propriedade: eles
pretendem que esse termo significa um domínio de facto
sobre uma coisa, mais que um direito propriamente dito.
O meu ladrão possui o objecto que me arrebatou, de que
eu sou o proprietário. É bem possível aliás - é mesmo o
caso normal - que eu possua a coisa de que sou pro-
prietário. Mas são duas noções jurídicas diferentes e
que importa distinguir. Foi preciso muitos séculos de
história romana para que estas noções se precisassem e
que o regime jurídico da posse se elaborasse.

Há muitas pessoas no mundo ro-


l. As origens -
mano que possuem bens sem deles serem proprietários;

134
Os direitos sobre as coisas

isso sobretudo se recuarmos para uma época muito an-


tiga, em meados da época republicana.
Nesta época (quer dizer no dealbar do período
clássico) o verdadeiro direito de propriedade está ainda
pouco expandido, submetido a condições severas. O
romano, por exemplo, que cultive uma das numerosas
terras conquistadas ao inimigo, não tem sobre ela o
dominium; em princípio, esta terra é, dizem os textos, sua
possessão, não sua propriedade. isso será verdadeiro,
tanto que o dominium ex jure quiritium e seu corolário -
a acção de reivindicação - ainda não têm lugar nesta
hipótesel.
Há ainda cidadãos romanos que receberam qual-
quer domínio para cultivar, dum rico patrício proprietário;
nenhuma cerimónia de mancipação foi realizada; mas o
patrício concedeu a sua terra sem forma jurídica, e sem
compromisso de sua parte, a título precário. Ou então
(um pouco mais tarde) é um comprador de propriedades
que não acreditou ser mais útil recorrer à mancipação,
preferindo uma simples "tradição". Nós sabemos que,
segundo as regras do antigo direito civil, não se tornou
proprietário.
Ou ainda, tratar-se-á do homem que se crê,de boa
fé, proprietário duma coisa, mas que o não é. A hipótese
não é desconhecida na prática, embora muito rara e de
menção tardia. Todas estas pessoas não têm acção para
defender o seu bem: se um terceiro se apodera dela

1Ver atrás " Extensão".

135
Direito Romano

pela violência, longo tempo passarão em busca do ar-


senal das acções judiciárias de recurso contra ele.

2. As criações do pretor - O pretor é interventor: é


interventor porque não podia deixar sem protecção uma
multidão de pessoas que cultivaram, regularmente,
abertamente, pacificamente, terras tão numerosas; ter-
-se-ia deixado a porta aberta a todas as violências, a
todo o banditismo.
Algumas vezes, procedeu produzindo novas ac-
ções. Já vimos compor uma acção modelada sobre rei-
vindicação, em benefício do comprador duma coisa
mancipi (por exemplo, uma terra) que não recorreu à
mancipação; a mesma acção é concedida ao possuidor
de boa fé, porque a mesma fórmula se adapta à sua si-
tuação.
Mas outras vezes (as mais frequentes original-
mente) o pretor não ousa criar uma nova acção. O liti-
gante ,que ele quer proteger, não tem verdadeiramente
direito perante a tradição do direito civil, e não está
mesmo em vias de o adquirir (como o comprador por
simples tradição, que a posse prolongada tornaria pro-
prietário); nenhuma fórmula do direito civil, mesmo au-
daciosamente modificada, se adapta ao seu caso. Então
o pretor usa em nome dos seus poderes gerais de polí-
cia, dum outro meio, o interditoI.

1Ver mais atrás "Outras criações pretorianas".

136
Os direitos sobre as coisas

Um terceiro irrompeu violentamente, por exemplo,


sobre uma possessão doutrem; uma tal violência parece
intolerável para a ordem pública, e o pretor ordena a
restituição. Ele pronuncia um interdito, cujo modelo do
texto está inscrito antecipadamente sobre o seu édito:
"Porque tu expulsaste pela violência, da sua
coisa, certa pessoa que a possuía regularmente, aber-
tamente e sem violência - faz-lhe a restituição".
Tipos variados de interditos estão previstos no
édito, para se adaptarem às diversas hipóteses, para re-
primir todas as violências contrárias à paz da cidade.
Uma hipótese notável é a seguinte: dois litigantes
encontram-se em litígio sobre a propriedade duma coisa.
Importa que até às decisões do tribunal, nenhuma via de
facto intervenha; que aquele que, antes da abertura do
processo, possuía regularmente a coisa, fique na sua
posse. Ao outro compete intentar acção em justiça e, se
puder, apresentar a prova do seu direito. O pretor pro-
nuncia um interdito "conservatório", pelo qual ordena
aos dois litigantes que mantenham o estado de facto
existente antes do processo.
Assim se encaminha lentamente para esta ideia:
que todos os possuidores desprovidos de acção, na
condição de que a sua posse não seja viciosa, que ela
tenha sido exercida publicamente e pacificamente, têm
direito a uma protecção jurídica, de ordem inferior, é ver-
dade: a dos interditos.

137
Direito Romano

3. A teoria da "posse" - Resta então definir a posse:


os jurisconsultos ocupam-se dela. Encontram ainda as
bases do seu trabalho entre os filósofos gregos.
Nós adquirimos a posse, diz um texto célebre,
pelo corpo e pela alma: "Corpore et animo". Para o corpo
antes de tudo: possuir, não é deter materialmente uma
coisa? É deter de facto uma importância em dinheiro na
mão; é estar instalado num campo e ter feito o tradicional
percurso do proprietário: "circumambuiare giebas"; mais
tarde contentar-se-á com o passeio em uma parte do
campo ou mesmo com um olhar lançado sobre o domí-
nio. De todas as maneiras, é preciso, para possuir, uma
apreensão pelos sentidos, pelo tocar ou pelo ver: eis
porque, para os jurisconsultos clássicos, não se pode
possuir uma coisa incorpórea, um usufruto, uma servi-
dão de passagem.
Mas isso não é o bastante: as coisas, segundo os
filósofos, não são compostas senão de matéria. Elas têm
uma matéria que só o espírito, o animus, pode apreen-
der. A criança, o idiota, não podem possuir. Porque para
isso é preciso um acto de inteligência.
É preciso mesmo (e aqui os juristas complicam os
dados claros dos filósofos) uma certa vontade de deter a
coisa para seu uso pessoal. O simples passeante, que
faz a volta dum campo. não é seu possuidor; ele não tem
a intenção de o guardar. O operário, a quem confiei
qualquer objecto para reparação, não é o seu possuidor.
O humilde rendeiro, que encarreguei de cultivar uma
parte das minhas terras e que segundo os usos romanos

138
Os direitos sobre as coisas

vive em estreita dependência do seu proprietário, tam-


bém não.
Mas o homem que detém uma coisa acreditando
ser seu proprietário;o ladrão, o detentor de terrenos na
província, o credor por fiança, que quer guardar para seu
proveito bem pessoal a coisa em penhor, o precarista
(acrescenta-se à lista um tanto arbitrariamente, porque o
pretor tinha desde há muito tempo o costume de lhe
aplicar os interditos), todas estas pessoas apreendem a
coisa com a intenção bem demarcada de a guardar,
enquanto estiver na sua posse. Elas são verdadeiras
possuidoras.

4. o Baixo-Império - A teoria clássica da posse ti-


nha sido construída sobretudo para preencher lacunas
do direito civil: para proteger situações, como por exem-
plo do possuidor de terras na província a quem não es-
tavam ligados recursos regulares em justiça.
Mais tarde, o campo de aplicação prática da teoria
deve ter-se, muito naturalmente, restringido. De facto,
como se viu no capítulo precedente, a lista dos direitos
reais acabou por se completar, o peregrino, o detentor
de terras na província, viu-lhe ser conferida a condição
de proprietário. Doravante, toda a pessoa, que detém
regularmente um bem, é normalmente protegida por
uma acção.
Os interditos não desapareceram por isso comple-
tamente. Os próprios proprietários podem ter interesse

139
Direito Romano

em os usar subsidiariamenteI. Antes de ter, se é preciso,


de defender a sua propriedade e de levar em justiça a
prova muitas vezes difícil, eles defenderão suma-
riamente a sua posse de facto. A protecção possessória
não é mais do que uma espécie de anexo e "de trabalho
avançado" da protecção da propriedade ... mas, eis a
grande novidade do Baixo-Império: tende-se para reser-
var o benefício aos proprietários, pelo menos tanto
quanto possível.
Para ser um autêntico possuidor, não bastará
exercer uma autoridade corporal sobre a coisa (con-
dição sobre a qual, de resto, há tendência a manifestar-
se mais amplamente), e ter a intenção de a guardar. É
preciso ainda ter o que os modernos designam por o
animus domini, o estado de espírito do proprietário: é
preciso pretender ter um direito sobre ela; sem o que
pareceria a priori indigno de toda a protecção.
A posse é o uso dum direito, como dirão os códi-
gos modernos. A levar esta nova concepção até às suas
consequências práticas dever-se-ia negar a protecção
possessória ao credor por fiança, ao precarista, a todas
as pessoas que não têm direito real e não pretendem
sequer ter um.
Não se chegou a este ponto. O Baixo-Império
conservou as antigas aplicações do interdito, que não se
legitimam senão conforme a doutrina antiga da pos-
se. De resto, o que nós chamamos a nova concepção,

lÉ assim que desde tempos muito antigos o proprietário quiTitário usava o


interdito uti possidetis.

140
Os direitos sobre as coisas

verdadeiramente não é mais do que uma tendência, que


ainda transparece fracamente através dos textos confu-
sos das compilações justinianas. Mas é importante ob-
servá-la, porque os intérpretes modernos desenvolvem-
-na até ao sistema.

5. Direito moderno - Porque está a nossa teoria


ainda plena de direito romano.
A Idade Média tinha conhecido um sistema muito
original, e aliás comparável ao sistema romano primitivo.
Ao lado da acção em reivindicação fundamentada na
plena propriedade, conhecia acções em justiça funda-
mentadas sobre "penhora: era penhorado por uma coisa
ou um direito, quem quer que a possuía regularmente
depois de a ter adquirido segundo certas formas e por
vezes conservado durante um certo tempo.
Quando, no século XIII, chegou a invasão do di-
reito romano, os juristas não hesitaram em reconhecer
nas acções fundadas sobre a penhora os antigos interdi-
tos. Revestiram o sistema medieval duma linguagem ro-
mana; pelo exposto todo penetrado de romanismo, que
eles nos deixaram, chega-se mesmo a reconhecer
exactamente o que ele foi na sua forma original.
No seu todo, a teoria francesa dos tempos moder-
nos é comparável à de Justiniano. Ao lado das acções
ditas "petitórias", onde se invoca um direito, há as ac-
ções ditas "possessórias" (correspondentes aos antigos
interditos) dados a quem invoca somente a posse. É
compreensível que estas acções devam ser tanto quanto

141
Direito Romano

possível reservadas ao próprio proprietário. Para ser


possuidor, é preciso pretender ter um direito. O locatário,
o depositário, o credor por fiança, não são possuidores,
porque não pretendem ter um direito real. E, levada até
às extremas consequências práticas, a noção do Baixo-
Império.
Chega o século XIX e com ele um novo desen-
volvimento dos estados romanísticos. Em nenhum lugar
melhoí do que os estudos que Savigny e que ihering
consagram à posse, se encontrará uma análise dos fun-
damentos da protecção possessória; e definições abs-
tractas da posse. Mas estes juristas são historiadores,
que começam a redescobrir o regime da época clássica.
Mostram que a ordem pública exige protecção para toda
a possessão tranquila e regular, mesmo as que não re-
produzam um direito, que se não apresentam como o
"reflexo" dum direito. Sob a influência dos seus traba-
lhos, os Códigos civis alemão e suiço, os mais moder-
nos, concedem, à falta de direito real, uma protec-
ção possessória aos simples locatários; é uma solução
forte aprovada pelos práticos e que se pode considerar
como superior à regra contrária do nosso Código. No
seu conjunto, a teoria alemã não é, aliás, mais clara;
os textos do Digesto não o eram também, misturando
a noção clássica com a justiniana; legaram ao direi-
to moderno, entre outras coisas, muita da sua obs-
curidade.

142
Os direitos sobre as coisas

* **

Não pude aflorar senão os prolegómenos: as


primeiras questões da linguagem. As questões de fundo
permaneceram por examinar, o sistema de partilha dos
bens que o jurista tira da natureza da observação dos
usos romanos. Como se opera na cidade romana a de-
terminação das propriedades de cada um? Como pode,
além disso, o facto da posse, decorrido algum tempo,
pelo usucapião (apropriação pelo uso, nossa moderna
prescrição aquisitiva) conduzir à propriedade? Como as
leis públicas romanas, por exemplo, as agrárias,
matrimoniais, sucessórias, têm concorrido para uma
justa repartição? Em que medida o trabalho pode ser um
modo de enriquecimento? Como se adquire o dominium,
se transmite, se perde? O leitor deve desculpar-nos se,
por falta de espaço, o remetemos para o Corpus juris
civilis.

143
Capítulo IV

As Obrigações

Consagremos um último capítulo a uma espécie


muito importante de coisas incorporais: as obrigações.
Ao lado do direito sobre as coisas (herdades, usufrutos,
servidões) a que chamamos direitos reais, há direitos
acerca do como das coisas, ou dos serviços que nos
sejam prestados, por uma pessoa, bem incorpóreo a que
os romanos designaram por obrigações. (Eles conhe-
cem um processo próprio para esta espécie de proble-
mas, as acções in personam, distintas das acções in
rem).

145
Direito Romano

Assim como incumbe aos juristas repartir as coi-


sas corporais ou as servidões, do mesmo modo as obri-
gações. Elas são classificadas segundo as suas origens,
os factos que lhes dão "nascimento". As duas principais
fontes da obrigação são o delito e o contrato. Nós temos
obrigações para com outras pessoas, quer porque
cometemos um acto delituoso, de que precisamos dar
reparação, quer porque estamos comprometidos, por um
contrato, a dar-lhe uma soma de dinheiro, a vender-ihe
ou alugar-lhe a nossa casa ou o nosso campo.

Os delitos

No que concerne aos delitos e os"quase-delitos"


(esta distinção, hoje inútil, foi-nos legada por Justiniano),
o nosso Código civil admite um princípio claro e geral:
artº 1382 do Código civil: "Qualquer homem, que causa
a outrem um prejuízo, obriga aquele, por culpa de quem
este aconteceu, a compensá-lo"*. Eis um princípio muitas
vezes citado na via judiciária: quer se trate da reparação
dum roubo, ou duma difamação ou acidente de automó-
vel. Não é romano.

* N.E.: Idêntico preceito existe no Código Civil Português: artg 483º, 1:


"Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou
qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica
obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".

146
As Obrigações

De facto, em nenhuma parte o princípio do artigo


1382 vem expresso em direito romano. Para a época
das origens, a ausência dum princípio abstracto não é
caso para nos admirar. Assim como a cidade romana,
primeiramente, não tinha a obrigação de sancionar a
reivindicação senão de certas situações especiais dos
cidadãos romanos relativamente às coisas , também ini-
cialmente não pensa reprimir senão um certo número de
deiitos. Eies aparecem muito diferentes na lei das XII
Tábuas: é o delito de arborum succisio que consiste em
cortar as árvores do vizinho - aquele de que o tutor se
torna culpado desviando a fortuna do pupilo - o
depositário dum objecto, não o entregando. Acções
especiais as sancionam. Apaixonado pelas divisões
quadripartidas, Gaius cita somente quatro principais
delitos - o furtum, quer dizer, o roubo, que em si mesmo
se subdivide (segundo os juristas) em dois ou quatro
géneros de roubo (o termo francês roubo - vai -é
duma origem muito recente e não romana, nesta
acepção) - a rapina, ou roubo à mão armada - a
injúria, a violência cometida contra uma pessoa ou mais
tarda a injúria - o damnum injuria datum, quer dizer, o
prejuízo causado sem direito aos escravos, aos animais,
às coisas duma pessoa, de que uma lei especial, a /ex
Aqui/ia, tinha estabelecido a repressão. Mas foi
necessário acrescentar a esta lista um certo número de
novos delitos ao encontro dos quais os pretores têm pro-
gressivamente dado acções: a violência, pela qual o
delinquente forçou uma pessoa a fazer um acto
desvantajoso - o dolo, quer dizer a fraude, as

147
Direito Romano

"maquinações" ... O facto mesmo de ter deixado por


negligência cair das suas janelas, da sua casa, qualquer
objecto ferindo quem passava, etc.
E a obrigação do culpado não é exactamente uma
obrigação de reparar, como diz o nosso Código Civil. A
vítima reclama, não exactamente a indemnização igual
ao prejuízo que ela sofreu, mas além disso outra "pena".
Isto está dependente da "justiça privada"; quando o Es-
tado não está ainda bastante poderoso e organizado
para castigar ele mesmo os atentados à ordem social, é
a própria vitima que se encarrega do castigo. Ela vinga-
-se e a sua vingança é legítima e cumpre uma função
social, perante a insuficiência do direito penal. A lei das
XII Tábuas conhecia ainda o talião: Si membrum rupsit,
ni cum eo pacit, talio esto: "Se o culpado te feriu e não fi-
zeste compromisso com ele, que a vítima exerça o ta-
lião". A mesma lei permite à vítima dum roubo, matar o
seu ladrão, se pelo menos se tratou dum roubo nocturno
ou se o delinquente fez uso de armas.
Mesmo no direito clássico, o ladrão manifesto é
punido com uma multa do quádruplo do valor da coisa
roubada; o ladrão simplório, do dobro. E esta multa é
dada à vítima. O pagamento da multa privada é objecto
próprio da acção saída do delito, chamada acção penal.

Evolução - Mas o número de acções penais era


progressivamente multiplicado a um tal ponto, que che-
garia para abranger o conjunto dos delitos possíveis. Por
outro lado, um certo número de delitos expressamente

148
As Obrigações

reconhecidos pelo direito parecia susceptível duma apli-


cação mais geral. Tal é o dolo, de que os romanos dão
uma definição muito extensa. Tal é a falta (culpa) do de-
vedor que, por má vontade, negligência, ou mesmo falta
de aptidão, tornou impossível a execução da sua obriga-
ção. Tal é, sobretudo, o delito chamado damnum injuria
datum.
A sua história é curiosa. A lei Aquilia criou-a no fi-
nal da época do direito antigo. Ela visa certas depreda-
ções cometidas contra as propriedades. A acção foi pri-
meiramente submetida a condições bastante rigorosas:
é preciso que o prejuízo seja causado materialmente no
"corpo" do bem - escravo, campo, ou casa, de que a ví-
tima era proprietária. Mas, no decurso da época clássica,
os jurisconsultos alargaram estas condições - guiado
por eles, o pretor dá acções úteis, acções in factum em
situações semelhantes. O peregrino vítima dum dano
terá a acção. As vítimas de novas espécies de prejuízo
poderão pleitear. Justiniano regista estes progressos
duma prática jurídica, pouco a pouco levada a dar repa-
ração de quase todos os prejuízos causados por uma
falta (mesmo "muito ligeira').

Reparação - Cada vez mais, o direito clássico


tende a obrigar o delinquente a reparar exactamente,
como a equidade o exige, o prejuízo que causou.
Também, embora os textos romanos não
conheçam ainda o princípio geral do nosso Código Civil,
este princípio teve romanistas por autores. As circuns-
tâncias permitem justificar as suas novidades. Na Idade.

149
Direito Romano

Média (após uma renovação das penas privadas,


especialmente desenvolvidas nas leis germânicas), o
direito penal público evoluíu duma maneira notável; o
Estado encarrega-se ele próprio de punir os roubos, os
homicídios e as violências. Para a vítima haverá uma
indemnização exactamente igual ao prejuízo sofrido.
Encontram-se no primeiro estádio do direito romano
textos nesse sentido. Serão invocados desde o século
XllP. Resta extrair um sistema e sabe-se que não foi do
menor gosto dos romanistas. Domat admite, com a
clareza que marca as suas obras, o princípio de que
"todas as perdas e todos os danos, que podem
acontecer pelo facto de algumas pessoas por
imprudência, leviandade, ignorância do que se deve
saber, ou outras faltas semelhantes, por mais leves que
possam ser, devem ser reparadas por aquele cuja falta
ou negligência lhe terá dado lugar"; e não tem dificul-
dade em pôr em notas justificativas do seu capítulo
sobre os "prejuízos causados pelas faltas" uma série de
citações do direito romano. Aqui ainda, vê-se como seria
inexacto fazer terminar a história do direito romano com
a história de Roma.

1Porém, os nossos autores têm consciência duma contradição entre as


soluções modernas e as do direito romano clássico. "Acção penal não tem
lugar" em direito francês, escreve Loysel.

150
As Obrigações

Os contratos

É uma história muito análoga a dos contratos,


quer dizer, das operações de transferência de bens ou
de serviços, as relações comerciais, que podem também
dar origem a obrigações.
O antigo direito não reconhece ainda senão um
pequeno númern de obiigações contrntuâis. É talvez
porque as relações económicas são pouco numerosas
na origem, entre as diversas famílias que vivem cada
uma na autarcia; cada pai de família deve ser em princí-
pio livre perante os outros, não devendo sobrecarregá-lo
servidão alguma, nenhuma obrigação, pelo menos
duma causa certa e manifesta e que seja claramente
dependente dum seu feito ou de sua vontade. O pretor
não admite perante si acções in personam, acções con-
tra a pessoa, senão nas hipóteses precisas bem delimi-
tadas pelo direito.
É, por exemplo, o caso em que um pai de família
está pessoalmente envolvido num empréstimo de di-
nheiro, pela operação formalista do nexum, vizinho da
mancipação. Na presença de cinco testemunhas, de um
"libripens" ou portador de balança, com os gestos e as
palavras solenes, o pai de família "oberado" (esta pala-
vra deriva de bronze, porque um pedaço de bronze in-
tervinha na cerimónia), é de qualquer maneira vendido
ao seu pretor. Notamos aqui que a acção nascida do ne-
xum não é uma verdadeira acção pessoal, porque o que
pede emprerstado, em lugar de ficar uma pessoa livre

151
Direito Romano

mas obrigada perante o pretor, torna-se com pequena


diferença em escravo, a coisa do pretor.
Ou ainda, um devedor é obrigado empregando os
ritos duma sponsio, da stipulatio. Conhecem-se mal
estes ritos na época das origens: sem dúvida
comportaram um sacrifício aos deuses, como nesta
sponsio concluído entre os Samnitas vencedores e o
cônsul romano, na batalha das Forcas Caudinas, e que
uma velha medalha representa. Na época histórica, a
sponsio contrata-se por uma troca de palavras solenes,
que estabelecem duma maneira indiscutível o montante
da dívida onerando um pai de família romana para com
um outro cidadão livre. Comparar-se-á o juramento
ousjurando) em uso em todas as sociedades primitivas e
que é acessível até aos escravos.
Ou mais ainda (mas aqui é de aparição mais tar-
dia), um cidadão envia a um seu vizinho, seu amigo,
uma importância em dinheiro (mutuam pecuniam), uma
certa quantidade de trigo, para lhe prestar serviço; o que
recebe emprestado faltaria à boa fé se 1he não
restituísse uma quantidade correspondente. Neste caso
ainda, a cidade dá uma acção ao credor para reclamar a
sua dívida.

Época clássica - Na época clássica, as relações


económicas entre famílias são múltiplas. Os gregos, os
asiáticos, que pululam em Roma, introduziram-lhe o uso
do comércio. Sem dúvida também os seus hábitos co-
merciais. O direito das gentes, comum a todas as na-

152
As Obrigações

ções, não tem o seu valor em Roma? Não deve ser o


guia do pretor nas suas criações jurídicas? O pretor re-
gula-se também sobre as normas da moral. A moral não
quer que toda a promessa seja mantida, que a boa fé
seja respeitada entre negociantes?
Nós vemos o pretor, mais ou menos à imitação do
direito grego, introduzir novas acções: as acções de
compra e de venda "de empto" e "de vendito". O vende-
dor prometeu remeter ao comprador a sua mercadoria:
não é preciso dar ao comprador o meio de prosseguir a
execução da promessa pela via judiciária? Ao mesmo
tempo (porque as duas obrigações na prática são soli-
dárias e formam um contrato único), impor-se-á ao com-
prador regular, de boa fé, o preço convencionado.
As acções que sancionam o arrendamento obri-
gando o arrendador a colocar (locare - donde deriva a
palavra aluguer) a sua casa, o seu domínio entre as
mãos do locatário - o aluguer de serviço (o operário
coloca-se a si próprio locat por algum tempo ao serviço
de outrem) ou de trabalho (eu ponho a minha coisa entre
as mãos dum operário) - o mandato - a acção da
sociedade (ela ainda guarda, no nosso Código Civil,
regras que se explicam pelas circunstâncias da vida
económica romana).
Tais são os grandes contratos da vida comercial,
que ainda restam, com os mesmos nomes, em uso no
presente. Mas a iniciativa do pretor não pára. Quando
um habitante do mundo romano deposita qualquer ob-
jecto nas mãos dum amigo; quando lhe empresta uma
ferramenta, um escravo, uma vivenda, existem então si-

153
Direito Romano

tuações da vida quotidiana, particularmente frequentes


em Roma, onde a amizade impõe a permuta de serviços
gratuitos; a amizade, a boa fé, querem que a coisa seja
restituída de acordo com os seus proprietários. O pretor
acomodará a estas situações as acções de depósito ,de
comodato; estes termos estão ainda no nosso Código
Civil. Ou dará uma acção ao devedor que entregou em
penhor, sem formalidade especial, uma coisa em garan-
tia da sua obrigação, para reciamar, na data do paga-
mento, a sua restituição.

Classificação - Assim as acções pessoais estão


multiplicadas, duma maneira um pouco desordenada,
sem preocupação teórica. Os jurisconsultos vão classifi-
car todos estes contratos, todos estes negócios jurídicos
(tal é o primeiro sentido, largo, da palavra contrato)
donde nascem as obrigações.
Gaius, no século li, escolheu aqui ainda uma
classificação quadripartida, que nos parece muito ar-
caica. Funda-se, não sobre a função económica dos
contratos, mas sobre a causa jurídica da obrigação. O
primeiro género de contrato, afirma, é o que nasce das
palavras (verbis): o antigo sponsio, doravante denomi-
nado stipulatio; porque aqui a obrigação tem a sua ori-
gem nas palavras solenes trocadas entre as partes, nas
formalidades que depois de uma época antiga abrem o
direito a uma acção.
O segundo género de obrigação nasce "pelas le-
tras" (litteris), quer dizer, por uma inscrição feita se-
guindo certas formas nos livros do pai de família romana;

154
As Obrigações

trata-se duma origem de acção pessoal que não sobre-


viveu.
Um terceiro grupo de obrigações contratuais
forma-se re, quer dizer, pela entrega duma coisa. Faz-se
entrar aqui o caso do empréstimo duma importância em
dinheiro, ou outra coisa de géneros, trigo, azeite, vinho
(mutui datio); ou pelo contrário do empréstimo dum de-
terminado corpo (depósito-empréstimo-penhor). Em to-
das estas hipóteses, o pretor aprova a acção porque, âe
facto, uma coisa foi abandonada pelo seu proprietário, a
título provisório, ao que pede emprestado, ao credor
afiançado, ou ao depositário. Deve, pois, ser restituída.
Discute-se, aliás, no interior do grupo dos contratos re,
sobre a denominação de certos tipos de contratos parti-
culares (depósito bancário).
Enfim, a última forma de contratos nasce con-
sensu, pelo consentimento. Nela se situam os quatro
grandes contratos de aparição recente, a venda, o alu-
guer, a sociedade e o mandato. Nenhuma formalidade
especial é de facto requerida para fazer nascer uma
obrigação. Mas não é porque os contratantes tenham
consentido quaisquer serviços recíprocos e porque a
boa fé comercial obriga a manter as suas promessas,
que o pretor dá uma acção? Não é o consentimento a
sua verdadeira fonte?
A teoria romana sofreu, na base desta última
ideia, novos desenvolvimentos. Um contemporâneo de
Gaius, o jurisconsulto Pedius, nota, que o consentimento
existe em todos os contratos (Digesto, li, 14, 1). O ho-
mem que promete por uma "sponsio" pagar uma soma

155
Direito Romano

em dinheiro, o depositário, que aceita receber um


objecto em sua casa com o encargo de o restituir, não
consentem em obrigar-se? As palavras solenes
trocadas, as inscrições no livro de contas, a entrega do
objecto, não são mais do que circunstâncias ou
processos de prova do envolvimento. Então não será
todo o contrato o produto do consentimento? Tal será a
sua definição entre os romanistas modernos. No entanto,
devemos notar que não totalmente a doutrina romana: o
direito romano, mais realista, continua a ver no contrato
uma operação de transferência de bens ou de serviços,
um negotium, um negócio, onde outros factores intervêm
além da vontade das partes.

Baixo-Império e direito moderno -Novas formas de


direito romano foram registadas tardiamente. Admita-
mos, por exemplo, o pequeno tratado dos contratos
sinalagmáticos contidos no Digesto, 19, 5, 5 e cuja
origem exacta se discute. Os contratos sinalagmáticos
(esta palavra foi assimilada pelos romanos do grego)
eram então os que requeriam prestações recíprocas aos
dois contratantes. Dividem-se, diz o nosso tratado, em
quatro categorias: Eu posso dar-te uma coisa porque tu
me dás outra; ou, em segundo lugar, para que tu
cumprisses um certo acto, que faças por exemplo um
certo trabalho. Posso, em terceiro lugar, realizar um
factum, um facto, para que tu dês; ou, em quarto lugar,
para que tu faças qualquer coisa. Em todas estas
hipóteses, basta que tenha cumprido a prestação à qual
pela minha parte estava comprometido, para que tu

156
As Obrigações

sejas obrigado a cumprir a tua obrigação. Uma acção é-


-me dada para este efeito. Por esta teoria geral, alguns
novos tipos de contrato são reconhecidos, por exemplo,
a troca (eu dou para que tu dês).
Por outro lado, certas origens de obrigação anti-
gas viram o seu campo de aplicação prática alargar-se
duma maneira considerável. Tal é o caso da estipulação.
Antigamente ela exigia a troca de palavras solenes, com
uma formalidade bastante incómoda; mas os juristas
mostraram-se progressivamente mais flexíveis quanto a
essas condições de forma; no Baixo-Império é suficiente
ter redigido um acto escrito, (nota-se ainda aqui a in-
fluência dos usos gregos) mencionando que a estipula-
ção foi feita (mesmo se na realidade não teve lugar) para
que nasça uma obrigação.
Depois os romanistas sofreram o peso da filosofia
moderna individualista. No nosso Código Civil, não é
mais do que uma convenção .Todas as "convenções le-
galmente formadas são consideradas leis parta os que
as fizeram" (artº 1134); as convenções são "arbitrárias",
diz melhor Domat, tais como se querem, e todas as pes-
soas podem fazer todas as espécies de convenções -
atentando apenas em que a pessoa não seja incapaz de
contratar, e que a convenção não tenha nada de contrá-
rio às leis e aos bons costumes. Não importa qual obri-
gação concluída sob não importa que forma, contanto
que seja consentida, é sancionada em princípio em jus-
tiça. E os filósofos do direito passarão a fundar sobre
altas considerações, sobre o axioma da liberdade
individual, o princípio jurídico dito da autonomia da

157
Direito Romano

vontade. Foram precisos, contudo, séculos para que ele


triunfe plenamente. A alta Idade Média ignora-o; muitos
romanistas se opõe longamente ainda a ele em nome
das velhas regras do direito civil.
Algumas vezes pretendeu-se que o consensua-
lismo seria obra do direito canónico, extraído do Evange-
lho: "Que a vossa linguagem seja: isso é ou isso não é.
O que se disser além disso vem do maligno", e do co-
mentário de S. Tiago. Sabe-se que os canonistas da
Idade Média têm uma natural tendência para confundir
muito o direito e a moral. Mas ainda agora os professo-
res da Escola moderna, dita do direito natural, estão im-
buídos de moral estóica. Eles podiam, aliás, citar alguns
textos jurídicos romanos. Um Domat não terá dificuldade
em justificar a doutrina que expõe com a mestria habitual
e a ajuda de passagens do Digesto, salvo falseando um
pouco o seu sentido ... já no século XIII Beaumanoir não
fazia senão traduzir um texto do direito romano (Pacta
sunt servanda. Mas Beaumanoir transgride o sentido
restrito da palavra pacta), escrevendo: "todas as conve-
niências são de respeitar". Temos neste direito moderno
o direito romano transformado, direito romano que ainda
não cessou de viver e de se desenvolver.
Causará espanto que estes dois princípios gerais
- que os homens são obrigados a reparar todos os
prejuízos resultantes da sua falta, e a cumprir todas as
suas promessas - sejam tão lentamente decididos?
Quando se reflecte neles, esse género de princípios é
muito contestável. Não é assim tão certo ,que a cidade
seja obrigada a prestar o seu concurso a todas as con-

158
As Obrigações

venções, que passam entre os simples particulares; ela


pode reservar a sua justiça para as que lhe pareçam
boas e economicamente úteis. O direito moderno tende
a impor tipos de contratos completamente feitos (o con-
trato de seguro - o contrato de transporte - o contrato
de trabalho), que os particulares não têm o direito de re-
cusar. Para não ficarem desprotegidos. Curioso retorno
ao direito romano.

A teorias do consenfünento

Não importa que tratado de direito civil englobe


hoje uma "teoria geral dos contratos" e os nossos ma-
nuais de "direito romano" reservem todos um bom es-
paço ao que mais ou menos expusermos. É uma das
partes mais claras do nosso direito, com uma ordem
límpida e digna de Descartes, aliás seu contemporâneo,
com poucos anos de diferença. Porque seria muito difícil
encontrar o análogo nos próprios textos romanos.
Leiamos primeiramente a doutrina do nosso Código
Civil. Todo o contrato, começa ele, é uma convenção
baseada sobre o consentimento (artº1101 ). Porém, para
que seja válido, é preciso que o consentimento seja
verdadeiro (artº 1109 e seguintes). Se o consentimento é
viciado pelo erro duma das partes (artº 111 O) ,ou porque
um dos contratantes extorquiu pela violência (artº 1111 e

159
Direito Romano

seguintes), ou a surpresa, o embuste, o dolo (artº 1116),


o contrato é, pois, anulável (artº 1117, etc.)* .
Uma semelhante exposição falta no direito ro-
mano. Isso não poderia surpreender-nos, se pensarmos
que os romanos se abstinham inteligentemente de se-
guir a nossa definição de contrato, fundamentada sobre
o consentimento das partes. Pedius, talvez se tivesse
elevado a esta concepção, mas ela não consta nas /nsti-
tutas de Gaius, nem nos de Justiniano. E se nos remon-
tarmos à época do antigo direito, verificamos ,que o con-
sentimento não é de modo algum a base essencial das
obrigações contratuais. Estas nascem, automaticamente,
porque palavras solenes foram mudadas; porque uma
soma de dinheiro foi tomada por empréstimo, de facto
(mutui datio). Pouco importa que o devedor seja respon-
sabilizado por engano, ou sob o império do medo; ele
preenche os requisitos que o tornam devedor, que levam
automaticamente e seguramente para o credor o direito
a uma acção.
Tal é o regime primitivo; encontra-se o análogo
em quase todas as civilizações arcaicas, por exemplo,
no princípio da Idade Média francesa. Mas os romanos
tinham um sentido muito refinado da justiça para a
manterem nesse estado.

O dolo e a violência em direito clássico - Na época


de Cícero, nós vemos o pretor proteger na prática os de-

* N.E.:Estes artigos têm a sua correspondência, mutatis mutandis, no


nosso Código Civil, artºs 240º-257º e 285 9 -294.

H)()
As Obrigações

vedares vítimas de violência ou fraudes. Fá-lo empirica-


mente, sem ideia preconcebida, pelos meios diversos
que as circunstâncias reclamam.
Suponhamos que o credor tenha obtido a respon-
sabilidade do seu devedor por uma violência, ou maqui-
nação fraudulenta, bem caracterizada. Há um delito, e o
pretor assim o considera. Dá à vítima uma acção penal,
a acção metus (de medo), pelo qual se obtém uma pena
igual ao quádruplo do prejuízo causado; ou a acção de
dolo, que nós conhecemos menos no seu estado origi-
nário. Ela conduzia pelo menos (independentemente da
restituição do dano causado) à declaração de infâmia do
delinquente. O dolo é, para a paz social, um perigo me-
nor que a violência; o pretor reprime-o por uma multa
menos forte.
Suponhamos mesmo uma fraude menos caracte-
rizada, e que não deu origem a acção penal. O credor
vem reclamar perante o juíz a prestação de que obteve
promessa, ou por intimidação ou simulação. O pretor dá
ao devedor uma excepção, exceptio metus ou dali -
pela qual é rejeitada a pretensão do queixoso (ver
supra, A "condemnatio").
O pretor faz ainda o uso dum terceiro meio de cor-
rigir os rigores do velho direito (ver supra "Outras
criações pretorianas"): a restituição por inteiro. É um
meio tirado do imperium, dos poderes de polícia do pre-
tor; porque a conservação dos bons costumes comer-
ciais importa à ordem da cidade não menos do que à
justiça; o pretor é o responsável. Ele faz comparecer as
partes, credor e devedor, à sua presença; examina o

161
Direito Romano

caso, a existência e a gravidade do dolo e da violência;


e, se há lugar, anula com a sua autoridade própria o acto
jurídico ou o contrato manchado com algum vício.
Ordena a anulação para todos os efeitos, faz restituir ao
devedor o que já teria pago, em virtude do seu compro-
misso. É uma medida corajosa, de efeitos notáveis: con-
clui exactamente, como a teoria moderna, por anular os
efeitos do contrato obtido pelo dolo ou violência; sem
que se acrescente urna pena deiituosa. A "restituição" é
resolvida no édito. O pretor faz dela um uso frequente e
cada vez mais generalizado.
Acrescentamos, para terminar, que em todos os
contratos recentes, introduzidos na época clássica do di-
reito das gentes, a venda, o aluguer, a sociedade, o
pretor não moveu acção ao credor senão na base da
boa fé. Se o vendedor conseguiu empurrar para a ade-
são do comprador por qualquer mistificação, mentindo
sobre a qualidade da coisa, a boa fé não quer que se
obrigue o comprador a executar o contrato. O juiz, fun-
damentando-se na cláusula da fórmula que o convida a
julgar segundo a boa fé "ex fide bana" não dará razão ao
vendedor, sem que uma intervenção especial do pretor
seja aqui necessária.
Assim _o_direito romano clássico acaba por possuir
um rico arsenal de meios variados, bem adaptados às
circunstâncias, para proteger conforme as exigências
precisas da equidade, as vítimas do dolo ou da violência
contratuais. Pouco se faz de teoria. Mas a prática é que
postula uma sociedade civilizada.

162
As Obrigações

O Baixo-Império - No Baixo-Império, o regime vai


simplificar-se. Dissemos que os progressos do novo pro-
cesso, dito extraordinário, têm feito sofrer ao conjunto do
direito romano transformações importantes; os diferentes
meios do processo clássico - interditos - restituições
- acções civis e pretorianas dos tipos mais diversos -
perdem a sua individualidade, vêm fundir-se num modo
quase único de agir em justiça. Assim a restituição in in-
tegrum, que constituirá um dos grandes procedimentos
de repressão do dolo e da violência, tende a fundir-se
com a acção correspondente.

Com Justiniano, o procedimento normal desta re-


pressão, é a acção - acção dali - acção metus. Mas
estas acções perderam o seu antigo carácter original, o
seu carácter penal. Para punir as violências caracteriza-
das e claramente criminais, há agora uma justiça pública
muito desenvolvida. Tudo o que pode exigir o devedor, é
ver anulada a sua obrigação. Isso outrora era a função
da "restituição". Agora a acção providencia nesse sen-
tido. Para a acção do dolo a questão é simples: ela
nunca serviu para reclamar (além da infâmia do réu) se-
não a restituição exacta do prejuízo sofrido. Para a ac-
ção metus, que em princípio é o quádruplo, torna-se
"arbitrária": este termo significa que a condenação do
credor à pena do quádruplo do dano sofrido não seria
pronunciada a menos que ele recusasse, por ordem
(arbitrium) do juíz, a restituir o simples. Praticamente,
nunca. A acção serve, muito precisamente, para destruir
o contrato; porque a vítima tem direito a ver apagados os

163
Direito Romano

efeitos de todo o acto manchado de dolo ou violência


opressora.
Os modernos não terão que construir sobre estas
bases. Desde a Idade Média apropriam-se dos textos do
direito romaná; classificam-nos, simplificam-nos; acres-
centam-lhe algumas soluções esparsas nas compila-
ções de Justiniano, relativamente ao erro. Quando
triunfa a ideia moderna, que os contratos teriam por
"alma" o consentimento, concluíu-se por esta fórmula,
que os contratos viciados pela violência, o dolo, o erro,
são "anuláveis": fórmula excessiva, prejudicial a tercei-
ros, ao comércio. Poderíamos aqui, uma vez mais, atri-
buir a criação ao muito sistemático Domat, o contempo-
râneo de Pascal, a menos que ela não pertencesse já a
Grotius.

A estipulação para outrem -Último exemplo, me-


nos ainda em honra dos juristas modernos.
Uma velha regra do direito romano quer que se
não possa estipular para outrem; na velha estipulaçãol,
o direito do credor tem a sua origem nas palavras
trocadas; quem não pronunciou as palavras rituais não
poderia adquirir acção. Eu não posso, portanto, estipular
com uma pessoa que dê qualquer coisa ou preste um
serviço a meu filho, ou a um meu amigo; este amigo não
teria acção e a minha estipulação seria "inútil". Tal regra

1Ver mais atrás " Os contratos".

164
As Obrigações

compreende-se historicamente para o período das


origens.

Os próprios romanos têm tendência a estendê-la a


toda a espécie de contratos. A estipulação é para eles o
tipo de contrato e a seu propósito é que eles esboçam
uma teoria do contrato. É preciso dizer que eles cercam
a regra de tantas excepções práticas que ela tem poucos
inconvenientes. Os modernos apoderaram-se dela, em-
bora entre nós não tenha muita razão de ser, e inseri-
ram-na na sua teoria geral. "Como as convenções se
formam pelo consentimento, ninguém a pode fazer por
outro", escreve Domat; isso só aparentemente é lógico.
Se eu contrato um seguro de vida em benefício de um
dos meus filhos, porque se recusa um tal direito a este fi-
lho? O Código Civil adapta este princípio infeliz, cujas
consequências práticas a jurisprudência levará algum
tempo a dissipar. Esclarecidos pelos trabalhos mais re-
centes dos romanistas, os Códigos civis alemão e suiço
abandonam-no.

165
Conclusão

O leitor não terá dificuldade em o reconhecer: o


corpo do nosso direito, esta técnica sabedora, estas
noço-es, estas -deffnTÇoê-s precisas, estas, distinções
subtis~ue poderiam condU-zir a j_~!_~gr__ duma maneira ao
mesmo tempo _§~gura e minuciosamente-ª~ltat~va; tudo
isso nósJ.Qmámo-lo~f!l_g_rande part~ de Rom~:
Sem dúvida,era impossível ter sobrevivido tudo no
direito romano. Há ramos mortos nesta árvore: a escra-
vatura, as estipulações, a mancipação, aJ!:!!_~_la das~ mu-
!_!:ler~_~_:_ Essa foi uma parte do grande papel dos romanis-
tas, a expurgação, a supressão do que era doravante
inútil. Ainda, uma vez mais, a maior parte deste trabalho
estava já realizado por Justiniano. Mas o essencial do
e
direito Justinian~u. trªb9!ti?_c:jg,__ _§imf:)lificad9, m-ulfas ve-
zes enriguecido ~los modernos, chegou até nós. Dele a
------·- ------------------·- -"·

167
Direito Romano

jivisão das pessoas, o sistema dos direitos reais, e o


<iasohngaÇaeS:-Muitas--vezes,-obdÇfamo_s_a dependência
aié-ao--seúvilfsino; mostrei como uma regra, tal como a
que proibia em Roma a estipulação para outrem, e que
hoje não tem a menor razão de existir, foi abusivamente
conservada no nosso Código civil.

Criticas contra o direito romano - O carácter ro-


mano, que por toda a parte penetra o nosso direito até à
medula, e que cada um sente mais ou menos confusa-
mente, não é do gosto de todos. Os romanistas nunca fo-
ram populares, ch~gando a passar por ridículos. Desde
Montaigne, desde Moliêre, aspirava-se a uma justiça
sim_l?!.§l.§_~_J~_QJ2Ul_9-L_()~q~_ Q_ !)oíll S.l:l~so substituiria u111~
ciência livresca e inumana, escolhida no estrangeiro;
diz-se serem é-ssas re-grã.s" complicadas, ditas numa lin-
guagem de pedantes, e mais em latim que em francês;
criticam-se" as fórmulas estreitas e imutáveis dos
"legistas". Tornou-se, ao que nos parece, numa mentali-
dade comum o desprezo pelo direito romano; a igreja
católica lamenta-se por ter sido romanizada; nada pa-
rece mais desprezível a um jornalistal que o "juridismo
romano".
Nós atribuímos, por hábito, mais importância às
críticas dos eruditos, da obra dos quais nascem, a longo

1 Pensamos no Senhor X... (anónimo) que escreve em L'Université libre do


antigo deão da Faculdade de Direito de Paris, M. Ripert: "um desses juristas
que imaginam encerrar a vida numa fórmula herdada do direito romano ... "

168
Conclusão

prazo, os lugares comuns. Foi assim no seu meio que se


declararam contra o direito romano. Opõem-se-lhe ou-
tros sistemas de controle social, tal como o dos hebreus,
que, por razões bem compreensíveis, interessou muitas
vezes os juristas do antigo regime: no século XVI, Hot-
man convida os juristas a procurarem modelo na Bíblia,
ao mesmo tempo que lança um panfleto virulento contra
o direito de Justiniano.
Ignoro as riquezas que se encontrariam nos ou-
tros sistemas estrangeiros, tais como o direito chinês,
que se começa a estudar em Françal. Alguns autores
elogiam os méritos do direito canónico2, mais conforme
ao Espírito do Evangelho; ele teve desde a Idade Média
defensores contra a invasão do direito romano, mas em
verdade foi sobretudo a obra de clérigos imbuídos de
cultura jurídica romana. Outros fizeram a apologia dos
costumes originais da Idade Média francesa, tão ricos,
tão finos, tão complexos; uma rede de múltiplos direitos
reais substitui o sistema simplista da propriedade ro-
mana; a família está melhor protegida e não somente o
indivíduo; uma comunidade de vida indissolúvel, admi-
tindo a mistura de alguns dos seus bens, é prescrita en-
tre os esposos, segundo as exigências da moral cristã; a
protecção dos menores, e ainda dos pobres, dos doen-
tes ou das viúvas, organiza-se num espírito de suavi-

1 Jean Escarra, Le droit chinois, Paris, 1936.


2 Ver por exemplo as belas páginas de Schnürer na L'Eglise et la civilisation
au moyen ãge.

169
Direito Romano

dade e de caridadel; somente os nossos autores habi-


tuais não deixavam de se inspirar no método jurídico
romano, e não duvidavam que ele fosse superior ...
O mais___gesado dos ataques contra o direito ro-
mano foi desencadeado, no séêUTo passado (não falo
das sequelas hitlerianas), pelos sábios alemães ditos
germanistas. Eles foram procu-rar nas-l:frumaS
das veihas
florestas g-ermânicas os traços dum antigo sistema jurí-
dico mais másculo, ou mais humano, de todo o modo.
superior ao sistema latino; no fervor do seu naciona-
lismo, chegaram um dia a descobrir que os princípios da
autonomia da vontade, a transmissão dos direitos reais
pelo simples consentimento, eram de origem germânica.
A sua escola, douta, carregada duma rica erudição, im-
pressionou a opinião pública. Um célebre jurista ameri-
cano escrevia ainda recentemente: "Não se vê a utili-
dade da obra do direito romano, pois que as principais
raízes do nosso direito estão no direito franco, não no di-
reito romano, e porque muitas ideias, que se tinham an-
teriormente, e que, nos livros de uso corrente, são sem-
pre supostas de origem romana, são hoje reivindicados
pela lei Sálica e os usos populares que deixaram o seu
rasto na Germânia de Tácito ... 2". Totais contra-verdades.
Nós não acreditamos até aqui, e mau grado o interesse

1 Meynial, Les Traits originaux de l'ancien droit privé !rançais (Revue d'his-
toire du droit, 1928, p. 401 ).
2 Citado por Riccobono na recolha E. Lambert, 1, 245, traduzida por P.
Garraud.

170
Conclusão

muito vivo destas comparações, que se tenha vencido


ao opor ao direito romano uma outra forma de arte jurí-
dica que lhe seja preferível.
Mas há novas tendências. A vida muda; o capita-
lismo, as máquinas, os grandes Estados, a conquista do
mundo, convulsionaram as condições sociais. Vamos
conservar as leis dum passado morto? Isso seria, diz
Hotman "tanto como se os padres e os monges de agora
'"'",....: .... ,...,,....,....'"'_.,, - - - - - · · - - - · · : - - - - _..... _ _ _ ; ... ,.... ,.J- ...J--!""1- ... - - -
1;;11;:,111a;:,;:,1;;111 au;:, ;:,1;;u;:, 11uv1\'u;:, a 111a111:::11ci ut: UC111':{C11 11ci;:,

procissões solenes como os padres Sábios de Roma


costumavam fazer". Que dizer ao século do foguetão e
da electrónica? Que nada impede produzir soluções
inéditas em circunstâncias novas, apoiando-se sobre os
princípios, utilizando o método e muitas vezes a lingua-
gem própria dos juristas romanos.
Novos problemas de justiça põem-se hoje em evi-
dência, que são problemas de partilha: conflito entre os
assalariados e o capital, entre os accionistas e os diri-
gentes de empresa para a partilha dos benefícios, entre
promotores de grandes complexos e defensores da na-
tureza, entre produtores de caixas de conservas insalu-
bres e consumidores, entre o terceiro mundo e países ri-
cos, etc. E ninguém duvida que as soluções do Corpus
Juris Civilis não poderiam de forma alguma bastar. Isso
não parece ser uma razão para se lançar irreflectida-
mente em novas concepções da arte jurídica, saídas de
doutrinas na moda nascidas aparentemente para além
de toda a experiência do direito: quer o marxismo, que
não parece muito ter-se constituído em função da justiça
concreta, quotidiana, da que pratica o juíz; quer o

171
Direito Romano

sociologismo, que procede duma v1sao científica do


mundo indiferente à justiça; quer, anteriormente, o
kantismo e o cartesianismo. Assim como os gregos
inventaram a disciplina filosófica (e não é filósofo o que
considera supérfluo instruir-se hoje mesmo na sua
escola), também os. romanos. inventaram a arte do
dómTriro-
direi~_Q:_ E3___néldª. indTca -qlie--íles-se~ eies----s-eJam
substituídos.

O direito romano campo de pesquisas - Somente é


muito necessário que nós sejamos ainda capazes de
extrair desta mina as suas riquezas.
Há algum tempo que os juristas não dão mais
aulas, na prática, no Corpus Juris Civilis; que nós não
temos mais do Digesto e das lnstitutas, essa íntima fami-
liaridade, de que beneficiavam os nossos longínquos
antepassados. O direito romano não nos chega senão
mediocremente repercutido através do prisma dos ma-
nuais em uso nas nossas escolas.
E, o que é pior, falsificado. Nós assinalámos
(supra, no capítulo "A obra dos romanistas") que depois
do século XVIII, cedendo à fascinação de novas filoso-
fias, como aos prestígios das ciências exactas, os roma-
nistas tinham refeito a doutrina jurídica romana. Os prin-
cípios da Escola dita moderna de direito natural e mais
tarde os dos pandectistas são o oposto dos princípios
dos juristas romanos. Estes romanistas pretenderam
fazer do direito romano uma "ciência", um sistema de
regras fixas, enquanto que ele era uma pesquisa, uma

172
Conclusão

arte; eles construíram esta ciência a partir do indivíduo,


dos "direitos subjectivos" e das liberdades, as quais, por
hipótese, o homem teria gozado no estado de natureza,
enquanto que os romanos aprendiam de improviso, no
real, as relações sociais; toda a doutrina jurídica foi en-
cerrada numa rede de conceitos individualistas, que se
pretendem como únicos racionais, segundo o ensina-
mento de Kant. Pretendeu-se submeter-lhe o próprio di-
reito romano. É do interior destas categorias que se
transmitiu para os nossos manuais.
E assim se derramaram pelo público contemporâ-
neo essas figuras fantasmagóricas: o pretenso "conceito
romano de propriedade" absoluta (de facto o do indivi-
dualismo moderno) - o pretenso consensualismo - o
pretenso "juridismo" romano (enquanto que a arte dos
jurisconsultos era duma requintada leveza). Não me es-
panto mais se para muitos dos nossos contemporâneos,
o "direito romano" for um inimigo ...

Um vasto esforço de desentulho seria, pois, ne-


cessário, para desembaraçar o direito romano dos re-
vestimentos de que o cobriram. Importaria recuperá-lo tal
como se pensava a partir da sua própria filosofia, na sua
linguagem específica, na sua pureza originária.
Tudo parece anunciar que esse trabalho não seria
perdido. As verdadeiras noções romanas da proprie-
dade, do contrato, da obrigação, do próprio direito, à
medida que vão sendo redescobertas, parecem mais
espantosamente próprias das necessidades da época
presente, que sai do individualismo; de maneira que o

173
Direito Romano

retorno à veneração da linguagem jurídica romana


poderia ajudar a ciência do direito a sair da sua crise
actual. Nós pressentimos que o método dos juristas
romanos é pouco mais ou menos o que se esforça por
restaurar dificilmente a grande Escola contemporânea
de lógica jurídica de Bruxelas. E se nós procuramos a
partir das grilhetas do positivismo e do legalismo
modernos (sem cair na inconsistência oposta da Escola
do direito livre), se nós experimentamos a vaidade e
falsidade dos lugares comuns ideológicos ,que têm
curso na opinião presente sobre os meios e os fins da
justiça social, talvez nos fosse bastante seguir o exemplo
dos juristas romanos. Que se nos permita este paradoxo,
seria possível que os romanistas regressassem, com
toda a sua humildade, para o pico da actualidade, a
breve trecho.
Não é senão uma esperança. Os romanistas na
vanguarda do progresso do direito, tal não é
presentemente o caso, porque os estudos de direito
romano andam, ao invés, em câmara lenta, e não
encontram qualquer apoio ou encorajamento oficial. Nós
temo-nos esforçado aqui, segundo o programa desta
colecção, de fazer sobre o direito romano "o ponto de
conhecimentos actuais". Confessamos para terminar que
estes conhecimentos actuais são muito deficientes, que
eles estagnam na confusão entre o direito romano
autêntico e o direito romano modernizado de que os
nossos manuais mal conseguem libertar-se. O direito
romano permanece uma riqueza por descobrir.

174
Conclusão

P. S. - Depois da redacção deste livro, grand~~


obras demonstraram que a ciência do direito romano era
a_Q_ort_§.--i"ii~-~~~~6~§y§_Lp3f~f!Jrjie-r~~~~cª~~:~tãÇ~~~~~~~~~=-
terístico~
do direito ocidental moderno; é a nossa lingua-
gem comum para Õs nos-sos-juristas europeus; esta ver-
dad8 não deveria ser desconhecida nem nas nossas
universidades da Europa nem nas novas do terceiro
mundo (Koschaker, Europa und das romische Recht,
i947).

Outros puseram à luz o alto valor da linguagem e


do método dos jurisconsultos romanos
(ScFiúlZ,-Prinii-
pien des romischen Rechts, i 934, lraduzido em inglês e
em italiano, Viehweg, Topik und Jurisprudenz, 1952); a
maneira dos juristas romanos tratarem o direito, a sua
ferramenta -co.ncept-uaT-mostram-_se mu ffas-·ve·z-es-süpe-
riores à dos-romamstasmOêiêrnos dequesoTremos a in-
ffUência; encontrar-se-ão alguns exemplos nas nossas
Leçons d'histoire de la philosophie du droit (ed. 1962, p.
109 e seg., 212 e seg.,) e as nossas outras obras de
história da filosofia do direito.

Assim devemos denunciar como um golpe de


força funesto aos laços culturais entre universitários da
Europa e a boa formação dos juristas franceses, a quase
supressão do estudo do direito romano perpretado pro-

175
Direito Romano

gressivamente nos programas "reformados" das facul-


dades de direito francesas. I

1 N.E. Em Portugal, após um período de abolição, o Direito Romano


regressou à Universidade, primeiro optativamente e no 4º ou 5º ano de
licenciatura, e depois obrigatoriamente, e a par da História do Direito, no
primeiro ano. Apesar dos esforços de verdadeira cruzada romanista (como já
tivemos ocasião de lhe chamar) do Prof. Doutor Sebastião Cruz e do Prof.
Doutor Santos Justo, há todavia, algumas universidades que ainda não o
comportam nos seus planos de estudos, ou o ensinam deformadamente, não
sendo rara a ausência de verdadeiros romanistas à frente destes estudos.

176
Ã.'.N'.EXOS

1) Extractos do Digesto, liv. 1, título 1, (De justitia et


jure), fragmento 1:
Ulpianus, libra lnstitutionum ... Juri operam datu-
rum prius nosse oportet, unde nomen juris descendat.
Est autem a justitia appellatum: nam, ut eleganter Celsus
definit, jus est ars aequi et boni... Cujus merito quis nos
sacerdotes appellet: justitiam namque colimus et bani et
aequi notitiam profitemur... Veram nisi fallor philoso-
phiam non simulatum affectantes

Fragmento 1O:
Ulpianus, libra primo Regularum = Institutos de
Justiniano, 1.1 pr., e 1:
... Justitia est constans et perpetua voluntas jus
suum cuique tribuendi... Jurisprudentia est divinarum at-
que humanorum rerum notitia, justi atque injusti scientia.
Versão proposta:

177
Direito Romano

UI piano, Curso elementar de direito, 1.1:


A quem vai trabalhar o direito é preciso primeira-
mente conhecer donde procede esta palavra: jus. É deri-
vada de Justitia: porque, segundo a bela fórmula de
Celso, o jus é a arte do justo (quer dizer da proporção
entre os bens e os encargos dos cidadãos - aequum) e
do bom. É a razão porque alguns nos chamam sacerdo-
tes da justiça: porque nós cultivamos a justiça, nós pro-
íessamos o conhecimento do bom e da proporção equi-
tativa, separando o justo do injusto. Nós perseguimos
(se me não engano) uma verdadeira filosofia, não so-
mente uma aparência verbal da filosofia ...
A Justiça é uma vontade constante e durável de
atribuir a cada um o seu direito ... A jurisprudência pode
ser definida, a partir dum conhecimento das realidades
humanas e divinas, uma ciência do justo e do injusto.

2) Extracto do Digesto, livro 1, título 1, fragmento 2.


Paulus, libra quarto decimo ad Sabinum:
Jus pluribus modis dicitur: uno modo, cum id quod
semper aequum ac bonum est jus dicitur, ut est jus
natura/e. Altero modo, quod omnibus aut pluribus in
quaque civitate utile est, ut est jus civile. Nec minus jus
recte appellatur in civitate nostra jus honorarium. Praetor
quoque jus reddere dicitur etiam cum inique decernit,
relatione scilicet facta non ad id quod ita praetor fecit,
sed ad illud quod praetorem facere convenit...

178
Anexos

Paulo, liv. XIV do seu Comentário de Sabinus:


Jus tem várias acepções: ele pode designar o es-
tado de coisas justo e universalmente bom: assim como
o jus natura/e. Ou então, o que nesta ou naquela cidade
parece útil, na opinião de todos, ou pelo menos dum
bom número de cidadãos: assim como o jus civile. É
igualmente correcto designar pelo termo jus , na nossa
cidade, o direito constituído pelos magistrados Uus hono-
rarium). Diz-se que o pretor também representa o jus,
suposto mesmo que ele tenha decidido contra a justiça:
considerando, não no que o pretor fez, mas no que con-
vém que o pretor faça ...

3) Extracto do Digesto 1 (De origine juris), frag-


mento 2:
Pomponius, libra singulari enchiridii:
... /ta in civitate nostra aut jure, id est lege, constitui-
tur, aut est proprium jus civile, quod sine scripto in sola
prudentium interpretatione consistit, aut sunt legis actio-
nes, quae formam agendi continent, aut plebis scitum,
quod sine auctoritate patrum est constitutum, aut est
magistratuum edictum ... Aut senatus consultum ... aut est
principalis constitutio, id est ut quod ipse princeps consti-
tuit pro lege servetur.

Pomponius, Manual:
É assim que na nossa cidade existem instituições
fundadas primeiramente sobre a lei (e que pode dizer-se
num primeiro sentido dependerem do jus) - ou então
tem-se o jus civile em sentido próprio, o qual na ausên-

179
Direito Romano

eia de toda a lei escrita, vem exclusivamente do trabalho


de interpretatio dos prudentes. Em seguida as acções da
lei, contendo as formas segundo as quais se exerce um
processo. O Plebiscito, constituído sem que nele interve-
nha a "autoridade" dos senadores. O Édito dos magis-
trados. O Senatus consultus. Ou então, enfim, a
Constituição Imperial (o que significa que, aquilo que o
rei constitui, tem valor de lei).

4) Extracto do Digesto, livro 1, título li, fragmento 2.


Pomponius, Manual (ibid. § 47)
Post hunc maximae auctoritatis fuerunt Ateius
Capito, qui Ofilium secutus est, et Antistius Labeo, qui
omnes hos audivit, institutus est autem a Trebatio ... La-
beo noluit... honorem suscipere, sed plurimum studiis
operam dedit, et totum annum ita diviserat, ut Romae sex
mensibus cum studiosis esset, sex mensibus secederet
et conscribendis libris operam daret... Hi duo primum
veluti diversas sectas fecerunt. Nam Ateius Capito in his
quae ei tradita fuerunt, perseverabat; Labeo ingenii
qualitate et fiducia doctrinae, qui et ceteris operis sa-
pientiae operam dederat plurima innovare instituit.

Pomponius (ibid., § 47):


(Entre os grandes jurisconsultos) em seguida os
que tiveram, mais autoridade toram Ateius Capita, o qual
seguiu a doutrina de Ofilius, e Antistius Labeo, que tinha
sido ouvinte de todos, mas formado especialmente por
Trebatius ... Labeo recusou assumir uma magistratura (de
cônsul) mas entregou-se sobretudo ao estudo - divi-

180
Anexos

dindo o ano em duas partes, seis meses em Roma em


companhia de pessoas cultas, seis meses fora de Roma
para se consagrar à redacção dos seus livros ... Estes
dois juristas deram origem como que a duas seitas dis-
tintas, porque Ateius Capita permanecia fiel às tradições
que tinha aprendido. Labeo, a par da qualidade pessoal
do seu espírito e seu gosto pelo estudo (porque ele era
também versado em outras disciplinas da filosofia), em-
preendeu inovar sobre numerosos pontos.

5) Extractos do Digesto, livro 50, título 17, frag-


mento 1:
Paulus, libra sexto decimo ad Plautium.
Regula est quae rem quae est breviter enarrat.
Non ex regula jus sumatur, sed ex jure quod est regula
fiat.

Paulo, livro 16 do seu Comentário de Plautio:


A essência da regra é enunciar brevemente uma
coisa pré-existente. Não é preciso que o direito seja ti-
rado da regra, mas que do direito que pré-existe seja ti-
rada a regra.
lbid., fragmento 202:
Javolenus, libra undecimo epistularum:
Omnis definitio in jure civili periculosa est: parum
est enim, ut non subverti posset

Javolenuis, liv. XI das suas Cartas:

181
Direito Romano

Todas as formulações rígidas são perigosas em


direito civil; as que não possam ser demolidas ou refuta-
das vitoriosamente na controvérsia são raras.

6) Extracto das lnstitutas de Gaius, liv. li, § 29 e


seg.(= Digeste, liv. 1, título VIII, fragmento 1):
(2) Summa itaque rerum divisio in duas artículos
diducitur: nam aliae sunt divini juris, aliae humani... (1 O)
Hae autem quae humani juris sunt, aut pub!icae sunt aut
privatae ... (12) Quaedam praeterea res corpo rales sunt,
quaedam incorporales ... (14) lncorporales sunt quae
tangi non possunt, qualia sunt ea quae (in) jure consis-
tunt, sicut hereditas, ususfructus, obligationes quoquo
modo contractae ... Nam ipsum jus successionis et ipsum
jus utendi fruendi et ipsum jus obligationis incorpora/e
est.

Divisão principal das coisas: umas são de direito


divino, outras de direito humano ... As que são de direito
humano são ou públicas ou privadas. Distinção se-
guinte: certas coisas são corporais, outras incorporais ...
São incorporais as que não podem ser tocadas, tais são
as coisas que consistem em direitos (outra versão: que
instituíram o direito), por exemplo, heranças, o usufruto,
as obrigações (de qualquer maneira que estas últimas
tenham surgido) - porque o próprio direito de sucessão,
ou de usufruto, ou de obrigação, é uma coisa incorporal.

7) Extracto das lnstitutas de Gaius, liv. Ili, §§ 88 e


seguintes:

182
Anexos

Nunc transeamus ad obligationis. Quarum summa


divisio in duas species diducitur: omnis enim obligatio
vel ex contractu nascitur vel ex delicto (89). Et prius
videamur de his quae ex contractu nascuntur. Harum
autem quattuor genera sunt: aut enim re contrahitur
obligatio aut verbis aut litteris aut consensu.

Passamos às obrigações. A divisão superior das


-'-~:---n""'"' ,...,....+,!.. vi
n .... +.-n r1 • • ,....t"' r\~ng' raie~ nrinr"if""\~ic· tnri~ !l
UUI ·~a~uo~ O~La Ili V UUO.v vvjJ ..,, V jJI l i '"'t-' ........... , ..................

obrigação de facto deve a sua existência quer ao con-


trato, quer ao delito. Examinemos primeiramente as que
nascem dum contrato. Há quatro géneros distintos: pois
que uma obrigação se contrata pela remessa duma
coisa (re), ou por pronunciar palavras (verbis) ou, em
terceiro lugar, pela inscrição de certas letras (litteris);
podem enfim proceder dum consentimento(consensu).

8) Extracto do Digesto, liv. li, título 14, fragmento 1:


Ulpianus, /ibro quarto ad edictum:
. . . Conventionis verbum generale est ad omnia
pertinens de quibus negotii contrahendi transigendique
causa consentiunt qui inter se agunt... Adeo autem
conventionis nomen genera/e est ut eleganter dicat
Pedius nullum esse contractum, nu/Iam obligationem
quae non habeat in se conventionem, sine re sive verbis
fiat. ..

Ulpiano, liv. 4 do seu Commentaire sur l'Edit:


A palavra "convenção" é geral: aplica-se a tudo
aquilo sobre que os parceiros duma operação jurídica,

183
Direito Romano

em vias de conclusão, ou para efectuar um negócio, vêm


a "consentir". ("Convir" é, etimologicamente, vir em con-
junto ao mesmo lugar, reunir-se, partindo de motivações
diversas, num mesmo querer). E o termo convenção tem
tanto de generalidade ,que Pedius pôde avançar com
subtileza, que não existiria "contrato" algum, mesmo
qualquer tipo de obrigação, porque implicaria em si
mesmo uma "convenção"; a observação valeria tanto
para a obrigação que precede da remessa duma coisa
(re) ,como para a nascente de palavras (verbis) ...

184
J. ELLUL, Histoire des institutions, t. 1 (Presses Universitaires de
France, 1972).

OURLIAC e de MALAFOSSE, Droit romain et Ancien droit. Les obli-


gations, les biens (Presses Universitaires de France, 1969 e 1971).

MONIER, IMBRT, CARDASCIA, Histoire des institutions ... (Domat-


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J. IMBERT, Le droit antique (Presses Universitaires de France, collec-


tion "Que sais-je?", nº 924).

185

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