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IVANI GODOY

Copyright © 2021 – IVANI GODOY

Capa: Barbara Dameto


Diagramação: Denilia Carneiro - DC Diagramações
Revisão: Sara Ester

1ª Edição

Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,


personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação
da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é
mera coincidência.
Todos os direitos reservados. São proibidos o armazenamento e/ou a
reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios —
tangível ou intangível — sem o consentimento escrito da autora.
Criado no Brasil. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na
lei n°. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
SUMÁRIO
SINOPSE
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
CAPÍTULO 43
CAPÍTULO 44
CAPÍTULO 45
CAPÍTULO 46
EPÍLOGO
BÔNUS 1
BÔNUS 2
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REDES SOCIAIS
Samuel podia ser considerado um homem controlado, pois sua fachada

sempre demonstrava frieza. Porém, por dentro, tudo se dissolvia em fúria

tóxica. E isso o envenenava, corrompia, sufocava o seu coração até ele

quase parar de bater.

Não há como fugir disso.

Não há como escapar.


Samuel vivia com um único objetivo: sua vingança contra aquele que

permitiu que ele perdesse tudo.

Em busca de seu propósito, teve seu caminho cruzado com um anjo

perfeito, uma garota tão linda quanto a luz do sol, porém, quebrada, ferida e

sangrando... Por ela, ele seria capaz de matar e morrer.

Aqueles demônios a tocaram, machucaram... Esse foi o erro deles.

Agora Samuel não tinha apenas uma vingança a cumprir, mas duas, e não iria

parar até que fizesse os culpados chorarem lágrimas de sangue, movido pela

fome de ver todos dilacerados, louco para ouvir seus gritos e saboreá-los

enquanto mandava um a um para o inferno.

“Eles deveriam saber que ela não era de nenhum deles. Ao tocarem-

na, desafiaram a besta, selando seus destinos. Dariam seus últimos suspiros

enquanto encaravam meus olhos.”


Samuel aos 15 anos

Meu pai me chamou para a reunião na igreja; eu odiava quando isso

acontecia. Acreditava em Deus, só não na seita que acontecia naquela cidade

com a anuência de todos os moradores.

Pertencíamos à máfia Salvatore. Giovanni, meu pai, tinha negócios

com Enzo Salvatore. O capo, Lorenzo, deu carta branca para meu pai fazer

aquela blasfêmia em nome de suas crenças.


Eu sabia que eles usavam aquela seita para camuflarem a pedofilia que

praticavam como bem quisessem. Eu era esperto, aguentei calado toda

aquela crueldade, só me preparando para um dia tirar meus irmãos daquele

inferno. Cheguei até a implorar para minha mãe deixar o meu pai e irmos

embora com meus irmãos. No entanto, ela não aceitou; não acreditava em

divórcio. Além disso, a máfia à qual pertencíamos nunca nos permitiria

partir.

Não me importava em pertencer a uma organização criminosa, fui

treinado desde meus nove anos para ser um soldado. Meu pai me

transformou em uma máquina de matar. No fundo, eu aceitava isso, afinal,

matava pessoas iguais àqueles homens ali, sentados naqueles bancos.

Na minha idade, eu já tinha eliminado nove homens. No começo, foi

uma trajetória difícil. Vomitava e tinha pesadelos. Porém, aceitei esse

destino. O que repudiava era aquela crença sem sentido. Os infelizes nos

castigavam por coisas que nem fazíamos.


Olhei para as portas do lugar que deveria trazer redenção e paz, mas

causava o oposto disso. Um local de dor, desespero e muita merda. Respirei

fundo e entrei no corredor em cujos lados havia bancos cheios de pessoas

“devotas”. O reverendo era o cabeça deles, a serpente, mas os membros não

ficavam atrás, com toda a imundície daquela escória.

O altar estava em minha frente. Odiava aquele lugar, pois pregavam

que era onde pagaríamos por nossos pecados, pecados esses que não

cometíamos, e, mesmo se os cometêssemos, aquela não deveria ser a forma

de castigar seus filhos ou qualquer pessoa.

Quando eu fosse para o inferno, desejava ir por meus próprios

pecados, como os homens que havia matado, não por algo fútil e sem

sentido. Por que não me julgavam quando eu matava alguém? Ao contrário,

eles se vangloriavam por isso, dizendo que o defunto tinha merecido por ser

um traidor.

Bonnie, uma menina loira da minha idade, estava de pé ao lado do seu

pai, o reverendo. O canto da sua boca tremia. Nós dois éramos os mais
castigados, por sempre vermos tudo aquilo e não podermos dizer nada.

Havia mais duas crianças ao lado dela. Só eram trazidas às reuniões

aquelas que seriam castigadas. Raiane e Renan, meus irmãos, estavam com

suas vestes brancas, destinados à “pureza” e à “renovação”. Os membros da

congregação nos batiam até achar que tínhamos sido castigados e redimidos.

Assim éramos “perdoados”. Porém, quem deveria estar ali era cada um

daqueles crápulas, não as crianças.

― Hoje, vamos fazer todos pagarem pelos seus pecados ― disse o

reverendo. ― Vou começar com Raiane, que está com idade para cometer

pecados. Venha aqui.

Porra! Não havia nada mais fodido do que o crime que cometiam ali

dentro. Era algo que me enojava. Aqueles sujeitos deveriam queimar no

inferno, de preferência com muita dor.

Os lábios de Raiane tremeram quando ela olhou para o nosso pai ali,

ao lado do altar. Ele mandou que ela prosseguisse, então ela fez o que foi

mandado.
Os nossos castigos eram dos piores; as meninas eram obrigadas a ficar

nuas e presas à cruz, onde apanhavam, isso quando não eram molestadas; os

meninos eram surrados até o ponto de o sangue escorrer e a pele ficar em

carne viva. Todos que compactuavam com aquilo queimariam no inferno,

pois eram merecedores da condenação eterna.

― Diga a todos nesta igreja quais foram os seus pecados ― exigiu o

reverendo.

Ela olhou para aqueles que a observavam, com lágrimas escorrendo

em suas bochechas. Seus dedos pequenos esmagavam o seu vestido. O medo

era evidente tanto nela quanto em Renan.

Eu tinha ido atrás de muitas pessoas em busca de ajuda, mas meu pai

possuía muita influência sobre os moradores daquela cidade esquecida por

Deus. Ninguém me deu ouvidos, sem contar que acabei levando uma surra

por isso. Fiquei amarrado em uma cruz por um dia inteiro e então desisti de

pedir amparo. Decidi resolver o problema eu mesmo. Sabia o que estava por

vir e não ia permitir que aquela monstruosidade acontecesse. Minha irmã


estava na idade de ser considerada uma pecadora por eles. Eu sabia o que

iriam fazer a ela, mas morreria antes que isso acontecesse.

A arma se encontrava escondida em meu suéter grosso. Ninguém nos

revistava, pois ali todos achavam que concordávamos com aquela merda.

Além disso, ninguém levava armas para a igreja. Era considerado um

sacrilégio. Bom para mim, para o que eu tinha em mente, e pior para eles.

― Queria comer, mas minha mãe disse que não era hora, então peguei

comida sem sua autorização ― finalmente, ela sussurrou com um fôlego

falho. ― Então mereço ser castigada.

Fomos treinados a dizer essas palavras quando confessássemos a

todos os nossos erros. Como se aquela bobagem fosse um pecado; era só

uma criança saciando a sua fome. Malditos hipócritas, pensei amargo.

― Ela merece, não é? ― O reverendo encarou a todos com um sorriso

sinistro. ― Vou começar a castigá-la.

Oh, inferno maldito, isso não vai acontecer! Eu estava enfurecido por

ouvir tanta baboseira.


― Sim, ela merece ― afirmou meu pai. Um pai deveria proteger seus

filhos; em vez disso, aquele ser abominável iria deixar que alguém a tocasse.

O reverendo a colocou sentada em uma mesa que tinha ali e ficou em

sua frente. Depois pegou o vestido de Raiane com a intenção de puxá-lo para

cima e despi-la. Meu estômago se embrulhou diante disso.

Tinha chegado a hora de eu me livrar daqueles infelizes, nem que fosse

a última coisa que fizesse. Foi essa decisão que me trouxe ali. Não precisava

da ajuda de ninguém, daria um jeito naqueles vermes malditos sozinho, ainda

que fosse morto no processo, contanto que as crianças ficassem seguras.

Peguei a arma que usava nos treinos e a levantei, apontando-a na

direção da besta maldita. Era uma Glock automática, com capacidade de 20

tiros por segundo.

― Você não vai tocar em Raiane ― falei com um rosnado. ― Saia de

perto dela.

Todos na igreja se viraram para me olhar como se eu tivesse perdido a

cabeça e estivessem ansiosos para que eu fosse castigado. Suas expressões


eram desgostosas, como se eu fosse o próprio Satã. Com certeza eu o

preferia àqueles hipócritas.

― Samuel, abaixe essa arma. ― Meu pai me fuzilava com raiva. ―

Somos família, não machucamos...

Soltei uma risada sombria.

― Bando de pedófilos imundos! ― gritei, olhando furiosamente a

todos. ― Como podem fazer essa barbaridade? Como pode fazer isso com

sua própria filha?!

― Ela merece...

― Não, vocês merecem queimar no fogo do inferno! E vou enviar

todos para lá neste momento ― sibilei, deixando meu ódio sair. Não

precisava de esforço, pois era quase palpável. ― Bonnie, leve as crianças

daqui em segurança.

Ela assentiu de olhos arregalados e levou as crianças por uma porta ao

lado do púlpito.
― Não vai se safar dessa, Samuel! ― esbravejou meu pai, vindo em

minha direção. ― Sou seu pai, deve me obedecer.

― Não devo fazer porra nenhuma! ― rugi com um sorriso sinistro. ―

Agora vou lhe mostrar o monstro que você criou.

Assim que as crianças se foram, puxei o gatilho. O primeiro disparo

foi no reverendo. O homem caiu morto com um tiro certeiro no peito.

Obrigado, pai, por ter me feito um assassino, pensei.

Comecei a atirar nos homens que eu mais odiava, em cada um ali,

deixando as mulheres de fora. Após ter terminado, minha respiração estava

desigual. Mulheres gritavam em pânico, temendo que fossem as próximas;

outras estavam de luto por seus maridos fodidos e doentes.

― Não! ― Valéria chorava pelo reverendo morto, o seu marido.

Nenhuma vez correu na direção da filha, que tinha saído dali. Fuzilou-me. ―

Você matou meu marido, seu monstro!

Respirei fundo, controlando-me.


― Vocês me enojam, sabiam? Todos aqui são monstros, mas machuco

e mato apenas pessoas que merecem. ― Como os homens que meu pai me

mandava matar; checava cada um deles antes de fazer o serviço. ― Como

ousam ficar do lado deles ao invés do lado dos filhos de vocês?

― Você será castigado por essa atrocidade! ― ela falou com fúria em

seus olhos.

Não adiantava dizer nada, a cegueira proporcionada por aquela seita

as impedia de ver o quanto tudo aquilo era fodido e desprezível.

― Não, vocês que vão ser ― rosnei. ― Agora todas vão para aquele

lado.

Chorando, elas fizeram o que pedi, incluindo minha mãe, que me

olhava descrente, como se eu estivesse possuído. No fundo, estava, mas de

fúria.

Minha mãe chorava sem parar. Queria ajudá-la, mas os meus irmãos

vinham em primeiro lugar. Depois eu veria o que ela iria querer fazer de sua
vida sem a presença do meu pai. Ele estava caído no chão, ensanguentado e

imóvel.

― Se abrirem o bico, vou enviar todos os vídeos do que faziam aqui

ao FBI. ― Estava blefando, não tinha vídeo nenhum e muito menos teria a

ajuda dos homens da lei. Entretanto, elas não precisavam saber disso.

Bastava que sentissem medo.

― Você seria preso ou morto ― outra mulher retrucou, chorando perto

de seu homem.

― Não me importo. Sou mais a cadeia ou ir para uma cova do que ver

essa atrocidade sendo cometida pelos miseráveis dos seus maridos aos seus

filhos, algo que vocês, mães, deveriam ter impedido. ― Virei-me e saí da

igreja.

A propriedade ficava na zona rural, então os moradores da cidade

iriam demorar a chegar. Levava uns 15 minutos de carro até ali. Quando

chegassem, eu já teria partido com meus irmãos e Bonnie.


Devia ter medo da máfia, mas, naquele momento, não dava a mínima.

Deixaria Raiane e Renan escondidos, e então, se quisessem me matar, que

assim fosse. Só não podia permitir que eles fossem machucados.

― Samuel, você os matou! ― Bonnie piscou, ofegante. ― O que

vamos fazer? Somos apenas adolescentes ainda.

― Vou dar um jeito. ― Olhei em volta. ― Onde estão as outras

crianças?

― As deixei no carro de suas mães; não podemos levá-las conosco ―

revelou em um tom triste.

Ela tinha razão. Nem sabíamos ao certo o que faríamos de nossas

vidas, da minha e dos meus irmãos; só sabia de uma coisa: mataria qualquer

um para protegê-los.

Os meninos choravam, então os abracei, beijando a cabeça de cada um

deles.

― Estou com medo ― sussurrou Raiane.


― Não fique. Vou proteger os dois ― jurei. Abri a porta do carro.

Não tinha idade para ter carteira de motorista, mas sabia dirigir. ― Entrem,

vamos embora daqui.

― Samuel! ― minha mãe gritou, chorando, correndo em nossa direção

assim que estávamos entrando no veículo.

― Mamãe! ― Raiane gritou, indo até ela antes que eu pudesse trazê-la

de volta.

Minha mãe caiu de joelhos, e Raiane a abraçou. Assim também fez

Renan.

― Mãe, vem com a gente ― chamei, ansioso para sair logo dali.

Ela beijou cada um deles e veio em minha direção sorrindo.

― Não posso perder nenhum de vocês, meus amores.

No fundo, eu sabia que ela não gostava das coisas que aconteciam, eu

a ouvia chorar à noite, sozinha. Contudo, ela não tinha forças para fazer

nada, era fraca demais para lutar contra meu pai. Não me importava com
seus motivos para não ter se rebelado, fiz aquilo tudo por ela e por meus

irmãos. Era forte por todos.

― Samuel, vamos embora ― chamou Bonnie do outro lado do carro,

perto do milharal.

Assenti, olhando para ela. Estava prestes a me virar para chamar

minha mãe, quando Bonnie arregalou os olhos de terror. Ela abriu a boca,

mas era tarde demais. Giovanni vinha em nossa direção com uma arma

levantada, e, antes que eu tivesse tempo de levantar a minha para terminar de

eliminar o infeliz, ele atirou. Achei que o tivesse matado, pois vi sangue

minando dele. Devia ter conferido, pensei amargo.

Foi como em câmera lenta. Vi quando minha mãe tombou para frente

após ser atingida, como também meus irmãos. Antes que eu pudesse ir até

eles, senti uma dor terrível na região do abdome que me fez ofegar.

― Mamãe! Renan! Raiane! ― gritei.

A dor me perfurou, roubando meu oxigênio por um segundo, mas com

essa dor eu podia lidar, não com a outra que me consumia por dentro. Caí
para frente, sem ter fôlego para falar nada por um momento.

― Samuel! ― Bonnie chamava do outro lado.

Pisquei algumas vezes para tentar vê-la. Ela estava abaixada ao lado

do carro, chorando.

― Na árvore da colina tem tudo o que precisa para seguir com sua

vida longe daqui ― sussurrei. ― Entre no milharal e vá.

― Não posso deixar você! ― Chorou.

― Para mim acabou... ― Virei a cabeça, encontrando os olhos sem

vida da minha família. ― Acabou.

― Lamento, Samuel. Obrigada por tudo. ― Ouvi barulho de folhas

sendo movimentadas, então soube que ela tinha ido.

Minha visão estava embaçada. Sabia que logo estaria partindo, mas

não queria que isso acontecesse sem fazer Giovanni pagar. Ele merecia coisa

pior.

Meu pai se abaixou na frente da minha mãe e dos meus irmãos.


― Nós vamos nos reencontrar do outro lado ― ouvi-o dizer,

confiante. Então colocou a arma contra a própria cabeça e atirou em si

mesmo.

Não!, eu quis gritar. Ele não podia ter uma morte assim, não depois de

ter tirado tudo de mim. Todavia, não consegui mover um músculo sequer

para fazê-lo pagar.

Ouvi mais tiros em algum lugar, e labaredas incendiaram a igreja, mas

não consegui ver mais nada, pois a escuridão me levou para um poço sem

fundo. A morte era bem-vinda ao me levar para o inferno, longe da culpa e

da dor.
Dias atuais

Liliane

Pisquei, livrando-me de um pesadelo. Sempre os tinha desde que havia

chegado àquele lugar fazia 11 onze anos, quando acordei em desespero ao

saber que estava trancada. Entretanto, o pior não era isso, e sim o vazio da
minha mente ao descobrir que não recordava meu passado antes de ser

levada para lá.

Por todo aquele tempo, eu estava naquela fazenda no meio do nada. O

lugar era cercado de arame farpado, impossível de tentar uma fuga. Podia

vê-lo através da minha janela.

Naquele dia, eu completava 19 anos, ou seja, fiquei anos trancafiada

sem saber praticamente sobre nada do mundo lá fora. Não me deixavam

assistir à TV, acessar a internet ou fazer qualquer coisa que me atualizasse

do que acontecia ou onde estava.

Não sabia o motivo de estar ali, nunca me diziam. E, além de mim,

havia mais meninas. Ficávamos em quartos diferentes na maioria do tempo.

Só tive uma colega de quarto. Seu nome era April, mas ela se fora um tempo

atrás, quando fez 19 anos. Ouvi relatos de que ela não tinha sido a única a

partir.

Isso me fazia pensar... O que acontecia quando completávamos aquela

idade? Nossos carcereiros nos soltavam ou usavam com alguma finalidade?


Queria entender, porém, não éramos autorizadas a perguntar.

Tinha um chefe naquele lugar chamado Lorenzo. Ele gostava que o

chamássemos de mestre ou senhor. O homem de idade era sinistro demais

para o meu gosto. O ódio que via em seus olhos fazia meu corpo inteiro

estremecer.

Não havia nada mais temeroso do que não saber o que aconteceria a

seguir. Às vezes, eles davam festas na casa principal, e eu ouvia meninas

gritando, implorando para não serem machucadas, enquanto ficávamos ali,

trancafiadas, sem poder fazer nada para ajudá-las, pois havia guardas

armados no corredor para nos impedirem de escapar. Muitas tentaram e

foram realmente castigadas. De fato, eu nunca havia tentado fugir. Sabia que

não teria sentido, pois, quando me trouxessem de volta, seria pior.

Tinha uma mulher que, no último ano, vinha tomando conta de nós,

trazia-nos roupas e comida. Percebi que ela era muito boa, mas eu sabia que

não podia fazer nada. Acreditava que estivesse presa como todas nós

estávamos.
Eu havia chorado muito durante a maior parte de meus dias presa ali,

mas já não chorava mais; ninguém iria me socorrer. A esperança de um dia

sair dali se fora no decorrer dos anos, a cada dia, semana e ano que se

passava e nada de a liberdade chegar. Queria tanto ter recordações do meu

passado, mas as únicas imagens que vinham à minha mente eram rostos, nada

concreto, nada que revelasse quem eu era de verdade, nenhum nome.

Recordava-me de lembranças em que eu aparecia com algumas

crianças, uma menina e outros meninos mais velhos. Um deles era mais

sério. Eu sentia que éramos amigos, mas não conseguia rememorar mais

nada. Seria fruto da minha imaginação? Também me lembrava de que tinha

uma mãe e um pai, mas não de seus rostos e nomes.

No fundo, sentia que não conseguiria me lembrar deles nem de nada

mais sobre o meu passado. Isso doía demais. Não queria desistir, mas o que

poderia fazer? Não me restava mais nada na vida a que pudesse me apegar.

Deixei minha mente vagar sobre o que poderia encontrar lá fora, uma

vida livre, na qual pudesse sair, conhecer vários lugares, ir para a escola, ter
amigos. Sonhar era tudo o que se podia fazer ali dentro.

A única coisa pela qual eu era grata era o fato de que nenhum daqueles

homens havia me machucado. No começo, eu implorava e gritava. Isso fazia

com que eles me batessem, e até fiquei sem comer. Então, com o tempo,

passei a fazer tudo que me era ordenado, assim não seria ferida.

― Liliane! ― alguém chamou, tirando-me dos meus pensamentos.

Pisquei, encarando a senhora que nos ajudava. Ela era boa e, às vezes,

conversava comigo. Até me deu livros escondido dos guardas, e ultimamente

eu passava a maior parte do tempo lendo.

Zaira era uma bela mulher de meia-idade, usava pesados óculos de

grau. Tinha chegado ali havia menos de um ano, e eu já me sentia ligada a ela

em razão da sua bondade.

― Desculpe ― sussurrei com a voz embargada. Liliane... Como não

recordava quem eu era, eles me deram aquele nome. Talvez fosse do meu

passado, mas não havia como saber. ― O que disse?


― Preciso arrumar você agora para mais tarde. ― Sua voz soou triste

ao me dizer isso.

Fiquei de pé.

― Aonde vai me levar? ― Estava ansiosa e pensando que havia

chegado a hora da minha libertação, mas, pelos olhos atormentados da

senhora, não parecia ser isso. ― O que eles farão comigo?

O meu coração estava acelerado, pois fora assim que eles levaram

April, e ela nunca mais tinha voltado.

― Lis... ― A dor estava presente na sua voz enquanto me chamava

pelo apelido que meu deu.

― Por favor, preciso saber o que me é esperado. ― Fui até ela e

peguei sua mão, tentando não transparecer meu medo do desconhecido na sua

frente. ― Por favor... ― forcei assim que ela hesitou, virando o rosto com

os olhos molhados.

Zaira respirou fundo.

― Eles vão machucá-la e depois...


Engoli em seco.

― Me matar... ― terminei a frase por ela, tremendo de pavor. Meus

olhos estavam úmidos e arregalados.

― Tentei buscar ajuda, mas não sei se vai chegar a tempo de impedir

que o pior aconteça. ― Limpou suas lágrimas. ― Queria poder fazer mais

por você e mais duas meninas que terão o mesmo destino.

― Não entendo. Fiquei aqui por anos, mas nenhum veio me machucar.

Por que agora? O que fiz de errado? ― Minha voz falhou. ― Sou obediente.

― É a sua idade ― informou.

Franzi a testa.

― Minha idade? Faço 19 anos hoje... ― Pisquei. ― April estava com

a mesma idade quando foi levada embora. Nunca voltou.

Ela assentiu.

― Eles a mataram após... ― Sacudiu a cabeça como se quisesse

expulsar a imagem que tinha surgido nela. ― Eu não estava aqui na época,

mas ouvi dizer.


― De que forma me machucarão? ― Tentei não soar em pânico, mas

não consegui.

― Menina...

― Preciso saber ― insisti, apertando sua mão.

― Vou dar um jeito de impedir que aconteça qualquer coisa, tá? Essa

pessoa chegará a tempo e tomará conta de você. ― Esquivou-se. ― Com a

máfia, ninguém brinca.

Eu poderia ter insistido, mas entendi que saber o que aconteceria seria

pior. Tentei me controlar enquanto me sentava na cama, chorando baixinho.

― Lamento tanto, criança ― sussurrou, abraçando-me e beijando

meus cabelos.

Passei os braços à sua volta e chorei um momento a mais. Abraçá-la

me fazia sentir algo familiar. Seria em razão das lembranças que eu tinha da

mulher sem rosto?

― Espero mesmo que a ajuda que pedi chegue a tempo...

Antes de eu ser morta, ou seja lá o que farão comigo.


― Se tinha como pedir ajuda, por que nunca fez antes? ― Afastei-me

para ver o rosto de Zaira.

― Não é assim tão simples. Sabe o que é a máfia? ― sondou.

Sacudi a cabeça.

― Não me recordo dessa palavra, pois não lembro de nada do meu

passado quando era pequena, antes de vir para cá. O que é? ― Nenhum dos

livros que eu tinha lido mencionava o termo também.

Ela se sentou na cama ao meu lado.

― Máfia é uma organização criminosa administrada por um grupo

anônimo, inserida de forma oculta em todos os setores da sociedade e das

esferas institucionais. Seus integrantes são conhecidos como mafiosos. Nada

fica em seu caminho, pois qualquer interferência é eliminada.

― Eles compram meninas pequenas e as deixam trancadas como eu?

― Pela forma como ela descrevia a tal organização, parecia cruel demais.

Será que meus pais me venderam, ou fui sequestrada?, perguntei-me.


― Suas atividades estão submetidas a uma direção de membros que

sempre ocorre de forma oculta e que repousa numa estratégia de infiltração

na sociedade civil e nas instituições. A máfia estende seus tentáculos por

todo o mundo, penetrando nos meandros financeiros e políticos.

― Quer dizer que têm muitos trabalhando para eles? ― Como iríamos

lutar contra algo assim? Enfrentar pessoas capazes de tudo? Eu não

acreditava que havia ninguém capaz de tal feito.

― Sim, menina, essa organização transcende o viés dos

estabelecimentos públicos e privados, atinge o cerne da própria vida social

e cultural, transformando-se em um fenômeno amplamente aceito por boa

parte da sociedade ― explicou-me com um suspiro.

― Então, se têm tantos trabalhando com eles, como vai conseguir

ajuda? ― perguntei, apertando meu rosário elástico em meu braço. Eu o

tinha fazia anos, era a única coisa que veio comigo do meu passado

desconhecido.
Tinha que sentir esperança nas palavras de Zaira, acreditar que a

pessoa que ela havia chamado viria me salvar. Não podia desistir agora.

― Tem gente boa na máfia, nem todos são sanguinários, nem todos

fazem atrocidades como as cometidas aqui. ― Olhou ao redor.

― Não entendo por que o fazem ― sussurrei, encolhida. Desde

criança, quando fui levada para lá, sempre fui obediente só para não

apanhar. Mesmo assim, eles iriam me machucar e depois me matar. Não era

justo.

Eu rezava para que uma luz surgisse e viesse me salvar. Nunca tinha

perdido a fé em Deus, a fé de que haveria uma luz no final do túnel, mesmo

que não a visse agora.

― São monstros, querida. Eles não se importam com ninguém. ―

Havia certo desprazer em sua voz. ― Precisa se vestir ― pediu ela, ficando

de pé. ― Não queria fazer isso, mas...

Forcei um sorriso.
― Sei que não pode fazer nada; se pudesse, já teria feito. Espero que

essa pessoa a quem pediu ajuda chegue antes de o pior acontecer. ―

Respirei fundo para me controlar. ― Mas, se eu não conseguir sair viva do

que eles têm reservado para mim, quero lhe agradecer por ter feito minha

estada aqui no último ano muito melhor. Tive alguns aprendizados graças à

senhora. Não me deixou ficar maluca por estar trancada neste lugar.

Recordava-me de que muitas vezes estive ao ponto do desespero

naquela solidão, mas ela ficou comigo, ajudou-me a lidar, mostrando-me

caminhos diferentes. Antes dela, eu tinha a April, e fazíamos companhia uma

para a outra. Depois que ela se foi, Zaira chegou e não me deixou ficar

perdida.

Ela me abraçou forte de novo.

― Jamais me agradeça. Queria ter feito mais por muitas meninas...

― Se você as ajuda como fez comigo, elas estão gratas, aposto.

Porque eu estou, e muito. ― Beijei sua bochecha e peguei o vestido em suas

mãos. ― Agora vou me vestir.


― Você é uma doce menina e não devia estar aqui. Nenhuma de vocês

devia. ― Ela olhou para a porta, depois para mim. ― Seja forte no local

aonde vai, se apegue a Deus, e tudo vai se resolver.

― Ele vai enviar um anjo para me salvar ― comentei para não a

deixar mais triste do que já estava.

Lembrava-me de uma igreja onde apreciava a palavra de Deus, mas

não conseguia me recordar de onde era, só sentia que tinha essa fé em mim e,

mesmo ali, não a perdi. Rezava de dia e de noite.

― Pode confiar que vai ― ela afirmou com confiança.

Fui para o banheiro me trocar. Após pôr o vestido, fiquei ali mais um

pouco, tentando buscar força de onde não tinha para passar por outra

provação.

Não queria morrer sem sair daquele lugar, precisava conhecer o

mundo lá fora ou ao menos sentir como era ser livre como um pássaro, uma

águia que voava alto à procura do seu destino.


Saí do banheiro com meu peito apertado e temendo o pior que estava

por vir.

Zaira me levou até os guardas que me esperavam do lado de fora. Não

lutei, não havia para onde ir. Meus olhos vagavam pelo lugar à minha frente.

Era uma área com um conjunto de casas. À direita havia uma cerca imensa e

a floresta por trás dela.

― Vamos ― disse o guarda, sorrindo e me dando calafrios na espinha.

Dei mais uma olhada em Zaira antes de prosseguirmos e a vi chorando

com a mão na boca. Pela sua expressão, estava sofrendo pelo que fariam

comigo.

― Não a levem! ― gritou, chorando e correndo em minha direção. No

entanto, um dos guardas bateu em seu rosto, fazendo-a cair com a boca

sangrando.

Meu corpo se sacudiu. Tentei ir até ela, mas fui puxada pela cintura,

enquanto outro a pegava pelo braço e a arrastava para longe de mim.


― Sorte sua que eles a querem intacta, ou eu a faria ser obediente ―

rosnou o homem que me segurava.

Meu corpo tremia a cada passo que dava em direção a uma casa. Meu

fim seria naquele lugar? O pavor foi ficando pior, fazendo minha respiração

tornar-se desigual.

Ergui meus olhos para o céu forrado de estrelas, que brilhavam com

sua beleza. Precisava confiar que Deus me ajudaria. Não perderia a fé.

Pensei nisso como um mantra. Mesmo assim, não impediu de o pavor

me consumir.

Gritos lá dentro me fizeram estremecer e parar a caminhada, mas fui

puxada com força. O meu braço estralou.

― Anda logo ― rosnou um deles com um sorriso sinistro, o que fez

meu estômago embrulhar.

Entramos no local, que parecia ser uma sala imensa com vários

homens de preto com sorrisos perturbadores. Todo meu ser congelou.


No sofá, estava uma menina com um homem entre suas pernas,

enquanto ela gritava desesperada. Havia mais uma ali, mas essa estava

calada; seus olhos se encontravam fechados, e escorria sangue por entre suas

coxas.

Ela chorava muito e implorava para que ele não a estuprasse. Era

aquilo que aqueles homens estavam fazendo com as duas meninas? O que

iriam fazer comigo?

― Mais uma de presente para vocês ― informou o chefe do lugar. ―

Minha filha foi sequestrada, estuprada e morta pelos russos. Antes disso, ela

me pediu para deixá-la continuar virgem até os seus 19 anos, mas não pude

cumprir seu desejo, pois ela foi tirada de mim, assim como vocês foram

tiradas de suas famílias. ― Seus olhos pousaram em mim. ― Com dor e

sofrimento, ela morreu, e assim acontecerá com todas vocês. ― Sorriu como

um louco. ― Isso é para você, minha menina.

Era como se ele tivesse dito aquelas palavras muitas vezes. Estava

louco. Eu percebia que acreditava realmente que estivesse nos oferecendo


para sua filha que tinha sido assassinada.

Antes que eu pudesse organizar minha mente apavorada, fui puxada

por um homem, que me jogou no chão duro, roubando metade do meu

oxigênio, pois senti uma pancada na cabeça e nas costas que deixou minha

visão embaçada.

Gritei de dor e terror, sabendo o que estava por vir. Ainda bem que

Zaira não havia me contado sobre isso, pois teria sido pior saber de antemão

o que me aconteceria.

Eu tinha prometido nunca implorar por nada, pois ninguém me ouviria,

mas o desespero estava tomando conta de mim, então supliquei mesmo

assim: “Por favor”, “Não me machuque” e outros clamores, mas nenhum

foi ouvido, assim como nunca tinha sido.

Tirei forças de onde não tinha para lutar, mas foi em vão; ninguém iria

me salvar daquilo, não antes de o pior acontecer. O que eu podia fazer era

rezar para que a morte chegasse logo, assim eu me livraria da dor e do

desespero.
Um rosto surgiu sobre mim, enquanto mãos rasgavam meu vestido.

Senti suas unhas em minha pele.

― Essa oferenda é para vocês, meus amigos. ― Ouvi uma voz grossa

em algum lugar, mas minha visão ficou desfocada assim que o homem

penetrou em meu corpo, rasgando-me, destruindo-me.

A dor foi tanta que pensei que estava morrendo, tanto por causa dela

quanto pelas mãos que apertavam meu pescoço, impedindo-me de respirar

normalmente.

Gritos ensurdecedores inundaram o lugar, os meus e os das outras

garotas violadas. Nós três morreríamos naquela noite...

A dor... era como se uma faca cega me cortasse. Dentes afiados

cravavam-se em minha pele. O cheiro de cigarro e bebida estava em todo

lugar, em mim.

Outros rostos se sobrepuseram, trazendo-me mais dor, ao ponto de me

entorpecer. Cada um era mais cruel que o outro enquanto me tomavam com

força e brutalidade, ignorando meu clamor e desespero.


Nunca havia pensado na morte como opção, nem mesmo durante os 11

anos naquele lugar, mas agora ela seria bem-vinda. A esperança que eu tinha

antes desapareceu, não restando nada... Era melhor partir.

Fechei os olhos, não querendo ver mais nenhum rosto repugnante que

me enojasse. Vozes soavam, risos ecoavam pelo local, mas não me

importei... Só sentia que minha alma havia sido arrancada e que nem todo o

clamor que fiz a Deus conseguiria me salvar. Implorava que Ele me levasse

daquele inferno de tormento e desespero. Entendi que havia chegado minha

hora.

― Não morra, luce del sole ― uma voz implorou. Seria meu anjo da

guarda? Se fosse, quis dizer-lhe que tinha chegado tarde demais.

Também tentei lhe falar que não tinha mais forças para lutar, pois

lutara tanto na minha vida que acabei desistindo. Ali faria o mesmo. Não

conseguia lidar com aquelas dores, não só a carnal, que estava me matando,

mas a que sentia dentro do meu peito.


― Lute pela sua vida, não desista agora! ― suplicou a voz calorosa

perto de mim. Essa voz era diferente das outras que eu repudiava.

Forcei-me a abrir os olhos e focar naquela pessoa e me deparei com

olhos escuros e rosto com traços angelicais. Estava ele me salvando da

morte ou vindo buscar minha alma? Entendi que era a primeira opção, afinal,

ele implorava para eu lutar mais, mas estava tão cansada...

Sentia-me afundando cada vez mais na escuridão, longe da vida que

tinha, longe de todo o meu passado desconhecido, distante daquela voz...

Nada era poderoso o suficiente para me puxar do abismo ao qual fui

empurrada. Caí e caí até não sobrar nada, além de um vácuo de escuridão.
Samuel

Acordei de um pesadelo, aquele que eu vivia todos os dias desde que

me fora tirado tudo. A culpa me deixava devastado, e seria assim para

sempre.

Naquele dia fatídico, tentei salvar meus irmãos de um destino cruel

nas mãos do meu pai, mas, no final, por minha causa, eles se foram. Teria

sido melhor se eu tivesse deixado do jeito que estava.


― Porra! ― Levei minhas mãos ao rosto, tentando dissipar da minha

mente a memória sombria.

Pensei que iria morrer depois que fui baleado, o que teria acontecido

se meus avós não tivessem me salvado e levado para o hospital. Naquele

dia, eles tinham ido nos visitar e se depararam com aquela tragédia. Nenhum

deles sabia que aquela seita existia, afinal, embora fossem italianos,

moravam na Espanha e não nos visitavam com frequência. Seus afazeres na

máfia impediam as viagens constantes.

Eu ligava muitas vezes para lhes contar a verdade, mas desistia, pois

não queria colocá-los em perigo ao se envolver com aquela organização

fodida, embora eles também pertencessem à máfia. Meu avô foi um dos

capitães antes de morrer. A última vez que liguei para eles antes da tragédia

foi no intuito de me despedir, pois pensava em fugir e imaginava que talvez

não conseguisse sair vivo. Devia ter ficado evidente para eles, pela minha

voz, que havia um problema. Foi o motivo de eles irem para lá naquela

época exata.
Fiquei quase 15 dias internado lutando pela vida. No fundo, eu não

desejava ser salvo, porque não tinha mais nada em meu peito.

Quando acordei no hospital e percebi que estava vivo, só tinha uma

coisa em minha mente: eliminar Lorenzo Salvatore e Enzo, o seu irmão. Os

dois iriam pagar por ter permitido as atrocidades de Giovanni naquela

igreja.

Com isso em mente, coloquei em prática tudo o que sabia e muito

mais. Atualmente, trabalhava para eles, não porque queria, mas somente para

ter o prazer de matá-los um dia.

Ainda bem que o filho de Lorenzo, Matteo, não gostava do seu pai por

diversas regras que o atual capo permitia na sua organização, como, por

exemplo, os membros se casarem com crianças de 10 anos. Eu repudiava até

ouvir isso. Minha vontade era matar todos, e consegui acabar com alguns

quando armei uma emboscada para os russos, a quem Lorenzo odiava.

Tornaram-se inimigos mortais depois que eles mataram a filha dele, irmã de

Matteo.
Então, em vez de matar Lorenzo como gostaria e ser morto no

processo, resolvi me aliar a Matteo e a Luca, o seu primo. Ao lado deles, eu

poderia ter minha sonhada vingança.

Meu telefone tocou na mesinha do quarto. O nome de Matteo Salvatore

brilhou na tela. Atendi a ligação.

― Pode falar?

Soltei um suspiro duro, ficando de pé e fui até a janela.

Minha avó falava com o vizinho, um senhor da idade dela que se

mudara naquela manhã. Após meu avô morrer, havia alguns anos, ela não se

relacionou de novo. Dizia que somente eu bastava na sua vida.

Franzi a testa, checando-o. Não parecia suspeito, mas, por via das

dúvidas, eu procuraria saber seu histórico. Podiam me chamar de maníaco

por controle, mas eu gostava de saber onde pisava para não ser pego de

surpresa.

― Algum problema? ― sondou Matteo após um momento de silêncio.

Sacudi a cabeça, clareando minha mente.


― Não, o que foi? ― Fui direto ao ponto.

Pelo seu tom, deduzi que tinha acontecido alguma coisa. Só esperava

que Lorenzo não estivesse morto, pois queria prolongar sua morte até ele

implorar misericórdia. Só precisava de tempo para saber como faria isso

sem ser morto no processo.

― Fui informado que meu pai tem uma fazenda com várias crianças e

moças trancadas lá, e o pior... ― Respirou de modo pesado. ― Nunca ouvi

nada mais fodido do que isso!

― Pior do que o que houve com minha família? ― Peguei minha

carteira e a arma, colocando-a no coldre, bem como facas em minha perna.

― Muito pior. ― Ouvi o barulho de algo sendo quebrado do outro

lado.

Saí do quarto ainda falando com ele. Eu tinha meu próprio apartamento

em Chicago, mas, como não gostava de deixar minha avó sozinha, e sua casa

ficava em Evanston, eu ficava ali com ela sempre que não estava

trabalhando.
O sol estava se pondo na direção do lago Michigan, que ficava em

frente à casa da vovó.

― O que descobriu? ― Não ficaria surpreso com nada que viesse de

Lorenzo, mas a palavra “crianças” eriçou os cabelos da minha nuca.

― Ele tem esse lugar há anos, porra! Elas ficam fechadas lá até

completarem 19 anos, então depois... ― Sua voz soou letal: ― Lorenzo as

entrega para homens fazerem o que quiserem com elas e matá-las.

Parei no corredor antes de chegar à calçada.

― Eles as violentam? ― indaguei com uma fúria homicida. ― Filhos

da Puta!

Não era diferente do que o povo da igreja fazia no passado. Assim que

me recuperei, fiz todos naquela cidade da Itália que apoiavam aquilo

pagarem.

― Olha a boca, Samuel ― repreendeu minha avó, como sempre fazia

quando eu xingava.
Ela ainda estava perto da cerca do vizinho, com ele ao seu lado me

olhando.

― Desculpe, vovó. ― Suspirei ― Estou saindo, mas volto logo.

― Aconteceu alguma coisa? ― Ela parecia preocupada, avaliando

meu rosto, mas não deixei transparecer nada.

Forcei um sorriso.

― Nada com o que precise se preocupar. ― Lancei mais um olhar ao

senhor, que engoliu em seco. Após isso, entrei no carro. Não podia resolver

aquela questão no momento. Por via das dúvidas, mandaria um dos soldados

ficar de olho nela.

― Pode falar? ― Matteo perguntou assim que liguei o carro. Deixei o

celular no viva-voz, apoiado no painel do carro.

― Sim, me conte tudo.

― Zaira entrou em contato comigo informando sobre essa porcaria

toda.

― Zaira? Mas ela não estava na Itália? ― sondei, confuso.


Dona Zaira era como uma segunda mãe para Matteo, Luca e, no

passado, Dalila, a irmã do Matteo. A mãe deles se matou, não conseguiu

lidar com a morte da filha. Eu entendia sua dor. No fundo, não sabia o que

teria me acontecido se eu não tivesse um propósito e vovó na minha vida.

― Faz tempo que não a vejo. Meu pai disse que a tinha mandado como

infiltrada para algum local. Eu confiei nele, ela também falou sobre isso,

mas nunca suspeitei que estava nessa porra de lugar. ― Eu podia sentir sua

fúria.

― Ela o está apoiando? ― Fiquei confuso, não acreditando que a

mulher que Matteo considerava uma mãe o trairia assim.

― Não, ficou sem comunicação por muito tempo, mas então conseguiu

um celular com um dos guardas que não gosta do que acontece lá e ligou

para mim avisando.

― Por que o guarda não lhe telefonou antes? ― inquiri.

― Porque eles estavam me avaliando para saber se eu ia compactuar

com as mesmas merdas que meu pai. No fundo, eu os entendo. ― Tinha


amargura em sua voz. ― Luca e eu estamos indo para lá, mas, como não

estou em Chicago, vou me atrasar. Vou te passar o endereço, pois o quero

comigo. Entretanto, não faça nada até eu dar a ordem. Sei que o quer morto,

mas preciso ver a extensão dessa porcaria toda.

― Estou a caminho ― respondi e desliguei com um praguejar. ―

Maldição!

Se as coisas fossem simples, bastava eu ir até lá e acertar Lorenzo

com um tiro na cabeça, mas esse desgraçado não merecia morrer rápido.

Outra coisa, eu tinha a minha avó, então não podia me esconder da máfia

levando-a comigo de cidade em cidade depois que cometesse algo dessa

magnitude. Não podia deixar ninguém que fosse importante para mim morrer

por minha causa de novo. Se eu matasse o atual capo, Matteo não teria

escolha, teria que me caçar assim que se tornasse o novo líder. Eu era um

homem paciente; se tinha esperado até aquele momento, poderia esperar

mais.
Era conhecido por ser frio e calculista e gostava do meu autocontrole.

Lutei muito por ele, assim ninguém descobriria meus objetivos. Matteo e

Luca sabiam, pois ansiavam a mesma coisa que eu. Além deles, ninguém

mais sabia nem desconfiava.

Mandei mensagem ao Davis, o soldado que deveria ficar de olho em

minha avó.

Assim que cheguei ao lugar marcado, esperei Matteo e Luca. Já

passava das 7h da noite quando eles chegaram em um carro preto, não muito

tempo depois de mim. Afinal de contas, de onde eu morava até ali não

levava nem meia hora.

Os dois saíram.

― Vamos, estamos atrasados. Merda, Zaira disse que eles iam

violentar três meninas hoje ― rosnou Matteo com tom letal como uma faca.

― Lorenzo sabe que estamos aqui? ― Seguimos em direção ao

portão, que estava protegido por dois guardas, embora eu acreditasse que

houvesse mais.
― Não, e quero que continue assim até o momento certo.

Os guardas olharam para nós três assim que nos aproximamos.

― O chefe os espera ― disse um deles, não mostrando nada em sua

expressão. Entretanto, o segundo guarda franziu a testa enquanto nos fitava

com aço nos olhos.

― Não fui notificado da sua presença, Matteo. Acho melhor ligar para

o capo.

Matteo deu um sorriso frio.

― Pegue esse telefone, e eu vou estripá-lo com minha faca. ―

Percebia que ele estava a ponto de detonar tudo ali. ― Agora vou falar com

meu pai.

Matteo acenou para abrirem o portão. O outro homem, que

provavelmente estava do nosso lado – pois disse que Lorenzo nos esperava,

quando era uma mentira –, obedeceu a ele.

O outro infeliz fuzilava as costas de Matteo e de Luca enquanto

entravam. Seu olhar era como se quisesse esfaqueá-los.


― Devia achar outro lugar para olhar com toda essa fúria. ―

Aproximei-me um pouco dele, deixando-o saber que eu não tinha medo de

cara feia. ― Já arranquei olhos de pessoas por muito menos.

Ele me encarou tentando evitar mostrar seu medo, mas vi uma veia

pulsar em sua garganta. Era uma pena que estivéssemos atrasados, ou eu

teria feito o que falei. Junto a Luca, eu era um dos executores da máfia.

Nossa função era extrair informações de qualquer um que fosse necessário

ou ordenado.

― Não vou falar nada ― o guarda enfim me disse.

― Ótimo! ― Assenti e saí atrás dos dois, que andavam apressados à

frente.

Estávamos tensos, mas eu era mais controlado do que eles. Minha fúria

estava trancafiada. Não queria estar na pele de meu inimigo quando ela

saísse, devastando tudo.

Esquadrinhei a fazenda. Vi que nela tinham várias casas espalhadas,

como se fossem chalés.


Quando passamos no meio de mais alguns guardas, uns nos olharam,

mas não ousaram dizer nada; todos sabiam da fama de Matteo. Se quisessem

viver, não deveriam entrar em seu caminho quando ele estava a ponto de se

transformar numa bomba-relógio. Apesar disso, alguns não eram inteligentes

o bastante para recuar. Azar o deles.

Dois guardas se aproximaram de Matteo com a mão na arma,

encarando-o.

― O chefe não nos informou que viria, então não pode entrar ―

informou um deles.

Matteo pegou suas adagas uma em cada mão e, rápido como um

relâmpago, enfiou uma na garganta do cara, rasgando-a, e a outra em seu

coração, derrubando-o no chão. Colocou o joelho em cima do infeliz, que

cuspia sangue e tentava segurar seu pescoço, e olhou para os outros ao redor.

― Alguém mais vai me dizer o que tenho que fazer ou não? ―

perguntou com desdém.


O lugar estava em silêncio. Todos olhavam para o homem, que

gorgolejava e logo morreu. Foi tarde, pensei

― Não, você é filho do chefe e, em breve, será o nosso capo, então

fique à vontade. O capo está na ala 7. ― Um deles indicou uma casa

afastada, iluminada.

Matteo limpou a faca e prosseguiu para o local indicado. Luca e eu

fomos logo atrás.

― Samuel? Você fica em nossa retaguarda, enquanto Luca e eu

entramos no lugar ― ordenou.

Imaginei que ele tinha feito isso porque sabia que, se eu visse algo lá,

certamente não conseguiria deixar de lado. Por isso não reclamei. Não

queria trazer mais problemas a ele. Estava ansioso e torcendo para que não

estivesse acontecendo nada com as meninas que se encontravam lá.

De repente, gritos soaram à nossa frente, o que nos levou a correr.

Matteo chegou antes de mim e parou com a mão no meu peito.


― Você fica aqui. Vou lidar com o problema. Enquanto isso, por que

não se livra deles? ― indicou, discretamente, três seguranças em nossa

frente.

Assenti, não querendo discutir no momento. Só queria que os gritos de

tormento da menina cessassem.

Eles tentaram entrar na casa, mas dois dos guardas barraram sua

entrada. Como estava mais longe, no escuro, peguei minha arma com

silenciador e puxei o gatilho contra um, depois o outro. Contra o terceiro,

não fiz nada, pois sabia que ele era dos nossos, já que foi o único que não

quis interromper a entrada de Matteo.

― Entrem. Eu lido com os corpos ― disse o cara que ficou vivo.

Matteo e Luca assentiram e entraram.

― Não pensei que ele fosse vir. ― O homem parecia relaxado. Devia

ser dele o telefone do qual dona Zaira ligara.

Eu não conhecia nenhum daqueles guardas, pois não eram os soldados

de Lorenzo que costumavam ficar em Chicago. Ele devia tê-los trazido de


outro local, pois assim ninguém veria ou diria nada ao filho.

Não respondi. Olhei para os corpos.

― O que vamos fazer com eles? ― Aproximei-me, guardando a arma.

― Podemos deixá-los na floresta, há alguém que os pega. ― Indicou

as árvores além da cerca. ― Tem uma abertura lá. E quem está nas filmagens

é um dos nossos, então sumirá com nossa presença. Por sorte, Lorenzo não

dá a mínima para quem some aqui.

Ajudei-o a se livrar dos corpos na mata, então voltamos para o local e

esperamos Matteo. Não dava mais para ouvir os gritos vindo lá de dentro.

Isso fez meu peito acelerar, mas não demonstrei nada.

― Faz isso com frequência? ― inquiri.

― Algumas vezes, quando é preciso. ― Deu de ombros. ― Quando

vejo alguns querendo abusar das meninas presas nas outras alas.

― Têm quantos como você? ― perguntei, enigmático. Assim ninguém

suspeitaria de nada.
― Alguns, mas não o bastante para ajudar o chefe Matteo a fechar este

lugar ― disse baixinho só para mim. ― Ele precisa buscar alianças se

quiser derrubar os cabeças.

Matteo não podia matar o pai, pois perderia o direito de ser capo. E,

se outra pessoa fizesse isso, o novo líder teria que caçá-lo e matá-lo. Ao

menos que um inimigo maior viesse e o eliminasse. Isso ajudaria Matteo,

mas eu mesmo queria matar Lorenzo. Pelo visto, minha vingança estava a

cada dia mais distante, e isso me deixava puto.

Havia uma lei que permitia que um membro do alto escalão matasse

outro de seu próprio sangue, inclusive o capo, mas apenas como retaliação

se esse membro matasse outro parente. Se Lorenzo assassinasse o Enzo ou

vice-versa, Matteo teria o direito de matar seu pai ou o tio, respectivamente.

Dessa forma, nós poderíamos nos vangloriar com a morte dos dois. Porém,

isso não será possível, pensei amargo, uma vez que os dois irmãos eram

leais um ao outro.
― Vamos dar um jeito. ― Minha boca era como fel, amarga até o

âmago.

Antes que eu pudesse perguntar o que mais acontecia naquele lugar,

ouvi uma movimentação à direita, o que fez tanto eu quanto o soldado

sacarmos nossas armas.

― Venha comigo, Samuel. ― Era Luca, com a expressão de quem

tinha visto o próprio inferno na Terra. Olhou para o guarda. ― Você nos

cobre. Ninguém pode nos ver saindo. Atire antes e pergunte depois.

― Pode deixar, cuidarei das filmagens também ― o soldado assentiu,

então segui Luca em silêncio. Pela sua cara, deduzi que coisa boa não tinha

visto lá dentro.

Andamos até chegar a uma porta. A única claridade vinha de um poste

de luz acima de nossas cabeças. Em minha vida, já tinha me deparado com

coisas horríveis até para mim, mas nada como aquilo.

Nos braços de Matteo estava uma garota coberta de sangue até seus

cabelos, que pareciam ser loiros. Ela estava nua e coberta de hematomas em
seu rosto, que estava inchado, o lábio partido como se alguém a tivesse

socado ou esbofeteado com força.

― Puta merda! ― soltei com desgosto.

A fúria estava subindo à superfície. Eu podia senti-la me inundando ao

encarar o antro que me fazia querer dizimar todos aqueles monstros. Claro,

eu era um também, mas até eu tinha regras, algo que eles não tinham.

― Controle sua fúria ― pediu Matteo, com o rosto duro como pedra.

― Quero que a leve daqui. Ninguém pode saber que ela sobreviveu.

Explicarei tudo depois.

― Ela está... ― Coloquei os dedos em seu pulso. ― Está muito fraco.

― Leve-a até a clínica clandestina de Gordon. Ele não dirá nada ao

meu pai nem a nenhuma outra pessoa. ― Matteo me entregou a garota.

Algo tomou conta de mim quando a peguei, pois foi impossível não

pensar que aquilo poderia ter acontecido com minha irmã se eu não a tivesse

tirado daquela igreja e ela não tivesse morrido. Expulsei esse pensamento;

não era hora de ficar preso em minha própria miséria.


― O carro...

― Deixa que cuido disso ― respondeu o cara que estava comigo

antes. ― Um dos meus vai até lá com um veículo. ― Indicou um canto

escuro. ― Ele é de confiança.

Não tínhamos tempo para ser emboscados, a menina precisava de

cuidados logo, ou não sobreviveria. Eu não podia deixar isso acontecer.

Ninguém mais que estivesse sob minha responsabilidade iria morrer.

Fui até onde ele informou com ela em meus braços, torcendo para que

não demorasse. Ouvi um gemido baixo e dolorido vindo da sua garganta.

― Não morra, luce del sole ― pedi, suplicante. ― Lute pela sua vida.

Ela abriu os olhos por um segundo, e, mesmo estando escuro, deparei-

me com a cor azul. O pior foi ver aceitação naquelas íris, como se ela

soubesse que ia morrer e estivesse bem com isso. Eu não ia aceitar, não

permitiria que morresse.

― Não desista agora ― pedi, e nesse instante ela desmaiou.

O carro parou, e um homem saiu de dentro dele.


― Coloque-a no porta-malas ― pediu.

Franzi a testa diante disso.

― Ela vai morrer lá ― rosnei.

― Não tem outro jeito. Se passarmos com ela conosco no carro, vão

descobrir que está viva. Não são todos os guardas que estão do nosso lado.

E o chefe Matteo não pode matar todos sem levantar suspeitas.

Ele estava certo. Mesmo não gostando, acomodei-a no porta-malas.

― Ela ficará aqui até passarmos pelos guardas, depois a pego de

volta. ― Eu não gostava disso, mas não tinha escolha.

Assim que nos aproximamos do portão, o carro parou. Notei que havia

um guarda diferente de quando entramos.

― Estou levando o executor para uma missão. Depois disso terei que

comprar algumas coisas para trazer para cá ― informou o soldado no banco

da frente. Não tinha sinal de mentira em sua voz. O cara era bom em

esconder suas emoções, e nesse ramo de trabalho, isso era essencial.


Quando saímos daquele antro fodido, olhei para trás mais uma vez.

Esperava que logo aquilo tudo fosse reduzido a cinzas, como Sodoma e

Gomorra, lugares dos quais não restara nada após Deus destruí-los; aquele

inferno, entretanto, quem o queimaria seríamos nós.


Samuel

Rodamos um pouco mais, até que o soldado parou o carro. Peguei a

menina e a coloquei no banco de trás comigo. Notei que sua pulsação tinha

quase sumido. Peguei meu paletó e a cobri, então comecei a fazer massagem

em seus pulsos e pedi que lutasse mais. Ela merecia brilhar no mundo fora

daquela prisão.

Demorou alguns segundos para ela ter uma pulsação mais constante.
― Merda! ― Soltei um suspiro de alívio. ― Isso, Raio de Sol, lute.

Sentei-me ao seu lado, e partimos para a clínica. Conversei com

Gordon ao telefone, avisando que estávamos chegando e que ele devia se

preparar para cuidar da garota. Pedi sigilo, não queria ninguém lá quando

chegássemos; não podíamos deixar que soubessem que ela estava viva ou

lutando para sobreviver.

― Durante todo o meu tempo de serviço para o capo, nunca vi nada

pior, mais degradante. Não posso ficar do lado dele como antes. Não queria

ser um traidor, mas Lorenzo não me deu escolha ― disse o soldado.

Entendia seu lado. Eu também já tinha feito muitas coisas terríveis a

mando do capo, mas nada como aquilo. Ainda bem que ele não me chamara

para eu ficar a par daquilo, pois certamente meu autocontrole já teria

evaporado e eu o teria matado sem me importar em ser morto no processo.

― O chefe Matteo será o capo em breve, então poderá ser leal. Ele

fará as coisas diferentes de Lorenzo. ― Estávamos lutando para que isso

acontecesse.
Eu estava farto disso, de ver aquele tipo de barbaridade e não poder

fazer nada, deixar todos aqueles monstros lá... respirando e se vangloriando

após terem cometido aquela atrocidade.

Se aquela garota sobrevivesse – e eu acreditava que ela lutaria para

isso –, acordaria tendo que enfrentar suas lembranças horríveis. Eu sabia

disso porque as minhas eram fodidas, eu não conseguia esquecê-las.

Acreditava que iria levar aquelas memórias sombrias para sempre.

― Sim ― ele respondeu somente.

Eu não estava com cabeça para ler seu humor negro; o meu estava pior.

Chegamos ao local, e saí do carro com a menina nos braços. Tinha

consciência de que, antes, eu não deveria tê-la pegado assim, pois poderia

ter algum osso quebrado, mas não tinha como mudar isso, estava sem

opções.

― Lute um pouco mais, Raio de Sol. Não posso fazer isso por você.

― Se pudesse, eu o faria. ― Espero que sobreviva. O mundo aqui fora quer

que você o conheça.


Queria ter tido a chance de dizer palavras assim para minha mãe e

irmãos, mas isso me foi roubado por um homem do qual eu nunca poderia me

vingar.

Gordon arregalou os olhos.

― O que aconteceu? ― sondou, parecendo ter comido limão.

Ele nos devia, por isso, às vezes, precisávamos dos seus serviços,

embora não fosse o médico da máfia. Eu não queria ir para Albani; se fosse,

nós seríamos pegos.

― Que tal fazer o seu trabalho ao invés de censurar? ― falei. ― Me

diga onde a deixo para que tome conta dela.

Ele engoliu em seco e ficou calado.

Fui levado a um quarto e a coloquei na maca.

― Vou examiná-la. ― Veio até a menina e fez seu serviço. ― Vai ser

preciso uma cirurgia.

Ele e mais duas mulheres a levaram para o centro cirúrgico, enquanto

fiquei na sala de espera, mesmo querendo estar com ela. Por que essa
emoção estava em meu peito? Nunca havia me sentido assim por um

estranho. Claro que o que aconteceu a ela comoveria qualquer um com

coração, mas eu não tinha um. Ao menos pensava isso antes daquele cenário.

Meu telefone tocou, tirando-me dos pensamentos fodidos.

― Sim?

Era Matteo. Ele com certeza estava ligando para saber como estavam

as coisas.

― Ela vai sobreviver? ― Parecia preocupado. Na verdade, tanto eu

quanto ele e Luca estávamos.

― Está na cirurgia agora. Nada concreto ainda.

― Estamos chegando. Me mantenha informado.

― Farei isso. ― Desliguei e encostei a cabeça na parede. ―

Sobreviva, Raio de Sol ― sussurrei.

Vinte minutos mais tarde, Luca e Matteo chegaram à clínica.


― Ainda na cirurgia? ― perguntou Matteo assim que se aproximou de

mim.

― Sim. ― Franzi a testa. ― O que aconteceu lá dentro?

Ele deu um suspiro duro. Luca mantinha uma máscara fria. Éramos

parecidos nisso.

― Todos naquele lugar fizeram um estupro coletivo com ela e mais

duas. As outras não sobreviveram. ― Sentou-se ao meu lado, encarando o

nada, assim como eu.

― Ela só conseguiu porque chegamos a tempo ― comentou Luca.

― Não antes de ter impedido isso tudo. ― Matteo sacudiu a cabeça

com uma expressão ensandecida e furiosa.

― Sabia que meu tio era doente, mas não mais do que meu pai.

Lorenzo é fodido da cabeça! ― cuspiu Luca, pegando uma cadeira e se

sentando em nossa frente.

― Queria matar a todos. ― Matteo levou as mãos aos cabelos como

se quisesse arrancá-los, tamanha era sua fúria destinada àqueles que deviam
ser sua família, mas nenhum deles sabia o significado dessa palavra.

Víamos a máfia como família e não apenas negócios, éramos leais a

um propósito. Lorenzo perdeu esse propósito no dia em que sua filha morreu.

Essa tragédia não era desculpa para sua monstruosidade. Para tudo havia um

limite, e ele ultrapassara todos, por isso devia ser extinto da face da Terra.

― O que vamos fazer? Não podemos deixá-lo cometer isso com outras

meninas que ainda estão presas lá. ― Olhei para ele. ― Posso matá-lo, aí

você se tornaria capo em seu lugar.

― Não, porque eu teria que matar você, e não quero nem vou fazer

isso ― disse com convicção.

― Não ligo. Só mantenha sua palavra de que minha avó ficará fora

disso. ― Se nada aquilo caísse sobre ela, eu estaria feliz.

Ele estreitou os olhos.

― Não vai fazer nada, porque não vou matá-lo, e fim de história. ―

Aproximou o rosto do meu. ― Não pode ir contra mim, fez um juramento.


Juramentos em nossa organização valiam mais do que um acordo

firmado com sangue. Mesmo Lorenzo sendo o capo, meu juramento foi para

o seu filho, porque eu sabia que ele seria capo quando Lorenzo morresse ou

se aposentasse.

― Não vou fazer nada pelas suas costas. ― Sacudi a cabeça, tentando

controlar minha fúria, não dele, mas de toda aquela porcaria que estava

rolando na máfia Salvatore.

― Vou dar um jeito nessa merda. ― Era visível que ele estava a ponto

de explodir.

― E as outras meninas? ― Eu não podia ficar parado e vendo mais

coisas assim acontecerem.

― Essa porcaria acontece no aniversário de 19 anos das meninas,

como aconteceu hoje. Sondei e descobri que não tem mais nenhuma que fará

essa idade por três anos. As mais velhas estão na faixa dos 17 agora, então

temos um tempo para pensar em algo. ― Trincou os dentes. ― Ele disse que

faz isso em homenagem a Dalila. Recordo-me de que ela não queria se casar
aos dez anos, de acordo com a lei fodida, então suplicou ao nosso pai para

que ele a esperasse completar 19, mas então a perdemos.

― Besteira! Sua irmã não ia gostar dessa podridão que ele vem

cometendo ― rosnou Luca.

A expressão de Matteo era sombria, mas eu podia ver a dor em seus

olhos pelo sofrimento de sua irmã, a qual perdeu da mesma forma que

aconteceu com aquelas garotas.

― Ele entrega essas meninas para serem violentadas só porque Dalila

morreu assim? ― cuspi com os dentes cerrados. ― Lorenzo matou os

Dragons! O que mais quer?

Os Dragons era a máfia que sequestrou e matou Dalila em um parque

na Rússia, mas não sem antes violentá-la. Nunca acharam o corpo, só o

sangue e suas roupas rasgadas. Com certeza sumiram com ela para deixar os

Salvatores ainda mais dilacerados.

Lorenzo jogou a culpa da morte dos Dragons em Andrey Jacov só para

se safar da fúria dos filhos dos Dragons assassinados.


― Pelo visto, ele está cego de raiva e não pensa com clareza.

Comprou muitos políticos, policiais e outros miseráveis. Se ao menos isso

me ajudasse a tirá-lo do cargo, eu poderia tomar seu lugar. O problema é que

ele tem muita influência e não sairá tão cedo ― Matteo parecia falar consigo

mesmo. ― Se Lorenzo tivesse matado um Salvatore, já que ele não pode

tirar a vida de outro membro da família, poderia ser morto sem merecer

justiça.

― Ele poderia matar o Enzo, ou o contrário. Seria como matar dois

coelhos de uma vez, ou melhor, duas serpentes. ― Luca suspirou.

Eu não contava com isso vindo tão cedo, então era melhor focar no que

podíamos fazer no momento.

― Quero os nomes dos animais que a machucaram. ― Indiquei a

menina no quarto.

― Não podemos ir lá e matar todos, pois eu disse ao meu pai que

concordava com aquilo tudo. ― Matteo se recostou no banco como se

tivesse perdido as forças.


Avaliei-o, mas em nenhum momento duvidei de sua índole; ele jamais

concordaria com o pai.

― Se você disse isso, deve ter uma razão.

― Não posso ir contra ele, afinal é o capo, sua palavra é a lei. Se eu

fosse contra, não poderia proteger as meninas que estão presas lá. Preciso de

pessoas de confiança para me ajudarem. Tenho alguns, mas não o bastante.

― Suspirou, resignado. ― Vou pensar em um plano para destruir todos.

Agora vamos focar nessa menina.

Olhei para a sala, mas não vi movimentação, então deduzi que

estivesse ocorrendo tudo bem na cirurgia.

― Se eu não fosse perder tanto, entregaria todos aos agentes do FBI

que não estão na nossa folha de pagamento. ― Sua voz era baixa e letal. ―

Mas não posso fazer isso. Têm pessoas na nossa organização que não gostam

do que Lorenzo faz, mas seguem as regras porque não têm como se recusar a

cumpri-las.
― Não pode mesmo, já que todos os negócios seriam fechados ―

falei com o cenho franzido. ― Isso também não seria de muita ajuda, porque,

mesmo na cadeia, com suas conexões, Lorenzo poderia se reerguer de novo.

Precisamos cortar o mal pela raiz, enfraquecer suas associações e trazer

todos para o nosso lado.

Ele me olhou e deu um sorriso.

― Assim que eu for capo, você será o meu consigliere. É um gênio em

arquitetar planos ― apontou.

Bufei. Tinha aprendido havia muitos anos a observar e analisar tudo o

que poderia ser benéfico para os meus objetivos, assim não cometeria erros.

― Não, obrigado. O Luca deve ocupar o cargo. ― Olhei entre os dois.

― Afinal, ele é seu primo.

― Passo. Não quero esse tipo de responsabilidade. ― Tinha algo nos

olhos de Luca, um tormento vivo que tentava esconder, mas, às vezes,

brotava à superfície.
― O cargo será de um dos dois, não vou querer outro. ― Matteo

parecia decidido. ― De qualquer forma, nós vamos lidar com isso mais

tarde.

Eu não queria aquela responsabilidade sobre mim também.

― Sabe o nome dela? ― perguntei.

― Zaira disse que se chama Liliane, mas a chama de Lis. ― Matteo

ficou de pé, parecendo ansioso demais para ficar quieto.

Liliane significa “Deus é juramento” e “Deus é promessa”. Ele deveria

tê-la salvado, mas não o fez, assim como não salvou minha família.

Uma vez, acreditei e tive fé. O rosário no meu bolso comprovava isso.

Contudo, depois veio a minha destruição, levando para longe de mim tudo

que era importante. E, mesmo se eu quisesse ser um devoto, não podia. Era

um assassino e não pretendia mudar esse fato.

― Como está a Zaira? ― Era melhor falar de outras coisas a pensar

no passado.
― Mal. Ela tentou ajudar a Lis, mas um dos guardas bateu nela. Outro,

que está do nosso lado, a levou para longe antes que as coisas ficassem

feias. ― Foi até uma janela e olhou para fora.

― Maldito! Ele pagará por isso ― assegurou Luca, que também

amava a senhora.

― Zaira gosta dessas crianças e ainda mais dessa menina. Disse que

ela era muito gentil, não entrava em briga nem era desobediente. Parece que

têm garotas indisciplinadas lá, então os guardas as castigam. ― Matteo

socou a parede com força, ferindo sua mão. ― Como eu não soube dessa

merda antes?

― O tio Lorenzo e meu pai nos deixaram tomando conta da Itália,

assim não descobriríamos o que estavam fazendo aqui ― assentiu Luca.

― Dessa forma, nós não tentaríamos deter o que acontece há anos. ―

Sua fúria era quase palpável.

Ficamos em silêncio por um tempo, até que o médico saiu da sala e

veio até nós. Notei que a porta, na verdade, dava para um corredor no qual
havia outras portas.

O doutor ficou nervoso com a presença de nós três, mas prosseguiu.

― Como ela está? Sobreviveu? ― indaguei, colocando-me de pé,

ansioso demais.

― Nos meus anos nessa profissão, nunca vi nada assim na vida. ―

Soou amargo. ― É provável que ela jamais seja mãe caso sobreviva. A

machucaram demais.

― Mais alguma coisa? ― Minha vontade era de quebrar algo, mas me

controlei.

― Costelas quebradas, o braço ferido e uma pancada na cabeça ―

informou. ― Ela teve duas paradas respiratórias, mas conseguimos trazê-la

de volta. Agora é só esperar como vai reagir aos medicamentos. Vamos

levá-la ao quarto, então, se quiserem vê-la depois, fiquem à vontade.

Matteo assentiu, e o médico saiu.

― Quero os nomes de todos que a machucaram ― repeti. ― Vou dar

um jeito de conseguir retaliação sem chamar a atenção. ― Não podia ficar


parado sem fazer nada. Ele me avaliou. ― Confie em mim, não vou fazer

nada que coloque em risco a vida das outras meninas, nem trazer problemas

para nós ― pedi, deixando transparecer a verdade em minha voz e

expressão.

― Confio em você, Samuel, nunca houve motivos para não confiar. No

fundo, não vou atrás eu mesmo porque não confio em mim. Não sei se

consigo simplesmente matá-los parecendo de forma acidental em vez de

massacrá-los. Isso traria consequências a nós, e não quero isso. ― Tocou

meu ombro. ― Esse assunto é tão difícil para você quanto é para mim.

Porém, você é mais controlado do que eu, vai fazê-los sofrer sem chamar

atenção para nós.

― Sim, sabe como trabalho. ― Fiquei grato por ele me deixar fazer

aquilo. Não queria ir contra suas ordens.

― Eu sei. Agora preciso ir. ― Suspirou. ― Não quero que ela fique

só.

― Vou ficar aqui ― peguei-me dizendo antes de pensar.


Os dois me fitaram com perguntas no olhar, mas não as fizeram. E,

mesmo se questionassem, eu não saberia explicar o porquê de ter falado

aquilo. Não era minha responsabilidade cuidar dela. Entretanto,

simplesmente não podia deixá-la sozinha.

― Assim que ela acordar, me liga ― Matteo pediu, e concordei.

Assim que eles partiram, fui ao corredor e indaguei ao médico onde

Liliane estava. Com a resposta, prossegui rumo ao quarto.

Não sabia o que estava fazendo ali, mas não iria embora nem deixaria

outra pessoa tomar conta dela. Seria difícil quando ela abrisse os olhos e se

deparasse em um lugar estranho.

Entrei no cômodo e vi que ela estava inconsciente e entubada. Jazia

uma coberta sobre ela. Seus cabelos loiros ainda estavam manchados de

sangue, sua cirurgia foi de urgência e não houve tempo de limpá-la

completamente. O rosto estava inchado e com feridas, a pele, azulada.

― Eu sei que passou por muita coisa, mas não desista agora. ―

Sentei-me em uma cadeira ao seu lado.


Não sabia se ela seria capaz de ouvir. Vovó dizia que sim. Ela falou

que conversava muito comigo quando estive entre a vida e a morte, embora

eu não me lembrasse de nada disso.

Peguei sua mão e vi que tinha um rosário em seu pulso. Ela acreditava

em Deus. Eu esperava que Ele a deixasse viver.

Poderíamos ter chegado um pouco antes, mas, ainda assim, o que

iríamos fazer? Matar o Lorenzo? Vontade não falta, pensei amargo.

Com certeza eu o teria matado, embora tal atitude só me levaria à

morte. Todavia, antes isso à cruz que aquela menina teria de carregar para

sempre. Assim que acordasse, ela teria que lutar com os demônios de suas

lembranças, como acontecia comigo, mas os dela certamente seriam piores.

Depois de minha recuperação, vovó me levou a um psicólogo e a um

psiquiatra, mas não era disso que eu precisava, e sim de vingança. Foquei

nisso, era meu objetivo daquele dia em diante. Qual seria o daquela garota?

Fosse o que fosse, eu esperava ajudá-la a lidar com tudo.


A culpa por ter chegado tarde demais para salvá-la me consumia. Algo

me dizia que isso só iria piorar.

― Vou matar todos que machucaram você e as outras meninas. ―

Manteria essa promessa a todo custo.


Liliane

Abri meus olhos e tentei me lembrar de onde estava e do que me

aconteceu. Recordei-me do que me fizeram... da dor... dos seus rostos... do

meu mundo se desfazendo.

Dor.

Tormento.
Vazio.

Desespero.

Tudo isso veio à minha mente como uma enxurrada de lembranças, ou

melhor, pesadelos lúcidos, do tipo que nos consome por dentro e por fora.

Aquele sofrimento era pior do que o que tive no começo da minha

estada naquela fazenda. Nem as surras que levei lá se comparavam àquilo,

àquele vazio, àquele vácuo em meu coração... Era isso o que significava

estar morta mesmo ainda respirando? Eu me sentia assim. Podia sentir

lágrimas escorrendo em meu rosto.

Aqueles monstros roubaram algo que não era destinado a eles,

quebraram-me, destroçaram-me ao ponto de eu não saber se conseguiria me

reerguer algum dia após ter sobrevivido.

Tentei chamar alguém, mas havia algo em minha boca e nariz

impossibilitando-me de fazer tal ato. Olhei ao redor, tentando recuperar a

respiração irregular para saber onde estava. Parecia ser um hospital. Uma

vaga lembrança de que eu já tinha estado em um flutuou em minha mente.


Estariam as minhas memórias retornando? Recordava-me de ter estado lá

com uma mulher sem rosto, e não era a primeira vez.

Fechei os olhos um segundo. Aquilo teria acontecido em minha

infância? Uma parte de mim sentia que fui feliz nessa época, antes de

acordar naquele lugar infernal.

― Não, por favor, não machuque a mamãe e meus irmãos! ―

implorava alguém ao meu lado.

Saí das minhas lembranças e virei a cabeça tão rápido que um

zumbido em meus ouvidos me deixou um pouco tonta. Não me importei, pois

estava focada demais na voz, que reconheci do sonho que tive antes de

apagar.

Havia um homem dormindo na cadeira ao lado, o mesmo que eu

recordava. Pensei que tinha sonhado com meu anjo da guarda. Seu rosto

estava tenso, embora sua face fosse bela e com uma camada de barba. Havia

tatuagens em seus braços e pescoço, e seus cabelos eram castanhos e curtos.


Todavia, não foi só isso que me chamou a atenção e me deixou paralisada e

de olhos arregalados.

― Por favor, papai, não os mate... ― suplicou o homem em seu sono.

Sim, aquele rosto era o mesmo que vi antes de pensar que estava

morrendo, quando estava imersa em um mundo de dor. Lembrava-me de que

ele tinha me implorado para lutar mais e não morrer. Agora também

suplicava, mas pedindo em favor de sua família. O pai dele machucara a

esposa e demais filhos.

Percebi que meu salvador estava em um pesadelo. Seria bom que eu o

acordasse? Não sabia o que fazer. Temia tentar e ele se alterar, assustado.

Então aquele homem me salvara? Era o meu protetor? O meu anjo da

guarda? Ele me trouxe a um hospital para tentar me salvar e conseguiu,

embora eu ainda sentisse dores por todo o corpo. Fiquei comovida, porque,

além de me salvar, ele ficou ali, velando-me enquanto estive inconsciente.

Sua bondade me tocou fundo.


Antes que eu tivesse tempo de organizar minha mente confusa diante de

tudo o que aconteceu naquela noite, uma porta foi aberta e um homem entrou.

Não pude impedir que o pavor se instalasse em minha mente, fazendo-

me gemer e o aparelho de monitoramento cardíaco apitar freneticamente,

mostrando meu pânico evidente.

O meu salvador se levantou, acordando com o barulho estridente.

Olhou para as máquinas e, em seguida, para o intruso.

Apertei minhas mãos, e foi então que notei que meu salvador estava

segurando uma delas. Por que sua presença não me fazia ter medo como

acontecia com o outro homem? Seria por ter sido ele a me salvar? Porque,

no fundo, eu sabia que estava segura com ele?

― Fique onde está. ― Sua voz saiu mais dura do que um minuto atrás

ou de como eu me lembrava de antes de ficar inconsciente.

Pelos seus trajes, o homem era um médico. Fez o que meu salvador

pediu, não se aproximou, o que me deixou aliviada, mas não o bastante para

estabilizar as batidas do meu coração e, por conseguinte, o som do monitor.


O meu salvador se virou para mim assim que o homem parou. Tentou

tirar sua mão da minha, mas não deixei, apertando seus dedos um pouco mais

forte.

― Ele é médico, precisa examiná-la, não vai machucar você. Ninguém

jamais fará isso novamente. ― Tinha um selo de promessa nas suas

palavras.

No fundo, uma parte de mim sabia disso, mas a outra, que tinha medo,

era mais forte e me impedia de querer estar perto do doutor e de qualquer

outra pessoa além do homem ao meu lado.

― Preciso examinar você para saber como anda sua recuperação ―

explicou o médico em tom calmo.

Apertei mais a mão do meu salvador, não querendo a aproximação

daquele homem, o que mantinha meu coração acelerado.

― Deixa que eu cuido disso, Gordon. Só me diga o que tenho que

fazer, e farei ― ele disse ao médico, que suspirou, mas assentiu.


― Tudo bem, não será nada de mais. Depois precisarei fazer mais

exames, porém isso pode esperar. ― O doutor me deu um sorriso tranquilo.

Queria pedir desculpas pela minha reação, mas não poderia fazer

aquilo, e não apenas em razão daquele aparelho sobre minha boca e nariz,

mas também por não conseguir controlar o pavor que me consumia.

― Precisa soltar meus dedos para eu examinar você ― pediu o meu

anjo da guarda, com o rosto tranquilo. ― Não vai demorar.

Olhei para sua mão, que eu agarrava com força, depois para sua face.

― Ninguém vai machucar você, vou protegê-la. ― Havia um

juramento no tom de sua voz.

Não entendia o porquê, mas acreditava nele, afinal, me salvara antes.

Se quisesse me fazer mal, certamente não teria me levado para uma clínica.

Assenti e o soltei. Cerrei os punhos, tentando normalizar minha

respiração, afinal, todos ali poderiam perceber meu nervosismo; os

monitores entregavam minhas reações.


Ele me examinou seguindo as orientações médicas, mas notei que

evitava me tocar, só fazia perguntas às quais eu pudesse responder com

acenos de sim ou não.

― Então? ― perguntou ao doutor em um tom ansioso. ― Como ela

está?

― Ela vai ficar bem ― foi o veredito do médico. ― Podemos tirar a

sonda da boca, mas vamos manter a do nariz por enquanto.

O salvador retirou o tubo depois de o doutor dizer-lhe como fazer. Fez

tudo praticamente sem me tocar. Ele entendia o meu medo de aproximação e

contato, embora nem eu mesma o entendesse?

Fiquei feliz por não ter mais aquilo na minha boca e garganta.

― Pode falar? ― ele sondou, afastando-se e me olhando.

Retribuí o olhar, mas não consegui verbalizar nenhuma palavra,

embora quisesse saber seu nome, o porquê de ter me salvado e ainda estar

ali, ao meu lado.


Assentiu como se eu tivesse acabado de revelar algo. Talvez soubesse

que eu não conseguia falar ainda. Acreditava que depois me sentiria mais

confiante, só estava confusa, sentindo aquele abismo em meu peito.

― É normal se sentir desorientada após tudo o que passou. ― Ele

parecia entender isso, ou estava tentando me acalmar.

Ele sabia o que me aconteceu. Isso me mortificou, embora nada

daquilo fosse culpa minha. Parte do meu cérebro se sentia assim.

― Está com dor? ― perguntou em tom preocupado. ― Podemos lhe

dar algum analgésico. Não gosto de vê-la sofrendo.

Queria dizer-lhe que cada parte de mim doía como se estivesse em

cima de cobras venenosas, mas não conseguia, então só balancei a cabeça

afirmativamente. E, de toda forma, ele podia me ajudar com a dor física, mas

não com o sofrimento. Não acreditava que alguém pudesse tirar aquele

tormento que eu estava sentindo.

Ele olhou para o doutor.

― Traga algo para dor. ― Não parecia um pedido, mas uma ordem.
― Tudo bem ― aquiesceu o médico, em seguida saiu do quarto.

Quem era aquele homem? Ele parecia poderoso, mas não de um jeito

assustador, e sim do tipo que transmitia segurança.

― Me chamo Samuel ― afirmou como se estivesse lendo minha

mente. ― Liliane, certo?

Como ele sabia meu nome? Zaira teria comentado sobre mim? E como

ela estava? Esperava que bem; recordava-me de que ela tentara me proteger,

mas no final não pôde fazer nada. Ninguém podia ir contra aqueles mafiosos.

Olhei para um copo na mesinha ao lado. Precisava beber algo, pois

minha boca estava seca. Talvez assim minha voz saísse e eu descobrisse

como Zaira estava.

― Está com sede? ― Aproximou-se, mas cada passo seu parecia

calculado. Pegou o copo e o levou até minha boca. Engasguei-me com o

primeiro gole.

― Pequenos goles ― pediu com um sorriso tranquilizador. Fiz o que

pediu. ― Isso, assim, Raio de Sol.


Meu coração acelerou com aquele gesto e palavras. Seus olhos foram

até os monitores frenéticos.

― Está com medo de mim? ― Tinha algo em sua voz que não consegui

identificar.

Neguei com a cabeça, deixando claro que não era isso, mas também

não falei o que era. Na verdade, estava comovida com seus gestos ao cuidar

de mim.

― Bom. ― Gostei do som da voz dele. Era tranquilizador e me

acalmava. ― Não precisa ter medo, eu jamais a machucaria. Juro a você que

ninguém nunca mais o fará.

Queria agradecer-lhe por tudo que me fez e lhe contar que acreditava

nele, mesmo tendo acabado de conhecê-lo, o que me deixava aliviada, mas

não conseguia emitir qualquer som. Sabia que fisicamente não havia nenhum

problema nas minhas cordas vocais. Seria por que eu ainda estava com

medo? Minha mente não permitia que as palavras saíssem, ainda que eu

quisesse pronunciá-las.
Tentei dizer algo novamente, mas nada saiu.

― Leve seu tempo. Quando se sentir melhor, você vai falar. ― Sorriu.

Ele parecia enxergar através de mim, sabia o que se passava em minha

mente sem eu precisar abrir a boca. Percebi que isso ficou evidente em

minha expressão.

Ouvi uma batida na porta, então o médico entrou trazendo uma bandeja

com algo sobre ela. Meu coração voltou a acelerar com aquele medo

aterrorizante. Parecia que o pavor estava em meu cérebro o tempo todo e que

só regredia com Samuel.

Ele foi até o doutor e pegou a bandeja, em seguida veio em minha

direção.

― Sabe aplicar ou quer instruções? ― perguntou o médico.

― Eu me viro. ― Colocou a bandeja sobre a mesinha. ― Pode ir

agora.

Após o doutor sair, Samuel pegou uma seringa e inseriu o

medicamento no soro.
― Isso vai tirar sua dor ― prometeu-me, descartando os utensílios

usados no cesto de lixo, então voltou a se sentar na cadeira ao meu lado,

fitando-me. Não demorou muito para a medicação fazer efeito, não só contra

a dor, mas também deixando-me sonolenta. Meus olhos começaram a ficar

pesados, mas lutei para permanecer acordada.

― Pode dormir agora.

Meu olhar foi até a porta.

― Ninguém vai entrar aqui ou encostar um dedo em você. ― A

resolução estava nítida em seu rosto.

Respirei fundo, não querendo pensar no que tinha acontecido comigo

nem no vazio e no tormento. Meu cérebro estava fritando com todas as

imagens repugnantes. Lágrimas escorreram dos meus olhos; a dor me cortava

fundo.

― Luce del Sole, não chore ― pediu Samuel, parecendo arrasado. ―

Você vai se curar.


Das feridas, podia até ser, mas e quanto àquele vazio em meu peito?

Aqueles monstros não haviam só tirado minha inocência, mas também

roubado minha alma. E eu não sabia se poderia tê-la de volta.

― Lamento ter chegado tarde. ― Senti dor em sua voz.

Queria dizer-lhe que não era culpa dele o que aqueles monstros

fizeram, mas a escuridão estava se aproximando.

― Durma tranquila, vou velar seu sono ― jurou.

Confiei em suas palavras, por isso me deixei cair à deriva, longe da

dor e do tormento.
Samuel

Tinham se passado vinte dias após a cirurgia de Liliane. Seu

organismo estava se recuperando bem com os medicamentos. Isso me dava

esperança de que ela logo ficaria bem, ao menos fisicamente. Quanto à sua

mente, isso ainda levaria algum tempo.

Eu não saía do seu lado, só quando precisava resolver algo do

trabalho. Matteo me cobria boa parte do tempo, mas, algumas vezes, eu


precisava ir para que Lorenzo e seu irmão não desconfiassem de nada. Eu

não podia simplesmente desaparecer.

Sabia que não era minha função tomar conta da garota, mas não estava

em meus planos deixar que outras pessoas cuidassem dela.

Ainda me lembrava da forma como ela me acordou quando retornou da

inconsciência pós-cirurgia, libertando-me de um pesadelo, um que eu tinha

de forma recorrente, no qual suplicava para que meu pai não matasse minha

família, algo que não pude fazer na vida real. Não houve tempo para sequer

pensar.

Parei de pensar nisso e foquei na garota adormecida com o rosto

sereno, desprovido de todo aquele tormento e medo que via quase sempre

desde que a havia trazido à clínica.

Ainda bem que suas feridas estavam cicatrizando, tanto no rosto

quanto no corpo. Às vezes tínhamos que sedá-la para fazer alguns exames,

como radiografias e ultrassonografias. Eu não gostava disso, mas, se não


fosse assim, ela surtava. E, como eu não entendia dessa parte, não podia

fazer o trabalho do médico e das enfermeiras.

Quando eu saía, deixava uma enfermeira com Liliane. Não acreditava

que a garota lidaria bem com a presença masculina. A única exceção era eu,

e não entendia o porquê. Era para ela me temer também, mas confiava em

mim, por isso relaxava em minha presença.

Matteo entrou no quarto após sondar se ela estava dormindo. Como lhe

contei tudo que aconteceu quando ela abriu os olhos, ele sempre mandava

uma mensagem antes de vir para evitar que a menina se assustasse.

― Ela confia em você. ― Meu chefe me avaliou enquanto se punha ao

meu lado.

Ri amargo.

― Esse é o problema. Não mereço a confiança dela. ― Pessoas

dependeram de mim no passado, e não pude proteger nenhuma delas. Por

isso temia cometer o mesmo erro.


Quando disse a Matteo que ficaria com Liliane, pensei que seria por

uma noite, mas então vieram outras e outras... e ali eu estava. Depois que ela

me viu, eu não acreditava que teria como fugir.

― Se não quer ficar com ela, posso deixá-la com outra pessoa ― ele

sugeriu. ― Ao menos até ela saber o que quer da vida.

Acho que é tarde demais para isso, pensei.

― Você não viu a forma como ela reage ao ver o médico. ― Sacudi a

cabeça. ― Não acho que poderá viver sozinha por um longo tempo. Ela vai

precisar de um psicólogo ou alguma merda assim. O terror em seus olhos...

Vendo o belo rosto da mulher que, naquele momento, estava quebrada,

senti algo em meu peito. Isso acontecia sempre que olhava para ela. Esse

sentimento estava ali, enraizando-se a cada dia. Seria compaixão? Por anos

só existiu dor, tormento, vazio e uma sede de vingança em minha alma.

Aquela emoção estranha que tomava conta do meu coração escuro era nova.

― Podemos resolver a parte da terapia, mas tem outra coisa. Ela

precisa ficar escondida até eu salvar todas as outras meninas. ― Suspirou.


― E, quanto a cuidar dela...

― Eu vou fazer isso ― garanti, levando as mãos aos cabelos. ― Não

acho que ela irá confiar em outra pessoa. Nem sei por que confia em mim.

― Pergunte a ela depois. ― Deu um aperto em meu ombro. ― Acha

que ela vai dormir até quando?

― Não sei ao certo, mas acredito que até mais tarde. ― Franzi a testa.

― Por que pergunta?

― Preciso que faça uma coisa para mim. ― Enfiou a mão no bolso.

― O que é? ― Seria bom me manter focado. Desde mais cedo,

quando despertei naquela manhã após mais um pesadelo, eu me sentia mais

agitado do que o normal. Não gostava de me sentir impotente.

― Peguei um pen drive que está no cofre do meu pai na sede da

fazenda. Preciso saber se você consegue decodificá-lo para descobrirmos

quem são essas meninas e onde moravam. Está tudo aí dentro. ― Entregou-

me o dispositivo. ― Vasculhe tudo.


― Posso fazer isso, mas preciso do aparelho certo, e ele está no meu

apartamento. ― Fiquei de pé. ― Talvez possamos encontrar alguma coisa

sobre a Liliane.

― Estou contando com isso ― assegurou. ― Só assim para eu poder

fazer alguma coisa. Talvez ache uma conexão com as famílias delas.

Assenti.

― Se perceber que ela esteja prestes a acordar, você vai precisar

deixar o quarto, ou as coisas poderão sair do controle. ― Guardei o pen

drive. ― E me ligue. Não vou demorar.

― Ela está segura comigo ― garantiu.

Eu sabia que estava, só por isso saí dali.

Terminei de abrir os arquivos e descobri o nome e sobrenome da

maioria das garotas, bem como onde moravam antes de ser levadas por

Lorenzo e seus subordinados. No entanto, duas dela não tinham arquivos,

apenas pastas nomeadas com seus primeiros nomes.


Liguei para Matteo e coloquei a chamada no viva-voz.

― O que descobriu? ― sondou assim que atendeu ao segundo toque.

― Desde o início, são mais de duzentas meninas, incluindo crianças

que ainda estão lá. A maioria é daqui, porém, há garotas de outros países

também ― informei.

― Tem os endereços dos pais delas?

― Tem, sim, mas algumas foram sequestradas há mais de dez anos.

Pesquisei seus nomes e descobri que há muitas campanhas de famílias à

procura de suas crianças, muitas antigas, outras de poucos meses atrás. Essas

são das meninas que atualmente têm entre sete e dez anos.

― Merda! Meu pai é mais doente do que pensei. Raptar crianças e

deixá-las crescer até ter a idade certa para seu plano macabro... ― Soltou

um rugido do outro lado da linha.

― Elas são todas civis, nenhuma está relacionada a alguma facção ou

máfia. Ao menos essa informação não está descrita nos arquivos. ― Copiei

todo o conteúdo do pen drive. ― Enviei para seu e-mail.


― Vou deixar os arquivos guardados e colocar o pen drive no local

antes que meu pai volte de Veneza.

Lorenzo tinha viajado para lá havia alguns dias.

― Tem mais uma coisa. ― Suspirei. ― Não consegui localizar

arquivos de duas garotas. As pastas delas estão vazias, estão apenas

nomeadas com seus primeiros nomes.

― Que nomes não conseguiu localizar?

― Liliane e uma menina chamada Evelyn. ― Desliguei meu laptop e

guardei o pen drive no bolso.

― Evelyn? Tem certeza? ― Seu tom estava estranho.

― O que foi? Já a viu lá dentro? ― inquiri. ― Isso ajudaria. Talvez

ela nos diga alguma coisa.

― Se for quem eu estou pensando, sim. ― Suspirou. ― A conheci

sendo castigada. Vou procurar saber mais sobre ela, e você tente saber mais

sobre a Liliane.
― Sim. Mas só vou poder fazer isso quando ela melhorar. Agora

preciso que o foco dela seja sua cura. ― Sabia o quanto isso seria difícil.

Não passei por algo assim, mas vi como Bonnie ficou devastada. Até o

presente ela não tinha relacionamentos por causa do que teve de suportar.

Embora fosse psicóloga, ainda havia uma barreira. Eu torcia para que um dia

ela pudesse superar. Ao menos, não era avessa a toques, não mais. Houve

uma época em que não os suportava, por isso eu acreditava que Liliane

conseguiria também.

Saí do meu apartamento e voltei para a clínica enquanto falava com

meu chefe. Não era longe, distante apenas algumas quadras.

― Não entendo por que não têm informações sobre essas duas

meninas nos arquivos ― Matteo parecia falar consigo mesmo. ― Vamos

esperar que elas se lembrem de algo, isso facilitará muito.

Zaira contou que Liliane tinha oito anos quando foi levada para a

fazenda. Não foi na época dela, afinal tinha chegado ali havia menos de um
ano, mas a menina lhe contou isso. Não recordava muito do seu passado,

pois parecia que tinha algum tipo de amnésia.

― Talvez não estejam nos arquivos em razão de as duas serem de

famílias importantes. Pode ser que eles não queriam correr o risco de serem

descobertos ― sugeri. ― Ou talvez seja por outro motivo.

Ele ficou em silêncio por um momento.

― Pode estar certo sobre isso. ― Parecia mais esperançoso. ―

Quando eu era criança, Lorenzo me ensinou que, se quiséssemos esconder

algo para que ninguém descobrisse, deveríamos evitar falar sobre o assunto

ou guardar qualquer registro. Na época, não entendi, mas agora faz sentido.

E se ele não registrou nada do passado das meninas só para encobrir a

verdadeira origem delas?

― Não custa nada pensar sob esse viés. Espero que elas não sejam de

nenhuma família mafiosa. ― Parei o carro na frente da clínica e entrei,

encontrando-o no corredor com o celular na orelha.


― Também espero. Não quero entrar em nenhuma guerra antes de

estabilizar as coisas na nossa organização.

― Seu pai e seu tio vão nos manter cheios de problemas por um

tempo. ― Desliguei a ligação.

Ele se virou e me olhou, encerrando a sua.

― Espero que não. ― Fechou a cara e apontou para o quarto. ― Ela

ainda não acordou.

Assenti, entregando o pen drive a ele.

― Vou ver o que posso fazer para descobrir algo sobre Liliane. Não

prometo que será agora. Como eu disse, a cura dela vem em primeiro lugar.

Entendia que ser forçado a contar sobre traumas era doloroso demais.

Vovó nunca me obrigou a falar sobre o que presenciei. Só em pensar ou

sonhar com aquilo era uma tortura, imagina falar?

― Por isso estou deixando-a com você, sob sua responsabilidade. ―

Deu um suspiro duro. ― Não posso focar nela quando tenho mais meninas

que podem ir pelo mesmo caminho.


― Vou tomar conta dela e arrumar uma forma de ajudá-la. ― Passei a

mão no rosto. Estava cansado demais, fazia tempo que não dormia direito.

― Devia dormir um pouco. Vou precisar de você amanhã.

― Vou ver o que faço ― respondi e entrei no quarto enquanto ele ia

embora.

Eu sabia que Matteo tinha razão quanto a eu precisar de uma noite de

sono agradável – ou o quão agradável pudesse ser com os pesadelos

recorrentes –, mas não podia fazer isso ali nem queria que ela acordasse e

não me visse.

Queria entender o porquê de ela não ter medo de mim. Eu era um

homem assustador, fui criado de modo duro até os 15 anos e, após a tragédia

com a minha família, forcei-me a me manter frio e sem emoção, ao menos

abertamente. Todas as minhas emoções estavam trancafiadas por trás de uma

parede de concreto dentro do meu coração sombrio.

Entretanto, ao seu lado, tentava amenizar um pouco meio jeito de ser

para não a assustar, mas a escuridão estava lá... sem fim. Liliane não devia
se sentir segura com um homem como eu. Era um assassino, um executor

capaz de torturar e ter prazer nisso. Se Lily soubesse, com certeza fugiria,

mas para onde iria? O que faria sozinha no mundo desconhecido? Ao menos

era assim para ela, que viveu presa por anos.

Eu iria tentar ajudá-la o máximo que pudesse, até que conseguisse

seguir sua vida. Podia demorar um pouco, dadas as circunstâncias, mas ela

era uma lutadora. Brigou por sua vida e sobreviveu. Certamente conseguiria

passar por aquilo e se reerguer. Não seria fácil, eu sabia disso, porque a

coisa foi fodida demais e a destruiu.

― Um dia, Raio de Sol, você brilhará de novo. ― Toquei seus

cabelos loiros. ― Mais intensamente que o próprio sol.


Samuel

Fazia um mês e dez dias que Liliane estava na clínica. Eu já poderia

tê-la tirado de lá, mas a queria cem por cento fisicamente. Suas costelas

eram o problema, mas estavam melhores. Ela já andava e ia ao banheiro

sozinha.

Outra razão para eu não a ter tirado de lá ainda era que eu aproveitava

enquanto ela dormia para programar visitas aos homens que a tocaram.
Prometi vingança e manteria essa promessa.

Poderia ir a todos da lista de uma vez e matá-los, mas jurei ao Matteo

que me vingaria sem chamar a atenção sobre mim. Isso não queria dizer que

seria menos doloroso para eles, porque mereciam o pior. Faria com que a

culpa de suas mortes recaísse em seus inimigos, homens tão horríveis quanto

eles, ou então daria um jeito de parecerem acidentes fatais.

― Por favor... ― implorou Aguiar Mattos, um dos políticos que a

tocara. Eu tinha começado do primeiro e terminaria no último. Todos foram

cruéis, mas o primeiro bateu a cabeça da Lily, e o último quebrou suas

costelas. Eu os faria sofrer amargamente.

Lorenzo fazia vídeos dos atos promovidos pela seita. Foi assim que

descobri quem era cada um deles e o que fizeram com Lily e as outras

meninas, além de ter pegado o relatório com o nome dos estupradores com

um dos guardas que estava no local, um dos nossos, que não pôde fazer nada

para impedi-los, afinal, era só um servo que cumpria as ordens do capo.


― Não me mate! ― Mattos continuou implorando. Estava preso em

uma cadeira.

― Ela implorou para não ser tocada. Agora lhe pergunto: você ouviu?

― Continuei, não esperando sua resposta: ― Não, nenhum de vocês ligou.

Aliás, adoraram, não foi?

O filho da puta ficou confuso, o que me deixou mais irado, pois não

parecia saber de quem eu estava falando.

― Foi um engano, não sou quem pensa que é. ― Balançou a cabeça.

― Se quiser dinheiro, eu tenho.

― Então você não é Aguiar Mattos? Um político renomado que, ao

invés de seguir a lei corretamente, burla todas as regras? Um homem que faz

negócios com Lorenzo Salvatore, o infeliz que entrega meninas a monstros

como você? ― Cada palavra proferida por mim gotejava ácido puro.

Reconhecimento tomou sua expressão.

― Fui obrigado! ― Ficou branco como um fantasma.

Queria rir do filho da puta.


― Sério? Alguém o obrigou a tirar a porra do seu pau de dentro das

calças e estuprar aquelas meninas? ― Peguei a foto de Lily machucada e

quase morta e colei na parede em sua frente. ― Olha como vocês deixaram

uma delas.

Como eu queria enfiar minha faca nele e, enquanto estivesse morrendo,

arrancar seu pau para fazer com que o comesse.

― Eu lamento...

Dessa vez dei uma risada sombria.

― Não, você não lamenta. Para uma pessoa lamentar algo, ela deveria

ter um coração, e posso apostar que você não tem um. ― Apontei para um

canto do cofre onde ele estava preso. ― Sabe o que é aquilo?

Ele olhou para onde indiquei e piscou surpreso.

― Você está em um cofre, e o jogarei no fundo do oceano. Mas, como

não quero que morra só asfixiado, fiz esse buraco para que morra afogado.

Dizem que é uma morte horrível. ― Cruzei os braços. ― Vamos ver o que

irá matá-lo em primeiro lugar. Enquanto você agoniza, olhe para a foto dela.
― Lorenzo nos deu a garota! ― O medo era evidente em sua

expressão. ― Por que ele mandou você me matar se foi um presente dele?

Eu estava calmo por fora, mas por dentro a fúria me consumia. Era

como um vulcão adormecido, só esperando o ponto de ruptura.

― Não estou aqui a mando de Lorenzo. Ele é outro maldito que logo

irá acompanhá-lo ao inferno. ― Cruzei os braços em frente à porta de metal

aberta.

― Por favor, não me mate! Tenho filhos que precisam de mim! ― O

desgraçado começou a chorar.

― Suas súplicas não significam nada para mim. Isso me deixa ainda

mais sedento de sangue, e saber que tem filhos... ― desdenhei. ― O que

sentiria se alguém fizesse com eles o que você fez com essa menina? Teria

prazer?

Ele lutou contra as cordas que o prendiam, tentando se soltar.

― Fique longe deles! ― rosnou, enfurecido. ― Senão eu vou matar

você!
― Não se preocupe. Eu lhe mandaria o vídeo de como as coisas

aconteceram quando Moor acabasse com eles, mas acho que não sobreviverá

a isso. ― Dei de ombros, indiferente.

É claro que eu nunca faria aquilo; não matava quem não precisava nem

pessoas inocentes. Quando eliminava alguém, era por seus erros, e não me

vingava usando outras pessoas.

― Por que essa veia protetora? Aquela menina tinha família, assim

como você. Ao menos pensou em seu sofrimento? Não fez isso, aliás, só

queria molhar seu pau fodido. ― Descruzei os braços. ― Para o que fez,

não tem perdão.

― Deixe a minha família em paz... Te dou tudo o que você quiser ―

sussurrou.

― Esse é o problema! ― rugi em seu rosto, colocando uma faca em

sua garganta. ― Você não pode me dar o que eu quero!

― Então me mate logo! ― suplicou, olhando entre mim e o pequeno

buraco no cofre.
― Você não merece uma morte rápida. Sorte sua que morrerá assim,

afinal não quero chamar atenção. ― Peguei suas bolas e as apertei, fazendo

com que gritasse. ― Esse tipo de grito é minha essência, algo que adoro

ouvir.

― Filho da puta! ― rosnou, ofegante, assim que o soltei. Não queria

que desmaiasse, pois desse jeito eu não apreciaria sua morte.

― Sofrerá de uma das piores formas possíveis, mas devia agradecer,

porque esse não é meu modo preferido de matar alguém. ― Afastei-me com

os lábios repuxados em um sorriso impiedoso. ― Prefiro o fogo, pois há

algo prazeroso na maneira como meus alvos gritam, imploram e choram. No

entanto, só há um final para eles, que é a morte.

― Desgraçado! Não pode me matar assim! Só fiz o que Lorenzo

pediu! ― rugiu.

― Os japoneses usam essa tática. ― Sorri friamente. ― Posso deixar

você escolher entre ser jogado no oceano ou ser enterrado. O que vai ser?

Ele começou a surtar, gritando por socorro.


― Bom, será o mar então. ― Suspirei, olhando para minha faca. ―

Um conselho, poupe seu fôlego, pois vai precisar dele. Ninguém irá ouvi-lo

e vir ajudá-lo, assim como ninguém ouviu a garota nem a ajudou em seus

momentos de tortura. ― Apontei para a foto de Lily.

Ele riu como um louco, mas eu era experiente em tortura e sabia

identificar suas reações.

― A boceta dela era apertada quando gozei. Senti prazer com seus

gritos. ― Sorriu zombeteiro.

― Torturei muitos e conheço as táticas usadas pelas vítimas. Agem

assim para tentar se livrar da agonia. ― Tudo dentro de mim fervia com suas

palavras frias e implorava para rasgá-lo ao meio, mas eu tinha um forte

autocontrole.

Apertei o cabo da faca e fui até ele com um sorriso sardônico. Pude

ver alívio em seu rosto pensando que eu o livraria da morte torturante.

― Não morrerá assim tão rápido. ― Peguei seu dedo enquanto o

olhava, adorando ver seu pavor nítido. ― Há algumas táticas de tortura que
uso que não aceleram a morte.

― Seu desgraçado! Quem acha que é? ― rosnou. ― Deus? Para fazer

justiça com as próprias mãos?

Sorri com frieza.

― Deus poderia perdoá-lo caso você se arrependesse, mas eu não. ―

Enfiei a faca sob suas unhas e arranquei pedaços do leito e lascas das unhas,

adorando ouvir seus gritos. ― Na verdade, irei amar mandar sua alma para

o inferno

Ele respirou com dificuldade.

― Você também irá para lá, afinal não passa de um assassino! ―

cuspiu.

Assenti, então fiz o serviço em todos os dedos de suas mãos. Isso

poderia fazer sentido quando encontrassem seu corpo; entenderiam que ele

tentou abrir a porta do carro na agonia para se salvar, pois seria a forma

como todos pensariam que ele morreu. Eu não podia feri-lo mais do que

aquilo, ou anteciparia sua morte e geraria desconfianças.


― Guarde um lugar para mim quando chegar lá. ― Afastei-me, indo

em direção à porta do cofre.

― Me mate, porra! ― rugiu.

Olhei para ele.

― Sua única missão antes de morrer será olhar para ela. ― Apontei

para a foto. ― Pense em tudo que tirou dela.

Seus insultos em relação ao que fez com Liliane pioraram. Sua

intenção era que eu perdesse o controle. Se me conhecesse, saberia que

aquilo era inútil.

― Boa viagem para o inferno. ― Saí, fechando a porta, ignorando

seus gritos e insultos até restar apenas o silêncio. Mesmo com o pequeno

buraco, o som não era audível.

Estávamos em um barco no meio de um lago. Aguiar realmente

pensava que estávamos no meio do oceano. O lago era muito grande, e, além

disso, embora a porta tivesse ficado aberta enquanto eu falava com ele,

tampei sua visão do exterior com meu corpo para que não visse nada.
― Merda, você é bom ― disse Luca atrás de mim com tom orgulhoso.

Matteo e ele estavam ao meu lado.

― Esse infeliz realmente acreditou que deixaríamos um cofre com um

cadáver no fundo do oceano, correndo o risco de alguém achar? ― Matteo

bufou, mas pude ver seus dentes trincados.

― Quem ele acha que somos? A porra de idiotas amadores? ― Luca

sacudiu a cabeça com ceticismo.

― Homens como ele, que nunca estiveram em nossa posição, só

sabem dar ordens, não passaram pelo que passamos. Então, quando suas

vidas estão em jogo, seus pensamentos se tornam confusos, são incapazes de

raciocinar direito. ― Sacudi a cabeça. ― Aguiar nunca foi torturado antes,

então não é forte como nós, que já passamos por isso.

― Vamos jogar o maldito no lago. ― Luca sorriu com expectativa.

― Sim ― respondi.

O cofre estava preso com correntes, então acenei para Moor, que

estava manuseando o guincho do barco. Ele era um dos nossos. Começou a


movimentar e baixar o objeto, afundando-o na parte mais profunda do lago.

― O que vai acontecer agora? ― sondou meu chefe quando descíamos

do barco. ― Você vai atrás dos outros?

― Sim, eu vou ― assenti. ― Todos sofrerão. É uma pena que não os

matarei como gostaria.

― Só tome cuidado para não sermos associados a nada disso.

Ninguém poderá saber, ou não poderei proteger as outras meninas na fazenda

fodida. ― Matteo deu um tapinha em meu ombro.

― Tomarei. Nada disso respingará em nós, pode confiar.

― O que irá fazer com o corpo do desgraçado? ― Luca parou ao meu

lado.

― Forjarei um acidente, como se o carro dele tivesse caído no rio a

caminho de Detroit. ― Dei de ombros.

― Michigan pertence à máfia Darkness. ― Matteo suspirou. ― Eles

têm esse nome por um motivo.


Máfia das Trevas, era assim que a vertente da máfia russa implantada

nos Estados Unidos era conhecida. Eles possuíam boa parte da Rússia, mas

moravam em Detroit havia mais de uma década. Seus integrantes não temiam

as regras, aliás, todos eram considerados loucos. Cada um deles era letal,

justamente porque nenhum tinha nada a perder. A máfia era controlada por

Sergey, o chefe deles, e seus três irmãos vivos, Demyan, Misha e Kostya.

A família deles passou por grandes perdas. Primeiro, o filho mais

velho, chamado Andreas, de apenas 14 anos. Na época, ele desapareceu do

mapa junto à sua irmã de apenas oito anos. Todos pensavam que foram

raptados e mortos. Podiam ter sido realmente, pois ninguém sabia deles.

Anos mais tarde, após essa tragédia, aconteceu outra. Os pais deles

morreram queimados em um incêndio em sua mansão. Dentro da casa

também estava a outra irmã dos Volkovs. Agora quem estava no poder era o

sucessor. Sergey era jovem quando assumiu o poder, não tinha mais do que

16 anos na época. Atualmente contava com 23. Era um dos homens mais

cruéis já visto. Eu acreditava que se igualava ao Lorenzo, isso se não fosse


pior. Seu único objetivo era conquista e poder, devastando tudo o que

aparecia em seu caminho.

Eu sabia muito sobre as máfias ao redor, pois procurava descobrir

todos os pontos fracos e fortes para o caso de acontecer algum ataque à

máfia Salvatore. Em minhas pesquisas, não encontrei nenhuma fraqueza

naquela máfia, afinal, seus membros não se importavam com ninguém.

Esperava nunca ter de enfrentá-los.

Parei de pensar nisso e foquei na conversa com meu chefe.

― Sei de sua preocupação. Como disse, todos pensarão que o idiota

teve uma morte acidental. Nada poderá ser relacionado a essa máfia. ― Eu

não queria uma guerra com os infelizes. Já bastava um inimigo em potencial,

dentro de minha própria organização, o qual eu não podia matar tão cedo.

― Certo. Mas como vamos fazê-lo ir até Detroit sem motivo? ―

inquiriu.

― Não será sem motivo. Ele tem uma reunião amanhã lá, então essa

noite sairá em viagem, durante a qual terá o seu acidente. ― Dei de ombros.
― Ele poderia cair da ponte sobre o rio Detroit, mas não vou chegar tão

perto para que a máfia Darkness não desconfie, farei acontecer em outro rio

antes de chegar à cidade.

― Não vão desconfiar se ele não fizer a viagem de avião? ― Luca

sondou.

― Não, não é tão longe assim, e o infeliz gosta de dirigir. Além disso,

em sua agenda está marcado que ele passaria em um dos prostíbulos de uma

cidade vizinha a Detroit. Bom para mim.

― Tem a agenda dele? ― Luca sacudiu a cabeça com um sorriso.

― Quando tenho um alvo, pesquiso tudo sobre ele, até os mais

profundos esqueletos no armário ― informei.

Eu era um bom pesquisador, tanto por ser um hacker como por ser um

executor que não gostava de deixar pontas soltas.

― Então só há um ponto a discutir em seu plano ― disse Matteo. ―

Ele morrerá de asfixia dentro do cofre, e não de afogamento.


― Você não ouviu quando ele estava explicando ao homem como seria

sua morte, pois foi atender o telefonema do seu pai. ― Luca riu,

provavelmente ao se lembrar.

― Foi feito um buraco pequeno no cofre para que a água entre. Com

isso, vai parecer que demorou um pouco para ela entrar no carro. Por isso

machuquei seus dedos, para parecer que ele tentou abrir a porta com

desespero, sem sucesso. Por sorte, as portas de seu carro esportivo não

abrem com impacto.

Luca sorriu.

― Você é um gênio! ― Ele parecia impressionado, mesmo não

ficando atrás em sua tarefa de executor. ― Qual será o próximo?

― Peter Jones, um senador de Massachusetts. ― Ele era casado e

tinha duas meninas, de 13 e 14 anos, embora gostasse de garotas da mesma

idade de suas filhas. Possuía um negócio de tráfico de mulheres. O maldito

provava cada uma antes de ser vendida.


― O que tem em mente para ele? ― Luca quis saber, parecendo

curioso.

Estávamos nos dirigindo para o carro, pois o cofre já tinha sido

colocado dentro da água. Mais tarde, iria conferir a câmera que deixei

escondida para gravar a morte de Aguiar, pois, se um dia a Liliane quisesse

ver, eu mostraria a ela que todos pagaram.

― Verá na hora certa. Só posso assegurar que ele vai lamentar

amargamente por ter tocado na Liliane e nas outras meninas. ― E eu

adoraria cada segundo.

― Ainda bem que somos amigos. ― Ele sentou-se no banco de trás

com Matteo, enquanto eu ligava o carro para irmos embora.

― Você é tão letal quanto eu, se não for pior ― apontei o óbvio.

― Pode ser. ― Deu de ombros. ― Mas a vingança, quando é pessoal,

é mais divertida.

― Não é pessoal. ― Olhei para ele através do retrovisor.

― Se você diz. ― Deu de ombros.


Minhas mãos apertaram o volante para eu não o socar como desejava.

Minha raiva ficou pior quando ele sorriu, analisando-me. Estava a ponto de

me virar e quebrar seus dentes, mas me controlei. Não iria perder o controle

assim. Precisava permanecer calmo como sempre, embora nos últimos

tempos estivesse com as emoções à flor da pele, o que não era comum.

― Luca! ― Matteo advertiu-o com tom de chefe.

― Acho que estou com inveja por você matar todos, enquanto fico

parado. ― Luca deu um suspiro chateado.

Voltei minha atenção para a estrada.

― Deixa para quando o chefe for capo, aí você terá as mãos cheias

limpando a família, destroçando os homens fiéis a Lorenzo. ― Meu telefone

tocou. Atendi-o, vendo o número de Gordon. Ativei o viva-voz e deixei o

aparelho em cima do painel do carro. ― O que foi? Aconteceu alguma coisa

com Liliane?

― Ela acordou... ― Interrompeu-se. Foi quando ouvi gritos femininos

ao fundo.
Meu corpo inteiro se sacudiu ao ouvir o tormento naquela voz.

― Que porra aconteceu?! ― rugi.

― Eu estava aplicando seu remédio, quando ela acordou e me viu... O

terror em seus olhos... ― Sua voz falhou. ― Foi como se eu fosse o próprio

Diabo encarnado. Saí e a deixei no quarto. Vim pegar um sedativo para

acalmá-la antes que se machuque.

― Maldição! ― Acelerei mais o carro. ― Estou a caminho daí agora.

― Ela fica chamando por você e rezando sem parar. ― Respirou

fundo.

― Rezando? ― Minha fúria era quase palpável, mas me controlei; não

podia perder a razão.

― Sim. Nunca vi nada assim. ― O médico suspirou. ― Acho que ela

ficaria melhor em uma casa. Deixá-la trancada num quarto de uma clínica

por muito tempo só piora as coisas.

― Vou cuidar disso. ― Dei um suspiro frustrado. ― Não a dope, só

leve o telefone até a porta do quarto.


― Vou fazer isso. ― Ouvi o som de sua locomoção. ― Estou aqui.

― Abra uma brecha na porta e coloque o celular no viva-voz, no chão

― mandei. ― Depois a feche de novo e saia daí.

― Certo. ― Ouvi uma movimentação, e os gritos dela se tornaram

piores.

Como eu estava longe de Liliane, precisava conseguir uma forma de

acalmá-la. Aqueles gritos ficariam gravados em minha mente para sempre.

― Piccolo raggio di sole[1] — comecei, na tentativa de tranquilizá-la.

Repeti as palavras algumas vezes enquanto seus gritos desesperados

continuavam. Após alguns minutos, sua respiração foi se acalmando e ela

parou de gritar.

― Lily, sou eu. ― Podia sentir os olhos de Matteo e Luca em mim,

mas não me importei.

― Samuel...? ― Sua voz... porra! Estava tão quebrada, mas a

esperança era evidente. Nessa hora, quis voltar ao lago para fazer Aguiar

sangrar como um porco.


― Sou eu, Raio de Sol. ― Controlei minha voz e meu interior, que

parecia um vulcão prestes a entrar em erupção.

― Acordei, mas você não estava aqui, e o doutor... ― sussurrou,

fungando.

― Eu sei, lamento por não ter estado aí. Prometo que na próxima vez

estarei. ― Embora não sabia como cumpriria essa promessa.

― Você está ao telefone? ― Ouvi-a suspirar baixinho.

― Sim. Precisava falar com você e serená-la ― comentei.

― Se alguém entrar...

― Ninguém entrará em seu quarto. Você confia em mim?

― Confio ― falou com veemência, sem hesitar.

Ouvir isso foi como levar um soco; impediu-me de respirar por um

segundo.

― Você me salvou ― ela finalmente parecia mais calma. ― Ouvi sua

voz quando achava que estava morrendo, então me esforcei para olhar o seu
rosto. Achei que estivesse de frente a um anjo. Tinha pedido a morte para

Deus, mas, ao invés disso, Ele enviou você. O meu anjo salvador.

Minhas mãos apertavam tão forte o volante do carro que pensei que o

quebrariam.

― Não fui... ― interrompi-me ante o aperto de Matteo no meu ombro.

Olhei para ele para entender o significado do gesto e percebi que não queria

que ela soubesse que tinha sido ele a salvá-la.

Respirei fundo, obtendo meu controle após assentir para ele.

― Por isso não ficou com medo de mim quando abriu os olhos após a

cirurgia? ― Estava curioso quanto a isso desde o início, mas vinha evitando

a pergunta desde então.

― Sim, o reconheci. Além disso, a sua voz e sua presença acalmam as

vozes em minha cabeça. ― A verdade estava em cada palavra, eu podia

sentir isso.

Não era salvador de ninguém. Não era aquele homem que ela

descrevia. Era a porra de um assassino desalmado, não um anjo.


― Acho que chegou a hora de você receber alta. O doutor mencionou

que pode se recuperar em casa ― anunciei.

Ela ficou em silêncio por um tempo.

― Está chorando, Lily? ― Não gostava de vê-la chorar; isso torcia

meu estômago.

Ela fungou.

― Não, mas para onde vou? ― O medo era evidente em sua voz.

― Ficará comigo. Isso se você quiser ― emendei, querendo dar-lhe

uma escolha e não lhe impor a minha decisão.

― Aceito ficar com você. ― Sua voz saiu mais rápido do que o

normal. Era notável o alívio por trás dela.

― Obrigado por confiar em mim. ― Ficamos conversando por um

tempo até eu chegar em frente à clínica. ― A linha vai ficar em silêncio por

um instante, só para eu estacionar o carro. Estou aqui, na clínica ― avisei.

Não queria que ela surtasse quando passasse a não me ouvir.


― Não vai demorar, não é? ― Notei que o pânico dela estava

voltando.

― Não, só levarei alguns minutos. Ninguém tocará em você, juro pela

minha vida. ― Encerrei a ligação, assim ela não poderia me ouvir. ― Porra!

― Soquei o volante assim que estacionei.

― Samuel, não precisa ficar assim. Ela confia em você ― Matteo

disse.

― Não sou o salvador dela! Você que é! ― rugi. Minha explosão o fez

estreitar os olhos, pois eu nunca tinha feito isso. ― Desculpe, chefe, é que

essa porra é fodida demais.

Matteo me dava liberdade para agir, mas ainda era meu chefe, além de

meu amigo, e eu o respeitava.

― Entendo sua frustação. Nós todos somos monstros ― comentou,

calmo. ― Acabamos de deixar alguém para morrer da pior maneira

possível. Então ser chamado de anjo e salvador por alguém como ela é

difícil.
Bota difícil nisso, pensei.

― Precisamos que ela fique no escuro. Ninguém pode saber que está

viva. Só tome conta dela ― ordenou e foi embora junto a Luca.

― Eu sei, vou fazer isso.

Após entrar no prédio, dirigi-me ao seu quarto.

― Oi, Lily ― chamei após abrir a porta. ― Posso entrar?

Ouvi-a suspirar de alívio.

― Sim ― respondeu, ansiosa.

Entrei no cômodo, pronto para enfrentar minha sina, embora não

acreditasse em destino. Se ele existisse, estava zombando de mim. Um

assassino e um cordeiro. O que poderia ser mais fodido do que isso? Nada,

pensei com amargura.


Liliane

Toda vez que eu acordava, Samuel estava no quarto da clínica, mas

não naquele dia. Em seu lugar estava o médico. Na hora, tudo em mim gritou

em desespero.

Minha mente parecia um caleidoscópio de imagens perturbadoras. O

meu medo foi maior do que tudo, mesmo que uma parte de mim soubesse que

aquele homem era somente o doutor.


Estava em pânico, até que Samuel falou comigo pelo telefone, e os

monstros foram se afastando até sumirem. Acreditava que os demônios

estivessem adormecidos, porque eles não iam embora. Fazia mais de um mês

desde que eu fora destruída, mas as lembranças ruins não me deixavam e

traziam pesadelos quando adormecia.

Olhei para a porta quando o único homem que não me fazia sentir

como se estivesse sobre brasas a abriu, cumprimentando-me e pedindo

minha permissão para entrar.

O que eu disse a ele era verdade; Samuel me acalmava. Confiava nele,

afinal me salvara da morte.

Seus olhos castanho-escuros me observavam. Ele não se aproximou a

princípio; abaixou-se e pegou o celular, encerrando a ligação, depois voltou

a abrir a porta e entregou o aparelho a alguém. Entendi que era para o dono.

Depois, fechou a porta e ficou escorado nela.

O meu peito se aliviou.

― Está tudo bem? ― Sua voz era tão calma que me tranquilizou.
Ele avaliou a coberta, que estava sobre mim até o pescoço e eu a

apertava como se isso pudesse impedir que alguém quisesse me machucar de

novo.

― Está. Obrigada por ter vindo. ― Com a sua presença, fiquei cada

vez mais relaxada.

Samuel tinha me dito que eu iria embora consigo para sua casa. Estava

feliz, pois não tinha para onde ir caso ele me deixasse sozinha. O que eu ia

fazer? Fiquei a minha vida toda trancada e desconhecia o mundo ali fora.

― O que foi? ― Ele parecia ser bom em ler as pessoas.

― Nada ― respondi, mas ele estreitou os olhos, então acrescentei: ―

É que não sabia para onde ir se você me deixasse assim que eu saísse daqui.

Seria difícil viver por aí quando eu temia minha própria sombra.

Esperava que um dia isso passasse, mesmo que, no momento, não visse

acontecendo brevemente.

― Jamais faria isso. ― Tinha um selo de promessa no tom de sua voz.


Relaxei um pouco mais, então seus olhos pousaram em algo ao meu

lado e vi preocupação neles.

― Posso me aproximar? Acho que o acesso em seu braço saiu ―

indicou.

Olhei para onde apontou e vi sangue escorrendo pelo meu braço.

Assenti.

― Posso? ― perguntou de novo assim que chegou perto de mim.

Olhei para ele ali, mas não se aproximou totalmente. Nunca o fazia,

sempre perguntava antes de fazer algo.

Balancei a cabeça, então ele cuidou do meu braço com todo o cuidado

para não me tocar. Entendi que temia que eu surtasse, mas, com Samuel, isso

não acontecia. Acreditava que o Senhor o tivesse enviado para me proteger e

Lhe agradecia por isso.

― Acha que consegue ficar de pé para irmos embora? ― sondou ele.

― Consigo. ― Tinha me levantado algumas vezes para ir ao banheiro.

Andava devagar, mas era capaz.


Meu corpo ainda estava dolorido, não tinha curado por inteiro. Puxei a

coberta de lado e coloquei uma perna para fora da cama. Ainda bem que

minha bata hospitalar era longa. Prendi a respiração ao sentir uma pontada

nas costas, mas me esforcei para conseguir. Queria sua ajuda, mas temia

surtar caso tocasse meu corpo. A única parte sua que eu havia tocado até

então foram suas mãos. Com o resto do corpo talvez eu agisse de modo

diferente.

― Posso ajudá-la? Seguro só a sua mão. ― Estendeu a dele para mim.

Isso eu podia aceitar. Assim que o toquei, consegui colocar os dois

pés no chão e fiquei de pé, mas não me movi por um momento.

― Se estiver sentindo dores, posso pedir à enfermeira que ajude você

a se trocar ― sugeriu tranquilamente, mas eu via a preocupação vincando

sua testa.

― Não! ― Minha voz se elevou com a ideia. Não tinha certeza se

poderia me controlar com alguém tirando minhas roupas. ― Vou conseguir.


― Tudo bem. ― Olhou em volta, depois minha bata e soltou um

suspiro, então tirou seu paletó. ― Posso colocá-lo em seus ombros? Não é

bom sair vestida assim, a não ser que deseje se trocar.

O problema era que eu não tinha roupas ali, então aquilo serviria.

― Pode, sim ― sussurrei. Ele colocou a peça sobre meus ombros,

evitando me tocar.

― Obrigada. ― Minha respiração estava irregular.

― Isso não vai dar certo. ― Soltou um suspiro. ― Talvez você

devesse ficar um pouco mais.

― Não! ― Minha voz subiu duas oitavas. ― Se o doutor me deu alta,

então podemos ir para sua casa. A maioria dessas dores são por eu ter

ficado parada, sem me movimentar durante mais de um mês.

Não queria ficar ali, surtando sempre que alguém entrasse ou passasse

no corredor enquanto eu estava acordada. Não podia viver assustando-me

daquela forma, mas não conseguia evitar quando qualquer um, exceto

Samuel, aproximava-se.
De repente, algo passou pela minha cabeça.

― Você mora com alguém?

― Com minha avó. Acha que consegue lidar estando no mesmo

ambiente que ela?

Arregalei os olhos. Queria dizer que sim, mas, na verdade, não sabia.

Entretanto, não podia ficar o tempo todo dependendo de Samuel. Ele tinha

sua vida lá fora e já fazia bastante ao cuidar de alguém impotente que nem

conhecia. Estava me fazendo um grande favor, graças ao seu coração

generoso.

― Sua avó é a dona Zaira? ― sondei, ansiosa, mas, ao pensar um

pouco mais, percebi que não era possível.

― Não, ela se chama Donatella. Zaira não pode sair de onde está, pois

precisa proteger as outras meninas.

― Ela tentou me proteger naquele dia, mas um dos guardas a

machucou ― sussurrei, encolhida. ― Estou preocupada, fiquei meio absorta


durante esse mês, com dores e com os medicamentos me deixando fora de

sintonia...

― Ela está bem, sente sua falta. ― Começamos a caminhar, saindo do

quarto. ― Disse que o mundo agora é seu.

Avaliei-o, mas não encontrei mentiras em sua expressão, caso

estivesse dizendo aquilo só para me tranquilizar. Soltei um suspiro de alívio.

― Também sinto a dela. Ela me ajudou muito lá dentro, me ensinou

muita coisa. ― Meus passos eram os de uma tartaruga.

Ele ficou em silêncio.

― Como estão as outras garotas? Queria ajudá-las, mas não consegui

nem me proteger. Como vou fazer alguma coisa por elas? ― Abracei-me,

sentindo um arrepio.

― Vou cuidar disso. Sua única tarefa é ficar boa logo. ― Olhou para

mim.

Queria perguntar-lhe: como eu faria isso? Porém, não disse nada.

Samuel estava fazendo muito ao me ajudar, e, quando quisesse me contar,


iria fazê-lo.

― Não vai conseguir andar até o carro desse jeito. ― Suspirou. ―

Como não posso carregar você nos braços, vou pegar uma cadeira de rodas.

Arfei, com os olhos arregalados, ao pensar na ideia de ser segurada

por ele. Isso seria constrangedor.

― Não precisa ter medo, não vou tocar em você, prometo. Só fique

aqui enquanto pego a cadeira. ― Ele esperou que eu concordasse e saiu à

procura do objeto.

Na hora em que Samuel falou em me pegar no colo, não foi por medo

que fiquei daquele jeito, mas sim porque meu coração se aqueceu ainda mais

com sua bondade e generosidade.

Ele trouxe a cadeira, e eu me sentei.

― Vamos embora. ― Saiu, levando-me pelo corredor.

― Por que está vazio? Geralmente em um hospital ou uma clínica tem

muita gente. ― Era assim no que eu tinha ido uma vez. Ali estava a
lembrança da mulher sem rosto. Ela estava comigo em um hospital. Seria

minha mãe? Se fosse, o que deveria ter sentido com meu desaparecimento?

― É uma clínica sob nosso poder. Mandei todos saírem para que

pudéssemos passar ― revelou, dando de ombros.

― Oh. ― Ele tinha feito isso porque eu tinha medo de ficar perto de

pessoas? Sim, o fez para facilitar as coisas para mim. Minhas mãos estavam

sobre o colo, apertando-se com força.

― Você vai ficar bem. Passou por muita coisa, só precisa de tempo

para se curar. ― Havia algo em sua voz que não consegui identificar, mas

sua expressão estava neutra, traços duros e frios.

Nós não havíamos conversado sobre o que me aconteceu. Ele não me

perguntou, e eu não comentei. Ainda era doloroso pensar e falar naquele

assunto.

Saímos pela porta da frente, e olhei para vários prédios imensos,

embora o que me chamasse mesmo a atenção fosse o sol; foram raras as


vezes que o tomei, apenas quando era levada de uma das casas a outra na

fazenda. Gostava do calor dele penetrando minha pele.

― É tão bom respirar ar fresco de novo. ― Elevei meus olhos ao céu

e inspirei fundo. ― Obrigada, Senhor, por me dar outra chance.

― Muitas pessoas que são fiéis e possuem alguma fé... quando passam

por algo assim, dão as costas a Deus ― comentou Samuel.

Olhei para ele, desviando meus olhos do céu azul. Ele fitava à frente

com a expressão fechada.

― Tudo nessa vida acontece por uma razão. Posso dizer que estou

com raiva? Sim, estou. Dizer que minha fé se abalou por um segundo? Sim,

ela se abalou. É doloroso pensar nisso, no que me aconteceu. ― Inspirei

fundo. ― Mas nunca culparei Deus por qualquer coisa. Ele enviou você para

me salvar.

Samuel não respondeu. Seria por que tinha perdido sua família? Isso o

levara a desacreditar em Deus? Queria perguntar-lhe, mas segurei esse

ímpeto. Se ele quisesse me contar, já o teria feito.


Paramos em frente a um carro preto. Ele abriu uma das portas da

frente. Saí da cadeira de rodas e me sentei no banco oferecido. Em seguida,

ele saiu com o carro dali.

Muitas vezes sonhei com a ideia de que um dia seria possível estar

além das cercas da minha prisão, vendo o mundo, sendo livre... claro que em

circunstâncias diferentes, sentindo-me completa e em êxtase, não daquele

jeito, com um buraco em meu peito e com minha alma em completo

desespero.

Pensar em tudo que passei me fez entender por que Samuel não

concordava comigo. Havia uma passagem bíblica que dizia que nada

acontecia na Terra se Deus não permitisse, mas eu não O xingaria por isso.

Porém, desejava que os monstros que fizeram aquilo comigo

pagassem, não só por terem me destruído, mas também por fazerem o mesmo

com aquelas meninas.

Não me recordava de praticamente nada do passado antes de ter sido

levada para aquele lugar. Só havia uma vaga lembrança daquela mulher sem
rosto e das crianças com quem eu brincava na igreja. Sentia que era feliz lá,

mas, tirando isso, nada. Tinha sido privada de conhecer o mundo, ou ao

menos um pedaço dele. Só conseguira escapar porque dona Zaira pediu

ajuda a Samuel.

Naquele momento mesmo... vendo a beleza ali fora, não me sentia

livre, mas uma prisioneira em minha própria mente. Como ficaria livre

daquele buraco em meu coração e alma?

― Preciso parar na farmácia para comprar seus medicamentos ―

disse Samuel, tirando-me dos meus devaneios.

Pisquei e chequei ao redor. O carro estava parado em uma rua

movimentada.

― Liliane, eu sei que ver tudo isso é assustador, diferente do cativeiro

onde estava. Só quero que tenha em mente que ninguém nunca mais vai

machucá-la. Pode acreditar em mim. ― Eu podia sentir que ele dizia a

verdade, embora ainda assim fosse realmente apavorante. Não havia como

evitar essa sensação.


― Obrigada por tudo. ― Minha garganta se fechou de emoção.

Parecia que tinha um caroço nela.

― Não precisa agradecer, é um prazer ajudar você. ― Sorriu. ―

Agora vou comprar seus remédios.

Balancei a cabeça e fiquei olhando para ele até entrar no

estabelecimento. Uma atendente sorriu, educada, em seguida o levou para o

fundo da drogaria.

Varri os olhos ao redor. Nas calçadas algumas pessoas conversavam,

sorriam, abraçavam-se e até se beijavam. Como eu poderia fazer algo

assim? Como falaria com as pessoas sem surtar? Não existiria mais uma

maneira de eu ser feliz?

A dor perfurava meu peito como uma navalha cega, rasgando-me. Era

pior que o vazio que eu vinha sentindo.

Tomada por essa miríade de emoções, fechei os olhos, deixando as

lágrimas jorrarem. Esperaria em Deus, confiando que Ele me ajudaria a

enfrentar o desconhecido e meus demônios.


Samuel

Após comprar os remédios, voltei ao carro, mas parei na calçada ao

ver Liliane de olhos fechados e com o rosto molhado. Nessa hora, quis matar

da pior forma possível todos que a machucaram. Era óbvio que morreriam

aos poucos, mas desejei matá-los naquele momento. Era uma pena que eu

não podia simplesmente fazer meu desejo ser realizado.


Ainda assim, não me parecia suficiente rasgá-los aos pedaços, fazendo

os malditos sofrerem, não ao ver a dor dela naquele instante. Seu sofrimento

mexia com algo em meu peito, deixando-me inquieto e furioso com todos

aqueles filhos da puta.

Respirei fundo e esperei um pouco até ela se controlar. Talvez chorar

a ajudasse a aliviar o que estava sentindo. Eu não sabia, fazia anos que não

chorava, provavelmente desde que perdi minha família. Não conseguia mais.

Não havia nada em meu peito, além de abismo e escuridão. Mesmo sentindo

certas emoções, acreditava que não passaria disso.

Havia outro motivo para eu não querer me aproximar dela naquele

momento: temia que entrasse em pânico. Não sabia o que faria quando

precisasse sair. Na hora em que entrei no quarto e a vi encolhida e agarrando

a coberta tão apertado como se sua vida dependesse disso, percebi a

extensão do seu medo.

Puxei uma respiração funda, tentando me controlar, assim ela não

notaria o quanto me afetava vê-la daquela forma. Fazia tempo que eu não me
sentia assim, tomado por uma sensação desesperada de proteção. A última

vez tinha sido quando perdi quem mais amava.

Queria poder virar as costas e ir embora o quanto antes, assim não

correria o risco de me importar mais do que uma obrigação. Não podia

deixar que a história se repetisse, importar-me com alguém e depois perdê-

lo, como aconteceu no passado.

Nesse momento, eu tinha duas lutas pela frente: primeira, acabar com

os homens que a machucaram; segunda, ajudá-la com os demônios em sua

mente e não deixar que se perdesse no caminho.

Liliane respirou fundo e limpou os olhos. Quando notei que ia virar a

cabeça em minha direção, fingi olhar algo à direita, assim ela não me

pegaria a observando e não ficaria constrangida, o que não devia acontecer

nunca, mas eu não queria arriscar.

Minha atenção se voltou para ela, que encontrou meus olhos. Os seus

tinham tanta confiança em mim. Céus, era algo que eu não merecia.
Prossegui e entrei no carro, deixando a sacola com os remédios no

banco de trás. Notei seus olhos vermelhos, mas ela os desviou, fitando a sua

janela, talvez por não querer que eu visse algo.

― Não sinta vergonha de chorar. Às vezes isso ajuda a aliviar o que

está sentindo. ― Recordava-me de que senti isso quando acordei no hospital

anos antes e chorei nos braços da minha avó.

― Você chora também? ― indagou com a voz rouca, virando a cabeça

em minha direção.

― Sim, às vezes ― menti. Ela não precisava saber que eu não me

emocionava àquele ponto, que não havia nada em meu peito que me

permitisse externar daquele jeito, embora isso pudesse estar mudando com a

chegada dela. Pensei que meu coração estivesse morto, mas parecia que

estava sendo ressuscitado de alguma forma.

Eu estava me esforçando para não deixar essas emoções me

dominarem. Nesse momento, a única coisa que precisava ter em mente era
vingança, tanto a minha como a da Lily, bem como a recuperação da menina

a ponto de poder realizar seus sonhos.

― Obrigada. Sei que está fazendo muito ao tomar conta de mim,

quando não tem nenhuma obrigação ― sussurrou. ― Está fazendo tudo isso

só porque Zaira pediu.

Não a corrigi. Zaira pensava que Matteo estava tomando conta de

Liliane, o que não era o caso. A senhora não tinha nada a ver com meu

desejo de ajudar a garota; isso vinha do mais profundo do meu ser, e eu não

podia ir contra essa vontade. Poderia dizer que meu chefe havia mandado,

mas no fundo estaria mentindo; fiz por mim mesmo.

― Eu pensava que, se um dia saísse daquele lugar, seria livre, voaria

como uma águia. Mas não me sinto assim. ― Olhou para mim com

esperança. ― Será que algum dia conseguirei andar sozinha por aí sem...

Eu não sabia o que dizer a princípio. Evitava assuntos sentimentais a

qualquer custo. Contudo, não podia deixá-la pensando que nunca se

libertaria do jugo em sua mente, porque acreditava que sim, ela conseguiria.
― Você está livre para fazer o que quiser, gritar para o mundo, fazer

coisas que nunca fez e tudo o que sonhar. Mas seu medo é compreensível. Só

dê tempo a si mesma.

― E se eles aparecerem e quiserem terminar... ― Sua voz falhou, um

pavor nítido tomando-a.

― Isso não vai acontecer ― afirmei. ― Cuidarei de todos eles.

Nenhum chegará a você, confie em mim. Entretanto, não posso lutar contra os

demônios em sua cabeça.

Ela me olhou com um brilho intenso e esperançoso que fez meu peito

sacudir.

― Sei que não é fácil enfrentá-los, mas vou conseguir uma

profissional que ajudará você com isso. Pode ser? ― Não queria lhe impor

nada.

Assentiu, mas percebi o seu medo ao se imaginar falando com alguém.

― Não precisa chegar e conversar logo de cara, basta levar seu

tempo. Ninguém obrigará você a falar nada ― afirmei enquanto dirigia para
casa.

Tinha conversado com minha avó sobre Liliane e o que lhe aconteceu e

dito que ia levá-la para nossa casa, assim ela me ajudaria a tomar conta da

menina. Vovó adorou a ideia.

― Lhe agradeço por isso. ― Ela ficou olhando pela janela. Deduzi

que estava absorvendo tudo que perdeu presa naquele maldito lugar.

Passou anos sonhando com a liberdade. Havia mudado muita coisa

desde quando ela era criança, independentemente de onde morava antes e do

que recordava.

Mais tarde eu teria que lhe perguntar isso. No momento, precisava

focar em sua cura, tanto a física quanto a emocional.

Deixei-a com seus pensamentos até que parei na rua de casa. Percebi

quando ela piscou surpresa.

― É uma praia? ― Apontou, parecendo extasiada.

― Sim, de um lago. ― Avaliava sua reação e seus olhos brilhantes. ―

Esteve em uma alguma vez?


― Lembro que sim, mas não me recordo de onde nem quando. ―

Franziu a testa. ― Não consigo recordar praticamente nada do meu passado

antes de parar naquele lugar.

Assenti, odiando quem a havia sequestrado ou comprado e, no último

caso, vendido.

― Irá recordar com o tempo. ― Assim que ela ficasse melhor, eu a

levaria a um neurologista para saber mais sobre sua amnésia de infância.

― Você mora aqui? ― Ela olhava a casa como se ela fosse de um

conto de fadas ou alguma baboseira assim.

― Sim. ― O imóvel da cor da areia da praia possuía três andares.

Saí do carro e abri a porta para ela. Peguei seus remédios e algumas

roupas que tinha lhe comprado antes de acertar minha conta com Aguiar.

Poderia tê-las dado para ela na clínica, mas não sabia se ela aceitaria se

trocar com alguém ao seu lado. Em casa, teria mais liberdade e poderia se

sentir mais relaxada. Ao menos, isso era o que eu desejava.


Liliane saiu, e prosseguimos para dentro do imóvel devagar, enquanto

ela observava ao redor. Podia ver que ela estava com um pouco de dor, mas

tentava esconder.

A sala possuía um sofá na forma de L no canto, uma poltrona em frente

à parte menor dele, uma TV na parede central e outros móveis e objetos de

decoração que a vovó adorava. Ela seguiu até uma estante de livros.

― Gosta de ler? ― Era evidente, pela forma como olhava para

aqueles livros, que era uma leitora.

Eu precisava que ela relaxasse, estava muito tensa.

― Lia quando dona Zaira trazia alguns livros para mim ― respondeu.

Assenti e indiquei a porta de um cômodo.

― Como você não pode subir as escadas ainda, vou deixá-la no quarto

de baixo.

― E você, onde dorme? ― sondou, parecendo preocupada, com o

quê, eu não sabia. Será que temia que eu ficasse perto dela à noite?
― No último andar. ― Eu a avaliava para saber o que estava

pensando. Abaixou a cabeça. ― O que foi? Pode me dizer qualquer coisa.

― É que é tão longe. ― Fitou a parede de vidro da sala, através da

qual dava para ver a rua e o lago.

― Liliane, todas as paredes de vidro são à prova de bala. Ninguém

entra aqui sem os códigos do sistema de alarme, só vovó e eu os temos. Aqui

é seguro. ― Coloquei o alarme e troquei o vidro das paredes para proteger

minha avó caso alguém atacasse a casa, embora uma pessoa tomasse conta

da segurança dela. Poderiam me chamar de maníaco por controle, mas

gostava das coisas bem-feitas, ainda mais a respeito da proteção de pessoas

com quem me importava.

Liliane pareceu relaxar um tanto.

― Agora precisa se deitar um pouco e tomar os remédios. ― Fui até a

cozinha, peguei um copo d’água e lhe entreguei junto aos comprimidos.

Após ela tomar os medicamentos, levei-a para o quarto em que ficaria,

onde tinha uma cama de casal.


― Deite-se um pouco ― pedi.

― Preciso de um banho, eu apenas me limpava com toalhas

umedecidas no hospital. ― Corou, entregando-me o meu blazer. ― Mas meu

corpo só quer uma cama para relaxar os meus músculos rígidos.

Peguei a peça de roupa e a pendurei no meu antebraço.

― Não vi a sua avó. ― Sentou-se sobre o colchão e se deitou,

puxando uma coberta sobre suas pernas.

― Ela mandou mensagem dizendo que tinha ido ao mercado ― menti.

Eu havia pedido que vovó não ficasse visível quando a trouxesse, ao menos

no primeiro momento. Depois apresentaria as duas. Achei melhor deixar

Liliane relaxar antes. ― Então descanse um pouco. Quando estiver melhor,

você toma o banho. Coloquei uma cadeira no banheiro, assim, se você se

sentir cansada, pode se sentar nela.

― Obrigada por hoje, por tudo ― agradeceu-me.

― Não precisa me agradecer por nada. Agora descanse. ― Virei-me

para sair, mas ela me chamou. ― Sim?


Mordeu o lábio por um segundo.

― Pode ficar até eu dormir? ― Sua voz tremeu. ― Não quero ficar

sozinha, tenho medo. Então, se puder, fique comigo.

― Claro, mas está segura aqui. ― Sentei-me na poltrona perto da

janela.

― No fundo, eu sei, mas... ― Fechou os olhos um segundo.

― Entendo. O subconsciente não deixa pensar o contrário. ― Apontei

para o rosário em seu pulso. ― Se por acaso acordar e eu não estiver aqui,

toque nele e respire fundo, acredite que voltarei.

Eu não sabia ao certo o que fazer, mas aproveitei para usar a fé dela;

se Liliane acreditava no Deus em que um dia eu havia acreditado, então

podia reunir forças, ainda que, mesmo tendo fé, o pavor a tomasse.

Seus olhos se arregalaram de medo com a possibilidade que

apresentei. Eram tão lindos, mesmo cheios de terror.

Porra! Eu não poderia ficar ali 24 horas por dia. O que faria?

Tínhamos que resolver aquele impasse.


― Isso não está ajudando. ― Levantei-me, saí do quarto e fui até a

gaveta da sala. Peguei um celular e uma pulseira com localizador que

comprei no dia anterior. Pensava em dá-los a ela depois, mas entendi que

precisava antecipar as coisas.

Quando voltei, ouvi-a fungando.

― Está chorando? ― Fui até perto da cama, avaliando seu rosto.

Ela se encolheu, de olhos fechados.

― Não, mas você saiu. Pensei que...

Sua voz... Maldição! Isso me atingiu como uma marreta. Ela pensou

que eu simplesmente iria embora assim? Fiquei puto da vida, não com ela,

mas comigo mesmo, por ter sido uma besta.

― Eu não ia sair sem falar com você. Pode ser que isso aconteça às

vezes, porque tenho que trabalhar. ― E matar dolorosamente quem te

machucou, pensei. Então pedi gentilmente: ― Liliane, olha para mim.

Ela o fez, mas seus olhos estavam temerosos.

― Queria te dar isso, por isso saí. ― Abaixei-me ao lado da cama.


― Uma pulseira? ― Franziu a testa.

― Tem um GPS nela. Posso colocá-la em você?

Ela assentiu, estendendo o braço do rosário. Prendi a pulseira em seu

pulso ao lado dele.

― GPS? ― Olhou a peça. ― Não me lembro de ter ouvido esse nome.

O que é?

― É um localizador. Aqui... ― Peguei meu celular e abri um

aplicativo. ― Está vendo esse ponto? Mostra onde você está. Então, se um

dia você sair ou alguém a levar para longe, vou saber onde está e trazê-la de

volta.

Ela arfou com um novo medo, então me apressei em explicar:

― Não precisa temer, jamais vou deixar alguém a machucar

novamente, está protegida aqui. Só estou lhe mostrando que eu a encontraria

onde quer que você estivesse, entende?

Ela piscou e assentiu, depois olhou a pulseira.


― Também deixarei esse celular com você. ― Dei-lhe o telefone que

tinha comprado para ela.

― Os guardas tinham aparelhos assim... ― Pegou-o, checando-o com

a testa franzida. ― Tenho a sensação de que já tive um algum dia. Seria das

minhas lembranças apagadas?

― Não estão apagadas, apenas muito bem guardadas. Você tem

amnésia. Depois vamos ver isso. Agora deixe-me te mostrar como funciona.

― Cheguei mais perto e me sentei no chão ao seu lado, mas tomei cuidado

para não a tocar. ― Aqui você o liga ― expliquei. Conforme ia falando, eu

a ensinava a usá-lo. ― O meu nome está aqui. Quando quiser falar comigo,

basta apertar aqui.

― Entendi. ― Ela respirou fundo.

Olhei para seu rosto, próximo ao meu.

― Quando estiver ansiosa ou com medo e eu não estiver aqui, ligue

para mim. Atenderei a qualquer momento. Podemos nos falar como fizemos

antes, até você se acalmar. Tudo bem?


Balançou a cabeça, parecendo aliviada. Virou-se de lado, segurando o

celular na frente do seu corpo como se fosse sua salvação.

Seus olhos eram tão intensos e agradecidos nos meus que aqueceram

mais meu coração negro. Por um segundo, travei com a vontade de beijá-la.

Tão logo esse desejo surgiu, forcei-o a desaparecer. Não iria por esse lado.

Meu foco seria ajudá-la a se curar.

Encostei-me na cama, ainda sentado no chão, e fitei a janela. Lá fora, o

sol estava se pondo.

― Está melhor? ― sondei.

― Sim. Eu lhe agradeço por me acalmar. ― Soltou um bocejo.

― Não me agradeça ― pedi novamente, mas sabia que ela não podia

evitar. ― Durma, querida, tenha bons sonhos.

Após alguns segundos, ouvi sua respiração serenar. Ela havia

adormecido. Dormia pacificamente, mais relaxada. Notei, nos dias em que

ela esteve na clínica, que tinha pesadelos, então alisava seus cabelos até sua

tormenta passar.
― Estou fazendo-os pagar por isso ― peguei-me dizendo. ― Vão se

arrepender quando eu os mandar para o inferno.

― Samuel, o meu anjo protetor ― ela sussurrou meu nome, parecendo

um louvor.

Por um segundo, congelei, pensando que ela tivesse acordado, mas

não; estava sonhando comigo.

Anjo! Não era um termo que eu usaria para se referir a mim, a não ser

que fosse Lúcifer, afinal, ele foi um anjo antes de ter sido expulso do Céu.

O meu coração se apertava com esse sentimento crescente. Não podia

me apegar a ela, apenas ajudá-la. Além disso, Liliane não estava pronta para

qualquer coisa, muito menos um relacionamento. Eu nem sequer sabia se um

dia estaria. Sua recuperação era o mais importante.

Tinha chegado a hora de focar nas meninas da fazenda e nos

miseráveis que a tocaram. Todavia, antes disso, era hora de fazer um

telefonema. Só ela poderia me ajudar com o problema da Liliane: Bonnie.


Samuel

Fazia três dias que Lily estava em minha casa, e percebi que ficar lá

fazia bem a ela. Estava se soltando mais a cada dia. Isso me deixou aliviado.

Esperava que ela logo estivesse recuperada cem por cento, ao menos

fisicamente.

Naquele momento, eu estava prestes a me vingar de outro dos homens

que a tocaram. Era para ter acertado as contas com o senador Peter Jones,
mas descobri outra oportunidade para pegá-lo em breve, então resolvi ir

para o próximo da lista: Marlon Stringer.

Bati em seu rosto, fazendo-o acordar. Piscou algumas vezes, tentando

se mexer, então gritou:

― Socorro! ― Focou em mim. ― Por favor, me ajude!

― Não posso fazer isso, afinal, foi eu quem o trouxe para cá. Sabe por

que está aqui? ― perguntei ao homem preso por correntes e dentro de um

caixão.

Seus olhos se arregalaram.

― Não fiz nada... ― interrompeu-se quando enfiei a faca em sua

perna.

Ainda bem que, com esse, eu teria o prazer de não precisar forjar um

acidente. Ele costumava desaparecer para ficar com sua amante, então

sumiria, mas não retornaria mais.

― Foi o que disse o último homem. Recorda-se de Aguiar? ― Puxei a

faca, fazendo-o gritar mais.


― Ele não teve um acidente?! ― O terror em seus olhos foi algo que

adorei ver.

― Tive que forjar isso para não chamar a atenção para mim. ― Sorri.

― Olhe como ele morreu... O seu fim não vai ser diferente. ― Peguei o meu

celular e mostrei o vídeo a ele, fazendo com que gritasse mais.

Luca apareceu na porta da tumba.

― Socorro! ― o cara começou a clamar. ― Ele é louco! Está

querendo me matar!

― Não posso discordar disso ― falei. ― E pare de gritar, porque

ninguém vai ouvir.

― Por que estão fazendo isso? ― Chorou.

Eu preferia morrer a implorar como aqueles homens faziam. Só sabiam

se impor aos mais fracos. Por que não o faziam com os mais fortes? Bando

de filhos da puta fodidos.

― Não contei ainda? ― Fingi ter me esquecido. ― Olha para ela. ―

Peguei a foto de Lily. ― Recorda-se dessa menina? Foi você e seus malditos
amigos estupradores que a deixaram assim, quase morta.

O reconhecimento surgiu em seu rosto.

― O Lorenzo a deu...

― Acho que você e Aguiar ensaiaram as mesmas falas, pois foi o que

ele disse também. Deixo dito, você tinha escolha, mas não fez a certa,

preferiu tocar nela e nas outras. Esse foi o erro que o levará para o túmulo.

― Sorri, zombando. ― O bom é que você já está em um caixão e será

enterrado vivo. Aí terá a oportunidade de se arrepender.

― Seu filho da puta! Não pode fazer isso! ― rosnou, tentando se

soltar.

― Claro que posso. Poderia facilitar para você e atirar entre seus

olhos, dando-lhe um tiro de misericórdia, mas não merece nada disso.

Merece sofrer ― avisei. Luca e eu pegamos a tampa do caixão. ― Adeus.

Nos encontramos no inferno, porque é para lá que você vai quando morrer.

Ele começou a gritar, mas seus gritos foram abafados assim que fechei

a tampa. Após isso, Moor enterrou o infeliz. Estávamos em um lugar onde


não seria encontrada nenhuma pista dele. Tínhamos alguns cemitérios

clandestinos em vários lugares. Claro que escolhi um que, caso fosse

descoberto, não pudesse ser relacionado à máfia Salvatore.

― Não podemos sumir com todos dessa forma ― informou Luca

assim que entramos no carro.

Com Aguiar, tudo ocorreu bem, ninguém desconfiou que não foi um

acidente. Entretanto, com Marlon Stringer, fiz com que desaparecesse.

Poderia torturá-lo, mas isso anteciparia sua morte, e eu não queria isso.

Aliás, se pudesse prolongar mais seu sofrimento, eu o teria feito.

― Eu sei. ― Suspirei

Aguiar tinha sofrido. Ele estava morto quando o tirei do cofre naquele

dia, e agonizara muito. Vi através das filmagens. Eu devia ser um sociopata,

porque adorei vê-lo daquela forma. Mesmo se fizessem autópsia, a verdade

não apareceria, pois, da forma como fiz, não tinha deixado qualquer pista de

que ele não tinha simplesmente se afogado. Ninguém da máfia Darkness

desconfiou de alguma coisa. Com Stringer, não seria diferente.


Dois a menos. Agora eu iria para o próximo da lista.

― Eles não mereciam morrer tão fácil assim ― resmungou Luca.

― Às vezes, para torturar não é necessário usar os punhos ou

instrumentos. Existem torturas piores, psicológicas, como as horas que

Aguiar ficou naquele cofre, vendo-o encher lentamente, e agora esse infeliz,

que está preso no escuro, seu oxigênio acabando aos poucos. Dessa forma,

os outros vão ter o mesmo destino.

Meu pai foi um homem cruel, que fazia coisas horríveis em nome

daquela seita maldita, muitas delas usando tortura psicológica. Ia sempre aos

mais fracos, era como aqueles homens a quem Lorenzo entregava as garotas,

covarde.

― O que pretende fazer agora? De qual deles vai atrás? ― sondou

Luca.

― Peter Jones. ― Eu estava esperando o momento certo para pegar

aquele, e finalmente tinha chegado.


― Ele vai estar em Port Douglas daqui a poucas semanas para

comemorar trinta anos de casado. ― O asco era evidente em sua voz. ― Um

desgraçado daquele deveria sangrar em uma vala.

― Eu sei, tem alguém em sua cola que vai ficar de olho em seus

passos para mim ― informei, pegando a rodovia para chegar em casa.

― Essa área da Austrália pertence ao Destruttores ― comentou. ―

Como pretende ir para lá e fazer o que precisa sem chamar a atenção deles?

― Peter terá um infeliz incidente. ― Ninguém suspeitaria de nada.

― Certo, mas como pretende ir a Port Douglas, já que leva quase um

dia de viagem só para ir? Com o tempo que ficaria lá para executar o

trabalho, depois a volta, teria que tirar uns quatro ou cinco dias para esse

serviço. ― Olhou-me de lado. ― Como a garota vai lidar com sua ausência?

― Merda! Não tinha pensado nisso. ― Apertei o volante, tentando

bolar um plano, mas não consegui pensar em nada, não naquele momento.

Poderia acabar com o desgraçado do Peter nos Estados Unidos

mesmo, com um tiro na testa, mas ele merecia mais do que isso, e a Austrália
seria perfeita para o que eu tinha em mente.

Porém, se eu ficasse todo aquele tempo longe dela, Liliane poderia

piorar, e eu estava sentindo uma pequena melhora. Se ao menos ela tivesse

se apegado à minha avó, poderia deixá-la sozinha com ela, mas vovó teve

que partir em uma viagem de última hora no dia em que Lily se hospedou em

nossa casa, então as duas não se conheciam ainda. Vovó chegaria dentro de

algumas horas, então talvez ainda desse tempo para elas se acostumarem

com a presença uma da outra.

― Se você quiser, posso fazer o serviço para você. Também estou

farto deles ― ofereceu Luca.

Arqueei as sobrancelhas.

― Luca, você perde o controle fácil. Se ele disser algo para provocá-

lo a antecipar sua morte, o que acha que vai acontecer? Vai acabar

esmagando o crânio do maldito. E, por mais que eu deseje o mesmo, isso não

pode acontecer. Lorenzo não pode saber que estamos ligados a isso, ou

Liliane correrá perigo. ― Dei um suspiro. ― Além do mais, preciso fazer


isso. Não sabe o que sinto ao ver o tormento e o medo nos olhos dela todo

dia.

― Então o que você fará?

― Vou pensar em alguma coisa, afinal, ele não sairá nas próximas

semanas. Vai demorar um pouco. ― Esperava encontrar uma solução até a

data da viagem.

― Tem a agenda de todos? ― Riu, sacudindo a cabeça. ― Você está

focado mesmo nisso.

― Estou puto, furioso demais por não poder massacrar todos e deixá-

los respirando por mais tempo e poluindo o ar ― falei, lacônico.

Ele me avaliou.

― Vejo você tão calmo e frio... De nós três, é o mais controlado. ―

Deu um suspiro duro. ― Embora eu seja assim na maior parte do tempo,

queria ter seu autocontrole férreo para poder lidar com meu pai.

Enzo não era um bom pai, aliás, desconhecia o que significava ambas

as palavras. A única língua que conhecia era poder e brutalidade. Éramos


brutais também, mas a diferença era que protegíamos quem amávamos e não

massacrávamos quem não merecia, ao invés dele, que, se pudesse, destruiria

quem devia proteger.

― Fui forjado assim. Precisei guardar tudo em meu peito para

conseguir viver com meu pai. ― Antes não o tivesse feito, pensei. Entendia

que foi uma forma de camuflar e lidar com meus problemas.

Não gostava de falar sobre meu passado, pois a dor me perfurava.

― Nós temos pais fodidos. Ao menos o seu não está mais respirando.

― Tinha aço em sua voz. ― Espero um dia ser a vez de Enzo.

― E Lorenzo ― comentei.

Depois disso, ficamos em silêncio até chegar a Chicago. O cemitério

clandestino no qual enterramos Stringer era a vinte minutos da cidade.

― A que horas sua amiga chega? ― perguntou Luca, mudando de

assunto. Era melhor falar disso a pensar naquela porra toda.

Bonnie já devia ter chegado a uma hora daquela. Ela ficaria um tempo

comigo até ver se conseguiria ajudar a Liliane.


― Deve estar em meu apartamento agora. ― Tínhamos combinado que

ela me esperaria lá assim que chegasse à cidade.

Antes de entrarmos em Chicago, meu telefone tocou. Na tela, o nome

do Raio de Sol brilhava.

― É o que disse. ― Luca olhou para o celular. ― Não tem como você

ficar dias fora sem que ela tenha um colapso.

Ignorei-o enquanto atendia a ligação, embora ele tivesse razão sobre

aquilo.

― Raio de Sol ― chamei assim que atendi.

Sua respiração parecia alarmada.

― Oi. ― Sua voz soou baixa.

― Está tudo bem? ― sondei.

― Acordei com a voz de um homem na casa, mas não era a sua ―

murmurou.

Podia sentir o medo em sua voz. Isso fez o sangue fugir do meu rosto.
― Só um minuto, Lily, tudo ficará bem. Minha avó chegaria hoje,

então alguém deve ter entrado para ajudá-la com alguma coisa. Você se

lembra do que eu disse? Jamais permitirei que algum mal lhe aconteça

novamente. Agora ficarei em silêncio, mas não desligue. Só um minuto. ―

Assim que ela concordou, coloquei a chamada em espera e liguei para minha

avó.

Por um segundo, cheguei a pensar que a casa houvesse sido invadida,

mas olhei os vídeos das câmeras e vi que vovó tinha chegado em casa e o

homem da casa ao lado estava ajudando-a com sua bagagem.

Quando procurei saber dele, não encontrei nada que o desabonasse.

Parecia que tinha perdido a esposa de décadas fazia pouco tempo, igual

minha avó, que perdeu o vovô.

― Samuel, acabei de chegar ― falou assim que atendeu.

― Vó? A senhora pode pedir ao seu vizinho que saia? A voz dele

deixou a Liliane nervosa ― pedi.


― Oh, Samuel! ― Podia sentir a tristeza em sua voz. ― Sinto muito,

ele apenas me ajudou com a bagagem. Mas vou cuidar disso, meu querido.

― Está tudo bem, vó, estou chegando aí daqui a pouco. ― Desliguei e

voltei à ligação com a Lily. ― Raio de Sol, daqui a pouco chego em casa.

Era minha avó. O vizinho a ajudou a levar as malas para dentro, mas ele vai

embora.

― Está bem. Acho que eu não deveria ligar para...

― Eu lhe disse: se você sentir medo, pode me ligar. Foi o nosso

combinado, lembra? ― Esperei ela concordar, então continuei: ― Uma

pessoa vai aí hoje para vê-la, para ajudá-la.

― Quem? ― Ela parecia temerosa.

― Uma psicóloga. Preciso que fale com uma. Pode ser? ― Esperava

que sim, não queria nem podia obrigá-la.

Ela ficou em silêncio por um tempo. Isso não parecia nada bom.

― Essa pessoa irá me ajudar a me livrar desse pânico? ― sussurrou.


― Sim. ― Ao menos, esse era o plano, e eu acreditava que daria

certo.

― Tudo bem, então. ― Suspirou baixinho. ― Eu quero melhorar.

Podia sentir a esperança e o desejo em sua voz.

― Você vai, Raio de Sol. ― Queria estar ao seu lado na consulta, mas

não podia. Ela precisava enfrentar aquilo sozinha. Eu não tinha certeza de

que se soltaria com a minha presença.

― Eu vou ― falou, determinada.

― Logo chego aí, não precisa temer a nada. Está segura.

Desliguei, contente por ter ouvido um pouco de vida em sua voz.

Parei em frente à boate vizinha à casa do Luca, que ficava no

apartamento no andar de cima.

― Boa sorte ao pensar numa forma de sair por alguns dias e deixá-la

― ele disse assim que desembarcou. ― Se eu pensar em algo, te aviso.

Depois de deixá-lo, fui pegar a Bonnie em meu apartamento. Ela

estava me esperando na calçada, pois eu já tinha ligado e pedido para ela


descer. Não queria subir, pois isso atrasaria minha chegada em casa para ver

a Liliane.

Bonnie era uma loira linda, e eu não falo só de sua beleza física, mas

por dentro também. Sua bondade era incomparável. Eu nunca poderia lhe

agradecer o suficiente o que ela iria fazer pela Liliane.

Sabia que existiam muitos psicólogos na cidade, eu não precisava tê-la

trazido de Barcelona, mas a única em quem eu confiava com Lily era ela. Eu

era desconfiado por natureza, e ninguém poderia saber que ela estava viva.

― Como vai, Samuel? ― Entrou no carro após colocar sua bagagem

no porta-malas.

Liguei o carro e parti.

― Bem, obrigado. Teria buscado você no aeroporto, mas estava

ocupado com um lance.

― Um lance ― repetiu, torcendo o nariz.

Ela sabia o que eu fazia, ainda assim estava ali, apoiando-me e

demonstrando sua amizade e lealdade.


― Como está Barcelona? ― Mudei de assunto.

― Linda. ― Sorriu. ― Adoro aquele lugar, nunca achei que pudesse

me sentir assim, sabe? Não depois de tudo o que passamos.

― Verdade. Passamos por muita coisa no passado, mas seguimos

nossas vidas, mesmo que um pedaço delas tenha ficado atrás para sempre.

― Soltei um suspiro duro.

Após Bonnie correr pelo milharal, conseguiu fugir. Assim que acordei

do coma e me recuperei, fui atrás dela, encontrando-a em uma cidadezinha

na Itália. O dinheiro que escondi e pedi para que ela pegasse a ajudou até eu

encontrá-la, depois a auxiliei a ir para a faculdade.

― Devemos lidar com aquilo que tanto nos atormenta. ― Olhou-me de

lado. ― Você está conseguindo?

― Isso não é sobre mim ― esquivei-me.

― Você se trancou por trás dessa fachada de concreto que ergueu à sua

volta, Samuel. Muitos fazem isso no intuito de não pensar na dor que
sofreram. ― Suspirou baixo. ― Por que não trabalha em algo menos

perigoso?

― Isso é quem eu sou, Bonnie. Não vou sair ― falei e depois

acrescentei: ― Nem se eu quisesse, teria como, porque, uma vez na máfia,

não há como sair, a não ser indo para debaixo da terra.

Talvez, quando Matteo ocupasse a liderança da organização, eu

pudesse fazer isso, mas não queria. Por mais que tivessem pessoas desleais

dentro da máfia, também havia muitos em quem eu confiava e pelos quais

daria minha vida, e eles fariam o mesmo por mim. Na máfia Salvatore,

encontrei a família que me havia sido roubada.

― Sei que não vou ter êxito nisso. ― Sacudiu a cabeça. ― Então me

conte: o que aconteceu com Liliane? Você não me disse nada de concreto.

― Não queria falar por telefone. ― Então narrei para ela tudo o que

aconteceu com Lily, seu cativeiro, a oferenda e o estupro coletivo que quase

a matou.
― Oh, Deus! Como puderam fazer tal atrocidade?! ― Seus olhos

estavam alagados.

― Há quem faça ― grunhi, apertando minha mão no volante. ― Cada

um deles vai pagar caro por isso. Aliás, já começaram a pagar.

Sua cabeça se virou em minha direção.

― Você vai matá-los? ― indagou.

― Estou cuidando disso. ― Não queria falar sobre aquele assunto

com ela, afinal, era avessa àquela vida, eu não sabia se era devido à sua

profissão ou apenas por não gostar de crueldade, ainda que aqueles vermes

imundos a merecessem. ― Acha que pode ajudar a Liliane? A única pessoa

que ela não teme sou eu.

― Vou fazer o possível. Cada pessoa tem um comportamento diferente.

É possível ela ter estabelecido esse vínculo de segurança com você por ter

salvado a vida dela. ― Bonnie agora era toda profissional.

Dei um suspiro frustrado.


― Não a salvei, foi meu chefe ― anunciei. ― Na hora, eu estava de

vigia.

― Mas se ela tem essa conexão com você, então deve ter feito algo

que a fez confiar. O que pode ter sido? ― sondou.

― Quando ela estava toda machucada e pensava que estava

morrendo... ― estremeci com as lembranças ― pedi a ela que lutasse e

voltasse, que não morresse. Não sei como, mas ela me viu a segurando.

Quando acordou, disse que lembrava de mim tentando salvá-la, então ela...

― O tem como um protetor ― completou, assentindo.

― Eu não sou...

Cortou-me:

― Samuel, você sempre teve esse lado protetor em você. Tentou nos

salvar no passado, e acredito que salvou muitos do mesmo destino que nós.

Lembro que tentava me proteger dos castigos assumindo a culpa e apanhando

em meu lugar. ― Uma lágrima solitária caiu sobre sua bochecha. ― Não só

a mim, mas fazia o mesmo a outras crianças também. Sei que, se fosse
adulto, poderia ter feito mais. Vejo que é isso o que vem fazendo agora. ―

Deu um sorriso. ― É assim que você é, não importa que seja um mafioso

com a expressão fria e sem emoção; por trás dessa fachada, sei que é mole

feito manteiga e tem um coração que vale ouro.

Bufei. Não ia discutir, pois fiz exatamente o que ela disse. Não podia

presenciá-la sendo machucada e simplesmente permitir que acontecesse. Isso

deixava meu pai puto, porque, após eu assumir a culpa na frente da igreja,

ele não podia fazer nada a não ser me dar o castigo. O que Bonnie não sabia

era que, ao chegar em casa, outro castigo me esperava.

― Deixe-a se apegar a esse vínculo entre vocês ― continuou ela,

tirando-me das minhas lembranças sombrias. ― Assim, ela terá mais forças

para lutar essa batalha. Estou ansiosa para conhecê-la.

Bonnie estava certa? Se eu deixasse assim, Liliane teria mais forças

para lutar? Esperava que sim. O que ela passou faria muitas pessoas

desistirem no caminho.
Estava ali para ajudá-la, jamais deixaria que desistisse. Se ela ficasse

fraca durante esse caminho tortuoso e tempestuoso, eu seria a sua força.


Liliane

Acordei com a voz de um homem estranho na casa. Isso me assustou,

pois nunca tinha acontecido antes nos meus dias na casa de Samuel. Como

estava com medo, liguei para ele, como havia pedido, e no final era só sua

avó e o vizinho.

Uma parte do meu cérebro sabia que eu não precisava ter essa fobia

irracional, mas, às vezes, não conseguia me controlar, era mais forte do que
eu. Por isso queria ficar boa; não queria que aquelas pessoas monstruosas

vencessem, que eu acabasse destruída. Tinha que ser forte e seria, custasse o

que custasse.

Ouvi passos fora do quarto e fiquei tensa, mas não gritei, porque

Samuel disse que era sua avó, que tinha chegado de viagem. Eu não a

conhecia ainda, mas gostaria disso.

― Oi, Liliane, sou eu, Donatella. Quero pedir desculpas por Arnold

ter assustado você. Ele só me ajudou com as malas, mas já foi embora. Não

tinha a intenção de assustá-la. ― Ela parecia preocupada do outro lado da

porta.

― Tudo bem, sou eu que peço desculpas por invadir a privacidade de

vocês assim. ― Corei, envergonhada.

― Não precisa se desculpar, querida, agora somos uma família e

protegemos uns aos outros. ― Sua voz soou cheia de emoção. ― Posso

entrar? Queria me apresentar formalmente. Prometo que não vou me

aproximar se assim não quiser.


Ela fez como Samuel, perguntou-me antes de fazer qualquer coisa;

questionei-me se ele lhe pedira para fazer isso.

Eu não queria ser uma estranha em sua casa e me esconder nos cantos,

já bastava meu interior, que estava assustado e encolhido.

― Claro que pode ― forcei minha voz a soar forte, assim não

demonstraria meu nervosismo.

A porta foi aberta, e por ela uma senhora de cabelos brancos entrou.

Seus olhos eram parecidos com os do neto, seu sorriso era gentil.

― É um prazer finalmente conhecer você. ― Como havia prometido,

ela não se aproximou. ― Você é tão linda, tem cabelos loiros como raios de

sol.

Seria por isso que Samuel me chamava assim? Não perguntei a ele

sobre isso, mas estava curiosa.

― Obrigada. ― Corei. ― Não queria que os amigos de vocês

parassem de vir aqui só por minha causa.

Fiquei preocupada que estivesse roubando a privacidade deles.


― Imagina, quase não recebo visitas, Arnold só me ajudou. De vez em

quando, algumas pessoas da igreja vêm, mas estão todas ocupadas agora. ―

Deu um de seus sorrisos gentis. ― Vou preparar o jantar, então, se quiser

aparecer na cozinha, fique à vontade.

Eu não queria magoar os sentimentos da mulher.

― Claro ― peguei-me dizendo. ― Só preciso de um banho antes.

― Se precisar de ajuda, não hesite em me chamar. ― Não vi piedade

em seus olhos. Também não a via nos de Samuel. Isso me fez relaxar.

― Obrigada por se oferecer, mas tenho tudo sob controle. ― Não

queria surtar se acaso ela me tocasse.

― Vou deixar você fazer suas coisas então. Te espero na cozinha. ―

Saiu após eu assentir, agradecida.

Suspirei com o meu coração acelerado por ter ocorrido tudo bem com

ela. Por um segundo, pensei que Samuel não queria sua avó perto de mim, e

não tiraria sua razão se a tivesse afastado, embora eu não fosse perigosa.
Donatella é tão boa quanto Zaira, pensei. E fiquei feliz que ela

tivesse gostado de mim.

Peguei um dos vestidos floridos que Samuel me trouxe e um conjunto

de calcinha e sutiã. Corei como sempre ao imaginá-lo comprando algo assim

para mim.

Fui ao banheiro, meu corpo rijo de tensão. Esse era um dos piores

momentos, porque eu não gostava de tocar meu corpo, muito menos de vê-lo

nu. Ensaboava e esfregava, tentando tirar o toque daqueles homens da minha

pele, embora não adiantasse. Isso me gerava uma onda de choro, raiva e

desgosto.

Nunca pensei que pudesse odiar partes do meu corpo daquela forma,

todos os lugares onde eles tocaram... que usaram... Esperava que a água

levasse tudo embora, e, por um segundo, levava, mas depois a ânsia e o

desespero voltavam com força bruta.

Às vezes, pegava-me a pensar: O que fiz para merecer essa

crueldade? Lágrimas escorriam dos meus olhos junto à água.


Sentia-me tão pequena. Não gostava dessa sensação devastadora.

Esperava ter forças para passar por isso. Samuel me protegia, mas até

quando? Ele não podia fazer isso para sempre. Além do mais, eu não queria

permanecer assim, dependente dos outros.

Respirei fundo e me controlei, forçando a dor na minha alma a me dar

uma trégua.

Após ter me vestido e prendido meu cabelo em um rabo de cavalo,

peguei um casaco e o coloquei sobre meus ombros, mesmo que não estivesse

com frio, então saí do quarto. Fiquei olhando para a porta dele por um

tempo. Não tinha saído daquele cômodo quando estava sozinha, só nas vezes

em que Samuel me levava até a cozinha, mas agora a dona Donatella estaria

lá.

Queria ir do lado de fora e tomar um pouco de sol, mas achava melhor

agir aos poucos.

Caminhei pelo corredor acreditando que não teria qualquer homem na

casa. Não achava que ficaria bem com a presença de um no momento. Varri
meus olhos em todos os lugares conforme seguia para a sala. Esse medo era

algo que eu não podia apenas expulsar; talvez um dia isso passasse.

Senti um cheiro bom vindo da cozinha. Não sabia quanto tempo tinha

ficado no banheiro. Durante meus dias ali, Samuel pedia comida para nós

dois.

Como não vi ninguém, segui com os pés descalços, mas hesitei na sala,

que era separada da cozinha por um balcão, e olhei para o outro cômodo,

onde Donatella estava andando de um lado a outro mexendo nas panelas.

Ela se virou e sorriu.

― Que bom que saiu um pouco. Está com fome? Tem uma musse de

morango que eu trouxe do restaurante que possuo, a fiz lá, quando cheguei de

viagem mais cedo, antes de vir para cá. Você quer um pouco? ― Indicou a

mesa na cozinha. ― Pode comer até o jantar ficar pronto.

Estava faminta, mas não saí do lugar. Estava nervosa demais.

― Quer que eu a pegue para você? ― inquiriu.

Pisquei, com um nó na garganta e emoção no peito.


― Nunca comi musse de morango ― falei, forçando meu corpo a

relaxar. ― Não que eu me lembre.

Seu sorriso era caloroso.

― É uma delícia. Samuel adora. ― Pegou uma taça e a encheu. Veio

na minha direção, mas parou. ― Posso me aproximar?

Respirei fundo, ignorando meu corpo novamente tenso. Ela é boa

demais para me fazer mal, entoei esse mantra em minha mente.

― Sim ― respondi.

Donatella veio até mim, mas não próximo o bastante, só o suficiente

para eu pegar a taça e uma colher.

― Obrigada. ― Pensei sobre o que Samuel tinha contado a ela. De

qualquer forma, não importava que ela soubesse; eu não era culpada de nada.

Aqueles monstros, sim.

― Não há de quê. ― Virou-se para a cozinha e me trouxe uma cadeira.

― Pode se sentar aqui se quiser e aprecie a sobremesa. Depois me diga o

que achou.
Após eu agradecer novamente, ela voltou para seus afazeres na

cozinha.

Sentei-me ali, um pouco chocada com sua hospitalidade generosa.

Grata, era a palavra certa para descrever como me sentia em relação a ela e

ao Samuel.

Coloquei a musse na boca e senti o creme derretendo em minha língua.

Apreciei o sabor. Não me recordava muito, mas não lembrava de já ter

provado algo mais gostoso que aquilo.

― É deliciosa ― comentei.

― Fico feliz que tenha gostado, querida. Se quiser mais, é só pedir. ―

Piscou e deu um sorriso.

Olhei ao redor dos ambientes espaçosos, mas não vi fotos de Samuel

quando criança, só dele adulto com sua avó, além de um senhor que usava

óculos e tinha bigode.

― Meu finado marido ― disse Donatella, indicando o senhor. ― Ele

era muito protetor. Samuel puxou isso dele.


Queria perguntar o que tinha acontecido com o homem, mas pensei que

isso pudesse trazer lembranças dolorosas a ela. Mesmo assim, ouvi a voz

cheia de tristeza de Donatella.

― Ele teve um infarto há alguns anos. Sua saúde era debilitada. Mas

fomos felizes juntos ― revelou tristonha, mas depois deu um pequeno

sorriso que não alcançou seus olhos. A dor em sua voz era evidente. ― Nós

amamos o Samuel, demos todo nosso amor a ele quando seus pais morreram.

Quis comentar ou dizer que sentia muito pelo que aconteceu tanto com

seu marido quanto com seu filho ou filha, porém um barulho de carro

parando na frente da casa me deixou tensa.

― É o Samuel ― informou Donatella, checando.

Relaxei, mas meu coração estava um pouco acelerado ao ouvir sobre

ele. Minutos depois, a porta da frente foi aberta, e ele entrou, parando ao me

ver sentada ali. Sua expressão era indecifrável. Não tive tempo de pensar

mais a respeito.
― Desculpe ― alguém sussurrou atrás dele, como se tivesse

esbarrado em suas costas, então se desviou e ficou ao seu lado.

Meu coração parou um segundo de bater vendo a bela loira entrar. Não

me recordava de ter visto alguém tão linda assim, mas o que me fez esfregar

a região do peito, que doía, foi ver que ela chegou com o Samuel.

Meus olhos vagaram entre eles por um momento, e minha respiração

ficou desigual, enquanto uma sensação horrível me tomava. Nunca tinha

perguntado se ele tinha namorada. Se tivesse, o que eu faria? Não tinha

certeza se ela aceitaria que eu ficasse ali, perto dele. E se quisesse me

mandar para longe?

Abaixei os olhos, não conseguindo identificar aquele novo aperto em

meu peito, tão forte que me impedia de respirar direito.

Ouvi passos se aproximando, mas não olhei. Sabia que era ele. Samuel

era o único que se aproximava o bastante; não muito, no entanto.

― Liliane, essa é Bonnie. Eu a considero como uma irmã ― ouvi-o

dizer.
Levantei a cabeça e o avaliei. Então eles não estavam juntos? Isso

tirou um peso de mim que eu nem sabia que estava sentindo. Soltei a

respiração, que também não percebi que estava prendendo.

Pela forma como ele esclareceu, parecia saber o que eu estava

sentindo, mas era impossível; nem eu sabia o que estava acontecendo

comigo.

A mulher tinha um sorriso doce.

― Um irmão que nunca tive.

Assenti, sem saber o que dizer e me sentindo tola com essa miríade de

emoções desconhecidas. Estava confusa demais. É claro que era grata a

Samuel por me ajudar, mas ele não era meu para tê-lo só para mim. E,

mesmo se fosse, não queria privá-lo do mundo lá fora.

― Vejo que está apreciando a musse da vovó. ― Bonnie foi na

direção da cozinha e abraçou a mulher. ― Amo demais! Poderia levar a

senhora para morar comigo.

― Não vai roubar a minha avó de mim ― Samuel resmungou.


― Você a teve por muito tempo ― apontou ela, indo pegar a musse e,

em seguida, provando-a. ― Nossa! Isso está uma delícia! ― Olhou para

Donatella, que parecia estar achando graça. ― Venha morar comigo.

― Ela é minha avó. ― Samuel a fulminou, mas não parecia ser uma

repreensão de verdade. Eles agiam como irmãos, discutiam e se amavam ao

mesmo tempo.

Nunca tive irmãos, ao menos não me lembrava de tê-los, embora

houvesse aquelas lembranças das crianças com quem eu brincava, uma

época feliz, mas que eu não sabia se era real ou fruto da minha imaginação.

Imaginava que ficar presa era capaz de causar ilusões. As lembranças eram

vagas, eu só via rostos, não sabia nomes, e, quando insistia em lembrar-me,

minha cabeça doía.

― Vovó, não sou sua neta também? ― Bonnie perguntou.

― Claro que sim ― respondeu a mulher, sorrindo.

― Viu? ― Ela se virou para Samuel e sorriu, e depois para a avó. ―

Se não for comigo, vou sequestrá-la.


Samuel bufou.

― Eu a trago de volta. ― Ele cruzou os braços.

Sua expressão era tão relaxada e solta que não me lembrava de tê-lo

visto assim antes.

― Não se esqueça de que agora sei lutar. Posso chutar sua bunda nos

melhores dias ― Bonnie apontou enquanto comia.

― Duvido. ― Ele revirou os olhos.

― Desculpe esses dois, querida. ― Donatella sorriu cheia de amor

por ambos.

Eu estava gostando de eles agirem normalmente, não temendo dizer ou

fazer algo perto de mim por medo de eu surtar.

Bonnie sorriu para mim como se nos conhecêssemos havia anos, e não

poucos minutos.

― Logo irei levá-la. Podemos abrir um restaurante juntas ― provocou

ela.
― Pare de querer roubar minha avó sempre que vem aqui. ― O tom

dele agora era mal-humorado.

Peguei-me rindo de sua expressão, então me assustei, porque parecia

que não fazia isso havia anos. O som saiu estranho, como se fosse de outra

pessoa.

Os olhos dos três se voltaram para meu rosto.

― Viu? Até Liliane acha que você está sendo insensível por querer

Donatella só para si. ― Bonnie piscou para mim, voltando sua atenção à

musse. Era sua segunda taça, e parecia realmente gostar.

Virei-me para Samuel a fim de dizer algo; não queria que pensasse que

eu o achava insensível, mas vi um brilho intenso em seus olhos que não tinha

visto antes.

― Gostou da musse? ― sondou, levantando o canto da boca.

― Bastante. ― Sorri para ele e Donatella. Se eu morasse sozinha,

também iria querer levá-la comigo, pensei.

Ele assentiu e apontou para Bonnie.


― Ela é psicóloga e poderá te ajudar.

Bonnie estava lavando sua taça.

― O que uma psicóloga faz exatamente? ― Eu sabia que ela iria me

ajudar a lidar com o que aconteceu, mesmo que naquele momento não

imaginasse como. Sabia que existia esse tipo de profissional, mas não

entendia sobre sua função exata e como poderia me ajudar.

― Psicólogos são profissionais que buscam entender os

comportamentos e as funções da mente do ser humano ― começou ela.

Recostou-se ao balcão, mas não se aproximou enquanto falava. A mulher

divertida tinha desaparecido, dando espaço a uma concentrada e direta. ―

Nós aplicamos métodos científicos para compreender a psique humana e

atinar no tratamento e prevenção de doenças mentais, melhorar sua

finalidade de vida.

― Posso ficar doente por causa do que aconteceu comigo? ―

indaguei. Se o que eu estava sentindo era ruim demais, imagina se eu ficasse

doente de alguma forma? Não, não podia aceitar isso.


― Se não cuidar, pode, sim.

― Quer fazer uma sessão com ela antes do almoço? ― Samuel

perguntou a mim.

Pisquei, não sabendo o que responder. Contudo, ele a havia trazido

para me ajudar, então eu não podia ir contra. Concordei.

― Vó, pode ir comigo lá em cima? ― chamou ele

Ela desligou o fogo.

― Claro, já acabei mesmo. ― Antes de subir, deu-me um sorriso

tranquilizador.

― Liliane, você não precisa temer a nada, estou no andar de cima. ―

Ele se inclinou na altura dos meus olhos; os seus estavam intensos. ― Confie

em mim.

― Confio ― assegurei. Não estava com medo. Bonnie parecia legal, e

eu acreditava que nos daríamos bem.

― Obrigado. ― Ajeitou o corpo. ― Agora vou deixar vocês a sós.


Meus olhos o seguiram enquanto ele subia as escadas e desaparecia.

Tentei deixar minha mente e meu corpo calmos. Era hora de enfrentar meus

problemas. Não queria ficar doente e à mercê dos outros. Se havia um

tratamento, eu precisava me esforçar e conseguir êxito.


Liliane

Respirei fundo e olhei para Bonnie, que se sentou no sofá em frente a

mim.

― Pode me ajudar a não ter medo? ― Ainda segurava a taça vazia em

minhas mãos.

― Vamos tentar. Agora pode me dizer qual seu medo? Assim

começamos a trabalhar por aí ― pediu.


― As vozes dos homens... ― respirei fundo, estremecendo ― que me

tocaram, o que disseram que fariam comigo.

Era difícil conversar, mas eu precisava melhorar. Então me esforcei

para continuar:

― Tenho pesadelos sobre aquela noite. E, durante o dia, as

lembranças invadem minha mente. Hoje ouvi a voz do vizinho, então elas me

invadiram como um tsunami de novo. ― Encolhi-me por dentro.

― Está segura agora ― assegurou. ― Nenhum deles irá chegar perto.

― No fundo, eu sei, mas meu corpo e minha mente reagem antes que

eu possa controlar. ― Era verdade, era mais forte que eu.

― Pode me dizer por que confia em Samuel? ― ela perguntou,

avaliando-me.

Não consegui detectar que ela já soubesse. Talvez Samuel não lhe

houvesse dito tudo.

― Eu estava morrendo, ao menos pensava que sim... ― Encarei a

janela de vidro. ― Porque já tinha desistido, não ligava se morreria ou não.


No fundo, pensava que seria um alívio se realmente morresse, sabe?

― Ainda pensa assim?

― Não, foi só naquele momento. Esse vazio que se estende dentro de

mim é profundo, mas Samuel me dá forças. Ele me ajudou quando mais

precisei.

― O que mudou?

― No meu delírio, ouvi a voz de Samuel me pedindo para lutar e não

desistir, então consegui enxergar seu rosto através da névoa. Pensei que

fosse um anjo me salvando ou levando minha alma embora. ― Suspirei,

triste. ― Nunca ninguém se importou, então, quando ele implorou para eu

não desistir, meu coração inflou.

― Então você o tem como uma âncora? ― Ela ficava atenta a tudo o

que eu falava.

― Não sei, mas, perto dele, essas vozes em minha cabeça não me

atormentam tanto ― sussurrei. ― Como uma TV ligada. ― Gesticulei com o

queixo na direção da televisão na sala. ― Mas passando só filmes


assustadores. ― Lembrava-me vagamente de ter assistido a um filme de

terror uma vez quando criança e que tive medo. Atualmente o que sentia era

muito pior do que isso. Nos flashes que tinha do meu passado, eu sentia que

havia feito muitas coisas, como ir à escola.

― Entendo. Então o que se lembra de quando era criança? ― inquiriu.

― Nada concreto, só flashes de pequenas coisas aqui e ali. No

começo foi pior, pois, quando abri os olhos e me vi presa naquele lugar,

entendi que estava sem nenhuma lembrança. Nada, tudo vazio. Foi apenas de

alguns anos para cá que passei a ter esses lampejos de memória. Mas, após o

que aconteceu comigo, as lembranças estão mais frequentes, e isso faz doer

minha cabeça. ― Senti meus olhos úmidos. ― Também me recordo de uma

igreja.

― O que tinha lá que a fez se lembrar? ― Tinha algo em sua voz que

não consegui decifrar, diferente do que havia sentido poucos minutos antes.

― Havia crianças; uma menina menor que eu, de olhos claros, ao meu

lado, e cinco meninos. Mas o que aparece mais em minha memória é um de


olhos claros, da cor dos meus. Brincávamos de esconde-esconde muitas

vezes. Há uma mulher loira, mas não consigo recordar seu rosto, porém ela

parece gostar de mim. ― Pisquei. Seriam eles a minha família?

― Essas lembranças são da cidade em que morava antes de ter sido

levada para onde estava?

Tentei lembrar, mas não consegui recordar de onde havia sido ou

sobre as outras imagens.

― Não sei, mas sinto que não é o mesmo lugar ― comentei. ― Não

me recordo.

― O que mais se lembra dessa igreja?

― O padre pregava no altar. As palavras dele eram bonitas. ― Fiquei

comovida com essa recordação.

Minha cabeça começou a doer um pouco.

― E das crianças, o que se lembra?

― Um dos meninos era mais protetor que os outros, com a menina

também, mas era mais comigo: “Enquanto eu viver, você nunca será
machucada.” ― Pisquei, aturdida. ― Não me lembrava dessa frase até

agora.

― Acredito que sejam suas memórias. Acho que ou esqueceu por ser

jovem, já que mencionou que aconteceu quando pequena, ou por ter passado

por algo traumático.

Tentei recordar, mas não consegui, o que me fez gemer de frustração.

― Não force suas lembranças, elas vão retornar com o tempo ― disse

em tom brando.

― Está me dizendo que algo mais traumático pode ter acontecido,

além do que sucedeu naquela fazenda? ― A dor me perfurou, impedindo-me

de respirar um segundo em razão das lembranças atormentadas.

― Não acho que seja algo pior do que isso, mas foi forte o bastante

para traumatizá-la. Pode ter sofrido uma lesão que a fez perder a memória.

Mas isso é só uma hipótese. Acho que precisará fazer alguns exames ―

deduziu. ― Se ao menos soubesse a cidade em que morava ou... o nome de

alguém.
― Só as imagens e algumas falas, mas nada específico a ponto de

identificar onde morei. Não sei como fui parar lá, se fui raptada. E, se fui, o

que meus pais não devem ter sofrido em todos esses anos? Lembro que sofri

ao ficar trancafiada lá, mas não me deixei vencer, tinha sonhos de ser livre.

Entretanto, agora não posso passar da porta. ― Minha voz soou amarga no

final.

― Você vai conseguir. ― Sorriu. ― Todos nós vamos estar aqui ao

seu lado para ajudá-la.

― Queria acreditar nisso ― sussurrei.

― Você verá. ― Ficou de pé. ― Agora vamos comer, estou realmente

faminta pela comida da vovó. Ela é uma especialista na cozinha.

Franzi a testa.

― Não vai me perguntar mais coisas? ― sondei.

― Liliane, teremos mais sessões no decorrer das semanas, leve seu

tempo. Vamos trabalhar em cima disso aos poucos. ― Foi na direção da

cozinha.
― Oh... ― Pensei que tivesse que falar mais sobre o que me

aconteceu, mas estava aliviada por ter mais um pouco de tempo. Não sabia

se conseguiria fazer isso sem sucumbir.

Ela parou no meio do cômodo e olhou para a escada.

― Devemos chamar os dois? ― Foi até o pé da escada e gritou: ―

Terminamos, podem voltar! ― Então me olhou. ― Se sinta livre para fazer o

que quiser aqui, inclusive colocar a vasilha na pia. ― Indicou a taça no meu

colo.

Respirei fundo. Podia fazer isso, tinha que tentar. Não queria depender

de ninguém. Um dia seria forte o bastante para fazer acontecer.

― Que tal fazermos assim... ― Bonnie foi até uma bolsa e pegou uma

caderneta e uma caneta. Fiquei olhando-as, sem saber o que ela queria com

isso. ― Toda vez que fizer um avanço, por menor que seja, quero que

desenhe um coração e o que fez. Assim, conversaremos sobre isso nas

próximas sessões.

― E se eu não conseguir ter nenhum? ― indaguei, mordendo o lábio.


― Então não coloque nada. Embora eu acredite que terá. Você falou

com Donatella e comigo, então são dois corações. Creio que terá mais para

desenhar no decorrer da semana. ― Lançou-me um sorriso tranquilizador e

verdadeiro.

Levantei-me e caminhei até a pia, demorando um pouco para fazer o

trajeto. Ouvi passos e evitei ficar tensa. Sabia que era Samuel, pois suas

passadas eram mais pesadas. Virei-me e encontrei sua atenção em mim.

Sorri, tentando não corar com sua força magnética e sua aura intensa.

― Mais dois corações ― ouvi Bonnie dizer, fazendo-me desviar dele

para ela, escorada no balcão.

Encarei a caderneta e a caneta sobre a mesa.

― Você veio até a cozinha e sorriu ― indicou.

Peguei os objetos e marquei os avanços como ela pediu.

― Ótimo! Agora preciso comer a comida de vovó, estava sentindo

falta dela. ― Passou por mim sem me tocar, mas fiquei tensa. Parou ao meu
lado. ― E, quando reagir assim, fará um coração, mas colocará um traço

sobre ele.

― Assim como? ― inquiri, embora soubesse.

― Ficar tensa, chorar, ter uma crise, pesadelos ou algo do tipo ―

respondeu e foi até o fogão.

Saí da cozinha e fiquei perto do Samuel, que avaliava meu rosto.

― Ocorreu tudo bem? ― sondou.

― Sim, ela é boa. ― Apertei a caderneta após colocar o traço no

coração, além do motivo.

― Bonnie tem seu próprio jeito de fazer as coisas. ― Tinha carinho

em sua voz.

― Gosto dela ― sussurrei. ― De sua avó também.

Chequei ao redor para ver se a via, mas não a vi descendo a escada.

― Ela já vai descer, foi até o terraço pegar umas roupas que tinha

deixado ao sol ― respondeu ele a uma pergunta que não fiz. Tinha me

esquecido de como me lia fácil.


― Sol? Eu queria senti-lo na pele, mas... ― Olhei para fora através da

janela. Não tinha certeza se estava pronta para trocar de lado ainda.

― Se não tiver mais nenhuma dor, posso te levar lá em cima para fazer

isso ― ofereceu.

Sorri.

― Não está doendo. Ainda me sinto rígida, mas vai passar. Só preciso

me movimentar mais. ― Adorava assistir ao sol se pondo da janela do

quarto em que ficava no cativeiro.

― Perfeito. ― Sorriu.

Ele não era de sorrir muitas vezes, mas, quando o fazia, era lindo.

Essa observação fez meu coração acelerar e meu rosto esquentar. Ficamos

em silêncio um momento, até que Donatella desceu.

― Vou ajeitar a mesa ― disse-me com um sorriso.

― Já estou fazendo isso ― Bonnie informou.

Mordi o lábio, querendo ajudá-las, mas não consegui me mexer.

― Passos de bebê, Raio de Sol ― ouvi Samuel dizer ao meu lado.


― O quê? ― Olhei para ele.

― Você quer ajudar, mas ainda se sente retraída ― declarou.

― Você lê mentes? ― Suspirei, porque ele estava certo, não podia

fazer tudo de uma vez, mesmo que uma parte de mim desejasse isso.

Riu, uma risada rouca e gostosa que me deixou fascinada.

― Não, mas sou um bom leitor de expressão corporal e facial ―

esclareceu.

― Pare de monopolizar a Liliane, e venham comer ― Bonnie o

repreendeu.

― Sabe, estou pensando em te mandar de volta ― resmungou ele.

Arregalei os olhos, porque não queria que ela fosse embora.

― Não vai, me adora demais para isso ― afirmou e depois seu tom

soou provocativo: ― A não ser que eu leve a vovó e, como bônus, a Liliane.

― Olhou-me. ― Quer morar comigo?

Não sabia se ela estava brincando ou não, mas, antes de eu pensar em

uma resposta, ouvi a voz do Samuel:


― A Lily não vai a lugar nenhum com você ― praticamente rosnou. ―

Nem minha avó.

Eu não seria útil lá fora agora, de qualquer maneira, pensei.

Entretanto, tinha fé que seria um dia.

― Quer vir se sentar com a gente? ― chamou ele, mais calmo. ― Se

fizer isso, eu a levarei lá em cima para ver o sol.

Eu já estava ali, então podia fazer isso. Concordei e me sentei perto

dele. Dona Donatella e Bonnie se sentaram nas extremidades da mesa, tão

longe de mim quanto puderam.

Por um segundo, eu quis pedir que ficassem mais perto, mas não

consegui dizer nada.

― Quer que eu sirva um prato para você? ― Samuel perguntou.

― Obrigada, eu mesma faço isso. ― Não queria que ele fizesse tudo,

então peguei o prato e eu mesma me servi as porções que comeria, depois

me sentei novamente. Juntei minhas mãos e rezei, agradecendo o alimento;

fazia isso desde criança, na fazenda, mas sentia que esse comportamento
vinha das minhas lembranças perdidas. Abri os olhos, deparando-me com

todos me observando.

― Desculpe ― sussurrei, corando.

― Sem problemas, querida, faça como desejar. Sinta-se em casa ―

Donatella falou. ― Você aprendeu a rezar assim quando pequena ou onde

estava?

― Não sei. Mas deve ter sido na igreja a qual recordo... ― Franzi o

cenho, confusa.

― Recorda-se de uma igreja? ― Donatella se serviu. ― Se não quiser

falar sobre isso, não precisa.

― Tenho lembranças de minha infância, embora não me recorde de

tudo. Algumas memórias estão voltando, mas, sempre que tento me lembrar

de mais alguma coisa, minha cabeça dói. Só lembro de rostos, nada de

nomes.

― Vamos deixar para falar sobre isso depois. ― Donatella sorriu. ―

Agora coma, querida.


Assim fizemos. Ninguém tocou mais no assunto, e fiquei grata. Forçar

essas recordações fazia minha cabeça doer. Essa conversa me fez pensar se

eu havia tido aquela família que vivia em minhas lembranças. A mulher sem

rosto parecia me amar, bem como as crianças, principalmente o garoto de

olhos azuis.

Após terminar de comer, Donatella e Bonnie foram para a pia, lavar e

secar a louça. Peguei meu prato, esperando para eu mesma lavá-lo, mas

Samuel tirou-o das minhas mãos e o colocou na pia.

― Deixe que as duas limpem a cozinha. Vou levá-la ao terraço para

pegar um pouco de sol.

Olhei para elas.

― Vá. Na próxima vez, você ajuda. ― Bonnie piscou.

― Isso, querida ― Donatella assentiu.

Depois disso, deixei Samuel me guiar até o andar de cima. Havia

muitos lances de escada, e isso me deixou ofegante.

― Se estiver sentindo alguma dor...


― Não é dor, acho que é falta de treino. ― Interrompi-o. ― Sua vó

sobe essa escada todo dia? Se subir, eu tiro o chapéu para ela.

Ele riu.

― Tem uma mulher que limpa aqui em cima. Vovó só vem quando

quer. ― Paramos em frente a uma porta. ― Esse é o meu quarto. Ali é o

último lance para o terraço.

Seguimos por onde indicou, e respirei fundo assim que chegamos ao

lugar. Nele, tinha uma piscina e uma banheira pequena em um canto, rodeada

de madeira, a que se tinha acesso através de degraus.

― Aquela é uma jacuzzi ― respondeu ele, seguindo meu olhar.

A vista dava para o lago à nossa frente.

― Ali, nós assamos carne de vez em quando. ― Apontou para uma

área coberta.

― Nossa! Este lugar é lindo! ― Fiquei embasbacada.

― Sente-se aqui. ― Apontou para uma das cadeiras perto da piscina e

depois para a área coberta. ― Ou quer ir para a sombra?


― Aqui serve. ― Deitei-me na cadeira de praia, olhando para o céu

azul. Respirei fundo. ― Vendo essa beleza, me sinto ainda mais grata por

estar viva, por Deus ter me dado mais uma chance de respirar.

Fechei os olhos um instante, absorvendo tudo.

― Não entendo... Ele não a protegeu ― Sua voz soou baixa e um tanto

sombria.

Olhei para Samuel de pé ao meu lado.

― Você parece desconcertado com minhas palavras. ― Examinei-o.

Talvez se sentisse assim pelo fato de ter perdido a sua família. ― Uma

tragédia tanto pode levar você a crer mais em Deus como pode fazer você

virar as costas para Ele. Escolhi o primeiro.

Perguntava-me se ele tinha escolhido a segunda opção ou se nunca

havia frequentado uma igreja.

― Ele tem o poder de nos livrar de muitas coisas, mas não o faz... Não

que eu mereça algo dele agora, mas você merecia e... ― Não terminou.
― Pode ser. Mas a vida é assim. Não mereço mais que outra pessoa,

tudo faz parte do destino, das linhas que foram escritas antes de nascermos.

Ao menos penso assim. ― Respirei fundo. ― Posso ter passado e vivido o

inferno, e sinto as consequências disso até agora, mas sou grata a Deus por

ter enviado você para me ajudar a passar por tudo. Muitos não têm essa

dádiva.

Ele ficou em silêncio, mirando o lago, imerso em pensamentos.

― A vida é curta demais para a desperdiçarmos com ódio e amargura

do mundo. ― Vi uma águia sobrevoando o local. Um dia, eu seria livre. O

meu corpo podia até ser, mas minha mente ainda não estava liberta.

― Você é boa demais... ― Interrompeu-se com um suspiro.

No que ele estava pensando? Não perguntei, só esperava que visse a

beleza, o sol, as maravilhas que o mundo tinha a oferecer. Samuel podia

pensar que eu estava sendo leviana, mas não estava. O que aqueles homens

fizeram tinha rasgado minha alma, destroçara-me de forma que eu não sabia
se seria completa um dia, porém era realmente grata por tudo que estava

vivendo agora.

― Quero que todos paguem pelo que fizeram. Tem a justiça dos

homens e depois vem a de Deus ― finalmente falei. ― Não queria que

nenhum deles ficasse impune. Mas quem é capaz de ir contra a máfia?

― Eles vão pagar caro ― disse ele em um tom de voz que me causou

calafrios. Eu já tinha ouvido esse tom antes, mas na hora estava dolorida e

não notei realmente a emergência em sua voz como naquele momento.

― Vai atrás deles? ― Preocupei-me que isso lhe trouxesse problemas.

― Sim, mas acho melhor você não saber sobre isso. Só foque em se

curar.

― Você é da máfia. ― Não era uma pergunta; eu sabia disso havia

muito tempo. ― Não vai ter problemas ir contra seu chefe? Zaira disse que,

se alguém faz isso, acaba morrendo. Não quero que nada aconteça a você.

― Não se preocupe, o filho do capo quer destruir o pai, pois não é

como ele, não faz o que aqueles vermes fazem naquele lugar. ― A verdade
brilhava em seus olhos. ― Ficarei bem, e você também.

― Obrigada por ser sincero comigo. ― Absorvi nossa conversa

enquanto admirava aquela vista.

― Sempre serei sincero com você ― prometeu.

Confiava nele, não importava o que fazia da vida.


Samuel

Já fazia três semanas que Liliane vinha se adaptando à minha casa, o

bastante para andar por todo o imóvel, só não saía porta afora. Isso viria

com o tempo. Suas sessões com a Bonnie estavam indo bem, ainda que eu

soubesse que, em razão do que ela passou, levaria muito tempo para se curar

ou, ao menos, conseguir seguir em frente com sua vida, talvez anos.
― O que vai fazer em relação ao senador? Amanhã, ele estará em Port

Douglas. ― apontou Luca. ― Você não vai para lá?

Tínhamos acabado de chegar da fazenda, ou melhor, do antro dos

infernos onde meninas viviam presas e eram dadas em sacrifício. Ainda bem

que isso não aconteceria de novo por um longo tempo. No momento,

estávamos dentro do carro parado. Eu iria embora, enquanto eles entrariam

na boate.

― Por que Samuel não iria? Você e eu não podemos viajar agora ―

disse Matteo ao primo e depois a mim: ― Você pode ficar uns dias fora.

Meu tio anda desconfiado de alguma coisa, ele não acredita que toquei na

menina antes de ela morrer como fiz acreditarem.

― Ele desconfia que Liliane está viva? ― Um medo desconhecido se

apossou do meu peito.

― Não, só que estou enganando meu pai. Mas você poderia tirá-la

daqui por uns dias, só por garantia. Leve sua avó também. Podemos dizer
que ela passou mal no trabalho, e você a levou para tirar umas férias na

Itália, assim ninguém suspeitaria se acaso fosse para a Austrália.

Olhei para ele e sorri.

― Pensando como capo. Gostei dessa ideia. Durante essas semanas

fiquei tentando encontrar uma solução para o problema de me afastar da

Liliane, mas não consegui. Acho que tinha muita coisa na cabeça.

Após minha conversa com Liliane no terraço, concluí que aquela

menina, que foi machucada de uma forma tão cruel e que devia odiar a todos,

não odiava; havia bondade demais nela para tal sentimento. Acreditava que

ela gostaria que aqueles estupradores pagassem por seus crimes na cadeia,

mas, se dependesse de mim, o fim de todos seria mil vezes pior.

― Vou conversar com minha avó, afinal, ela precisa realmente ter uma

folga daquele restaurante.

― Ótimo! Agora preciso ir saber o que meu pai anda fazendo. Não

tive notícias dele o dia todo. ― Suspirou e saiu, mas se virou para mim. ―

Vou providenciar sua viagem à “Itália”. Espero que aproveite.


Ele não disse Austrália porque tinha gente ao redor, então quis

garantir, apenas para o caso de alguém ouvir.

― Aproveitarei ― prometi, entrando no papel.

Matteo balançou a cabeça e entrou no clube. Não estava aberto para a

clientela ainda, só para os funcionários e o dono.

― Como não vai precisar da minha ajuda, vou nessa. ― Luca se

preparou para sair, mas parou e perguntou: ― Conseguiu descobrir de onde

Liliane é?

― Não, ainda nada. Mas acredito que ela logo se lembrará. Bonnie

está ajudando-a a melhorar, o que nos faz ter esperança de ela se recordar de

algo importante que nos leve a saber quem é. ― Suspirei. ― Vamos

descobrir eventualmente.

― Se precisar, estou aqui.

― Valeu, cara.

Fui embora pensando ser uma boa ideia levá-la a lugares diferentes

além da minha casa, embora precisasse de um jatinho, pois não acreditava


que ela conseguiria viajar em um avião de carreira, cercada de pessoas.

Como não podia pegar emprestado o do Matteo, ou melhor, do pai

dele, liguei para um velho conhecido. Eu poderia comprar um, mas não via

fundamento nisso, pois nunca tinha precisado de um antes, pois toda as

minhas viagens eram a negócios com meu chefe.

Se eu fosse um mero soldado, não teria dinheiro para comprar um jato,

mas não era. Além de ganhar bem em meu cargo na máfia, tinha outros

negócios por fora no ramo imobiliário, que era uma forma boa e limpa de

investir meu dinheiro, que deixaria para minha avó se acaso viesse a

acontecer algo comigo. Na máfia, quando saíamos de casa, não sabíamos se

retornaríamos vivos.

Como esperado, Lazaro emprestou seu jatinho para mim. Ele não era

da máfia, só um empresário do ramo imobiliário, então Lorenzo não ficaria

no pé dele nem desconfiaria do que eu estava prestes a fazer caso

descobrisse que não estava na Itália.


Desliguei o carro na frente da minha casa e olhei para dentro. Podia

ver Liliane através do vidro correndo em direção à porta da frente. Sempre

que ouvia o som do carro parando, ela fazia isso, mas não abria a porta, só

ficava ali, esperando-me entrar.

Essa sensação enervante em torno do meu coração me deixava sem

saber o que fazer. Não podia pensar nela de outra forma que não fosse para

ajudá-la; se pensasse em algo a mais, eu me sentiria um filho da puta escroto.

Ela só me considerava como seu salvador, algo que eu não era.

Respirei fundo e saí do carro. Acreditava que ela iria gostar da

viagem. Esperava que lhe fizesse bem.

Abri a porta e entrei, deparando-me com seu sorriso dirigido a mim

como se eu fosse sua pessoa preferida no mundo.

― Oi ― sussurrou com as mãos na lateral do corpo. Usava um vestido

florido que a deixava ainda mais perfeita.

― Oi. ― Era nossa saudação quase todos os dias quando eu chegava

em casa. ― Como foi seu dia?


Podia ouvir minha avó conversando com Bonnie, que decidiu ficar ali

em vez de no meu apartamento. Nunca lhe seria grato o suficiente por ela

estar fazendo aquilo por mim e por Liliane, pois se apegara a ela, mas quem

não se apegaria? A menina fazia qualquer um amá-la.

― Bem. ― Então começou a contar um resumo do que fez durante o

dia, cada detalhe.

No começo, isso me incomodava, pois não queria ser como um pai ou

irmão, e era como eu me sentia, achava que ela pensava isso de mim, mas

então, em uma noite, ela me disse que me tinha como um amigo. Era melhor

isso às outras opções.

Recordava-me da sua reação na primeira vez que Bonnie chegou ali;

na ocasião, pensei ter visto dor em seus olhos, só não entendi se foi por

pensar que eu tinha alguém, mas, por vias das dúvidas, decidi esclarecer as

coisas. Bonnie sempre seria uma irmã para mim. Era bom que as duas

estivessem se dando bem.


― Ajudei Bonnie a limpar o terraço ― parecia animada. ― Tenho

vontade de ir à praia, mas...

― Logo você vai, não se preocupe. ― Seguimos para a sala, saindo

do hall.

― Mas lá tem...

Interrompi-a, encontrando seus olhos, ainda temerosos:

― Vamos fazer uma viagem. Lá não terá ninguém, então poderá

apreciar cada segundo. ― Sorri.

― Viagem? Para onde? ― indagou.

Peguei sua mão e a levei para a sala, onde vovó e Bonnie estavam.

― O que está acontecendo? ― sondou Bonnie, avaliando a testa

franzida de Liliane.

― Nós quatro vamos fazer uma viagem amanhã cedo ― anunciei a

elas.

Vovó começou a sacudir a cabeça.


― Vó, é importante ― frisei, encontrando seu olhar. Queria que ela

notasse a urgência, mas não queria que Lily percebesse.

Após me avaliar por um segundo, ela assentiu, mas eu sabia que teria

perguntas depois. Ainda bem que não as faria na frente de Liliane.

― Vou precisar ir junto? ― indagou Bonnie.

― Sim, vou ter que trabalhar lá, então vocês três poderão apreciar o

lugar. ― Virei-me para Lily. ― Não terão pessoas no local, não onde vamos

estar. O que significa que poderá aproveitar para ir à praia.

Não queria dar uma dica de onde iríamos ficar, pois achei melhor

fazer uma surpresa.

― Trabalho, hein? ― Bonnie sorriu após me lançar um olhar aguçado.

Ela sabia o que eu fazia e não gostava, mas nunca me olhou com outros olhos

por isso. ― Vou adorar tirar umas férias.

Ela tinha seu próprio escritório de psicologia onde morava, e eu

estava feliz por isso.


― Está precisando, já que trabalha tanto ― eu disse e depois voltei-

me para minha avó: ― E você também, dona Donatella. O pessoal no

restaurante pode dar conta do recado. Isso é um bônus por ser a dona. ―

Lancei um sorriso a ela. ― Pode fazer tudo.

Ela sorriu, mas tinha um alerta em sua face de que eu a ouviria depois.

Eu era egoísta por usá-la, forçando-a a ir comigo, mas, como não podia

deixar a Liliane e lá teria que sair, as duas ficariam com ela. Além disso,

não gostava da ideia de estar com o oceano entre nós, ainda mais com Enzo

desconfiado de algo.

― Devo parlare con Doroteia e preparare tutto, dopotutto non

sapevo nemmeno che avrei viaggiato[2] — censurou em italiano. ― Sarebbe

carino un avvertimento[3].

― Que língua é essa? ― perguntou Liliane.

― Italiano, nossa língua materna. Morávamos na Itália antes de vir

para os Estados Unidos ― respondi e olhei para minha avó: ― Foi

repentino.
― Certo, agora vou organizar as coisas. ― Sorriu para nós e foi para

a cozinha com o telefone na orelha.

― Preciso ajeitar minha mala também ― disse Bonnie. ― Sorte

minha que trouxe meus biquínis.

Revirei os olhos enquanto ela subia a escada.

― Samuel...

Virei minha cabeça e senti Liliane tensa.

― Ei, querida... ― aproximei-me, observando sua reação, mas não a

vi ficar mais tensa com minha aproximação. ― Confia em mim?

Assentiu.

― Sempre. ― Apertou minha mão. ― É que é tudo novo, isso torna as

coisas assustadores.

Uma coisa que aprendi sobre Liliane era que ela sempre vivera sob

uma rotina estipulada, considerando que ficou presa durante anos fazendo só

o que mandavam. Ali também, ela fazia a mesma coisa: levantava-se, tomava

café da manhã conosco, ajudava minha avó em algumas coisas e depois


ficava em casa enquanto eu saía; quando eu chegava, vinha me encontrar e

relatava tudo o que havia acontecido em seu dia.

Eu queria que ela fizesse coisas novas, não importava o que fosse, só a

queria mais solta, tirá-la da sua rotina.

― Não deixaria nada acontecer com você ― prometi com firmeza.

Não permitiria mesmo. ― Vai ser bom espairecer e conhecer lugares novos.

Ouvi dizer que o pôr do sol de lá é muito belo. Poderá vê-lo todos os dias.

― Pôr do sol? ― Ela me olhava como se eu tivesse dito que lhe daria

a Lua; se o astro me pertencesse, talvez eu a presenteasse mesmo com ele.

Ela tinha verdadeira paixão pelo sol, gostava de vê-lo nascer, se pôr

no horizonte e apreciava senti-lo em sua pele. Talvez isso tivesse a ver com

o fato de ter ficado muito tempo trancada.

Peguei meu celular e pesquisei uma foto sobre o lugar e seu pôr do sol.

Para mim, era tudo igual, mas a mostrei a ela e vi seus olhos brilhando.

Como algo tão simples podia deixá-la tão feliz?


― Vamos para esse lugar? ― Pegou o telefone da minha mão,

admirando a imagem vista de um barco. ― Podemos ir aqui também?

― No barco? ― Ela assentiu. ― Sim, claro. O que você quiser ―

prometi.

Sorriu, ainda fascinada.

― É tão lindo! ― admirou.

― Eu sei que é assustador sair, mas vai ser bom, confie em mim. Vai

te deixar mais feliz. ― Confiava nisso.

Fitou-me com aqueles olhos tão azuis e confiantes.

― Eu estou feliz em estar aqui. ― Olhou ao redor e depois a mim: ―

Com todos vocês. Mas acho que também vou gostar de ir a esse lugar.

Obrigada por me proporcionar isso.

― É um prazer fazê-la feliz ― declarei. Queria puxá-la para meus

braços e embalá-la, mas não o fiz; isso poderia ir para outro rumo que, em

vez de deixá-la feliz, a deixaria com pesadelos. Por isso eu preferia reprimir
essa vontade, que chegava a queimar meu peito. Era melhor isso a lhe causar

dor.

Ela sorriu, fazendo meu coração acelerar como sempre o fazia.

― Vou arrumar a bolsa então. ― Entregou-me meu telefone. ―

Também é um prazer fazer você feliz.

Não tinha certeza de que conseguiria falar, então assenti, fazendo-a

sorrir brilhante e ir para seu quarto. De repente, minha língua tinha travado.

Porra! Quando já me senti assim? Nunca perdi o controle, nem mesmo

cheguei perto disso, não em anos! Eu matava, esquartejava, torturava e

queimava vivos os meus inimigos, e nada disso me fazia perder o maldito

controle ou ter qualquer emoção, mas o sorriso da Liliane me queimava, e

não de maneira prazerosa, mas dolorosa, porque eu precisava ter em mente

que não podia simplesmente fazer o que desejava. Controlei essa

necessidade de tocar sua boca, conhecer o sabor de seus lábios...

Parei nesse pensamento, pois não era certo, não era para acontecer

nada disso. Quando comecei a protegê-la, só a queria curada ou ao menos


seguindo sua vida sem pensar que estivesse queimando em uma fogueira.

Ela não tinha o conhecimento do que fazia comigo; por mais que essa

guerra estivesse em meu interior, por fora eu não deixava transparecer nada.

― Você está ferrado, meu amigo ― ouvi a voz da Bonnie. ― Ela não

está pronta.

Como se eu não soubesse disso, pensei.

― Eu sei, nunca a forçarei a nada. ― Ela estava no primeiro degrau

da escada.

― Não disse que forçaria, o conheço há muitos anos ― sussurrou. ―

Só tome cuidado para ela não perceber o que sente, pois isso pode dificultar

o progresso. A deixe tomar a decisão e mostrar o que ela sente primeiro.

Posso ver que Liliane adora você, mas só não está...

― Pronta, eu sei ― terminei a frase por ela. ― Serei o que ela

precisar que eu seja.

Fui para a cozinha, onde vovó estava terminando a ligação com a

mulher que a ajudava no restaurante.


― Você realmente gosta dela? ― Bonnie, que me seguiu, parecia um

pouco chocada. ― Samuel, O Cruel, está se apaixonando.

― Sabe? Você é um pé no saco ― arrulhei, pegando um copo de água.

Queria uma dose de uísque, mas minha vó não gostava de manter bebida

alcóolica em casa.

― Olhe a boca ― ralhou vovó.

― Desculpe, vó. ― Suspirei. Voltei-me para minha amiga. ― Não sei

o que sinto. Agora meus sentimentos parecem estar dentro de um moinho.

― Fico feliz por você estar apaixonado. ― Bonnie parecia animada.

― Adoraria que ela fosse minha neta após se casar com você. ― Vovó

sorriu.

Eu nem sabia se um dia poderia beijar a menina, que dirá me casar

com ela.

― Acho que eu mesmo vou mandar vocês duas para Barcelona. ―

Coloquei o copo sobre a mesa. ― Não irei jantar, comi algo antes de vir

para cá. Agora vou subir, antes de vocês duas planejarem meu casamento.
Elas riram, então eu soube que estavam dizendo isso para me provocar

e estavam conseguindo.

Subi as escadas com a intenção de organizar as coisas que iria

precisar no dia seguinte e durante o tempo em que permaneceria em Port

Douglas. Todavia, iria faltar algo, e, como não podia sair no momento,

afinal, todos deviam pensar que minha avó estava doente, liguei para pedir

ajuda ao Luca.

― Samuel? ― atendeu.

― Me ofereceu ajuda, lembra? Preciso que faça uma coisa para mim.

― Fui direto ao ponto enquanto pegava minhas armas e as colocava sobre a

mesa do quarto, assim como facas e granadas, além de outros armamentos se

acaso necessitasse.

― Do que precisa?

― Uma taipan-do-interior ― respondi, referindo-me a uma espécie de

cobra venenosa.

Ele assoviou do outro lado.


― Merda! Você é o cara! ― Parecia impressionado. ― Considere

feito. Conheço alguém que cria essas espécies raras. Nada que ligue a nós.

― Certo. Mande levá-la ao endereço que vou enviar, e que esteja bem

protegida. Não tenho tempo de procurar uma aonde vou. ― Chequei minhas

armas, incluindo aquelas que carregava comigo. No começo, pensei em não

andar com elas, mas, como Liliane não me abraçava como minha avó e

Bonnie, então não as sentiria em meus coldres.

Uma batida na porta me fez olhar para lá. Por sorte, eu a tinha

trancado.

― Preciso ir. ― Desliguei e enviei o endereço da pista de pouso onde

o jatinho estaria pronto para embarcarmos no dia seguinte.

― Posso entrar?

Fiquei imóvel um momento, olhando das armas para a porta.

― Só um momento. ― Joguei tudo na mochila e a enfiei dentro do

closet, então fui abrir a porta.


A beleza de Liliane toda vez me fazia respirar fundo. Seus cabelos

loiros estavam soltos, combinando com as maçãs perfeitas do seu rosto. Ela

esfregava as mãos nervosamente nas laterais do vestido.

― Sua avó disse que você não ia jantar nem descer mais... ― ela

divagava, nervosa.

Fiquei confuso com sua hesitação, mas não demonstrei.

― Sim, comi alguma coisa antes de vir para cá. ― Zaira me levara

comida quando eu estava na fazenda. ― Por isso vim me deitar mais cedo.

Toda vez que chegava em casa, ficava lá embaixo com ela até que

Liliane estivesse com sono, mas, como teria de arrumar as armas que

precisaria para o caso de sermos atacados, subi antes do previsto.

― Oh! ― sussurrou, mexendo os pés e mordendo o lábio inferior, que

eu adoraria beijar.

― Você pode ficar aqui hoje. Podemos assistir a um filme ― ofereci,

pois não gostava de ver tristeza em seu rosto.


Seus olhos me fitaram com um brilho mais poderoso que o sol, tão

incandescente que chegou a ofuscar minha visão por um segundo. Um anjo

perfeito e brilhante para um assassino frio e desalmado; quanta ironia.

― Ok, vou aceitar. ― Ela parecia aliviada.

Sorri.

― Então entre, e vamos fazer isso. ― Indiquei o interior do quarto.

Ela entrou avaliando o lugar, afinal ainda não havia estado ali. O

quarto era enorme, com uma TV grande em frente à cama king size. Em outra

parede tinha um quadro, por trás do qual havia um cofre com armas e

dinheiro, e uma porta que levava ao closet e ao banheiro. Do outro lado

havia uma sala de jogos onde, às vezes, eu jogava sinuca para me distrair

dos problemas.

― Seu quarto é enorme ― comentou.

Assenti às suas costas, enquanto olhava para o closet, onde minha

mochila de armas estava. Depois terminaria de ajeitá-la, pois no momento

faria companhia a Liliane. Seria outra noite em que eu precisaria me


esforçar; ficar perto dela, sentindo seu cheiro e ter de me controlar. Tenho de

fazer isso, entoei como um maldito mantra. Essa noite será longa, pensei

amargo.
Liliane

O medo estava me deixando paralisada no assento do jatinho, não por

receio de voar, mesmo que nunca tivesse feito isso antes – se tinha, não

recordava –, mas por encarar o desconhecido.

Fora da janela, dava para ver o topo das árvores lá embaixo,

mostrando a beleza natural do lugar.

― Estamos chegando ― disse Samuel no banco em frente a mim.


Assenti, não sabendo como soaria minha voz. Minhas mãos suavam

frio.

― Confia em mim? ― Ouvi sua voz baixa e calma.

Encontrei seu olhar magnético, que fazia meu coração dar

cambalhotas.

― Com a minha vida ― afirmei, e era verdade.

Sua expressão mudou um pouco, mas não pude ler, porque ele logo

sorriu calorosamente.

― Obrigado, Luce del Sole. Vai ser divertido, verá.

Acreditei nele; não havia nada que pudesse me fazer não acreditar.

Estava só nervosa com tudo aquilo.

― O que significam essas palavras? ― Ele sempre me chamava

assim, e fiquei curiosa em saber o significado.

― Luce del Sole? ― Assenti, então ele prosseguiu: ― Luz do sol,

raio de Sol. Seus cabelos brilham como um.


Corei com a força de suas palavras e olhar. Por que meu coração só

faltava querer sair pela boca? Fora a parte que eu sentia minhas bochechas

ficarem quentes.

Na noite anterior, quando havia ficado em seu quarto assistindo a

filmes de comédia, senti uma coisa diferente ao estar ali, deitada em sua

cama e com ele ao lado, mas sem nos tocar de fato; por alguns momentos,

desejei fazer isso, mas o medo era demais. No entanto, gostei de me divertir

com ele, tanto que acabei adormecendo em sua cama. Quando acordei, não

sabia dizer quando havia tido um sono sem pesadelos. Foi a primeira noite

sem ter um que eu me lembrasse. Não entendia se era por causa do cheiro de

Samuel ou a mera ideia de ele estar ali, no mesmo quarto que eu. Ele tinha

dormido no sofá-cama. Sua presença acalmava um pouco meu interior.

Fechei os olhos por um segundo, querendo reunir meus pensamentos,

então o jatinho se curvou para pousar, fazendo-me respirar fundo. Foi

quando minha mente viajou...


A menina pequena estava sentada no banco da frente, assim como o

menino com um sorriso lindo e olhos azul-claros.

― Sou o protetor de vocês duas. ― Ele parecia orgulhoso. ― Assim

que o jatinho pousar, não sairei do lado de vocês.

― Isso, irmão, sua função é proteger nossas “babochka” ― disse

outro menino, que parecia o mais velho. Seus cabelos eram loiros, e seus

olhos eram azuis-cobaltos intensos, me lembravam o céu.

Ofeguei, voltando ao presente e encontrando os olhos preocupados de

Samuel.

― O que foi? ― sondou.

― Lembrei de algo. Parece tão real, sabe? ― Sacudi a cabeça.

― Pode me dizer do que se lembrou? ― Eu podia sentir a tensão em

seu corpo.

― Era a mesma menina que apareceu na minha lembrança anterior,

além do menino de olhos azuis, mas agora há outro na lembrança, esse era
mais velho, acho que tinha uns 13 ou 14 anos. Estávamos em um jatinho

como esse. ― Indiquei ao redor, então relatei a lembrança detalhadamente.

― Babochka? Ele te chamou assim? ― Samuel franziu a testa. ―

Você sabe o que significa?

― Não. ― Franzi o cenho. ― Você sabe? Parece um idioma diferente

do que falamos e do italiano, no entanto, parece ser familiar.

― É russo ― respondeu ele, avaliando-me. ― Significa “borboleta”.

― Talvez você seja da Rússia ― Bonnie apontou da poltrona do outro

lado.

― Eu sou russa? ― Era frustrante querer recordar algo e não

conseguir. Doía pensar que talvez eu tivesse uma família em algum lugar e

não estava com ela.

― Vou tentar descobrir alguma coisa ― prometeu Samuel.

― Nas lembranças que tenho, eu vejo as mesmas crianças e uma

mulher sem rosto que parece nos amar. Dentre os meninos, um deles se
parece mais comigo, o loiro de olhos azuis. Ele era mais protetor. Toda vez

que me lembro dele, parece feroz. ― Suspirei.

― Irmãos tendem a ser protetores. ― Eu podia ver, pela expressão de

Samuel, que ele estava tenso.

― Será que essa família que vejo em minhas lembranças é a minha?

― falei mais comigo mesma.

― Você disse que vocês eram parecidos, não foi? ― Ele me avaliava.

― Será que são seus irmãos? ― Donatella indagou.

― Irmãos! Um dos meninos era mais parecido comigo, além de

sermos mais ligados um com o outro. ― Franzi a testa. ― Não consigo

recordar de mais nada.

― Há crianças sendo levadas de suas famílias todos os dias. Você não

deve ter sido vendida, como às vezes acontece por aí, afinal, disse que eles

pareciam amá-la. Então aposto na hipótese de ter sido sequestrada. ― A voz

de Bonnie soou dura.


― Sequestrada... ― pronunciei a palavra com gosto amargo na boca.

Minha família devia estar sofrendo, sentindo minha falta. Contudo, como

faria para encontrá-los, se não me lembrava deles?

― Vai lembrar a qualquer momento. Vou ver o que descubro ―

prometeu Samuel, lendo-me como sempre fazia.

― Obrigada. Descobrir a verdade seria bom, acho que ajudaria com

essa dor de cabeça. ― Forcei um sorriso.

― Não force as lembranças. Deixe-as vir naturalmente ― ele disse a

mesma coisa que Bonnie já havia falado. ― Estamos aqui com você e vamos

ajudá-la no que precisar.

Relaxei com suas palavras por um momento, mas minha vontade era

saber a verdade. Esperava conseguir um dia descobrir o que estava

trancafiado em minha mente traumatizada.

Chegamos a uma casa branca, que flutuava no oceano azul. À

esquerda, em terra, havia uma floresta verde. Eu podia ouvir pássaros


cantando na mata e vê-los sobrevoando o lugar.

― Nossa, isso aqui é fabuloso! ― comentei, maravilhada. Foi bom

não ver pessoas ao redor. Sabia que teria que enfrentá-las em algum

momento, mas não precisava ser agora.

― Vamos ficar nesse bangalô flutuante? ― indagou Bonnie, tão

eufórica quanto eu.

Tinha uma passarela de madeira que levava até a casa.

― Sim, é de um amigo. Ele me emprestou pelo tempo que eu quisesse

― respondeu, pegando sua mala e a minha. ― Vamos nos acomodar. Mais

tarde podemos dar uma volta no lugar para conhecê-lo melhor.

― Meu neto, acho que realmente vou aproveitar minha estada aqui ―

disse Donatella, fazendo-me rir.

Os olhos de Samuel brilharam ao me ouvir rir. Isso sempre acontecia.

Eu acreditava que ele estava feliz por eu estar progredindo. Eu estava

tentando seriamente. Esperava ter forças para lutar contra todos os

empecilhos.
― Todos nós iremos aproveitar cada segundo ― comentou Samuel. ―

Estou contando em pescar um peixe grande logo.

Donatella olhou para ele com os olhos estreitos por um segundo, mas

depois suspirou.

― Você pesca? ― sondei curiosa.

― Só peixes grandes ― respondeu com um sorriso lindo.

Bonnie bufou.

― Smettila di chiamare “pesce” le tue vittime[4]. ― Sacudiu a

cabeça.

― O que significa? ― Franzi a testa.

― Que Bonnie não é chegada a pescar. ― Ele piscou e deu um

sorriso.

Ela fez uma careta, mas não disse nada ao pegar sua mala e a de

Donatella.
― Menina, deixa que eu levo minhas coisas ― Donatella pediu com

um suspiro.

― Eu levo. Aproveite para fazer um ensopado do peixe que seu neto

nos trará mais tarde, não é, fratello[5]? ― Piscou, provocante.

Samuel apertou a mandíbula como se quisesse dizer algo, mas não o

fez.

― Chega, crianças! Agora é hora de apreciarmos essa bela vista. ―

Donatella fitou o lugar, maravilhada.

As duas seguiram para a casa com a dona Donatella insistindo em

pegar a sua mala, mas Bonnie não permitiu, saiu correndo na frente.

― Também posso levar a minha bagagem. ― Virei-me para Samuel,

que estava ao meu lado.

Ele sacudiu a cabeça, oferecendo-me mais um dos seus belos sorrisos.

― Eu levo ― assegurou. ― Quero te mostrar onde vamos ficar.

Respirei fundo e o segui para a casa flutuante. Uma coisa que aprendi

era que discutir com Samuel era um desperdício, pois ele sempre vencia.
Passamos pela passarela de madeira. Nas laterais, a água cristalina

dava uma boa visão dos peixes.

― São lindos. ― Parei, admirando-os.

― Realmente são ― comentou ele ao meu lado. ― Vamos guardar as

malas, depois a levo para passear de barco. Aí poderemos ver o pôr do sol.

Mesmo que meu interior temesse tudo que ele me oferecia, não me

deixaria ser vencida, iria fazer aquilo com Samuel.

Entramos na casa, que tinha uma sala incrível, com uma visão

deslumbrante para o oceano, aliás, o lugar era todo cercado de vidro, a sala,

a cozinha e até os quartos, que tinham varandas.

Estava embasbacada com a visão perfeita daquele lugar. Não

acreditava que já houvesse visto algo assim antes e, se tinha, não lembrava.

Assim que entrei no quarto, segui para a varanda. Samuel deixou as

coisas na cama e me seguiu.

― Está gostando? ― Eu podia notar ansiedade em sua voz. Estaria

preocupado que eu não gostasse? Isso me comoveu.


― Adorei. É tão vivo, vibrante e verde. ― Respirei fundo o ar fresco,

que eu adorava. ― Viver presa em todos aqueles anos me fazia sonhar com

algo assim, mas eram apenas sonhos, incapazes de serem alcançados.

― Você vai alcançá-los ― prometeu. ― Muito mais do que isso,

acredite em mim.

Olhei para ele, ao meu lado. Será que iria mesmo? Sabia que a luta

para enfrentar o que me aconteceu seria grande e que eu não conseguiria

sozinha. Esse tormento ainda me consumia aos poucos.

Mas você estará lá para mim assim como está agora?, desejei

perguntar, mas não consegui. Temia sua resposta. Sabia, precisava dele

comigo.

― Quero mostrar o mundo a você ― declarou com tanta veemência

que meu peito aqueceu. ― Mas por ora vamos nos contentar com este

paraíso.

― Sim. ― Sorri, respirando fundo. ― Vai me levar ao barco?

Sorriu.
― Sim, quero que aproveite cada segundo aqui.

Assenti e olhei para minhas roupas.

― Vou precisar me trocar. ― Mordi o lábio inferior. ― Só não quero

usar biquíni.

Não acreditava que lidaria bem vendo meu corpo exposto e não queria

passar mal na frente do Samuel, igual acontecia toda vez que eu tomava

banho no chuveiro.

― Ei. ― Olhou-me com intensidade. ― Não precisa vestir roupa de

banho se não quiser. Nunca faça nada que não queira, ninguém a obrigará.

Confie em mim. E, se alguém tentar fazer o contrário, eu lido com isso.

No final da frase, senti algo em sua voz que me deu um calafrio, mas

sabia que era verdade; Samuel me protegeria para sempre. Por mais egoísta

que isso fosse, eu estava feliz por estar ao lado dele.

― Tudo bem. ― Confiava nele e só por isso estava ali, apreciando a

beleza daquela vista.


Ele saiu para eu me trocar. Coloquei um short que batia nos joelhos e

uma camisa larga, depois saímos.

O caminho até o barco não era longo, até pensei que Bonnie e dona

Donatella viriam conosco, mas elas optaram por nadar na praia.

Entramos no barco, então uma lembrança veio à minha mente: as

mesmas crianças e eu nos divertindo. Acreditei que ver coisas novas

estivesse me fazendo recordar de situações que aconteceram no meu passado

desconhecido. Como a viagem no jatinho e, agora, no barco.

Ele pilotou até nos afastarmos um pouco da marina. Deduzi que fosse

para nos dar uma visão melhor do pôr do sol, isso se fosse possível ficar

ainda mais belo.

Fiquei sentada ao lado de Samuel, admirando cada coisa no nosso

entorno. Havia mais casas flutuantes ao redor, algumas mais distantes, quase

em mar aberto.

― Isso é perfeito, não é? ― Sorri para ele enquanto tirava meu cabelo

do rosto.
Sorriu de volta, assentindo.

― Sim. Acho que trabalho muito, então é bom ter momentos assim. ―

Pilotou por mais um tempo, então parou o barco no meio do nada. Depois

estendeu a mão para mim. ― Vem comigo.

Peguei-a, e meu coração passou a bater mais rápido; era sempre assim.

Nós descemos alguns lances de escada e fomos até a proa, onde nos

sentamos.

― O que faz na máfia? ― inquiri.

Ele me olhou de lado.

― Não pesquisou sobre nós?

― Sei que agem do lado errado da lei e que machucam pessoas, sem

dar a mínima para quem vive ou morre. ― Meu tom soou amargo.

Ele assentiu, embora algo escuro cruzasse suas feições.

― Sim, dentre outras coisas. Por isso pergunto: por que não está com

medo de mim?

― A máfia é uma coisa, você é outra ― destaquei.


― Faço parte disso tudo, Lily. ― Levantou-se e foi até o bico de proa,

segurando a grade.

― Você não machuca inocentes, não é? ― Fiquei de pé e cheguei

perto dele. ― Me salvou daquele lugar, cuidou de mim. Se fosse como eles,

teria feito igual.

Sua cabeça se virou em minha direção tão rápido que pensei que ele

teria um torcicolo.

― Jamais tocarei em uma mulher sem sua vontade. Nunca fiz isso. ―

Sua voz era controlada, não combinando com seu rosto tenso.

― Por isso afirmo: por mais que seja da máfia, você não é igual

àqueles que... ― Fechei os olhos um segundo, com a respiração desigual por

causa das lembranças me assombrando.

― Ei, Lily?! Olha para mim! ― pediu. Seu hálito quente banhou meu

rosto. ― Liliane! Sou eu aqui, Raio de Sol.

Respirei com dificuldade e encontrei seus olhos perto do meu rosto.

Concentrei-me neles, assim não sucumbiria ali mesmo. Quando esses


momentos aconteciam, eu corria ao banheiro para tomar banho, desejando

tirar de minha pele aqueles toques repugnantes.

― Ei, querida. ― Suas mãos estavam em meu rosto. Essa era a

primeira vez que ele me tocava sem ser nas mãos. Foi tão estimulante que a

escuridão e o tormento se dissiparam.

Aproximei-me mais dele e coloquei a testa em seu peito. Inspirei seu

aroma até tudo de mau sumir. Seu corpo ficou tenso, mas ele não se afastou

nem colocou os braços a minha volta. Sussurrava palavras em sua língua

natal, desconhecida. Eram tranquilizadoras.

― Isso, il mio cuore[6], respire fundo ― pediu, alisando meus cabelos.

― Olhe para lá, Liliane.

Afastei meu rosto do seu peito relutantemente e olhei na direção que

ele indicou. Fascinei-me.

― Vamos nos sentar. ― Sentou-se e me puxou para seu lado, mas não

me tocou, a não ser a minha mão, que continuou segurando.


O sol estava se pondo no horizonte. As cores ricas e vibrantes

preenchiam o céu. Ficamos imóveis e calados por um tempo.

― Sinto muito por surtar ― sussurrei, não tirando os olhos dos

últimos raios de sol, que ainda enfeitavam as nuvens.

― Lily? ― chamou-me, fazendo-me olhar para ele. Seu olhar era tão

intenso que me deixou sem ar por um instante. ― Nunca peça desculpas por

isso. Estou aqui para ajudá-la. Posso fazer todos que a quebraram pagarem

mandando-os para o inferno, mas não sou capaz de arrancar essa dor e as

lembranças daqui ― indicou minha cabeça, depois apontou para o meu

coração: ― e daqui. Não sou capaz disso. A única que pode fazer isso é

você, mas levará tempo. E vou estar ao seu lado sempre.

― Obrigada por me proporcionar este momento. ― Respirei fundo e

voltei a fitar o horizonte.

― Não há de quê. ― Suspirou baixo, apertando minha mão.

Samuel me dava mais forças para lutar. Eu não sabia se era por sua

confiança em mim ou não, mas era grata a ele por estar ao meu lado. Não me
importava com quem ele era ou com o que fazia, só que estava me fazendo

feliz.
Samuel

Após o episódio no barco, minha ira por aqueles monstros subiu ao

auge. Tive que buscar todo meu autocontrole para não perder a cabeça e

mostrar a Liliane a forma como sua dor me abalou.

Ter todo esse autodomínio era bom, impediu-me de ir até Peter

naquele mesmo momento e matá-lo com meus punhos, aniquilá-lo aos poucos
e fazer seu sofrimento durar dias... Sorte dele que eu não podia matá-lo

assim.

Após deixar Lily no bangalô, saí para fazer o que precisava ser feito.

Disse a ela que iria à cidade, que não era muito longe de onde estávamos.

Assim, ela não iria querer ir comigo.

Fechei a porta do carro tão logo entrei e olhei para ela, que estava à

janela me observando partir. Liliane sempre fazia isso em casa, e ali não foi

diferente. Acenei com a mão, reacendendo seu sorriso lindo.

Um dia esperava ajudá-la a derrotar aqueles demônios que entrevia em

seus olhos. Como disse a ela, podia matar todos os envolvidos, mas os

demônios da sua mente, eu não seria capaz de aniquilá-los; ela precisava

fazer isso, e eu estaria ao seu alcance para ajudá-la no que fosse preciso.

Moor estava vigiando as três, fora de vista para que Liliane não o

visse. Eu a queria recuperada e não voltando a ter crises, o que a visão dele

poderia acarretar.
Saí relutante, sem querer deixá-la, mas era necessário; precisava

eliminar um dos vermes que a deixaram com medo do mundo. Quando

pensava nisso, ficava ainda mais puto. É claro que odiava a todos, e os faria

pagar amargamente.

Dirigi alguns minutos até o outro lado da cidade, parei o carro em uma

mata a dois quilômetros da casa do infeliz, onde encontrei Bojo, um dos

homens que eu conhecia que não pertenciam à máfia, mas que me ajudava às

vezes quando estava naquelas redondezas. Andei até ele com minha mochila

nas costas e a caixa onde estava a cobra, que eu tinha pegado no jatinho.

Havia falado com Bojo antes, então ele descobriu a rotina do senador

de merda, dos anos anteriores que ele e sua família estiveram ali.

― Precisa de alguma ajuda? ― perguntou assim que cheguei até ele.

― Não, tomo conta daqui. Leve meu carro para não chamar atenção.

― Entreguei a chave a ele e depois entrei na mata.

Tinha colocado óculos noturnos, assim notaria qualquer coisa que

quisesse me atacar. Seria bem irônico ser morto por um réptil antes de ter
minha vingança.

Peter Jones tinha uma rotina, chegava cedo, saía de barco com a

família, depois deixava seus familiares em casa e saía para foder alguma

mulher, ia pescar e voltava para a casa de barcos que possuía.

Ele era casado, pai de meninas com idade menor do que Liliane.

Quando eu pensava nisso, ficava ainda mais revoltado, afinal, ele era pai,

não deveria fazer algo que não quisesse que suas filhas sofressem.

“Samuel, precisa esquecer os bons modos se deseja fazer justiça com

alguma pessoa”. Essas eram as palavras do meu pai quando me treinava

para ser um assassino.

Giovanni via a tortura e o assassinato como justiça, mas na verdade

era vingança, uma muito prazerosa, a qual eu estava adorando fazer.

Esperei Peter pescar pelo que me pareceu horas, enquanto ficava

escondido dentro da casa de barcos dele. Por sorte, o infeliz não gostava de

andar com seguranças, pois ficava com muitas meninas menores de idade e,

às vezes, as levava para a casa de barcos. Azar para ele e bom para mim.
Era por volta da meia-noite quando o idiota entrou na casa de barcos

assoviando. Seu telefone tocou.

― Terminei com aquela garotinha. A boceta dela era tão apertada que

adorei comê-la. A deixei na praia, então trate de calar a boca dela ― ouvi-o

dizer. ― Pago você para limpar minha sujeira sem abrir o bico. ― Deu um

suspiro e depois continuou: ― Sim. Estou a caminho, espere por mim. Daqui

uma hora no máximo. Vou pegar minha esposa primeiro e deixá-la aqui.

Arrume mais uma novinha, de preferência virgem. Gosto de estourar seus

cabaços.

Abriu a porta do local onde eu estava e entrou para guardar os

equipamentos de pesca, embora, pelo que acabara de dizer, não tinha

pescado naquele dia.

Quando encerrou a ligação e guardou o telefone, destravei minha arma.

― Então você gosta de estourar cabaços de virgens? ― perguntei,

fazendo-o pular. Ameaçou gritar. ― Faça um barulho, e toda sua família vai

ter o mesmo caminho que você tanto gosta de fazer com outras meninas.
Eu jamais faria o que aquele ser abominável praticava, mas ele não

precisava saber disso. O jogo mental, às vezes, era melhor do que punhos ou

até tortura.

Seus olhos se arregalaram quando liguei a luz e ele viu meu rosto.

― Você é um dos homens de Lorenzo. ― Ele soou frio. ― O que foi

que fiz para ele enviar você aqui? Fiz minha parte no negócio muito bem.

― Acha que estou aqui por Lorenzo? ― Eu tinha a arma em uma mão,

enquanto a outra segurava meu rosário.

Muitos que me viam matar achavam que eu era devoto ou rezava para

suas almas irem ao inferno. Na verdade, mantinha aquele rosário em

memória da minha mãe, que me deu o objeto para eu nunca ficar sozinho.

Como não pude matar quem a levou de mim, fazia isso com os insetos que

entravam em meu caminho. Minhas súplicas e as da minha mãe não foram

ouvidas, então as das pessoas que eu matava também não seriam. Era

doentio, eu tinha consciência disso, mas não dava a mínima.

― Não está? ― Franziu a testa. ― Então por que veio aqui?


― Você tocou em alguém que não deveria. ― Indiquei o canto onde

estava a caixa com a cobra. ― Vá para lá.

Ele não se moveu, então levantei minha arma.

― Quer que eu atire para você ouvir? Posso fazer isso sem problemas

― falei de modo frio.

― Toquei? Será que era uma das vadias que fodi ontem? Seja quem

for, lamento, não foi a minha intenção, fiz porque elas queriam... Posso pagar

qualquer coisa se não me matar.

― O problema de vocês, políticos, é pensar que podem comprar tudo,

mas não podem ― zombei. ― Recorda-se das meninas as quais Lorenzo deu

para você e aqueles outros homens brincarem? É por causa de uma delas que

irá morrer hoje.

Não precisava dizer que também era pelas outras duas e as que foram

mortas antes de descobrirmos aquele antro e o que era feito lá.

Ele piscou e tentou fugir, mas fui mais rápido e o peguei pela camisa,

jogando-o em cima da caixa, que se abriu. Poderiam associar sua morte à


picada de uma cobra; ele se machucaria ao tentar escapar dela.

Peter arfou e apoiou a mão na caixa, tentando se equilibrar e respirar

fundo após a queda.

― O pior é que você nem deve se lembrar dela, mas vou refrescar sua

memória. ― Apontei para a foto de Lily machucada, uma prova de como ela

ficou por culpa deles. Eu a tinha colocado na parede, mas o filho da puta

nem notara.

Seus olhos mostraram confusão, depois se encheram de realização.

― Vejo que se recordou. ― A fúria me consumia a cada momento na

presença daquele homem. ― Bom, isso me dará mais prazer quando estiver

agonizando para morrer.

― Por favor, não me mate ― suplicou.

― Não vou matá-lo ― anunciei e notei alívio em seus olhos, mas

acrescentei: ― Ela vai.

Ele estava com tanto medo que não tinha notado a cobra saindo de

dentro da caixa. Tentou se levantar, mas chutei sua perna, fazendo com que
caísse de novo. A cobra deu o bote e picou seu braço.

Eu estava à porta da casa de barcos, vendo a cena.

― Essa é uma taipan-do-interior, originalmente daqui, da Austrália. ―

Fui até ele, andando perto da serpente, que tentou me picar, mas eu estava

usando proteção contra ela. Empurrei-a para o canto, não querendo que ele

fosse mordido de novo; não queria antecipar sua morte, aliás, queria

prolongá-la. ― O veneno dela está paralisando-o. Ele tem hemotoxina. Em

contato com nosso sangue, destrói todas as nossas células sanguíneas e causa

hemorragia interna. Uma dose de 0,1 mg por quilo, o ser humano aguenta,

mas uma picada dela pode ter 120 mg. São conhecidas por injetarem doses

altas e letais, não dando a chance para a vítima sobreviver.

Seus olhos me fitavam arregalados. Ele já nem conseguia falar.

― Ela sofreu quando você a violentou e a machucou. Não se importou

que, no final, fosse morta, só queria enfiar seu pau podre nela. ― Fuzilei-o.

― Hoje, ela tem pesadelos e morre de medo de pessoas e toques. Você não

merecia morrer assim, mas tendo seus dedos cortados por mim, sendo
rasgado. Eu arrancaria seu pau e o faria comê-lo. Sorte a sua que não quero

que meu chefe saiba o que estou fazendo. Embora você vá morrer, não será

de uma forma tão dolorosa.

Ele tentava falar, mas não conseguia. A peçonha estava fazendo efeito.

― Sabe-se que o veneno paralisa o sistema nervoso da vítima e

coagula o sangue, bloqueando os vasos sanguíneos e consumindo fatores de

coagulação. Isso está acontecendo agora. ― Guardei minha arma e peguei

um vidrinho. ― Este é o antídoto.

Ele piscou, e vi que tentava se mexer, mas não podia.

― É desesperador, não é? Saber que está morrendo e que a cura está

tão perto de você, mas não consegue alcançá-la. ― Voltei a guardar o vidro

no bolso. ― A garota se sentiu assim, implorando e rezando, mas ninguém

foi ao seu socorro, não a tempo.

Abaixei-me e peguei seu telefone, mas só poderia acessá-lo com a

digital dele, então abri a tela depois de usar seu dedo.


― Acho que vou descobrir muitas coisas necessárias a seu respeito

aqui. ― Sentei-me no banco, de olho nele, em sua agonia e na cobra; mesmo

com a proteção, ela poderia me picar em partes do meu corpo que não

estivessem protegidas, e eu não tinha a intenção de morrer ainda.

Vasculhei o celular enquanto esperava sua morte chegar. Não sairia

dali antes de vê-lo dar seu último suspiro.

Encontrei nomes, endereços e várias informações úteis. Mandei tudo

para meu celular. Depois descobriria o que fazer com elas. Eram um ás na

manga.

Constatei que a última ligação que recebeu veio de um lugar chamado

Vênus Bar. Mandei uma mensagem para Bojo procurar saber sobre o local,

depois outra para o mesmo número que tinha ligado para Peter.

“Não poderei ir hoje, amanhã faço o que gostaria. Agora preciso ir

até minha família.” Após enviar a mensagem, deletei-a, apagando todos os

rastros, assim ninguém saberia de nada.


― Homens como você são escória ― cuspi. Seus olhos estavam

arregalados, e ele arfava. ― Está sem ar? O seu sangue está fervendo? Essa

dor não é nada comparada com a que ela sofreu, a que você impôs a ela.

Mesmo vendo-o morrer, desejei que demorasse mais, mas não tinha

como prolongar o efeito do veneno.

Assim que o maldito deu seu último suspiro, joguei o seu telefone no

chão, peguei a foto da Lily e a caixa em que estava a cobra, em seguida saí,

deixando a porta aberta. Assim, a cobra andaria pelo local e fugiria ou

ficaria ali. Todos pensariam que foi uma fatalidade o fato de ele ter

encontrado aquele animal.

Corri pela mata e cheguei ao local onde Bojo disse que meu carro

estaria. Entrei no veículo, guardando a mochila e tirando as luvas pretas e os

óculos, então dirigi para o bangalô.

Não gostei de ter feito só aquilo, o bastardo merecia muito mais, mas,

por ora, ficaria feliz por tê-lo mandado para o inferno. Logo seria a vez dos

outros, até não restar nenhum deles.


“Feito”. Mandei a mensagem ao Matteo.

Cheguei ao bangalô e vi que a luz do quarto da Lilly estava acesa. Ela

nunca dormia enquanto eu não chegava, não importava a hora que fosse. Por

isso eu a trouxe comigo; não podia deixá-la lá, pois certamente seu estado só

pioraria.

Assim que desliguei o carro, peguei minha mochila e segui pelo

corredor de madeira. Nunca tinha estado ali, mas adorei as acomodações de

Mauricio, um dos meus amigos.

Abrir a porta e entrei. Antes mesmo que olhasse para a direita, onde

era o quarto de Liliane, senti que ela estava à porta. Juro que podia sentir

sua presença, seu cheiro. Tudo nela me tocava fundo.

― Você demorou ― sussurrou, vindo até mim com os punhos cerrados

nas laterais do corpo, sinal de nervosismo.

― Saí com um colega ― respondi, embora isso estivesse longe de ser

verdade. Ela não ia gostar de saber o que eu realmente fazia. Aliás, era

capaz de surtar.
― Oh. ― Abaixou a cabeça, mordendo o lábio e remexendo as mãos.

Tentei ler sua expressão, mas, como encarava o chão, dificultou um

pouco, então notei seus gestos. Mãos trêmulas, assim como os lábios.

Parecia que ia chorar. Então a realização tomou minha mente.

― Lily, estávamos só eu e um amigo, mais ninguém. ― Fui até perto

dela e toquei seu queixo, levantando-o para que ela olhasse para mim. Seus

olhos estavam úmidos. ― Confia em mim? Jamais mentiria para você.

Liliane umedeceu os lábios, fazendo-me ter ideias erradas, pois ela

não estava pronta para descobrir o que eu realmente queria dela. Uma parte

de mim sentia que a menina também gostava de mim. Podia ver pela forma

como agia quando pensava que eu estava com outra mulher. Não ficava com

ninguém desde que a conheci. No começo, estava tão focado em ajudá-la a

se recuperar que nem pensei nisso. Depois precisei me vingar dos monstros

que a machucaram e focar em ajudar na cura da Lily. Então meus sentimentos

por ela foram mudando, e eu não achava justo ficar com outras mulheres,

quando só tinha uma em minha cabeça.


Acreditava que nem Lily soubesse o que sentia, só sabia que devia

doer nela me imaginar com outra pessoa. Sabia disso porque sentia o

mesmo, além do fato de que eu era um bom leitor de expressões.

― Confio em você. ― Respirou fundo, parecendo aliviada.

― Obrigado. Agora... o que faz acordada? É tarde.

― Não consigo dormir sem que você esteja aqui ― sussurrou.

Lily era franca, não escondia nada. Meu Raio de Sol só não falou o

que sentia por mim porque nem mesmo ela sabia o que sentia de fato.

― Bom, agora estou aqui. ― Levei-a pela mão até seu quarto. ―

Pode se deitar, que ficarei aqui até você dormir.

― Pode se deitar no sofá? ― Indicou um sofá-cama ao lado da sua

cama. ― É confortável, me deitei nele hoje mais cedo.

Era visível que ela não queria ficar sozinha.

― Tudo bem. ― Coloquei a mochila no chão, perto do sofá, e me

deitei, não tirando meus olhos dela. ― Pode se deitar agora.


Ela assentiu e fez o que pedi, embrulhando-se até o queixo, mas não

parando de me olhar como se temesse que eu desaparecesse.

― Não vou a lugar algum, pode dormir tranquila ― disse a ela, que

pareceu mais aliviada com minhas palavras.

― Obrigada. ― Sorriu para mim.

― É uma honra estar aqui ao seu lado, il mio cuore. ― Virei-me de

lado, observando-a.

― O que significam essas palavras no seu idioma? ― Suspirou. ―

Parecem bonitas.

― Se quiser aprender italiano, eu te ensino ― sugeri, não querendo

falar o significado daquilo para ela. Meu coração. Lily não estava pronta

para nada disso no momento.

Seu sorriso era radiante.

― Adoraria. Como se diz você é meu anjo em italiano? ― sussurrou.

― Sei il mio angelo ― falei.

Ela assentiu, mordendo o lábio.


― Você é isso para mim ― comentou, abalando meu mundo.

Se ela soubesse o que eu tinha acabado de fazer, não me compararia a

nada angelical.

― Sono un demone — comentei em italiano, sabendo que ela não

entenderia, então acrescentei, não lhe dando chance de retrucar: ― Está

tarde. Por que não dorme um pouco?

Apaguei a luz da cabeceira e deixei só a do banheiro ligada, assim o

quarto não ficaria envolto em escuridão. Ela tinha medo disso, notei nas

vezes em que acordou e estava no escuro na clínica, então passei a deixar as

luzes acesas.

Ela suspirou baixo.

― Não sei o que significam essas palavras, mas sei que não concorda

comigo por ser da máfia. Você me salvou de várias maneiras, não só naquele

dia, mas de mim mesma diariamente. Me mostrou que posso lutar e conseguir

me reerguer, não me afundar na escuridão sem fim. ― Sua voz era baixa. ―
Por isso eu o intitulo assim, e não há nada que possa fazer para mudar minha

mente.

Eu podia dizer que seria capaz de fazer várias coisas, incluindo o que

fiz mais cedo; isso a faria correr para longe. Entretanto, no fundo, não queria

que ela se afastasse e me olhasse com asco e pavor.

― Boa noite, Lily ― foi tudo que eu disse, encarando o teto escuro.

― Tenha bons sonhos.

― Com você ao meu lado, eu vou ter. ― Havia tanta confiança em sua

voz que abalou meu âmago, impossibilitando-me de respirar por um

segundo.
Liliane

Estávamos naquele local havia algumas semanas. A princípio, pensei

que logo iríamos embora, mas não foi o que aconteceu. Estava adorando

cada momento ali.

Víamos o pôr do sol todos os dias no barco. Eu poderia vê-lo da casa

em que estávamos, mas a visão do barco era melhor. Também passeávamos

pela praia.
Tinha me apegado àquela família tão profundamente que não suportaria

perdê-la. Tudo que era bom foi tirado de mim. Ao menos, percebia isso

pelas lembranças daquelas crianças que via em meus flashes de memória.

Saí para caminhar na praia antes de todos acordarem. O lugar era

deserto, nunca tinha visto ninguém durante aquele tempo ali. Isso me

estimulou a sair sozinha pela primeira vez. Não iria longe, só alguns metros,

para sentir a água e a areia sob meus pés.

Estava tão imersa em pensamentos que não ouvi alguém se

aproximando, até que ouvi uma voz:

― Não devia andar por aí sozinha. O lugar é cheio de tubarões e

assassinos.

Parei onde estava, pois não tinha para onde fugir. Além disso, estava

paralisada, o pavor me consumindo. Não devia ter saído sem o Samuel,

pensei.

Tudo em mim gritava para eu correr, mas o medo me consumia. Temia

que ele fizesse a mesma coisa que... Não sobreviveria se acaso aquilo
voltasse a acontecer.

― Por favor, não me machuque ― proferi as palavras, encolhida.

― Não vou machucá-la, pode ficar tranquila ― disse o homem.

Meus olhos não saíam dele. Seus cabelos eram loiros, e os olhos,

azuis-cobaltos, mas, apesar de claros, havia um abismo neles. Eu não

deveria ter notado isso, com tudo o que estava acontecendo, mas tinha algo

de familiar nele. Porém, o medo me impediu de tentar decifrar a sensação.

― Jamais a machucaria, Babochka. ― Era a mesma forma como o

menino das minhas lembranças me chamava. Russo, foi esse idioma que

Samuel mencionara.

Ficamos nos encarando por um tempo, enquanto eu tentava digerir as

lembranças e o presente. Era coincidência ele me chamar assim. Fazia anos.

Nos flashes, o garoto tinha em torno de 13, 14 anos, então era difícil

compará-lo àquele homem adulto, mas aqueles olhos e o apelido eram

familiares.
Seus olhos estavam em mim como se me avaliassem, mas ele não se

aproximou.

― Não acredito que esteja em minha frente, Babochka! ― Um

pequeno sorriso brotou em sua boca. ― Cresceu bastante, está diferente do

toquinho que era quando tinha oito anos.

Eu devia ir embora ou gritar pelo Samuel, pois ele não sabia que eu

tinha saído. Todavia, meus pés pareciam chumbo na areia. Arfei, de olhos

arregalados.

― Você... você me conhece? ― Havia aquela familiaridade nele...

além do fato de parecer ter me conhecido quando criança.

Seu sorriso sumiu.

― Não se lembra de mim? ― Havia algo em sua voz que não consegui

identificar. Suspirou. ― Faz anos, não é? Não achei que fizesse...

Não entendia por que eu ainda estava ali com aquele homem

desconhecido. Senti a dor em sua voz. A escuridão em seus olhos me

lembrava de como eu era quando prisioneira.


― Não. Só me recordo vagamente de algumas crianças, uma menina

pequena e alguns garotos. Havia um da minha idade mais ou menos, muito

protetor, e um mais velho, além de uma mulher cujo rosto não consigo me

lembrar ― sussurrei.

Não devia estar ali, falando com um estranho, mas correndo. Porém,

ele não iria me machucar, eu podia ver isso em sua expressão. Além disso,

era a única pessoa que sabia do meu passado e quem eu era.

― Entendo. ― Assentiu com o rosto sombrio e duro e olhou para a

direção da casa em que eu estava hospedada. Tinha uma pedra grande na

frente, que impossibilitava de nos verem. ― Como chegou a ele?

― Samuel me salvou de ser morta... ― Minha voz falhou. ― Ele me

protege.

― Não parece estar fazendo um trabalho bem-feito, afinal, você estava

aqui sozinha. ― Tinha um tom amargo em sua voz.

― Quem é você? Sabe do meu passado? Por favor, me ajude a me

lembrar dessas crianças ― pedi. ― Quem são elas? Quem eu sou? Pode me
dizer?

― É melhor não saber no momento. ― Esquivou-se das respostas,

aproximando-se, mas meu corpo congelou ainda mais. Então ele parou com o

cenho franzido. ― Alguém a tocou. ― Não era uma pergunta, aliás, sua voz

era de quem conhecia sobre o assunto. Sua expressão ultrapassava um

iceberg em frieza. ― Foi o Samuel?

Pisquei, entendendo o que queria dizer.

― Samuel me salvou! Ele é o único cujo toque não me faz repudiar ou

me sentir como se estivesse sobre brasas ― sussurrei. E ele nem me tocava

além dos dedos, apenas naquele dia em que surtei no barco e coloquei minha

cabeça em seu peito, inspirando seu cheiro, pois queria me acalmar.

Assentiu como se tivesse tomado uma decisão. Não parecia que ia me

contar.

― Preciso que vá até o Samuel e diga para partirem o quanto antes.

Ele mexeu com os negócios de alguém e foi descoberto. Têm pessoas atrás

dele. Mas vou atrasar quem está à sua procura.


Samuel? O que ele tinha feito para aqueles homens que o desconhecido

mencionara? Com que tipo de negócios ele havia mexido?

― O que quer dizer? ― sussurrei.

― Sabe quem ele é? ― O loiro me checava com o cenho franzido.

― Sim. Ele pertence à máfia. Mas não ligo para quem seja, o

importante é que ele está ao meu lado e me protege ― assegurei com

firmeza.

― Além do que fez ontem ao acabar com os negócios de alguém

poderoso, Samuel foi contra as ordens do seu capo e matou um homem há

algumas semanas. Se isso vazar, vai ser morto pelo próprio chefe, porque é

considerado traição ― disse, fazendo o sangue sumir do meu rosto. ―

Agora vá até ele e diga para seguir para outro lugar, longe da Austrália. Vou

lidar com tudo e cobri-lo.

― Por que você faria isso? ― Respirei fundo, aliviada com o fato de

que Samuel não correria perigo.

― Ele está protegendo você. Isso é o que basta. Agora vá.


Não me mexi.

― Não me disse quem é você.

― Melhor não saber, vai por mim. ― Sorriu, mas o gesto não

alcançou os olhos. ― Nos veremos de novo, espero que em situações

diferentes. Diga a Samuel que têm alguns corpos na mata, pois eliminei

algumas pessoas para salvar você.

― Alguém tentou... ― Olhei para a floresta.

― Lidei com eles. Ninguém vai machucá-la. ― Tinha um selo de

promessa em suas palavras.

― Me diga quem eu sou...

― Não posso. Se você for atrás do seu passado, correrá perigo, e não

posso deixar que isso aconteça. ― Deu um suspiro. ― Vá logo, ou Samuel

virá aqui, e será tarde demais. Não quero machucá-lo. Isso faria você sofrer,

e não quero isso.

Por um instante, eu não quis ir, mas, se Samuel aparecesse, eles

poderiam brigar um com o outro, e eu não queria que nenhum deles saísse
ferido.

Corri, mas parei antes de passar pela pedra e olhei mais uma vez para

trás, para o garoto do meu passado, um desconhecido, pois não me contou

nada que pudesse me fazer lembrar de quem éramos. Contudo, como disse

que nos veríamos de novo, eu estava contando com isso.

― Do svidaniya, printsessa[7] ― ouvi-o me dizer com um olhar triste.

Não sabia o significado, mas depois perguntaria ao Samuel. ― Vá. E não

diga a ninguém que faço parte do seu passado. Se alguém chegar perto de

você como hoje, acertarei as contas com ele.

Fiz o que pediu. Estava tão contente por ver alguém do meu passado

que, por um segundo, esqueci o medo do que ele disse sobre as pessoas que

queriam Samuel morto. Quando meu sangue esfriou, o pavor me tomou.

Quase tinha sido atacada de novo... se não fosse meu salvador misterioso.

Os homens que matou estavam na floresta. Ainda bem que não os vi.

― Samuel! ― gritei, correndo para chegar até ele e poder respirar

normalmente de novo.
Ele saiu porta afora só de calção e com uma arma na mão.

― Lily? ― Ele me avaliou, e seu rosto ficou duro. Parecia que tinha

acabado de acordar com meus gritos.

Eu estava na passarela de madeira. Não parei, só corri para os seus

braços. Precisava sentir seu cheiro familiar, que expulsava todos os

pensamentos e medos da minha cabeça.

― O que aconteceu, Liliane? ― Ele estava preocupado.

― Precisamos ir embora agora. ― Minha respiração estava desigual.

Ele me empurrou um segundo para ver meus olhos molhados, mas eu

estava mais preocupada com sua vida.

― Liliane, me explica o que está acontecendo. Alguém te machucou?

Ou tentou?

Respirei fundo.

― Eu estava na praia, pois essas semanas não vi ninguém por aqui,

então achei que pudesse caminhar sozinha, mas um rapaz apareceu. ―

Estremeci.
Seu corpo se sacudiu de susto.

― Ele fez ou tentou algo? ― repetiu a pergunta anterior, depois

mandou uma mensagem pelo seu telefone. A resposta o deixou mais sombrio.

― Não. Mas disse que na floresta tinha alguns homens que, inclusive,

ele matou para me salvar. Afirmou que queriam me fazer mal. ― Encolhi-

me, tremendo.

Ele me puxou para mais perto, olhando cada canto.

― Por que esse homem te salvou? Ele disse algo?

Queria contar que era o mesmo garoto das minhas lembranças, mas ele

tinha pedido que eu não revelasse. E se eu dissesse, e o Samuel o matasse?

Não sabia por que, mas meu coração doeu com essa ideia.

― Liliane! ― chamou-me com um suspiro.

― Só disse que tem gente atrás de você porque mexeu com os

negócios de alguém e que você matou uma pessoa escondido do seu chefe, e

isso era traição. Disse que iria encobrir tudo para que não recaísse sobre

você, mas, para isso, precisávamos ir embora da Austrália ― finalmente


falei após uma respiração aguda. ― Por que matou um homem sem ser a

pedido do seu chefe?

Sua expressão ficou tão escura quanto a noite.

― Foi um dos que tocou em você ― disse sem um pingo de emoção,

fazendo-me arregalar os olhos. ― É isso o que eu sou, Lily, um assassino.

Sacudi a cabeça, tonta.

― Não estou chocada por tê-lo matado, mas pelas razões por trás

disso. Não percebe que pode ser morto ao fazer justiça por mim?! ― Minha

voz se elevou, pegando-o de surpresa, até a mim. ― Não quero que seja

ferido ou coisa pior!

― Não vou ser pego ― afirmou calmo.

― Jura? Não é o que esse homem disse! Se for pego, será considerado

um traidor, e a sentença é a morte. Não posso perder você, então, por favor,

esqueça essa vingança. Não quero isso se, no final, eu tiver que perdê-lo.

― Juro que nunca irá me perder ― prometeu. O selo de juramento

estava em cada palavra.


Ficar ali, nos braços dele, sentindo o calor de sua pele nua, fez-me

sentir coisas estranhas, um calor em todos os lugares, principalmente em meu

coração. Seu peito tinha tatuagens de várias cores que lhe davam uma beleza

exótica. Fiquei tentada a passar as mãos por elas e beijá-las. Outro lugar em

meu corpo de repente ficou quente, o que me fez ofegar.

― O que foi? ― Samuel questionou. Sua voz ainda demonstrava

preocupação.

Minhas bochechas ficaram vermelhas com os desejos estranhos e

assustadores que atravessavam meu corpo.

― Nada ― respondi, meio ofegante. Afastei-me, encarando a casa e

de costas para ele. Podia sentir seus olhos em mim, mas ele não disse nada.

Fiquei grata por não ter notado meu estado. ― Vamos embora agora. O rapaz

falou para que fôssemos o quanto antes. ― Respirei fundo.

― Preciso ir checar as coisas. Se alguém sabe o que fiz, não posso

deixar pontas soltas, preciso eliminá-las. Agora entre e arrume suas coisas

enquanto resolvo isso.


Pisquei.

― Vai matá-lo? ― indaguei de forma dúbia, virando-me para ver sua

expressão. ― Ele me salvou e vai ajudá-lo a ficar coberto.

― Liliane, não posso deixar esse segredo nas mãos de alguém que

nem sei quem é. Não é só minha vida que está em jogo aqui, mas a do filho

do meu chefe. Nós estamos tentando fazê-lo capo para assim destruir o pai, o

homem que deu você àqueles infelizes. As meninas que estão presas naquele

lugar, se não fizermos nada, terão o mesmo destino que você teve. Minha

família e você... ― Respirou fundo.

Meu coração rachou ao pensar nas meninas naquela fazenda.

― Eu achei que você as tinha salvado também ― sussurrei.

Não tínhamos falado muito sobre isso, eu estava tão focada na dor que

sentia que nem pensei nas outras garotas. Nesse momento me senti culpada

por isso. Não queria que elas ou qualquer outra pessoa tivessem o mesmo

destino que eu.


― Não, foi só você. Estamos tentando ajudar as demais. ―

Aproximou-se mais de mim. ― Por isso preciso...

― Eu sei que precisa, mas não quero que ele seja morto. ― A dor

perfurava meu coração com essa ideia.

Ele franziu a testa.

― Sabe quem é essa pessoa?

― Um dos meninos da minha lembrança. ― Apesar da promessa, senti

que tinha de falar para, assim, evitar que Samuel fosse atrás dele. Além

disso, não gostava de mentir. ― Não sei quem é, mas não suporto a ideia de

ele ser machucado.

― Lembranças? ― Avaliou-me. ― Ele disse algo mais?

― Não, disse que era melhor eu não saber, ou correria perigo. E disse

também que, se você deixasse que eu fosse machucada, ele viria acertar as

contas. ― Repeti as palavras que o rapaz me disse em sua língua. ― O que

isso significa?

― É russo. Significa Adeus, princesa.


― Mas ele falou que vamos nos ver de novo ― sussurrei. Será que

tinha mentido só para eu voltar para casa?

― Vou precisar dar uma saída, mas fique aqui. ― Meus olhos se

arregalaram. ― Não vou matá-lo, mas preciso saber quem ele é. Não posso

ficar no escuro.

Assenti, mais calma. Confiava nele, não havia nenhum motivo para não

confiar. Samuel não era de mentir; na verdade, era muito honesto comigo.

― Obrigada por deixá-lo vivo. ― Meu coração estava mais aliviado

após sua promessa.

Entramos na casa, então Samuel se vestiu e saiu, deixando-me ali com

uma nova preocupação. Quem era o rapaz que me salvou? Por que não me

contou quem era? Esperava descobrir logo e que ninguém saísse ferido no

processo.
Samuel

Como eu tinha deixado aquela porra acontecer? Chequei todos os

buracos, não devia ter permitido que algo daquele patamar não fosse

entrevisto. E o pior, quão perto Lily esteve de ser machucada de novo ou

coisa pior?

― Desculpe, chefe, não a vi sair da casa. Ela nunca fez isso sozinha

antes ― disse Moor.


Eu estava com raiva, mas não dele, e sim de mim por ter deixado

aquilo acontecer.

― Não viu ninguém ao redor? Esse desconhecido afirmou que matou

homens que pretendiam ir até ela e deixou os corpos na mata. ― Cerrei os

punhos.

― Não. Devem ter vindo da parte de baixo, por aqui não passou

ninguém.

Eu devia ter trazido mais homens, porém não queria chamar tanta

atenção.

― Fique de olho. Se alguém se aproximar da casa além de mim, atire

antes e pergunte depois. ― Saí dali com a intenção de descobrir o que havia

acontecido, embora não acreditasse que o cara ainda estivesse na praia.

Cheguei ao local que Liliane tinha mencionado e entrei na floresta.

Nem precisei andar muito e já vi três corpos amontoados. No fundo, fiquei

feliz por aquele homem tê-la salvado. Sentia-me gelado com a ideia de

aqueles homens violentando Lily, e por pouco não o fizeram.


― Porra! ― praguejei, olhando ao redor.

De repente um telefone tocou. O aparelho estava perto de um dos

cadáveres. Em cima dele tinha um pedaço de papel com uma frase que dizia:

“защити ее”. Zashchiti yeye, ou seja, proteja-a.

Peguei o telefone e o atendi.

― Quem é você? ― indaguei, sabendo que era o homem que Liliane

encontrara. Ninguém deixaria um telefone se não fosse para mandar uma

mensagem.

― Indo direto ao ponto. Gosto disso. ― Sua voz não demonstrava

nada, então era difícil decifrar alguma coisa.

Verifiquei os corpos em busca de tatuagens para identificá-los.

― Não precisa checar os cadáveres, não tem nada neles ou com eles

que os ligue a mim. Eram só piões no jogo. O chefe deles era o dono do

negócio de prostituição de menores que você entregou aos federais ontem, o

Vênus Bar.

― Você é um dos sócios? ― apontei.


Ele riu.

― Não, nem os conhecia até a noite passada, quando os vi espionando

você.

― Isso não explica o fato de você saber o que fiz. Por que anda me

espionando? ― Precisava me controlar. Irritava-me que meu segredo

estivesse nas mãos de um desconhecido.

― Tenho meus motivos. ― Parecia vago. ― Não procurava você nem

sabia que ia matar o meu alvo, até que vi o que fez. Seja como for, aquele

verme teve o que mereceu.

― Seu alvo? ― inquiri. ― Isso significa que é um assassino de

aluguel?

― Posso ou não ser um. No fim das contas, nós somos todos

assassinos, não é? ― Não consegui identificar nada em sua voz. Parecia

enigmático.

― Chega de enrolação. Me diga quem é, ou vou achá-lo e matá-lo ―

falei de modo frio.


― Não se preocupe com quem sou, agora foque em limpar essa

bagunça. Eu teria feito isso, mas, como suspeitei, você não iria apenas

embora como pedi. Sabia que voltaria para tentar me silenciar. ― Não havia

emoção em suas palavras. ― Mas estou curioso. Ela não sabe que você viria

atrás de mim para me matar, mesmo após ter-lhe dito que não o faria.

― Como você... ― Interrompi-me, olhando através da mata para a

casa e imaginando que pudesse ter uma escuta lá, mas meus olhos captaram

um objeto no céu sobrevoando a praia. Ele estava me vendo ali, enquanto eu

revistava os corpos. ― Drones! Foi assim que soube o que eu fiz.

Eu não tinha visto nenhum homem, mas não procurei por drones. Mas

que merda!

― Sim, mas isso não vem ao caso. Desviei a atenção deles para outro

lugar. Agora pegue a garota e a leve embora. Apagarei os rastros de vocês.

― Não preciso da sua ajuda, só quero saber quem é você e por que se

preocupa com ela.


― Sim, você precisa, mas, por ora, a única afirmação que terá de mim

é que, se alguém machucá-la, eu o caçarei e o desmembrarei. Você não

morrerá pela picada de uma cobra qualquer, sua morte será lenta e dolorosa

― avisou. ― Outra coisa, vou descobrir quem a machucou e os farei pagar

com lágrimas de sangue.

― Fique fora disso, vou resolver do meu jeito. ― Trinquei os dentes.

― Não, eles não merecem morrer assim. ― Seu tom gotejava gelo. ―

Você não pode fazer o que eu posso e vou, então é melhor não ficar em meu

caminho, ou irá morrer também.

Peguei minha arma e a apontei para o drone.

― Nos vemos em breve. ― Não temia suas ameaças, só precisava

saber quem ele era. Não podia enfrentar um adversário sobre o qual não

sabia nada.

― Gostaria que não tentasse me achar, pois, no final, a única que sairá

machucada será ela. Nós não queremos isso. ― Detectei algo em sua voz,

mas não consegui descobrir o que era. ― Além disso, se alguém do passado
dela souber que está viva, ela correrá perigo. Realmente quer isso? Se

alguém a tocar de novo, eu a levarei para longe de você, isso após

esquartejá-lo.

― Fique longe dela, ou eu mesmo irei drenar seu sangue pouco a

pouco ― rosnei.

― A proteja, não importa quem precisar matar para fazer isso. ― Ele

ficou em silêncio um segundo. ― Em breve, vou procurar você. Não venha

atrás de mim se realmente se preocupa com ela.

A linha ficou muda, deixando-me enfurecido. Atirei contra o drone,

que caiu, espatifando-se na praia, mas isso não amenizou em nada minha ira.

― Maldição! ― Levei as mãos aos cabelos em um gesto exasperado.

Liguei para Bojo e pedi que viesse limpar tudo ali. Era uma área

particular, mas eu não queria correr nenhum risco de alguém ver os corpos, o

que me obrigaria a ter que cuidar de mais uma ponta solta.

Quinze minutos mais tarde, Bojo chegou em um barco e, juntos,

colocamos os corpos dentro e os cobrimos com sacos.


― São homens da casa de prostituição a qual fechamos ― informou

ao olhar para os homens.

Após matar o Peter, descobri alguns podres dele, incluindo sua

influência no tráfico de menores. É claro que sabia de algumas sujeiras dele

antes disso, mas foi bom saber mais. O maldito senador tinha uma casa de

prostituição clandestina, ficava de “férias” e vinha à Austrália apenas para

observar o local. Mandei os policiais certos para o lugar a fim de derrubá-

lo.

― Pelo visto, sobraram alguns vermes. ― Sacudi a cabeça.

A morte de Peter não devia ter causado suspeita, mas talvez sim o fato

de eu tê-lo denunciado. Deveria ter deixado como estava, só matado o

maldito. Porém, havia muitas jovens naquele lugar que tinham sido

sequestradas, então eu não podia simplesmente ignorar.

― Desculpe, eu poderia ter visto isso ― Bojo lamentou com tom triste

e enraivecido.
Assenti, não querendo soltar minha fúria sobre ele. Não era sua culpa,

mas minha, por não ter feito o trabalho de casa eu mesmo ao invés de mandar

outra pessoa em meu lugar. Contudo, não queria deixar a Liliane.

Assim que ele saiu, liguei para o Matteo. Ele não ia gostar disso.

― Samuel ― atendeu.

― Temos um problema ― informei.

― Só um minuto. ― Ouvi-o falando com alguém, então uma porta

sendo batida e silêncio. ― O que aconteceu? Que tipo de problema surgiu?

― Foi direto ao ponto.

Relatei o acontecido com Liliane e comigo, além da ligação do sujeito

estranho.

― Lis conhece esse homem. ― Não era uma pergunta. ― Ele parece

querer protegê-la. Será algum parente dela?

― Não sei, mas ela o viu em suas lembranças, apesar de não saber

quem é. Sua mente está confusa. Mas percebi que se preocupa com o cara.

Uma parte dela deve tê-lo amado no passado, quando criança. ― Só podia
ser isso. Era outra coisa de que eu não estava gostando. ― O miserável não

quis falar qual sua ligação com ela.

― Precisamos saber alguma coisa do passado da Lis. Será que ela não

se lembra de nomes ou cidades?

― Até agora nada, chefe. Eu vou apurar mais o que aconteceu,

procurar esse homem, mas já adianto que ele é russo e um assassino de

aluguel. Ele sabe dela. Entretanto, se formos atrás dele, poderemos ter

problemas, e, se não formos, também. Essa merda fede. ― Olhei para o

oceano. ― É seguro voltar para casa agora?

― Sim, meu tio soube o que “aconteceu” com sua avó e acreditou,

assim como meu pai. Não suspeitaram de nada. A mentira e a consequente

viagem foram só para o caso de eles tentarem checar alguma coisa, então

seria melhor todos estarem longe. E, lógico, a desculpa perfeita para você

fazer o que precisava sem levantar suspeitas. Apesar de não ter dado certo,

pois alguém que não conhecemos sabe desse segredo. ― Deu um suspiro

duro.
― Eu sei. Devia ter checado melhor as coisas, não era para ter

cometido esse erro. ― Cerrei os punhos.

― Vamos tentar encontrar algo do passado da Liliane, assim

acharemos esse cara ― ordenou. ― Volte para casa, assim tentaremos

descobrir a respeito de alguns assassinos de aluguéis russos. Talvez

mostrando uma foto para Lis, ela possa reconhecê-lo.

― Certo, vou arrumar as coisas. ― Não gostava dessa sensação de

impotência. ― Desculpe, chefe. Isso está acontecendo porque interceptei as

meninas mantidas em cativeiro.

― Não se culpe por isso, eu teria feito o mesmo, não ia ver algo assim

e permitir. Vamos resolver tudo ― assegurou.

― Certo, logo estarei aí. ― Desliguei e voltei para casa, encontrando

vovó e Bonnie na sala.

― Vamos voltar para casa ― avisei às duas, passando por elas e indo

em direção ao quarto da Liliane, que devia estar lá. Estranhei o fato de ela

não ter vindo ao meu encontro, como sempre fazia.


― O que está acontecendo, Samuel? ― perguntou minha avó, ficando

de pé.

― Nada com o que precise se preocupar. Está tudo bem. ― Virei-me

para ela, escondendo minhas emoções ainda mais.

Estreitou os olhos.

― Não parece ser nada ― ralhou. ― Ouvi gritos, então depois você

saiu correndo, e agora Liliane está no quarto.

― Tudo foi resolvido, só precisamos partir ― informei, não querendo

discutir com ela.

Vovó passou por mim para ir ao seu quarto e me lançou um olhar

preocupado.

― Vó, está tudo bem, eu garanto.

Por enquanto, estava, mas, até quando, eu não sabia.

Ela assentiu e entrou em sua suíte.

― Seja o que for que tenha acontecido, alterou as emoções de Liliane.

Ela está no quarto e não quer abrir a porta ― disse Bonnie. ― Talvez
consiga convencê-la a abri-la para você.

― Porra! Não era para isso acontecer. ― Suspirei e bati à porta do

quarto. ― Lily, abra a porta.

Ouvi som de choro do outro lado.

― Querida, por favor, abra. Preciso saber como você está ― pedi

com a voz calma.

Não demorou muito, e a porta foi aberta. Ver seus olhos vermelhos

acabou comigo.

― Ei, pequena... Lamento tanto por tudo isso recair sobre você...

Sua dor me atingia como uma marreta.

Ela fungou, foi até a janela e ficou lá, fitando o oceano.

― Quando ele disse que havia homens perto de mim que tinham a

intenção de... na hora, eu fiquei paralisada, sabe? Fiquei contente por ele ter

me salvado e porque me disse que sabia quem eu era. Desejo tanto descobrir

quem eu sou. ― Respirou fundo. ― Bonnie disse que pode ser que eu não

me lembre por ter sofrido um trauma profundo que me impede de acessar


memórias dolorosas. Então, se eu recordar, posso me deparar com um

tornado pior do que o que vivo agora em minha cabeça. Mas eu preciso

saber...

― Eu sei, Raio de Sol. ― Não me aproximei, porque não sabia como

tudo aquilo a tinha afetado. ― Juro que vou descobrir quem você é e a razão

de o desconhecido não ter revelado nada. Talvez ele saiba desse trauma e

queira protegê-la.

― Não quero que me protejam! ― Sua voz se elevou, fazendo-a

piscar. ― Desculpe.

Percebi que ela podia ser doce e meiga, mas também tinha uma veia

explosiva. Viver em cativeiro tolheu seu lado impetuoso. Eu esperava que

um dia pudesse trazer esse seu lado de volta.

― Não precisa se desculpar. Agora vamos embora. Juro a você que

irei descobrir quem você é.

― Não quero que se machuque. Ele me disse que, se eu o procurasse

ou pesquisasse sobre o meu passado, as coisas sairiam do controle ―


revelou, virando a cabeça em minha direção com um olhar suplicante. ―

Não quero que você seja ferido ou coisa pior.

― Não, estou bem ― disse, querendo tranquilizá-la.

― Agora, mas...

― Eu vou ficar bem. Pare de se preocupar ― pedi. ― Vai dar tudo

certo. Só espero que não deixe o que aconteceu hoje estragar sua evolução.

― Não vou deixar ― prometeu ela.

― E, quando voltarmos, devemos procurar um neurologista só para

termos certeza do tipo de amnésia que você possui. Pode ser? Quem sabe ele

possa ajudá-la? ― Eu estava contando com isso.

― Um médico? ― indagou.

― Uma médica, não preocupe. Agora arrume suas coisas, vou pegar as

minhas. ― Virei-me para sair, mas parei quando ela me chamou. Olhei para

ela. ― Sim?

― Obrigada por me ajudar a manter meus pés no chão. Posso estar

desanimada, mas você sempre me motiva a me levantar e confiar ainda mais.


― Havia tanta sinceridade em suas palavras que meu peito sacudiu. ― E lhe

agradeço por ter deixado aquele homem vivo.

Liliane não imaginava que eu realmente tive a intenção de matar o

infeliz; só mudei de ideia após falar com ele e descobrir que se preocupava

com ela, embora eu ainda não soubesse de que modo.

― Estou aqui para isso. ― Não importava o que eu precisasse

enfrentar no futuro, esperava ter êxito, ou teria que quebrar a promessa que

tinha feito a Liliane e matar o homem que a havia salvado fosse ele quem

fosse.
Samuel

― Vai dar certo, querida, vamos lá.

Eu tinha convencido Liliane a ir a uma clínica. Precisava saber a razão

de sua amnésia, não só porque necessitava de informações, mas também pelo

seu bem-estar.

― Não há ninguém aqui neste momento, e vamos pelos fundos ―

prometi. Queria tanto que ela se sentisse tranquila... além de protegê-la para
que não descobrissem que estava viva.

Seus olhos estavam atentos.

Eu tinha mandado Moor na frente para limpar o caminho. Como era

uma clínica particular, isso foi possível, afinal o dinheiro é capaz de

comprar quase tudo nesse mundo.

― Relaxa, estou aqui com você ― assegurei.

Lily assentiu, e, após isso, entramos no estabelecimento. Andamos por

um corredor até chegar ao consultório. Dentro dele tinha uma médica de

meia-idade. Eu a havia escolhido, pois sabia que Liliane se daria melhor

com uma senhora.

Apertei sua mão assim que entramos.

― Senhor Mancini, como vai? ― A senhora sorriu para mim e depois

para Lily, ao meu lado. ― Liliane, certo? Sou a doutora Adeline Lopez.

Como vai?

Eu havia explicado um pouco da situação à mulher, deixando as partes

sombrias de lado, claro. Só disse que Liliane tinha sido machucada, por isso
evitava o toque.

― Sim ― respondeu Lily, nervosa.

― Sentem-se. ― A médica apontou para as cadeiras à nossa frente.

Puxei-as, e nos sentamos.

― Então vamos começar. Desde quando não se lembra do seu

passado? ― perguntou a neurologista.

Lily respirou fundo e contou tudo da forma como tínhamos combinado

antes de chegar ali. Não podíamos simplesmente dizer onde ela tinha estado,

mas também não poderíamos mentir acerca de tudo, já que precisávamos

descobrir o que acontecera de fato.

― Então é isso, doutora. A única coisa que sei é que na época, eu

tinha oito anos, e só sei disso porque uma lembrança me revelou. Não sei o

motivo que me levou a ficar com a mente em branco antes dessa idade. Não

é normal uma criança esquecer tudo, não é?

― Depende do que você passou. Um trauma pode anular suas

lembranças. Você também pode ter batido a cabeça ou alguém pode tê-la
machucado. ― A mulher me lançou um olhar.

― Não me recordo disso, só tenho algumas lembranças que

começaram a surgir há pouco tempo. ― Ela contou sobre os flashes que

tinha tido até o momento.

― Você conhece os rostos, mas nenhuma das memórias informa quem

eles são e onde moravam. ― Ela avaliava Lily.

― Sim, não me lembro de nada que me leve a saber quem somos ou de

onde vim.

― A concussão cerebral nada mais é que um trauma leve sofrido pelo

cérebro. Um impacto externo causa o movimento do órgão dentro do crânio e

causa lesões. Não se trata de nada definitivo. Essas lesões tendem a regredir

até a normalidade. No entanto, é necessário um tempo para que o cérebro se

recupere. Se isso não acontece, traumas consecutivos podem levar a danos

cognitivos permanentes, derrames e podem até mesmo causar a morte.

― Vou morrer? ― indagou Lily.


Eu não estava gostando do caminho que aquela consulta estava

tomando.

― Não, senhorita, afinal você não se lembra de nada desde que tinha

oito anos. Para entender melhor, a concussão cerebral pode ser comparada a

torcer o tornozelo. Você precisará de repouso e não poderá movimentar o pé

por algum tempo, até que ele se recupere e você possa voltar às atividades

normais. A diferença é que, no cérebro, esse tipo de lesão não é muito

perceptível e, por isso, exige mais cuidados. Os sintomas são tontura, dores

de cabeça, dificuldade de concentração, alteração do humor, fadiga, náuseas,

vômito e o famoso “ver estrelas”. Em casos mais graves, pode haver a perda

de consciência e a perda de memória. Isso pode acontecer com uma simples

pancada na cabeça.

― Tive tudo isso quando... ― Piscou. ― Uma vez desmaiei, pois a

dor de cabeça era forte demais.

― Vamos fazer exames, mas tudo indica que seja isso. Assim

trabalharemos em cima dos resultados.


Após Liliane fazer uma ressonância magnética e uma tomografia

computadorizada, ficamos conversando com a doutora por um tempo. Ela me

aconselhou a levar Lily a mais lugares para surgirem outras lembranças,

afinal ela se lembrou de algumas coisas quando estava no jatinho e no barco

há mais de dois meses.

Fiquei otimista que ela melhoraria, pois os exames preliminares não

detectaram nada grave. Isso foi um alívio. Ficamos de voltar depois para

saber os demais resultados e se haveria um tratamento.

Após deixar Liliane em casa, fui para a fazenda encontrar Matteo.

Tínhamos que checar alguns negócios no cassino.

Ele estava à porta de um dos quartos conversando com uma ruiva, a

Evelyn. Quando me viu, despediu-se dela e veio até mim. Depois seguimos

para o seu carro.

― Descobriu alguma coisa? ― Ele sabia que eu tinha levado Liliane

ao médico.
― Não muito, mas sabemos que ela deve ter batido a cabeça ou

sozinha ou por intermédio de alguém. ― Trinquei os dentes. ― Se alguém

fez isso, quando eu o pegar, vai virar cinzas.

― Vamos descobrir a verdade ― disse com um suspiro. ― Também

não tive êxito com Evelyn. Ela mal se lembra de algumas coisas, era nova

demais na época.

― Ou deve ter passado por algo traumático e a mente esqueceu tudo.

― Lembrei-me do que a médica disse sobre Liliane. ― Ela me sugeriu levá-

la a lugares diferentes, quem sabe assim suas lembranças voltam aos poucos.

― Pode ser... No entanto, com Evelyn não posso fazer isso. Não dá

para tirá-la daqui por enquanto. ― Entrou no carro; fiquei ao seu lado no

banco de trás. Moor iria dirigir para nós.

― Leve revistas, um celular e mostre a ela o mundo através disso.

Quem sabe? ― sugeri.

― Vou fazer isso durante as rondas em que os meus guardas estiverem

a vigiando ― assentiu.
Ficamos em silêncio até chegar ao cassino, cada um com seus

pensamentos. Eu estava focado em levar Liliane a vários lugares, só

precisava dar mais tempo a ela.

Entramos pela sala nos fundos, onde Luca se encontrava. Meu telefone

tocou.

― Oi, Foster. O que tem para mim? ― Ele era um dos homens que

deixei atrás dos meus alvos. Ficou de vigiar cada um e me informar sua

rotina.

― Chefe, não vai gostar de saber disso. Olhe a notícia que enviei para

seu e-mail, depois me fale o que preciso fazer ainda.

― Vou checar. ― Desliguei e abri o correio eletrônico. A merda que

estava ali me fez piscar.

― Filho da puta! ― rugi, querendo esmagar aquele infeliz com meus

punhos.

― Quem você quer matar? ― perguntou Matteo, percebendo meu

estado alterado.
― Olha isso! ― Entreguei-lhe meu celular, com a tela aberta na

notícia fresca, daquele mesmo dia.

― O que é isso? ― Leu o conteúdo, e, à medida que o fazia, sua

expressão foi se fechando. ― Merda!

No jornal estava escrito que Félix Sparks, um dos homens que havia

tocado em Liliane, foi encontrado aos pedaços em uma viela na Itália. Outro

deles, Morton Parsons, também foi encontrado despedaçado em uma casa na

França.

― Aquele desgraçado fez isso! Falei para ele não se meter, mas não

ouviu! Agora o infeliz vai atrás de todos, tenho certeza. ― Eu andava de um

lado a outro na sala. ― Não entendo, como o infeliz descobriu os nomes?

― Não sabemos...

Cortei Luca:

― Não?! ― rosnei com os punhos cerrados. ― Ele me avisou que iria

atrás de quem a machucou. Ao que parece, na opinião dele, não posso

resolver o problema eu mesmo. ― Não tinha me dito isso, mas o que estava
fazendo mostrava exatamente que era assim que o bastardo pensava. ― Não

contava que fosse descobrir os nomes.

― O cara é bom. Parece ter muita fúria nele. ― Luca olhava as fotos

vazadas. ― Devem ter hackeado as filmagens ou tem algum infiltrado em

nossa organização!

― Mas que porra! ― Eu tinha encoberto tudo. Ao menos, pensava que

sim.

― Vamos tentar descobrir se tem algum infiltrado ou se foi hackeando

que ele obteve os nomes dos indivíduos. Então está com vantagem ―

apontou Luca. ― A única forma seria que nós fossemos atrás dos outros

antes que não reste nenhum.

― Não é bem assim, não podemos simplesmente ir lá e acabar com

todos. Deixe que ele faça isso, Samuel. Você ao menos sabe que os malditos

sofreram muito nas mãos desse homem ― disse Matteo. ― Vamos deixar

esse cara cuidar dos outros; você fez seu ponto e eliminou alguns. Nós
vamos focar nas meninas da fazenda, em descobrir quem são os parentes de

Lis e Evelyn, além de arrumar mais aliados.

― Eu queria acabar com eles eu mesmo; queria fazê-los pagar caro.

― Cerrei a mandíbula.

― Samuel, os miseráveis estão pagando. Viu o estado desses homens?

Estavam cortados aos pedaços, seus órgãos genitais estavam em suas bocas.

Garanto que sofreram muito antes de morrer. Com os outros não vai ser

diferente ― Matteo frisou. ― Então vamos retornar ao trabalho e apurar as

coisas. ― Mudou de assunto. ― Luca irá para a Itália, onde tentaremos

buscar mais aliados para o nosso lado.

Ele deu um suspiro.

― Cuidarei disso ― assegurou.

― Fique longe das irmãs dos Morellis ― ordenou Matteo ao primo.

― Como se eu fosse tocar na garota. Ela é só uma criança. ― Sacudiu

a cabeça com um estremecimento. ― Sou só grato a ela por ter me ajudado

uma vez.
Eu não sabia o que tinha acontecido, mas parecia que aquilo comovera

Luca, pois ia direto à Itália para ver a tal garota.

― Ótimo. Só tome cuidado para não ser morto ao visitá-la.

Sacudi a cabeça. Não queria desistir da minha vingança, mas a única

forma de impedir que aquele filho da puta pegasse os outros malditos antes

de mim seria descobrir quem o infeliz era. Depois eu acertaria as contas com

ele, certamente apreciaria cada momento.


Três anos depois

Liliane

Os anos em que eu vinha morando com Samuel estavam sendo os

melhores da minha vida, ao menos pelo que eu me lembrava. Sentia que

estava em um sonho lindo e temia acordar e descobrir que tudo não passava
de uma ilusão, embora soubesse que era verdade, pois, graças a ele, passei a

sorrir mais. Podia sentir o nevoeiro afastando-se aos poucos de minha

cabeça, mesmo que ainda tivesse pesadelos de vez em quando. Não achava

que aquilo um dia sumiria por completo, porém, com Samuel ao meu lado,

era mais suportável lidar com tudo.

Ele nunca se cansava de tomar conta de mim. Tinha de admitir que

temia que isso acontecesse com o tempo, mas se provou o contrário, nunca

saindo do meu lado.

Samuel me deu o tempo de que eu precisava, e era grata imensamente.

Sabia que era livre agora, não só fisicamente, mas mentalmente também.

Tinha chegado a um momento da minha vida em que não queria continuar

assim, a vida toda sendo uma concha fraca e frágil; queria ser forte como aço

ou uma rocha inabalável. Faria o possível para vencer o resto do medo que

vivia em mim. Com esse pensamento, decidi dar um passo a mais.

Ao longo dos anos, passei a conseguir sair de casa, não muito longe,

só alguns quarteirões dali, bem como a praia, quando não tinha ninguém.
Gostava de ver o pôr do sol de lá, pois era mais lindo do que visto do

terraço.

Naquele dia, acordei querendo fazer justamente isso, mas não sozinha,

e sim com Samuel.

Levantei-me antes do amanhecer, como sempre, coloquei minhas

roupas e saí do quarto. Fazia isso direto, mas, naquela manhã, não veria o

nascer do sol na sacada, mas na praia.

Subi para o quarto de Samuel. O queria comigo. Estava ansiosa por

passar a manhã ao seu lado.

Samuel vinha trabalhando muito naqueles anos, especialmente nos

últimos meses, para libertar as meninas do cativeiro na fazenda. Eu tinha fé

em Deus e nele de que tudo daria certo.

Bati à porta do seu quarto, mas ele não respondeu, sinal de que devia

estar dormindo. Toda vez que eu o chamava, ele acordava. Aquela semana

devia ter sido muito corrida para ele, estava chegando tarde da noite do

trabalho todo dia.


Pensei que poderia deixá-lo descansando e ir à praia sozinha, mas

queria imensamente a sua presença.

Entrei no quarto em silêncio e me aproximei da cama, mas parei diante

do monumento adormecido. Fiquei ali, embasbacada com tamanha beleza.

Samuel estava sem camisa, mostrando seu belo peitoral tatuado, um

lençol jogado sobre seu quadril.

Minha respiração perdeu o compasso com aquela visão dos deuses.

Nada era mais magnífico que aquele homem.

Durante aqueles anos, o que eu sentia por ele mudou. Antes, era apenas

grata por ele me ajudar; ainda era, mas depois passei a gostar dele como

amigo e, no decorrer do tempo, me apaixonei perdidamente. Não sabia dizer

o momento certo em que isso aconteceu, mas eu o amava. Quem não se

apaixonaria por um homem perfeito como ele? Era tudo que uma mulher

desejava, protetor, carinhoso e um amor de pessoa.

Quando descobri meus sentimentos, até pensei em contar a ele, mas

temia o que poderia acontecer se caso soubesse. E se ele não retribuísse?


Outra coisa, não notei nenhuma nuance de que Samuel pudesse ter algum

sentimento diferente por mim, parecia que gostava de mim como fazia com

Bonnie. Ele me tinha como uma irmã também? Só em imaginar isso fazia meu

peito doer. Se eu ao menos percebesse que ele sentia algo, abriria o jogo,

mas sua expressão não demonstrava nada.

Respirei fundo, sacudindo a cabeça. Forcei meus passos a seguirem

adiante, sentei-me no sofá ao lado de sua cama e fiquei olhando-o dormir, a

boca entreaberta me deu ideias de como seria beijá-lo... Passei a pensar

muito sobre isso. O desejo chegava a doer quando eu resistia a tocá-lo.

― Por que me olha tanto? ― Aquela voz rouca e sexy fez-me respirar

de modo ainda mais irregular.

Seus olhos castanhos me encaravam esperando minha resposta.

Estavam quentes, ou era eu que me sentia como se estivesse sobre chamas?

Porque você é lindo, pensei em dizer, mas me controlei, e o que disse

foi:
― Pensando se te acordava ou não para podermos ver o nascer do sol

juntos.

Ele me avaliou um segundo e depois sacudiu a cabeça sorrindo.

― Por que está sorrindo? ― sondei com o cenho franzido.

― Nada, apesar de saber que não era isso que estava pensando. Mas

espero que um dia me diga seus pensamentos de verdade. ― Sentou-se na

cama, fazendo a colcha cair em seu quadril.

Meus olhos foram para seu peito e seu abdome, tão próximos a mim

que perdi o fio da meada. Não achava que ele iria gostar de saber o que eu

andava pensando. No começo, esses pensamentos me deram medo, mas já

fazia alguns meses que não temia mais, só ansiava por tocá-lo, mesmo não

podendo tê-lo. Meu corpo estava incendiado por vê-lo daquele jeito.

― Lily... ― Sua voz soou grave, fazendo-me encontrar seus olhos.

Meu rosto ficou vermelho por ter sido pega admirando seu corpo. ― Te faz

mal me ver sem camisa? ― sondou com aquela avaliação que fazia com

frequência. ― Se quiser, posso colocar uma.


Me faz mal, sim, mas não da maneira que pensa.

― Não, só estava pensando que gostaria de fazer uma tatuagem

também. ― Tinha pensado nisso há algum tempo, embora não fosse o que

pensava agora. Entendi que seria melhor dizer isso do que falar a verdade,

que eu estava babando pelo corpo dele.

No fundo, eu não sabia o que aconteceria se acaso ficássemos juntos,

pois uma coisa era desejá-lo da forma como o fazia, outra era concretizar

meus desejos. Só havia uma maneira de descobrir, mas, para que isso

acontecesse, eu teria que confessar meus sentimentos, e mesmo assim não

havia certeza de que teria coragem de ir até o fim.

Ele riu. Sua risada rouca e gostosa fez meu estômago dar cambalhotas.

― Você está ficando com prática em inventar desculpas para não dar a

resposta real ― apontou.

― Não sabe o que estou pensando. ― Não podia saber, afinal eu

escondia bem.
― Não, mas sei que não era nisso que pensava. ― Fez menção de tirar

o lençol que o cobria parcialmente, então desviei os olhos para a janela. ―

Estou de short por baixo.

Ele parecia preocupado, o que me fez olhá-lo.

― Eu sei... ― Minha voz falhou ao ver aquele corpo perfeito de pé na

minha frente.

Ele nunca dormia sem nada. Eu não sabia se era por minha causa,

afinal tinha noites em que eu ia dormir em seu quarto quando tinha pesadelos

e não conseguia mais adormecer. Eu dormia na sua cama, enquanto ele ficava

no sofá, pois insistia em trocar de lugar comigo.

Levantei-me também e fui na direção da janela, dando espaço entre

nós. Sua presença fazia minhas pernas ficarem moles feito gelatina. Contudo,

não fui longe; ele pegou meu braço e me puxou para si. Meu peito bateu em

seu tórax duro e malhado.

― Se você quiser uma tatuagem, posso fazê-la em você ― respondeu,

encontrando meus olhos.


Estabilizei a minha respiração, embora fosse difícil com seu toque em

minha pele.

― Você tatua? ― indaguei meio sem fôlego com o impacto de nossos

corpos. Seu cheiro inebriante me fez ficar tonta e de pernas fracas. Não

sabia se um dia poderia ficar sem senti-lo.

Samuel sorriu de modo tão perfeito que eu só podia ficar ali, de boca

aberta feito uma boba.

― Sim, só me diz o que você quer para que eu posso esboçar a

imagem e depois tatuar. ― Beijou minha testa. Juro que o local ficou

queimando.

Pelos anjos, o que estava acontecendo comigo? Claro que eu sabia que

o amava, mas aqueles desejos pelo seu toque estavam ficando cada dia mais

fortes.

― Um sol e uma lua ― respondi por fim.

Ele assentiu e olhou para a janela, afastando-se. No fundo, eu só

queria ficar ali, em seus braços.


― Por falar em sol, vamos lá para cima antes que nasça. ― Foi até

uma cadeira pegar sua camiseta.

― Podemos ver da praia? ― sondei, organizando minha mente. Com

ele um pouco longe, consegui enfim pensar direito.

Samuel parou de vestir a camiseta um segundo e me olhou como se

perguntasse a si mesmo se tinha ouvido bem.

― Você quer ir lá fora? ― Avaliava-me, embora eu pudesse ver em

sua expressão que estava contente com meu pedido.

Queria passear com ele. Via-o sair de casa muitas vezes durante os

últimos meses e desejava acompanhá-lo, não importava para onde. Antes,

não estava pronta, mas agora me sentia preparada para dar esse passo

definitivo.

― Sim, já saí algumas vezes sozinha, mas hoje, eu quero ver o sol

nascer da praia e desejo que você esteja comigo ― sussurrei.

Ele assentiu após terminar de vestir a camiseta.


― Vou com você ― assegurou, colocando os chinelos. Pegou minha

mão, e descemos. ― Não acho que dará tempo de escovar os dentes. ―

Sorriu. ― Acho que terá que aturar meu bafo.

Sorri.

― Você cheira bem ― confessei. Na verdade, eu amava isso. Nada

nele fedia, era o contrário.

― Cheiro, hein? ― Riu baixinho. ― Você também. Cheira a

framboesa.

Corei e abaixei a cabeça.

― Obrigada.

― Só disse a verdade. ― Paramos em frente à porta da sala, que ele

abriu para sairmos.

No começo, sentia-me ansiosa e nervosa pelo que iria fazer. Para

muitos, era só sair e ir à praia, mas para mim significava dar um passo a

mais para uma mudança que precisava fazer em minha vida. E foi com esse

pensamento que cheguei aonde estava agora.


― Se for demais para você e, em algum momento, não quiser

prosseguir, me diga, que voltaremos na hora, está bem? ― Olhou-me de lado

assim que saímos.

― Estou decidida a lutar contra isso a cada vez que saio, até chegar o

dia em que eu não sinta mais medo ― assegurei a ele. ― Agradeço-lhe por

estar comigo em todos os momentos da minha vida.

― Sempre vou estar ― afirmou.

Assenti, e prosseguimos rumo à praia. Na primeira vez que estive ali

fora, tremia a cada passo, que minha respiração ficava cada vez mais

irregular, e meu corpo, tenso, porém, não deixei esse medo me vencer.

Finalmente estava melhor, só um pouco ansiosa por sair. Mesmo assim,

prossegui em meu caminho.

― Ninguém nunca mais vai machucá-la ― prometeu ele.

Confiava em suas palavras, sabia que Samuel estava ao meu lado.

― Obrigada por acordar cedo e vir comigo. ― Apertei sua mão que

segurava.
― Não há outro lugar em que eu deseje estar ― asseverou.

Chegamos a um lado da praia onde tinhas umas pedras. Em algumas

dava até para sentar-se, mas ele não o fez, sentou-se na areia e escorou as

costas em uma das pedras.

Eu ia fazer o mesmo, mas parei ao ouvir sua voz.

― Senta-se aqui e escore suas costas em mim. ― Pediu, apontando

para o meio de suas pernas abertas.

Encarei-o, pensando se estava brincando, mas ele falava sério.

― Não mordo. ― Sorriu tranquilo. ― Prometo que não tocarei em

você, só suas costas, que ficarão em contato com meu peito.

Desde alguns meses notei que ele começara a me tocar com mais

frequência. Sabia que estava fazendo isso para me ajudar a lidar com a

questão do toque, e estava dando certo. O problema era que eu ansiava por

mais do toque dele. Era bom, eu me sentia melhor a cada dia e ficaria ainda

mais com a graça de Deus e dele.

― Se não quiser...
― Não, está tudo bem ― falei rápido demais, fazendo-o rir.

Sentei-me onde pediu e fiquei entre suas pernas. Essa posição era bem

íntima, o que me fez sentir como se estivesse sobre chamas, mas no bom

sentido. Suas mãos, como ele prometeu, estavam descansando em seus

joelhos.

Escorei nele, respirando de modo irregular, sentindo conforto com seu

toque. Sua cabeça ficou acima da minha, por ser mais alto que eu. Quem

visse de fora, pensaria que éramos um casal de namorados.

Ficar tão perto dele estava me deixando quente, o que me fez remexer

no lugar. Samuel soltou um suspiro baixo e doloroso. Eu estava a ponto de

perguntar o que era, quando senti algo duro atrás de mim, o que me fez

congelar.

― Lily, ele não é um problema, pode confiar em mim. Não tenha

medo. Só pare de se mexer. ― Esse final foi dito quase como uma súplica.

Parei de me mover e encarei o lago. Notei-o se afastando um pouco

para não me tocar de novo com a parte de baixo do corpo.


Quando o senti ereto, não tive medo. Se fosse no começo, eu estaria

em choque com isso, se não pior, mas agora sabia que ele jamais me tocaria

sem que eu quisesse. Antes, eu também sabia, mas meu cérebro

irracionalmente temia. Com o tempo, acostumei-me e passei a adorar cada

toque dele. Acho que por isso me apaixonei.

Um pensamento me ocorreu. Se ele teve uma ereção em contato com

meu corpo, tinha se excitado. Então isso significava que me queria? Que me

desejava? Ou melhor, que também me amava? Queria confessar o que sentia,

mas e se sua resposta não fosse a que eu quisesse ouvir? Isso só ia me

dilacerar ainda mais.

― Lily...

― Estou bem. ― Estava a ponto de virar a cabeça e olhá-lo para dizer

algo mais, quando suas palavras me detiveram, fazendo o meu coração se

apertar.

― Não quero que tenha medo, jamais a tocaria... ― Deu um suspiro

baixo.
Essa frase podia ser traduzida de duas formas: jamais me tocaria à

força ou que não sentia nada por mim, então não ia rolar nada. Queria

perguntar, mas travei, temendo a resposta.

Meu coração deu batidas dolorosas, porque, em meu íntimo, sentia que

era a última opção. Quanto à primeira, nós dois sabíamos que ele nunca

forçaria uma mulher. Aliás, eu acreditava que elas sempre iriam querê-lo.

Seria por isso que ele nunca demonstrava que me queria? Temia que eu não

pudesse dar o que ele precisava? No fundo, nem eu sei se posso, pensei

amarga.

― Eu sei ― finalmente respondi com a voz casual, embora tudo

dentro de mim doesse.

― Lily... ― começou a dizer algo. Não entendi se me leu como

sempre fazia, mas eu não queria mais pensar nisso, só aproveitar aquele

momento com ele.

― Está nascendo o sol. ― Tentei distraí-lo a fim de que não

desconfiasse de algo. ― Não me canso de vê-lo, acho que nunca me cansarei


de admirar esse esplendor de glória.

― É por isso que quer tatuá-lo? ― sondou por fim.

― Não. Pesquisei sobre tatuagens e descobri que o sol e a lua têm um

significado que dá certo comigo. ― Suspirei. ― O sol significa força e

renascimento. Quero renascer, não posso viver em uma concha para sempre.

― Fez um ótimo progresso durante esses anos ― assegurou.

― Eu sei, tudo graças a você. ― Peguei a mão em seu joelho e a

apertei. ― Nunca poderei pagar o que fez por mim.

― Pode pagar sendo feliz, pois sua felicidade é a minha ― declarou

com firmeza.

Meu coração falhou uma batida com suas palavras.

― Obrigada.

― E quanto à lua?

― A lua já é mais feminilidade, delicadeza e até mesmo força de

espírito. Sinto delicadeza e força de espírito, mas feminilidade nem tanto.

Espero sentir um dia ― finalmente disse em voz baixa.


― Lily, você é linda... muito feminina ― asseverou.

― Sabe? Faz anos que não vejo meu corpo. Tomo banho todos os dias,

mas não me olho, pois, quando o faço, me sinto suja, feia e com nojo... ―

Ainda não tínhamos conversado sobre isso.

A dor estava me consumindo por dentro com as lembranças. No

começo, era frequente eu ter lapsos; agora nem tanto, embora eu soubesse

que não estava curada cem por cento ainda.


Samuel

Olhava para a mulher em meus braços, lutando para conseguir vencer

os seus demônios, evocados pelo que os miseráveis fizeram com ela.

Quando eu pensava nisso, ficava furioso por saber que não podia ajudá-la

mais do que o fazia. Queria fazer todos pagarem de novo e de novo.

Porém, o desgraçado do homem que Liliane viu na praia na Austrália

matou todos antes que eu pudesse descobrir quem era ele. Poderia ter ido
atrás dos alvos e ficar de tocaia, assim o pegaria, mas isso faria com que eu

me distanciasse de Liliane e dos negócios. Como estava focado em buscar

aliados para Matteo, não tive como.

Queria poder perguntar ao cara o porquê ele não tinha matado Lorenzo

ainda. Só o infeliz poderia me dar a resposta, mas nesse momento não me

importava, ainda mais após saber da porra fodida que Lily me disse.

― Por que não me contou sobre isso? ― Tentei controlar minha fúria.

Sabia que ela lutava com seus demônios, mas não que evitava olhar para o

próprio corpo porque tinha nojo.

― Não queria preocupá-lo. Agora isso não acontece com tanta

frequência, foi mais no primeiro ano. Foi difícil ― sussurrou.

― Oh, Lily, queria tanto tirar isso de você! ― Se eu pudesse, faria

mesmo isso.

― Eu sei que queria. ― Virou o rosto e me olhou. ― Com sua ajuda,

consegui lidar com muitos dos meus problemas. Sou mais forte ao seu lado.
― Quero que tenha em mente que é perfeita. Não quero que pense o

contrário. ― Peguei seu rosto entre minhas mãos e fitei seus olhos azuis da

cor do céu e do lago à nossa frente. ― Prometa-me que, se tiver alguma

crise igual a essa, vai me chamar para estar com você.

― Geralmente as tenho quando estou tomando banho. ― Piscou com

seus olhos lindos, corando. ― Quer que eu o chame nessa hora?

Se fosse em outra circunstância, eu teria rido, mas agora não tinha

nenhuma vontade. Além disso, não era o momento.

― Não ia entrar no banheiro, ficaria do lado de fora falando com

você, ou poderíamos nos falar por telefone caso eu não estivesse em casa ―

assegurei. ― De qualquer forma, quero estar com você e ajudá-la.

― Sou imensamente grata a Deus por ter me enviado você para me

ajudar a passar por isso. ― A sinceridade estava em cada palavra e em seu

rosto.

Não sabia se Deus tinha me enviado a ela, duvidava que Ele

escolhesse um assassino para ajudá-la. Fosse como fosse, eu era grato


também por Matteo, Luca e eu termos estado lá a tempo, antes que eles... não

queria pensar nisso, ou a fúria ficaria pior.

― Estou aqui para tudo, serei o que precisa que eu seja para enfrentar

qualquer problema. ― Aproximei-me e beijei sua testa. ― Vai me chamar

caso tenha outro surto?

― Vou, sim, prometo ― asseverou. ― Mas já têm alguns meses que

não acontece. Viver com vocês aqui me ajudou muito. Às vezes me pego a

pensar no que teria acontecido se você não tivesse me trazido para sua casa.

― Não pense assim. Se não fosse eu, esse Deus em que você acredita

iria enviar outra pessoa para te ajudar. ― Eu não merecia nada d’Ele, mas a

Lily, sim. Acreditava que Ele sempre viria em seu socorro.

― Você não acredita? ― Olhou para o lago. ― Como pode ver tudo o

que Ele fez e não acreditar?

Suspirei.

― Creio, sim. ― Acreditava na existência do Céu e do Inferno, esse

último para onde eu iria um dia, após morrer.


― Que bom que acredita. ― Ela parecia feliz com minha resposta. Ao

menos tirou aquela escuridão de seus olhos.

― O que acha de entrarmos para fazer sua tatuagem? ― perguntei,

querendo distraí-la para não pensar em seus problemas.

― Obrigada por ser minha força mesmo quando me sinto fraca às

vezes. ― Encarou o sol já alto.

― Estou aqui para isso. Se lhe faltar força, serei a sua até consegui-la

de volta ― afirmei.

Ela jogou os braços à minha volta e me abraçou forte, respirando

fundo.

― Meu anjo da guarda ― sussurrou.

― Se você quer que eu seja isso, então serei. ― Sorri.

Ficamos ali, parados um momento, ela me abraçando, e eu com minhas

mãos em sua cabeça. No decorrer dos anos, fui aprimorando os toques.

Antes, era só sua mão, depois passei a tocar seu queixo, seu rosto, a beijar
sua testa e cabelo. Não sabia se ela tinha notado que aquilo era uma pequena

vitória devido às circunstâncias.

Sabia que precisávamos conversar sobre ela ter que ver alguma

terapeuta, mas não sabia o que fazer em relação a isso, afinal a única pessoa

em que ela confiava era Bonnie, que não estava mais conosco. Talvez isso

começasse a mudar, pois Liliane vinha saindo de casa por sua própria

iniciativa.

Bonnie ficou conosco por um tempo, mas teve que voltar para

Barcelona. Embora viesse algumas vezes por ano, eu sabia que não era o

suficiente, por isso tinha que conseguir outra psicóloga, mas não sabia como

Lily reagiria a isso. Depois eu conversaria com ela, e não só sobre isso, pois

desejava lhe dizer o que sentia. Entretanto, não antes que ela própria

admitisse seus sentimentos.

Meus sentimentos por aquela mulher eram fortes demais. Achei que

aquilo passaria com o tempo, mas a porra aumentou com a força de um

tsunami, tão poderosa como mil sóis.


Não sabia o que fazer em relação a isso. Queria dizer a verdade a ela,

mas temia que não aceitasse muito bem. Sonhava que ela se declarasse

primeiro, mas não imaginava que isso viria tão cedo. Podia ver, pela forma

como me olhava, que me desejava e me queria, porém, não dizia nada,

tentava esconder de mim. Seria porque não tinha certeza do que sentia?

― Vamos então? O sol está ficando ardido ― falei.

Ela assentiu e se afastou, depois disso se levantou, e, ao fazê-lo, roçou

a bunda em mim sem querer.

― Desculpe ― sussurrou ela, vermelha.

Forcei-me a não ficar duro como mais cedo. Não pude me controlar

com ela se remexendo entre minhas pernas. Merda, se ao menos Lily

sonhasse com o que eu desejava fazer com ela, não teria feito aquilo. Sua

inocência me matava.

― Não se desculpe por isso ― pedi, erguendo-me e pegando sua mão

para irmos embora.


― Estou feliz por ter saído de casa novamente. A cada vez é como se

parte de um peso me abandonasse ― murmurou.

― Quando estiver pronta, eu a levarei a mais lugares. Asseguro a

você, será tão bom quanto aqui, se não mais. ― Sorri de lado.

Ela retribuiu, mas o sorriso sumiu após ver um homem correndo na

calcada.

― Lily...

― Estou bem. ― Não entendi se dizia isso a mim ou a si mesma. Suas

mãos seguravam fortemente as minhas.

Esperava que um dia realmente ficasse bem. Já estava bem melhor, eu

sentia isso.

― Então vou esboçar o sol e a lua, e depois me diz o que acha ―

comentei para distraí-la da presença das pessoas ali, enquanto entrávamos

no jardim de casa.

― Você faz suas tatuagens? ― sondou, checando as que eu tinha

expostas em meu corpo. ― São lindas.


― Algumas eu faço. Outras, onde não alcanço, peço a uma pessoa que

faz para mim.

Entramos em casa.

― Confio que a minha ficará bonita. ― Ela parecia animada em fazer

a tatoo. Na hora em que me disse o significado do que queria tatuar, fiquei

feliz por sua decisão. Só não sabia em que parte do corpo acrescentaria o

desenho, já que ela não gostava de se olhar. Um dia, eu esperava mudar isso,

mas, para alcançar esse caminho, precisava trilhar outro antes, quando lhe

diria o que sentia.

Antes que eu comentasse, ouvi um toque de telefone e reconheci como

sendo o meu. O som não veio do meu quarto, onde o deixei antes de sair.

― Seu chefe está ligando a cada minuto. Parece ser importante ―

disse minha avó, saindo da cozinha e me entregando o celular.

― Merda! Esqueci de levá-lo. ― Não podia ficar longe do telefone,

afinal uma emergência podia surgir a qualquer momento.

― Olha a boca, menino ― ralhou a vovó.


― Desculpe. ― Peguei o aparelho, mas, antes de atendê-lo, olhei para

Lily. ― Vou ver o que é.

Sorriu.

― Vou ajudar vovó com o café da manhã. ― Ela saiu com minha avó.

Eu adorava ver as duas juntas.

― Chefe ― falei assim que atendi, subindo as escadas.

― Onde esteve? Liguei várias vezes. ― A voz de Matteo estava

estranha.

― Desculpe. ― Contei a ele o que tinha acontecido naquela manhã

entre mim e Lily. ― Esqueci de levar o celular.

― Então ela está saindo com frequência ― comentou. ― Isso é bom.

Acho que logo ficará boa.

Eu esperava que sim.

― Aconteceu alguma coisa? ― indaguei.


― Sim. Como sabe, Evelyn se lembrou do nome do irmão. Fiz uma

investigação e descobri quem é. Não vai acreditar. ― Ele parecia chocado.

― Quem é o irmão dela? Devemos nos preocupar com retaliação?

― Na verdade, estou pensando que talvez possamos usar isso para

conseguir mais aliados. ― Ele parecia cheio de expectativa.

― Que é essa pessoa?

― Kill, o sargento de armas do MC Fênix ― respondeu.

O MC era um grupo de motoqueiros. O chefe deles era Barry, um

maldito escroto que era aliado de Lorenzo.

― Merda, isso é grande! Mas Barry não vai se aliar a nós. ― Entrei

no meu quarto.

― Ele não, mas Shadow, sim. Afinal, é vice-presidente. Se algo

acontecer com Barry, então Shadow se tornará o presidente e nos apoiará.

Shadow era diferente de Barry, claro. Não andavam na lei, como nós,

mas até ele tinha suas regras, coisa que o atual presidente não ligava de

quebrar.
― Kill não vai nos ajudar com sua irmã presa. ― Pensei em um plano.

― Que tal a soltarmos de lá e a levarmos para os MCs? Evelyn pode

convencê-los a nos apoiar.

― Como faremos isso? Não posso simplesmente tirá-la de lá do nada.

― Da mesma forma que tiramos a Lily de lá. Podemos deixar um dos

nossos na sala de segurança de vídeo, com isso apagamos as gravações da

saída. ― Sentei-me na cadeira em frente à mesinha e coloquei o celular no

viva-voz.

― Meu pai dará uma festa lá em poucos dias. Posso colocá-la para

servir bebidas a todos e armar para fazer o que sugeriu.

― Vai querer minha ajuda nessa fuga? ― questionei.

― Não, Luca vai ficar comigo e me ajudar. Ele pode tirá-la de lá e

deixá-la na sede do MC. Não vejo a hora de isso tudo se desenrolar.

― Eu também.

Após falarmos de negócios, desliguei, peguei uma folha em branco e

comecei a esboçar a tatuagem que Liliane pediu. Fiz duas, uma para ela e
outra para mim. Ela não saberia, mas seria um sinal de ligação entre nós.

O sol e a lua tatuados juntos representam o “yin” e o “yang” da vida e

da união espiritual entre um homem e uma mulher. Essas tatuagens são

comuns em casais, em que o homem tatua o sol, e a mulher, a lua entrelaçada

com o grande Astro.

Eu faria a minha depois, e só quando ela me dissesse seus sentimentos,

revelaria o significado das tatuagens. Por ora, seria um segredo meu. Teria

que colocá-la em algum lugar do meu corpo que ela não visse até o momento

certo.

Deixei espaço no desenho de sua tatuagem para colocar um nome caso

ela quisesse no futuro. No meu, colocaria o nome dela.

Após esboçar os desenhos, tomei banho, peguei os materiais que

precisaria e ajeitei tudo. Antes de sair à sua procura, uma batida na porta

soou. Eu sabia que era Liliane; vovó só dizia que estava entrando.

― Entra, Lily ― falei.


Ela entrou e engoliu em seco quando me viu sem camisa. Eu estava

fazendo isso para deixá-la acostumada ao meu corpo, ou ao menos o pouco

que ela podia ver por enquanto. Ainda bem que eu percebia que ela gostava

da visão.

Seus olhos seguiram cada contorno do meu peito, o que me deixou

mais necessitado, porém, me segurei para não ter uma ereção de novo. Eu a

queria relaxada e quente por mim, e não em pânico, embora, mais cedo, não

percebi medo nela quando me sentiu duro após ficar se remexendo em meus

braços.

― Esbocei o desenho da tatuagem. Quer vê-lo? ― inquiri para distraí-

la.

Peguei a folha e mostrei a ela o esboço do sol entrelaçado à lua.

― Ficou lindo! ― Piscou, admirando-o. ― Devia trabalhar com isso.

Sacudi a cabeça. Ser um executor era quem eu era, e não mudaria isso.

Tinha certeza de que ela não havia sugerido que eu mudasse de “profissão”,
só declarado que eu era bom naquilo. Eu era o tipo de pessoa que procurava

saber de tudo um pouco.

― Onde quer que eu a coloque? ― sondei.

― Hummm... ― Ela observou minhas tatuagens. ― Não sei. Tem que

ser em um local que eu possa ver.

Entendi o que ela queria dizer e não gostei disso, embora não pudesse

fazer qualquer coisa para mudar seu pensamento, ao menos por enquanto.

Tentaria algo; se não desse certo, tudo bem, eu a ajudaria depois, com o

tempo.

― Você disse que não gosta de olhar seu corpo por achá-lo feio. ― A

mulher tinha o corpo mais perfeito que já vi.

― Sim.

― Não concordo. Você é perfeita, mas, como não acredita em mim...

― Acredito...

Levantei as sobrancelhas.

― Mesmo?
― Eu...

Sabia que aquilo era mais forte do que ela. Não havia como eu mudar

com palavras, precisava mostrar a ela.

― Poderíamos fazer assim: você faz a tatuagem entre as omoplatas,

dessa forma terá uma coisa bela para ver em seu corpo sem temer. ― Não

queria que ela odiasse seu corpo. Sabia que teria trabalho para convencê-la

a não sentir aquilo, bem como do quanto ela era bonita. Tentaria começar

agora, com calma, sem fazê-la surtar.

― Nas costas? ― indagou de olhos arregalados.

― É um lugar lindo de se olhar. Algumas mulheres preferem na

barriga ou na zona lombar, mas acho que você não está pronta para isso

ainda. ― Peguei sua mão. ― A escolha é sua. Acho que seria um novo passo

a dar.

Ela ficou em silêncio um momento, mordendo o lábio. Isso me fez te

ideias do que queria fazer com aquela boca em forma de coração.


Merda, resistir àquela mulher estava se tornando impossível, mesmo

com meu autocontrole.

― Podemos colocar no seu antebraço ou outro local ― sugeri,

notando, por seu silêncio, que não estava pronta.

Ela respirou fundo.

― Vamos tentar... ― Eu podia sentir o medo em sua voz.

― Lily, se não estiver pronta, podemos esperar e fazer outro dia. ―

Não queria que ela sofresse por isso ou por qualquer coisa.

― Não! ― Inspirou fundo. ― Vamos tentar; se eu não conseguir,

paramos.

Eu gostava do fato de ela querer ao menos tentar. Muitas pessoas

desistiam ao longo do caminho. Eu entendia quem tinha passado pelo que ela

sofreu, pois me colocava no lugar. Acredito que reagiria da mesma forma.

Ao menos ela me tinha ao seu lado, ajudando-a a lidar com aquela porra

toda.
― Certo. Pegue uma toalha e vá ao banheiro tirar a camiseta. Pode

ficar com os seus shorts. Assim o local fica livre para eu fazer a tatuagem.

Eu poderia só erguer a sua blusa, mas não acreditava que fosse o

caminho.

Liliane piscou com os olhos cheios de terror, como se eu a tivesse

mandado entrar dentro de chamas.

Porra, isso não está funcionando... Por mais que ela quisesse, ainda

não era a hora.

― Certo, vamos deixar para lá e fazer no pulso. O que acha? ―

Queria que ela lidasse com o medo de ver seu corpo, mas via que não estava

pronta e eu não a forçaria a nada. Queria que se alegrasse com a tatuagem

que escolheu, não que surtasse.

― No pulso?

― Assim. ― Peguei meu celular e pesquisei fotos de algumas

tatuagens na região. ― Posso fazer uma pequena, assim dá mais beleza à sua

pele. Que tal?


Ela assentiu parecendo aliviada.

― É linda essa. ― Apontou uma das que lhe mostrei, que parecia

muito com a que eu tinha desenhado para ela.

― No pulso, então. ― Indiquei onde o material de tatuar estava. ―

Sente-se ali, e vamos começar.

Ela fez o que pedi, então ajeitei a maquininha.

― Desculpe ― sussurrou.

Olhei-a com o cenho franzido.

― Pelo quê?

― Por não conseguir fazer onde sugeriu. ― Ela estava com as mãos

no colo.

Aproximei-me e me abaixei à sua altura, pegando seu rosto entre

minhas mãos.

― Raio de Sol, essa tatuagem simboliza a superação dos seus medos.

Só não vai fazê-la onde ainda é um ponto sensível a você. Não se preocupe,

irá superar a tudo com o tempo. Quando fizer isso, poderemos fazer outra lá
ou em qualquer parte do seu corpo. Jamais faça algo só porque eu ou outra

pessoa pediu; você deve fazer só o que quiser e para o que estiver pronta,

como fez todas as vezes ao ir à praia.

Seus olhos brilharam de emoção.

― Obrigada ― sussurrou. ― Vou estar preparada... um dia.

Sorri.

― Eu sei que sim. Não conheço ninguém mais forte que você, Luce del

Sole. ― Beijei sua cabeça e me afastei relutantemente. Se não fizesse isso,

logo acabaria apossando-me de sua boca, algo para o qual eu também não

acreditava que estivesse pronta.

― Vamos começar. ― Peguei a maquininha após limpar a pele dela.

― Vai doer. Essa é uma região dolorosa, mais do que as outras.

― Já senti dor pior e lidei com ela. ― Encolheu os ombros. ― Então

acho que consigo.

Evitei trincar os dentes e pensar nos infelizes que a machucaram

daquela forma. Devia pensar apenas nela e em ajudá-la a se tornar inteira de


novo para enfim ser feliz por completo, sem medo e restrições.

Não podia ir ao inferno buscar todos para eu mesmo matá-los

novamente, mas podia fazer Lorenzo pagar por tudo. Como não podia matá-

lo ainda, tiraria dele aquilo que tanto venerava em sua loucura: as meninas

que prendera. Teria o maior prazer em ver sua queda e participar dela.

― Está calado.

Levantei a cabeça, o som de sua voz me tirou dos meus pensamentos

sombrios.

― Concentrado ― menti e acrescentei antes que ela pudesse comentar

mais alguma coisa: ― Vai ficar linda.

Ela sorriu, tornando-se tão magnífica como os raios solares que

resplandecem o dia. Era um sonho meu que ela sorrisse sempre assim, e eu

faria qualquer coisa por isso.

Quando acabei, limpei o local e deixei a maquininha de lado.

Nenhuma vez ela gemeu ou chorou de dor, só se encolhia em alguns

momentos.
― Nossa, ficou tão linda! ― Liliane admirava a tatuagem. Um sol

brilhante ficava no meio de uma lua crescente, dando uma beleza a mais ao

desenho.

― Sim, ficou mesmo. ― A pele dela estava vermelha por ser branca

demais. ― Deixei esse espaço entre a lua e o sol para que, se um dia você

quiser colocar o nome de alguém que ame, possa fazê-lo.

Seus olhos me fitaram com tanto amor que meu coração se aqueceu

ainda mais. Antes ela era tão fácil de ler, mas agora estava melhor em

esconder pensamentos e sentimentos. Queria que confessasse...

― Agradeço-lhe por me proporcionar isso. ― Desviou o olhar dos

meus olhos para a tatuagem. ― Amei demais.

Evitei soltar um suspiro, porque, por um momento, achei que ela fosse

finalmente se declarar, mas, como sempre, não o fez.

Eu era paciente. Por aquela mulher, esperaria o tempo que fosse. Se

tinha suportado até então, podia aguentar um pouco mais.


― Fico feliz que tenha gostado. ― Guardei o material após limpá-lo.

Depois faria a minha tatuagem combinando com a dela. Só não sabia como a

esconderia na região em que Lily fez a dela. Nossas tatuagens eram um elo,

simbolizavam união, então seria melhor fazer a minha no mesmo local. Como

ela fez no pulso, eu faria também.

― Precisa passar uma pomada para não infeccionar, mas logo estará

perfeita e sem dor. ― Alisei o contorno avermelhado na sua pele.

― Obrigada por ser paciente comigo. Se fosse outra pessoa, teria

desistido.

― Então essa pessoa não valeria um segundo dos seus pensamentos.

― Sorri. ― Sou paciente, e, além disso, é um prazer realizar tudo que você

deseja. Juro que estamos apenas começando.

O mundo podia ser perigoso, mas eu queria mostrar-lhe que ela não

precisava temer viver nele, pois não deixaria ninguém a tocar de novo. Essa

era uma promessa que eu cumpriria até meu último suspiro.


Dias depois

Samuel

Saí do hospital onde Matteo foi internado. Ele havia me ligado naquela

noite para avisar que conseguiu a liberdade de Evelyn, mas o custo foi ter de
levar um tiro de Luca. Também me pedira para buscá-lo, pois já tinha

recebido alta.

Matteo contou que foram à festa que seu pai deu, mas Evelyn atacou

um dos convidados, ou seja, seria castigada. Ele prometeu ao pai que

cuidaria disso e a levou do local para supostamente castigá-la. Então matou

os guardas que tinham ido junto com eles e pediu que Luca atirasse nele só

para dizer que foram atacados e que alguém ajudara a menina a fugir.

O plano não podia ter sido melhor. Claro que o chefe não deveria ter

sido machucado, mas eram ossos do ofício.

― Aviso, sim. Não se preocupe, dará tudo certo ― meu chefe disse e

encerrou a ligação, depois me devolveu o telefone. Luca tinha ligado do meu

celular a fim de falar com o seu primo. ― Vamos para o lugar marcado.

Ele tinha dado um bilhete a Evelyn para entregar a Kill e marcar um

encontro para, assim, começar nossa aliança com os MCs.

― Senhor, ontem à noite Barry foi morto na porta do clube ―

comentei. Soube disso por uma das minhas fontes. Na verdade, não dava a
mínima para o miserável.

― Jura? Já foi tarde. Quem o matou? Um dos nossos? ― indagou com

preocupação.

― Não, parece que foi gente do Ramires. Eles terão um grande

problema, mas pode vir a calhar se usarmos isso a nosso favor. Precisarão

formar uma aliança também se acaso o chefe do cartel resolvera atacá-los ―

informei.

― De fato, Samuel. Vamos planejar a libertação das meninas e ver

isso em seguida ― me disse com um suspiro.

Ele tinha levado um tiro no ombro. Eu percebia que estava com dor,

mas isso não o impediu de seguir com o plano e se dirigir para o local da

reunião.

― Tudo bem ― assenti.

― Como está a Lis? ― inquiriu.

Dei um suspiro. Nesses últimos dias, após nosso momento na praia e a

tatuagem, eu sempre a via pensativa. Perguntava-me se, de alguma forma, a


tinha empurrado demais ao sugerir a tatuagem nas costas.

― Bem, na medida do possível. Mas ainda não pode ver nenhum

homem na sua frente que se assusta. O único com quem não surta sou eu. ―

Levei uma das mãos aos cabelos, embora recordasse que, naquela vez, na

praia, não surtou, só se aproximou de mim ao ver o cara correndo. Ao final

do dia fomos ver o pôr do sol da praia novamente, mas não tinha ninguém no

local.

― Acha isso ruim? É bom que ela esteja se aproximando de você…

― Não é nada bom. A garota me tem como seu salvador, quando na

verdade foi o senhor que a resgatou daqueles monstros. ― Eu tinha raiva

disso, não de ter Lily por perto, porque amava sua presença, mas porque

sentia que estava chegando o momento de eu revelar algumas verdades para

ela, e eu não sabia como ela iria reagir. Como o fato de que eu não a havia

salvado e outro pior, que eu apostava que a destruiria: a possibilidade de

não poder ser mãe um dia, embora, para ter certeza disso, fosse necessário

fazer exames.
Queria revelar tudo apenas quando ela me dissesse que me amava, mas

sentia que isso seria impossível.

― Pode ser, mas você cuidou dela, a manteve protegida, e garanto que

vai continuar assim até que ela resolva ir embora e continuar sua vida com

sua família.

Era outra coisa que estava me deixando puto.

― Ela foi vendida, chefe. ― “Papai, não me vende! Eu vou ser

boa!”, Liliane havia suplicado em seu sono algumas noites atrás.

Na hora, fiquei irado, porque achava que ela tinha sido sequestrada,

não vendida como se fosse um objeto. Desde então eu procurava saber ainda

mais sobre ela, mas as únicas pessoas que sabiam a verdade eram Lily, que

não se lembrava, e o infeliz assassino de aluguel russo.

Eu tinha mostrado a ela imagens de alguns que conhecia, mas não tive

êxito, não era nenhum deles. Era como se esse homem não existisse. Sabia

de alguém que podia me ajudar, mas terminaria o meu trabalho primeiro,

depois resolveria isso.


A única coisa boa nisso tudo era que Lily não surtava mais, não como

antes. Claro que tinha recaídas, porém eu via a melhora nela a cada dia,

mesmo com os seus pesadelos de vez em quando.

― Espere… O quê? Como sabe disso? ― Matteo perguntou com a voz

se elevando.

― Sim, ouvi Lily sonhando, ela implorava ao pai para que não a

vendesse, que ia se tornar uma boa menina… ― Quando eu pensava nisso,

ficava mais furioso.

― Merda! Luca também não achou nenhum registro dela nos

documentos que Lorenzo guarda de quem sequestra. Lunático, não? ―

Sacudiu a cabeça, contendo a fúria, triste. ― Poderia ir atrás do homem que

a vendeu, porém, não posso sair daqui com tantos problemas a resolver.

Luca fez uma investigação mais a fundo depois de mim, mesmo assim

não conseguiu descobrir nada.

― Chefe, eu vou acabar com o bosta, pode deixar ― assegurei com

ferocidade. ― Já coloquei um amigo meu no caso, ele vai achá-lo e me dizer


onde mora. Só não fui eu mesmo porque o senhor precisa de mim agora.

Assim como não pude ir atrás do russo que também sabia de tudo, o

que me fazia perguntar por que não queria que descobríssemos quem ela era?

Não o cacei porque não sabia se o perigo a que ele havia se referido antes

era verdade. A única certeza que eu tinha era de que queria respostas e iria

atrás delas.

― Lamento, Samuel, não podemos deixar as meninas na fazenda

sozinhas. Assim que as libertarmos, você estará livre para buscar esse

desgraçado que a vendeu. E, se precisar de mim, é só chamar.

Eu sabia que podia confiar em Matteo com a minha vida se fosse

preciso.

― Obrigado, senhor.

Chegamos ao lugar marcado. Não fomos sozinhos, havia mais homens

de confiança do chefe.

Vários motoqueiros tinham acabado de chegar, assim como nós. Os

guardas saíram armados, mas não levantaram as armas. Era só precaução


para o caso de tudo desandar. Esperava que não fosse necessário.

Fiquei ao lado do chefe. Ele estava escorado no carro devido ao

ferimento.

Shadow seguia na frente dos seus homens. Agora era o atual chefe do

MC Fênix, após a morte do seu antigo presidente. Era um homem alto e letal.

Parou a alguns metros de nós. Não parecia furioso, aliás, sua expressão não

demonstrava nada.

Porém, Kill caminhava furioso, fuzilando Matteo. Levantei a arma, e

assim o nosso pessoal e os MCs fizeram. Entretanto, Shadow segurou o

homem raivoso.

― Você bateu nela com um cinto, seu cretino, e a escondeu de mim,

sendo que sabia há bastante tempo que eu era seu irmão! ― Kill esbravejou.

Fiquei confuso com essa acusação. Matteo jamais bateria em alguém,

ainda mais em Evelyn, por quem ele se dizia apaixonado. Deveria ter uma

explicação para isso.


― Relaxe, Kill, nós não viemos aqui para isso. E o capo está

machucado, já que levou um tiro, não? ― Shadow o olhava com a expressão

ilegível.

Eu percebia que o ferimento incomodava o chefe, mas ele não

demonstrava. Só detectei porque era bom em ler as pessoas, ainda mais ele,

que eu conhecia tão bem.

― Abaixem as armas agora ― ordenou a todos nós.

Eu não queria fazer isso, mas lhe obedeci.

― Descobri só há alguns meses, quando ela mencionou seu nome,

então puxei a sua ficha para investigá-lo. Precisava de tempo e aliados para

tirá-la de lá sem demonstrar que havia traído minha família. ― Não tinha

sido há tanto tempo assim, apenas alguns dias. Por que não tinha dito a

verdade?

― Não me importo com isso! ― rugiu Kill.

― Eu me importo, porque, se eu não der um jeito no meu pai, ele irá

atrás dela. Agora mesmo estão caçando Evy para executá-la, já que atingiu
um companheiro na garganta e fugiu logo depois.

― Pelo que sabemos, ele foi morto com a garganta cortada e tiros na

cabeça ― Shadow apontou, avaliando-nos. ― Ela disse que não atirou,

então quem foi?

― Guerras territoriais. O senador não queria ceder Chicago para meu

pai, então, na verdade, ele já seria morto na reunião de ontem, mas as coisas

se complicaram quando o desgraçado tocou nela. A minha vontade era de

matá-lo; Evy foi mais rápida. Ela tem um gênio forte. Ainda bem que o

acertou, porque eu já ia mandá-lo para o inferno por dizer aquelas coisas. A

garota nem sabe o que é um maldito boquete. Se fosse em outro momento, eu

o teria feito comer seu pau. ― Matteo estava furioso.

Ele tinha me contado que um dos homens queria Evelyn, e Lorenzo a

deu a ele, mas a menina revidou cortando a garganta de Raul com uma

estrela ninja que ela tinha.

― Você está apaixonado por ela? ― Kill cuspiu.


― Quem não estaria? Quando a conheci e a vi naquela maldita cruz,

toda machucada, fui onde meu pai dormia. Minhas mãos apertaram as adagas

para matá-lo, mas não podia, porque, se o fizesse, o meu tio tomaria meu

lugar por direito, e o velho é mais sádico que Lorenzo. ― Cerrou os punhos.

Eu não sabia que ele a tinha conhecido assim. Esse era um dos

castigos que davam às meninas desobedientes. Lily nunca sofrera aquilo

porque não era agressiva como Evelyn.

― E sobre essas garotas presas? ― Shadow mudou de assunto,

voltando ao tópico da reunião. ― Ela disse que têm umas duzentas e que seu

pai as entrega a abusadores e assassinos.

― Sim, descobri há três anos. Fui convocado por ele para participar

daquilo. ― Essa última parte não era verdade; foi um infiltrado que nos

disse. Pensei que ele não queria que vazasse ainda ou não achava

importante. ― Não sou santo, longe disso; tenho sangue em minhas mãos.

Daí a fazer aquela barbaridade? Ao chegar lá, encontrei três garotas mortas

e os homens fazendo a festa. Tive de me controlar para não matar todos, até
Lorenzo, porque a culpa daquilo é dele e do doente do meu tio. ― Fiquei

grato a Matteo por incluir Lily entre as três garotas assassinadas; não queria

que ninguém soubesse que ela tinha sobrevivido.

Enzo e Lorenzo eram tubarões assassinos, embora naquele lugar se

reunissem muitos homens de fora também, e não só da máfia. Todos

participavam daquela porcaria.

― Então é pedofilia e estupro? ― sondou Daemon, um dos MCs.

Busquei a ficha de todos os membros do clube de motoqueiros e sabia

quem era cada um deles, exceto Daemon; não descobri nada do seu passado,

como se tudo sobre ele tivesse sido apagado. Ele era conhecido por sumir

com rastros e por ser um rastreador excelente.

Isso me deu uma ideia. Se nos tornássemos aliados, eu poderia pedir

sua ajuda para descobrir o passado de Liliane, pois não poderia me ausentar

muito de casa por causa de Lily, ou já teria descoberto, afinal também era

bom em rastrear pessoas.


― O miserável do meu pai assume que está fazendo justiça porque

minha irmã foi estuprada e morta. Não acharam o corpo, só havia sangue em

seu vestido encontrado na Rússia. Ele acusa a máfia Dragon. ― Eu podia

ouvir a dor na voz do chefe ao falar da irmã.

― Dark? ― Shadow franziu o cenho. ― Não é do feitio de sua

família, ele abomina isso. ― Então arregalou os olhos. ― Seu pai matou os

Dragons? Então por que Nikolai acha que foram os Bravatas que os

assassinaram?

― Na época, os Dragons estavam em guerra com os Bravatas. Quando

Lorenzo matou a família de Dark, ele e seu irmão, Alexei, deduziram terem

sido seus inimigos, e meu pai saiu ileso. Não entraríamos em guerra com os

dois; temos poder, mas eles têm mais ― confessou Matteo.

Eu sabia que era difícil dizer isso, afinal contávamos com poucos do

nosso lado. No entanto, os do lado de Lorenzo morreriam em breve; assim eu

esperava.
― Quero limpar toda essa sujeira logo. Assim que os Dragons

decidirem se vingar contra o meu pai, precisarei arrumar um jeito de

controlá-los. Há muitos inocentes nessa história.

― Porra! Se eles souberem o que Lorenzo fez, vocês estão fritos. ―

Kill não parecia desapontando, aliás, o idiota se mostrava feliz. Eu apostava

que estava doido para Matteo ser uma das vítimas. ― Ainda bem que minha

irmã está longe de tudo, longe de vocês.

― Não importa agora, o que interessa é que preciso salvar aquelas

garotas e crianças sem envolver o FBI e essas merdas. E sem que meu pai

descubra que ajudei, ou estarei morto. ― Pelo seu tom, não parecia temer

sua vida, mas a de todos do seu povo. ― Lorenzo manteve o FBI no bolso

por muitos anos para que fechassem os olhos quanto àquele antro de tortura.

― Supus que algo assim acontecia. ― Tinha veneno na voz de

Daemon. ― Sequestro de crianças, por causa do alerta Amber, chama a

atenção da polícia, além da pedofilia que rola solta na sua máfia, com esses

casamentos entre marmanjos e meninas.


― Sempre fui contra, embora haja muitos Salvatores que não tocaram

nas meninas com quem se casaram até que completassem a maioridade. Ao

me tornar capo, esses manterei comigo; eliminarei os demais. Espero

sobreviver até lá.

Tínhamos puxado a ficha de todos os membros da organização e ido

mais fundo em suas vidas até descobrir a verdade. Era óbvio que alguns

temiam contar o que tinham feito e serem mortos no processo, então muitos

esconderam a verdade. Agora muitos entendiam que Matteo era diferente do

pai louco.

― Você não me faria nenhuma falta ― desdenhou Kill.

Matteo riu provocante.

― Bom, Evelyn sentirá.

― Pode ser, mas não ficaria sabendo, pois, quando tudo isso acabar,

você não vai mais vê-la.

― Dificilmente, já que ela irá morar comigo. ― Sorriu animado. Eu

não sabia se disse isso porque era verdade ou se estava só provocando o


irmão de Evelyn.

Kill se lançou contra ele, mas entrei na frente.

― Porra, isso não vai acontecer! Acha que não sei sobre vocês,

Salvatore? Não pode se casar com alguém de fora da sua origem mafiosa, e

se mencionar que vai fazê-la sua amante, juro que o mato agora mesmo! ―

esbravejou Kill.

Isso me fez pensar novamente em algo que vinha me incomodando há

alguns meses. Quando Liliane me aceitasse, como ficaríamos juntos, se ela

não pertencia a nenhuma máfia? Fosse como fosse, eu não ficaria longe dela.

Matteo pediu que nos afastássemos. Eu sabia que ele podia se

defender, mas estava ferido.

― Eu jamais agiria dessa forma. Evy me ama como um irmão. No

final, decidirá o que quer fazer da vida, e garantiremos que nenhum perigo

recaia sobre ela, nem sobre ninguém. ― Matteo suspirou. ― Agora vamos

ao que interessa: resgatar os inocentes. Enfrentarei todos para isso acontecer

ou morrerei tentando.
― Acho que você está pensando errado nesse caso ― Shadow falou.

― Sobre o quê?

― Veja bem, você não pode matar seu pai ou vai ser acusado de

traição, perderia seu legado. Se o FBI entrar no caso, vão confiscar o que

vocês têm, então precisa de nós para invadir esse lugar, que não sabemos

onde fica, armados até os dentes, para resgatar todas as crianças e moças

que estão sendo mantidas em cativeiro. Faremos o seguinte: você limpa o

local, apagando quaisquer menções ao nome de sua família, e o resto deixa

conosco. Um aviso: quando entrarmos, derrubaremos todos.

― Não, há pessoas da minha confiança lá dentro que protegem as

meninas… ― começou Matteo.

― Remova-os. Não podemos entrar e matar somente alguns, ou

desconfiarão que você estava por trás de tudo, não é?

Eu sabia que Shadow estava certo. Não podíamos simplesmente atacar

uns e deixar outros ilesos.


― Se eu os tirar de lá, ele também estranhará. Meu tio já diz que não

tenho pulso firme para controlar o legado, porque não sou a favor do que

fazem ― Matteo anunciou com tom amargo. ― Quando tudo isso acabar,

como capo, mudarei muitas coisas.

― Tenho uma ideia, só será um pouco complicado ― disse Nasx, um

dos motoqueiros.

― Mande. Não há nada pior do que o que acontecerá caso não

peguemos as meninas. Principalmente dez delas, que estão prestes a fazer

aniversário ― pediu Matteo.

― O que um aniversário tem a ver com isso? Evelyn comentou algo,

não entendi muito bem ― Daemon inquiriu antes que Nasx comentasse algo.

― É um ritual do culto que meu pai criou. Ao completarem 19 anos,

ele oferece as meninas à minha irmã, que morreu, depois as entrega aos

homens para fazerem o que quiserem delas. Todos têm de apodrecer no

inferno ― respondeu com asco.

― Incluindo seu pai? ― questionou Shadow.


― Sim, e não sentirei nada por sua morte, será um alívio. Lorenzo só

não pode ser morto agora, tenho planos antes disso, mas seu dia chegará.

Espero que, quando acontecer, ele esteja lúcido, assim sentirá o que

preparei. Vocês não podem ser os responsáveis, porque, ao me tornar capo,

mesmo sem querer, precisarei caçar o assassino do meu pai, e o cara deverá

ser muito bom em encobrir todos os rastros. É uma lei da minha família, não

poderei quebrá-la ― informou aos motoqueiros.

Só por isso aquele maldito ainda respirava nesse mundo; se não fosse,

estaria no inferno agora.

― Resolveremos o problema das meninas e deixaremos a situação de

Lorenzo para você, Matteo ― Shadow garantiu.

― Qual é o plano? ― perguntou Matteo ao Nasx após assentir para

Shadow.

― Como não podemos entrar e matar só o pessoal do cretino do

Lorenzo e manter os seus vivos, e já que eles não podem sair de lá, vamos

ter de atingi-los…
― Porra, não! São boas pessoas e acreditam em mim. Não podem

matá-los ― Matteo o interrompeu.

Eu não estava gostando do rumo dessa conversa. Queria resgatar as

garotas, mas não à custa de todos do nosso lado que estavam lá.

― Ninguém falou em matá-los, e sim em atingi-los em algum lugar não

fatal. É a nossa única chance ― esclareceu Nasx.

Eu notava a hesitação em Matteo. Ele não queria que nós sofrêssemos

no ataque.

― Como diferenciaremos os do seu pai dos seus? ― inquiriu Hush,

outro MC.

― Falarei com eles primeiro, para saber o que acham ― falou por

fim.

― Estamos nessa com você até o fim, chefe ― assegurei. Não ia

desistir agora, quando estávamos tão perto de acabar com todos.

― Obrigado, Samuel ― me disse e depois aos MCs: ― Depois que

conversarmos, dou a resposta. Temos no máximo 15 dias para resgatá-las.


― Fechado. Bolaremos um plano para pegar esses desgraçados e

acabar com todos ― assegurou Shadow.

Os MCs foram embora após a reunião encerrar.


Samuel

― Merda! ― rosnou Matteo, encolhido. ― Isso não devia acontecer.

― O senhor está bem? ― sondei. Ele parecia muito pálido, acredito

que devido ao seu ferimento.

Fiquei aliviado por termos conseguido mais um grupo aliado. Com a

ajuda dos MCs, conseguiríamos libertar as meninas e derrubar aquele antro.


Matteo foi ao encontro mesmo ferido. Isso provava o quanto seria um capo

disposto a ajudar o seu povo.

― Estou, sim. Não me refiro a mim, mas à bosta de vocês precisarem

ser feridos com aqueles crápulas. ― Enfureceu-se ainda mais.

Ele era conhecido por ser impulsivo, não manter a compostura como

eu e Luca, mas sabia ser letal quando preciso. O homem era brutal, nascera

para ser líder.

― Senhor Matteo, todos concordarão comigo. Nós damos conta.

Queremos isso resolvido. Não dá para vivermos assim, vendo aquelas

jovens sofrendo, vendo acontecer com elas o que houve com Lily ou até algo

pior. Não importa se eu tiver de ser torturado. ― Como se eu me importasse

com isso. Salvá-las era mais importante do que tudo.

― Sim, somos leais a você ― concordou Frank, um dos nossos

aliados e soldados. Ele era contra o que Lorenzo fazia. ― Vamos falar com

os outros…

― Eu faço isso…
― Não acho que seja uma boa ideia você ir lá agora, pode gerar

suspeitas quando as meninas forem levadas ― intervi, interrompendo

Matteo. ― Cuidaremos de tudo. Se o senhor não aparecer no local, Enzo não

poderá culpá-lo quando o barco afundar.

― Concordo. Seu tio anda desconfiado e procurando descobrir algum

podre seu para anulá-lo como candidato a capo ― disse Frank. ― Eu soube

pelo Romulo que Lorenzo queria passar o cargo a você.

― Jura? ― Isso pegou Matteo de surpresa. ― Eu o vi na saída do

hospital, mas ele não sugeriu nada.

― Enzo tirou a ideia da cabeça dele, argumentando que você não

concordaria com o que fazem com as meninas. É bom ficar longe de lá por

enquanto, chefe ― informei.

Na hora em que ouvi Enzo desmerecendo Matteo, segurei-me para não

rasgar a garganta do bastardo. Pensava em contar ao Matteo depois, mas

percebi que era a hora certa.


― Não posso deixá-las sozinhas naquele lugar. Alguém… ― Sua voz

soou baixa e mortal.

― Cuidaremos das garotas até os MCs as resgatarem. ― Eu só não

sabia como faria para conciliar aquilo com os cuidados com Liliane. Chegar

tarde todos os dias e sair cedo seria cansativo. Seria uma correria ir embora

para casa, facilitaria se eu ficasse no meu apartamento, mas não achava que

meu sumiço faria bem a ela. ― E quanto ao Pablo?

Pablo era um dos nossos que, durante um tempo, tomou conta da

fazenda e ajudou Evelyn, mas foi pego por Lorenzo, que ia matá-lo. Foi

então que Matteo pediu ao pai que, em vez de morto, ele fosse castigado,

sendo mantido prisioneiro, o que seria pior que a morte. O pai acreditou no

filho, embora os planos de Matteo fossem ganhar tempo para salvar o garoto.

Isso tinha acontecido havia alguns anos.

― Por segurança, forjaremos a morte de Pablo até Lorenzo e meu tio

estarem sob controle e eu me tornar o capo, aí o trago de volta ou o mando

para a Itália.
― Pediremos ao Shadow para fazer isso quando os MCs resgatarem

as meninas, pois não teremos outra oportunidade ― sugeri.

― Certo, vamos resolver tudo ― assentiu. Ele estava apostando tudo

nisso, e, no fundo, eu também, afinal havíamos lutado muito por esse

momento.

Eu tinha esperança de que tudo acabasse logo, que o antro fosse

derrubado e que Lorenzo perdesse o que tanto gostava. Queria as meninas de

volta com suas famílias. Era só uma questão de tempo para eu poder ir atrás

daquele russo infeliz e da família da Liliane.

Entramos no carro para ir embora após o encontro com os

motoqueiros.

― Me diz uma coisa: o que foi aquilo de cinto? Kill parecia que

queria matá-lo. Deu a entender que você bateu em Evelyn, mas duvido disso,

não é de seu feitio levantar a mão para uma mulher. ― Eu o avaliava pelo

retrovisor.
Ele ficou em silêncio por um tempo. Isso era estranho. Matteo

geralmente não hesitava em falar nada. Por que não queria me contar? Temia

minha reação?

― Eu fiz o que ele me acusou. Não vou mentir sobre as coisas

horríveis que cometi. ― Havia desgosto em sua voz e expressão. Não,

martírio era mais próximo do que meu amigo expunha.

Suas palavras me pegaram de surpresa. Não, não havia como ele ter

tocado em Evelyn daquela forma!

― Pode explicar? Porque não parece algo que você faria de livre e

espontânea vontade. ― Eu não achava que vinha me enganando todos

aqueles anos a respeito dele. ― Merda, você levou um tiro para salvá-la!

Como ousaria bater nela com a porra de um cinto?

― Não levei o tiro só por ela, afinal a sua fuga beneficiaria as outras

meninas também ― lembrou-me e depois deu um suspiro duro.

― Por que está hesitando tanto? Sei que há uma explicação para isso,

ou não estaríamos tendo essa conversa calmamente ― falei com o cenho


franzido.

― Você acabaria comigo se eu não tivesse um motivo? ― Riu quando

encontrou meus olhos, vendo a resposta clara neles. ― Por isso nos damos

bem desde a adolescência. Pois bem. Evelyn precisa sentir dor física para

lidar com algumas merdas fodidas de sua mente. Se eu não lhe batesse com

meu cinto, controlando a força para não a ferir demais, ela teria provocado

os homens do meu pai e voltado a ser presa naquela maldita cruz por dias,

sem comer nem beber nada.

― A garota faria isso? ― indaguei. Ela devia ter passado por algum

trauma na infância. É claro que ser levada à fazenda tinha feito os sintomas

piorarem.

― Sim. Ela já havia feito isso antes que eu a conhecesse e uma vez

depois, mas a tirei de lá, então ela me pediu que a ajudasse a sentir dor, ou

procuraria senti-la de outra forma. ― Sacudiu a cabeça. ― Sei que faria

isso.
Aquela menina não sabia o que seu pedido causaria ao meu amigo e

chefe. Eu podia ver a dor e o abismo em sua expressão por ter tocado nela.

― O que rolou entre vocês? ― sondei, saindo da estrada abandonada

e seguindo para a cidade.

― Nada. Eu não ia tocá-la naquele lugar. Jamais seria como eles. ―

O asco era evidente em sua voz.

― Eu o entendo. E agora, o que acontecerá com vocês dois? Gosta

dela de verdade? ― inquiri.

― Acredito que sim, mas, nesse momento, não quero pensar nisso.

Meu objetivo é salvar aquelas meninas. ― Ele estava agindo como um

verdadeiro capo.

― Também não vejo a hora de essa merda acabar e ir atrás do russo

― comentei com um suspiro. Logo saberia quem era o maldito.

― Não entendo uma coisa. Ele matou o restante dos homens que

tocaram em Lis, mas por que não matou o mandante? Afinal meu pai é o

principal responsável por toda aquela porcaria. ― Estávamos ambos


confusos com isso. ― Por que não o eliminou? Teria sido bom, afinal nem

sabemos quem ele é, então eu não seria obrigado a vingar Lorenzo.

O cara só não tinha sido descoberto ainda porque não fui atrás dele

com tudo. No momento, salvar as garotas era mais importante, mas logo iria

encontrá-lo. Se o infeliz ainda respirasse, eu o acharia nem que fosse ao

final do mundo.

― Penso a mesma coisa. Não faz sentido. Ele deve ter uma razão para

isso, porém, vou ter essa resposta só quando o pegar. ― Apertei as mãos no

volante.

― Não tem como o sujeito desaparecer assim, como se não existisse.

Ele tem alguém bom escondendo seus rastros, só pode. ― Matteo parecia

falar consigo mesmo.

― Sim, deve ser um hacker muito bom para acobertá-lo. ― Suspirei e

mudei de assunto, já que não poderia resolver aquele ainda. ― Aonde

vamos? Acho que você precisa descansar. Como Frank disse, cuidaremos

das meninas.
― Estou bem...

― Não está, posso ver isso. Não precisa aparentar ser forte para mim.

Você é meu chefe, mas também meu amigo. ― Interrompi-o.

― Eu sei. Só não quero deixar vocês preocupados. Já basta o Luca,

que me liga a cada hora para conferir como estou. ― Suspirou baixo.

― Não foi fácil para ele atirar no próprio primo. Você tem pontos,

precisa de cuidados e se recuperar para o momento do ataque à fazenda,

mesmo que não esteja lá na hora.

― Isso é outra coisa que está me incomodando, deixar que lutem por

mim e ainda permitir que sejam machucados na ação. Não sou covarde. ―

Eu sabia que isso era o que mais o corroía.

― Sim, não é um covarde. Está agindo como chefe, importando-se

com seu povo, fazendo tudo para libertar aquelas crianças e adolescentes e

devolvê-las às suas famílias. Estou orgulhoso de você. Não nos importamos

com o que acontecer a nós, contanto que tudo seja resolvido. ― Virei o
carro na direção da casa dele. ― Farei o possível para proteger todas.

Confie em mim.

― Confio. Vou fazer o que pede ― prometeu assim que chegamos à

sua casa. ― Você vai para a fazenda agora?

― Estava pensando em fazer uma tatuagem antes ― comentei. ― Pare

de se preocupar, as meninas estão bem. Há muitos em quem confiamos lá

dentro e que podem nos chamar caso aconteça algo.

― Uma tatuagem? ― Olhou-me descrente. ― Você pode sair ferido

em uma batalha que não deve demorar, mas parece mais preocupado em se

tatuar?

― Não é uma tatuagem qualquer, tem um significado importante. ―

Contei-lhe sobre a que fiz em Liliane alguns dias antes. Já era para ter feito a

minha, mas a correria foi grande.

Ele me olhou por um segundo. Não pude lê-lo.

― Você vai tatuar um símbolo de ligação?


― Ela é a única mulher que quero para sempre, então sim. Ficar

ligado a ela é bom. ― Sorri.

― Como anda a relação entre vocês? Ela sabe do que você sente?

― Ainda não. Quero que ela se declare primeiro. Só assim saberei

que está pronta para um relacionamento. ― Sempre foi meu objetivo desde

que descobri que a amava.

― Você a ama há muito tempo e esperou até agora. Admiro sua

paciência e calma por lhe dar tempo até ela estar pronta para um

relacionamento.

― Antes dela, eu não sabia se podia amar, se era capaz disso. Não

queria uma pessoa na minha vida que pudesse ser tirada de mim, mas com

ela descobri que ter um ponto fraco não é de todo ruim, pois o amor nos

deixa mais fortes. Sou capaz de tudo para enfrentar quem ousar machucá-la.

― Assim como fiz com alguns dos vermes repugnantes que a machucaram.

― O que fará com a lei que o impede de se relacionar com pessoas de

fora da máfia? Não posso mudar isso quando me tornar capo. Eu queria
poder.

Havia muitas leis que ele poderia mudar, mas aquela não era uma

delas, eu sabia.

― Sei que a mudaria se pudesse, mas não vamos pensar nisso. Se eu

fosse pensar em todos os obstáculos que me impedem de ficar com Liliane,

surtaria. ― Não queria pensar naquele problema; já bastava os outros.

Matteo não saiu logo do carro assim que estacionei em frente à sua

casa.

― Que outros obstáculos você tem? Está se referindo ao fato de ela

ainda não ter se declarado?

― Não, mas ao fato de que sou um assassino, e ela é a porra de um

anjo de luz. Além disso, Liliane pensa que eu a salvei, quando não fui eu,

sem contar que ainda não informei a ela que pode nunca ser mãe. São

empecilhos que devo enfrentar, e vou fazer isso. Não desistirei dela. A única

coisa que estou esperando é...

― Que ela se declare antes ― terminou a frase por mim.


― Sim. ― Dei um suspiro duro. ― Vou lidar com tudo. Agora entre e

descanse um pouco.

Ele sorriu provocante.

― Você daria um bom capo...

Cortei-o:

― Sem chance, não creio que lidaria muito bem com as

responsabilidades de um cargo desse nível, mas estarei aqui para o que você

precisar de mim.

Assim que ele entrou em casa, fui para um dos locais onde fazia

tatuagens. Era um estúdio grande e conhecido. Entrei no estabelecimento,

onde encontrei a assistente de Culver, Jenika, uma mulher bonita com quem

fiquei algumas vezes no passado.

― Samuel! Faz tempo que não o vejo! ― Ela parecia animada, e eu

sabia o porquê, afinal, às vezes, quando eu vinha para ser tatuado, nós

ficávamos juntos depois.

― Culver está disponível? Preciso que ele me faça uma tatuagem.


― Sim, o último cliente dele saiu há poucos minutos. ― Saiu de trás

do balcão. ― Te levo até ele.

― Não precisa, sei o caminho ― falei, saindo de perto dela e indo em

direção ao corredor.

― Se quiser, estou livre depois do almoço ― falou atrás de mim.

Parei ao abrir a porta e me virei para ela.

― Não vai rolar. Agora sou um homem comprometido. É o nome dela

que vim fazer hoje ― anunciei e prossegui para a sala, mas vi seus olhos

arregalados.

Eu me diverti muito como solteiro; agora me divertiria mais ainda,

mas com uma mulher só, a única que eu queria e amava.

― Então vai fazer o nome de uma mulher? ― Culver sorriu assim que

entrei. Ele era um senhor de idade que conheci há alguns anos, quando alguns

infelizes queriam tomar seu lugar. Livrei-me deles, e nos tornamos amigos.

― Sim, esbocei uma tatuagem com o nome dela e eu mesmo poderia

fazê-la, mas é no pulso direito, não ficaria boa. ― Além disso, tatuar com
Culver o faria ganhar um dinheiro a mais. Ele cuidava de uma neta

deficiente, então necessitava de dinheiro para remédios e tratamentos. Eu

queria ajudá-lo, mas ele não aceitava.

― O que vai ser? ― sondou.

Peguei o esboço e o entreguei a ele.

― Raio de Sol? ― Arqueou as sobrancelhas para mim.

― É como a chamo. ― Dei de ombros.

Sorriu.

― Essa menina deve ser especial para você fazer algo assim. ―

Observou o desenho do sol. ― Suponho que ela esteja com a lua e o sol.

― Sim para as duas perguntas. Podemos começar? Tenho que ir

trabalhar ainda.

― Claro, mãos à obra. Aposto que ela vai gostar de você expor o

nome dela assim ― comentou, pegando o equipamento.

Eu esperava que sim, quando Liliane descobrisse; por enquanto, a

tatoo ficaria coberta. Até comprei um bracelete de couro para cobri-la.


Outro segredo que eu teria de manter. Não gostava de esconder as coisas

dela.

Assim que Culver terminou, observei a arte colorida. Ao redor do sol

tinha pequenos raios, e, em seu interior, o apelido dela. Deixei um espaço

para colocar seu nome depois para o caso de alguém descobrir a tatuagem. O

nome de Liliane não podia ser vazado ainda.

― Fico feliz por você, meu amigo. Essa menina deve ser mesmo

especial ― comentou Culver.

― Ela é a luz no meio da minha escuridão. ― Olhei mais uma vez

para a bela tatuagem, perfeita como Lily. Um dia mostraria ao meu Raio de

Sol o que ela era para mim, o quanto significava na minha vida: tudo.
Samuel

Levantei-me cedo, pois o dia seria cheio. Demorou anos, mas

conseguimos obter ajuda para resgatar as meninas prisioneiras daquele

antro. O nosso trunfo era os MCs, dos quais nos tornamos aliados.

Finalmente tinha chegado o dia de resgatarmos as meninas do cativeiro.

Olhei para a mulher adormecida na minha cama. A maior parte de suas

noites foram calmas no decorrer das últimas semanas; algumas, não, como
aquela madrugada, que foi turbulenta, por isso ela veio dormir no meu

quarto, enquanto fiquei no sofá. Liliane sempre dizia que estar ao meu lado

aquietava as vozes daqueles malditos. A impotência era algo que eu não

apreciava. Matei apenas alguns deles, fui privado da vingança por causa do

envolvimento daquele russo.

― Samuel? Já está indo? ― perguntou Lily, tirando-me dos meus

devaneios.

Pisquei. Ela estava sentada na cama, a visão mais perfeita do mundo,

toda sonolenta. Sentei-me ao seu lado e peguei sua mão, apertando-a com

ternura. Queria abraçá-la, embalá-la. Essa vontade nunca passaria, e eu não

queria que passasse; na verdade, ansiava por realizá-la um dia.

― Pode ficar deitada, o sol nem nasceu ainda. Preciso sair mais cedo

hoje. ― Tinha que organizar algumas coisas antes de os MCs invadirem a

fazenda.

― Vai vir para o almoço? ― sondou ela, parecendo ansiosa com algo.
― Hoje não vai dar. ― Não sabia quanto tempo a operação ia

demorar, então não podia me comprometer a vir para casa. As últimas

semanas foram bem corridas; entre ter de ir à fazenda e voltar para casa, e

isso estava me deixando morto de cansaço. Esperava que, após aquele dia,

pudesse ter um bom descanso, pois estava necessitando de uma pausa.

― Oh... ― Ela parecia desapontada com alguma coisa, assim como

pareceu ansiosa antes. Às vezes eu a lia como um livro, mas notei que havia

momentos em que não conseguia decifrá-la, pois ela conseguia esconder bem

os sentimentos. Eu não sabia se gostava disso.

― Eu viria se pudesse... ― Não havia nada que eu quisesse mais do

que ficar ao seu lado.

Ela forçou um sorriso que não chegou aos olhos.

― Está tudo bem...

― Lily, o que está te incomodando? Me diz, que farei algo a respeito.

― Apertei sua mão novamente, informando-lhe dessa forma que manteria a


promessa. Sabia que ela escondia algo e precisava descobrir para tentar

ajudá-la.

― Não é um incômodo. É só que eu ia fazer nhoque de ricota com

espinafre. Vovó disse que é o seu prato favorito, então aprendi a fazer ―

murmurou.

Quando ela falava coisas doces assim, dava-me vontade de beijá-la

ainda mais. Era difícil me controlar, porém necessário. Não queria afastá-la

caso me declarasse.

― Prometo que estarei em casa na hora do jantar, mas, se houver

algum imprevisto e não puder vir, então amanhã você faz a receita para mim.

― Esperava que nada impedisse aquilo. ― Vou fazer o possível para vir,

ok?

Seu sorriso lindo aqueceu meu coração negro. Antes eu o via

completamente assim, mas agora, de alguma forma, ele se iluminava e

aquecia sempre que ela estava por perto.


― Combinado. Espero que não venha a acontecer nada e que você

apareça. ― Ela parecia ansiosa.

Sorri, aproximando-me e beijando sua testa. A sua respiração acelerou

um pouco.

― Vou fazer o possível ― repeti e me afastei, ficando de pé. ― Pode

ficar na cama mais um pouco.

Ela assentiu, voltando a se deitar.

Saí dali sem querer, mas não podia ficar; precisava organizar alguns

detalhes, nada podia dar errado durante o resgate. Se desse, estaríamos

todos ferrados, não só nós, mas as meninas também. Havíamos nos

comprometido demais, para tudo dar certo.

Cheguei ao local marcado, a alguns quilômetros da fazenda. Matteo e

Luca já estavam lá. Eles não estariam no lugar na hora do ataque, isso

geraria suspeitas, então os dois se encontrariam com Lorenzo e Enzo.

― Tudo preparado? ― questionei.


― Sim. Conversei com Shadow. Está tudo bem com ele e seu pessoal,

só esperando a hora certa ― respondeu Matteo. ― Não vai demorar.

― Nosso pessoal foi para o hospital?

O plano antes era os MCs chegarem atirando em todo mundo, inclusive

nos nossos, mas tomando cuidado com o local do corpo que alvejariam.

Todos concordaram, mas depois Matteo entrou em contato com Evelyn, e a

menina deu a ideia de dar purgante a todo mundo. Como isso chamaria

atenção, preferimos dar um jeito de todos passarem mal do estômago por

causa de uma intoxicação alimentar. Deu certo. Lorenzo estaria tão

preocupado com as meninas que nem notaria. Trouxemos o médico para o

nosso lado. Ele não gostava do capo. Até achei que era fiel a ele, mas o

doutor era esperto e escondia o que pensava do chefe. Lorenzo ter mandado

uns dos seus soldados bater em seu filho só porque o médico tinha chegado

atrasado um dia para atender Matteo, que tinha sido ferido, foi a gota d’água.

Azar para ele e sorte para nós.


Como não podíamos tirar só os nossos da fazenda, tivemos que mandar

ao hospital também alguns homens leais a Lorenzo, assim ninguém

desconfiaria de nada. Assim eu esperava. Não confiava em deixar as

meninas apenas nas mãos dos asseclas de Lorenzo, mesmo que só por

algumas horas. Houve casos em que alguns deles tocaram em algumas delas.

Molestavam-nas de formas diferentes, não tirando sua virgindade, assim não

gerariam suspeitas nas festas em que eram oferecidas aos aliados de

Lorenzo. Era cada coisa fodida que me enchia de fúria. Logo iria me livrar

de alguns, se eu tivesse sorte e sobrevivessem após o ataque dos MCs, que

eram letais.

― Foram medicados, vão ter alta amanhã. Pedi ao doutor que dissesse

que eles precisavam ficar em observação. Ainda bem que ele está do nosso

lado. Na verdade, sempre foi contra meu pai; era coagido pelo medo e as

ameaças dele ― informou Matteo.

― Então temos só hoje para resolver tudo. Amanhã será tarde demais.

Vai dar certo. Vou estar lá para controlar tudo.


― Eu preferia que não estivesse, mas não temos ninguém dos nossos

lá, estou preocupado. ― Matteo soltou um suspiro pesado.

Ninguém na fazenda desconfiou de mim por não ter estado ali quando

serviram aos guardas o lanche contaminado. Dei a desculpa de ter de levar

minha avó ao médico.

― Prefiro assim. Sabe que eu não aguentaria ficar acamado enquanto a

ação estivesse acontecendo lá. Isso não é para mim. ― Sorri para acalmá-lo.

― Preciso que pegue Pablo e o leve ao lugar determinado após o

plano se concretizar ― continuou o chefe. ― Shadow fará a parte dele.

― Vou levar Pablo ao lugar certo, pode confiar.

Matteo assentiu.

― E os arquivos? Se livrou deles? ― sondou Luca escorado no carro.

― Deixei só o que precisa ser descoberto, nada que traga alguém a

nós. ― As meninas seriam deixadas em caminhões em um lugar

determinado, e agentes do FBI não corruptos iriam encontrá-las depois. Se

alguma delas contasse onde era o local em que tinham sido aprisionadas ou o
nome de Lorenzo ou de algum de nós, os federais não achariam nada além de

ruínas e não teriam prova nenhuma para nos incriminar.

― Ótimo. Agora preciso ir, mas me mantenha informado de tudo que

acontecer ― ordenou Matteo. ― Vou ficar com meu pai, quero estar lá

quando ele receber a notícia.

Eu também queria presenciar isso, mas, como não podia, era melhor

focar no que devia fazer.

― Pode deixar ― prometi e entrei no carro. Ao menos o maldito

pagaria caro. Era uma pena eu não poder participar com as próprias mãos da

queda do maldito lugar.

Segui para a fazenda. Era um sacrilégio chamar aquele antro de

fazenda, quando na verdade era uma prisão. Um purgatório, para ser mais

exato.

Após checar como andavam as coisas, fui para a sede só para conferir

se tinha deixado passar algo; antes de entrar, entretanto, ouvi gritos de uma

mulher. Corri com a arma apontada na direção dos gritos aterrorizados.


― Pare de gritar, sua puta! ― ordenou a voz de um homem.

O som vinha do consultório de enfermagem que ficava ao lado de uma

das casas.

O que uma mulher fazia ali? Era para todas as “funcionárias” que

tinham no local terem ido ao hospital. Não era muitas, apenas Zaira, a

cozinheira e a enfermeira.

― Por favor, não! ― pediu a mulher.

Quando Lorenzo não estava na fazenda, aqueles miseráveis

aproveitavam, embora fosse bem provável que o infeliz, se estivesse ali,

assistisse à cena sorrindo e ainda aplaudisse.

Entrei no local. A mulher estava deitada no sofá com um dos soldados

em cima dela tentando violentá-la.

― Vejo que gosta de pegar mulheres sem a autorização delas ― falei

de modo frio.

O infeliz saiu de cima de sua vítima, e pude ver sua braguilha aberta.

O sujeito era o mesmo que queria nos impedir de entrar ali quando
descobrimos sobre a existência daquele lugar. Silas era o nome do miserável

desprezível.

― Ela queria isso ― afirmou nervoso, vendo a arma apontada para si.

― Estranho... Não era o que estava parecendo ― desdenhei. Olhei

para a mulher. ― Nos deixe a sós.

Ela piscou um segundo, chocada demais e assentiu parecendo aliviada

por eu ter aparecido na hora certa. Entrou por uma porta que ficava no canto.

Ouvi o trinco sendo passado.

― Não se meta nisso! ― rosnou o bastardo.

― Me diga uma coisa: você é um dos homens que andou molestando

algumas das meninas? ― Eu o avaliava. Podia simplesmente ter atirado

nele, mas para tudo há um tempo. Sua morte chegaria logo, e eu faria o

infeliz pagar caro sem precisar atirar.

― Poderia ter feito o mesmo com aquela putinha de quem você cuida.

Acha que não sei que a resgatou daqui? ― zombou. ― Aposto que gosta de

coisa usada...
Orgulhava-me do meu autocontrole, aperfeiçoei-o muito, mas, ao ouvir

essas palavras, meu sangue ferveu a ponto de eu não conseguir me controlar

e me lançar contra o verme. Soquei sua boca, fazendo o sangue espirrar.

― Você não merece respirar mais um dia. ― Guardei a arma e peguei

minha faca, indo até ele antes que reagisse e pegasse a sua arma. ― Pagará

com a vida por ousar dizer isso dela.

― Você e Matteo não passam de frouxos que se acham certos demais!

Nós somos a porra da máfia, e não um bando de medrosos e covardes com

bons corações! ― zombou. ― Devemos fazer as pessoas nos temerem, e não

virem para cima de nós por nos acharem fracos!

Era perceptível que o que ele dizia estava entalado em sua garganta há

muito tempo. Deixei que soltasse tudo que estava pensando antes de mandá-

lo ao inferno.

― Você fala demais para alguém morto ― falei com um olhar duro.

― Não pode me matar... ― Interrompeu-se quando um estrondo soou

do lado de fora. ― Que porra está acontecendo?!


Finalmente chegaram, pensei.

― O fim dessa escória finalmente chegou ― informei, sabendo que

ele morreria, assim não iria abrir a boca e contar a Lorenzo sobre Liliane.

― Você está louco se acha que pode ir contra Lorenzo! Assim que eu

impedir esse ataque ou seja lá o que esteja fazendo, vou contar tudo ao capo,

e então você e o bastardo do filho dele pagarão! ― grunhiu, tentando passar

por mim como se tivesse se esquecido que eu queria matá-lo ou não

acreditasse que eu fosse fazê-lo. Fosse o motivo qual fosse, eu não me

importava. Soquei seu estômago, jogando-o sobre a mesa do consultório e

fazendo os objetos sobre ela caírem.

Apertei o cabo de minha faca e fui até ele, acertando seu peito, mas

não consegui impedir que ele acertasse minha lateral com algo afiado. Notei

que era um bisturi. Devia tê-lo pegado na mesa. Amaldiçoei por não ter sido

rápido o bastante para impedi-lo.

Sentia que não era um corte profundo, mas rompeu bastante a pele,

pois eu sentia o sangue escorrer. Nem me preocupei com a dor, pois tive
tanta na vida que me acostumei com ela.

― Você não merece sequer pensar nela. ― Enfiei minha faca em sua

barriga enquanto segurava o pulso da sua mão que agarrava o bisturi para

impedi-lo de me atacar novamente.

Torturei-o um pouco para descobrir se alguém mais sabia de Liliane,

mas ninguém sabia, só ele, que me viu fazia pouco tempo com ela em minha

casa, após ter me seguido. O filho da puta queria algo contra mim para

informar a Lorenzo, mas ainda bem que o ataque à fazenda veio antes de ele

abrir a boca.
Samuel

Assim que a vida do desgraçado foi ceifada, fiquei de pé, olhando a

sujeira causada pelo sangue no chão, mas não me importei. Levantei a

cabeça, deparando-me com a mulher parada à porta, com seus olhos

arregalados.

― Lamento por ter de ver isso ― finalmente falei com um suspiro

duro.
Ela piscou, tirando sua atenção do cadáver no chão e encarando-me.

― Não lamente, já vi coisa pior. Sei que eu devia estar acostumada,

mas acho que nunca estarei ― sussurrou. Encolheu-se ao ouvir mais tiros. ―

Finalmente eles chegaram, os homens que vão resgatar essas meninas. Meu

marido me contou tudo.

Alguém de coração mole jamais aguentaria fazer parte da máfia. De

toda forma, muitas pessoas não tinham opção de sair depois que entravam ou

eram “convidados” a participar dela.

― Seu marido?

― Jakob. Ele é um dos que foram para o hospital, mas não sabe que

fui convocada a estar aqui hoje no caso de alguém passar mal de novo ―

murmurou.

Jakob era o soldado que me ajudou a tirar Liliane dali alguns anos

antes. Eu não conhecia sua esposa, só sabia que era enfermeira em um

hospital.
Assenti, colocando a mão na ferida, que doía. Tirei a mão, olhando a

hemorragia.

― Está ferido. Me deixe dar uma olhada ― pediu, vindo até mim. ―

Pode sentar-se na cadeira ali.

― Não foi fundo ― falei, mas fiz o que ela pediu.

― Pode levantar a camisa? Assim vejo melhor. ― Ela andava pela

sala enquanto falava e procurava material hospitalar.

Ignoramos o defunto no chão e a luta lá fora. Eu sabia que tudo

ocorreria bem. Ainda assim, por via das dúvidas, logo que ela terminasse de

cuidar daquele corte, eu iria até lá para checar como andavam as coisas.

Ela examinou o ferimento por uns minutos.

― Precisará de pontos. Ainda bem que não foi fundo a ponto de atingir

algum órgão. ― Começou a limpar o corte. ― Seria melhor que se deitasse

de lado, assim eu poderia suturar melhor.

Assenti e me deitei na maca que havia ali, mas, antes de ela continuar,

meu telefone tocou. Olhei para a tela, vendo o nome do meu Raio de Sol.
― Pode primeiro me deixar atender essa ligação? ― pedi a ela.

Franziu a testa.

― Não acha melhor ser costurado e estancar o sangue antes? ―

sondou.

Peguei um pano e o coloquei sobre a ferida, apertando-a.

― Estou estancando. Preciso atender essa ligação. Não vou demorar.

― Tudo bem. Vou pegar o material para suturar a ferida. ― Ela não

queria, mas me deixou a sós, indo para a salinha onde se escondeu antes.

Assim que eu estava sozinho, atendi a ligação de Lily. Como se eu me

importasse em sentir um pouco mais de dor... Por ela, valia a pena, e eu não

podia deixar de receber suas ligações. Podia ser algo importante.

― Oi, querida, como vai? Aconteceu alguma coisa? ― Ela deveria me

ligar só à tarde, ou então eu o faria à noite, caso não fosse jantar.

― Não, só queria ouvir sua voz ― sussurrou.

Tinha uma nuance em seu tom que passei a conhecer bem durante os

anos.
― Teve alguns pensamentos ruins? ― Era uma pergunta retórica,

afinal ela havia me ligado fora de hora, e, na noite passada, seus sonhos

foram bem agitados, por isso foi dormir no meu quarto, pois, ao meu lado,

ficava mais calma. A meu ver, ela se sentia segura comigo, então ficava mais

relaxada à noite, quando eu estava por perto.

― Sim, mas agora, que estou falando com você, tudo melhorou.

Eu gostava de sua sinceridade. Ela sempre era honesta, por isso eu

esperava que um dia declarasse o que sentia por mim. Eu não irei fazê-lo

antes dela; se inda não tinha feito, era porque não estava pronta.

― Que bom. Fico feliz que esteja melhor. ― Apertei o pano sobre o

corte para impedir que sangrasse mais. As hemorragias em ferimentos nos

flancos eram maiores, ainda que os cortes não fossem profundos, como o

meu.

― Sim. O que está fazendo?

Eu poderia lhe dizer sobre tudo o que estava acontecendo naquele dia,

mas não achei que fosse bom para ela. Não sabia como voltaria para casa à
noite com aquela ferida e não queria preocupá-la com meus negócios

sombrios.

― Nada divertido. ― Soei vago e acrescentei, antes que ela

perguntasse mais coisas às quais eu não podia responder: ― Farei o

possível para estar aí à noite.

― Fico feliz em saber disso. Estou animada para você provar o que

vou fazer. ― Agora tinha mais vida em sua voz, diferente de quando ligou.

Antes que eu comentasse algo, a enfermeira entrou no consultório.

― Samuel, vamos continuar de onde paramos? ― Segurava uma

bandeja com material de sutura e primeiros socorros. O corte não precisaria

de mais do que três pontos. Eu entendia um pouco sobre isso, afinal já tinha

sido ferido com uma faca muitas vezes.

Eu ia responder a ela, mas então notei algo diferente na respiração de

Liliane no outro lado da linha. Parecia ofegante.

― Lily, aconteceu algo?

Parecia que ela estava chorando.


― Você está ocupado com outra mulher... Por isso pareceu vago

quando perguntei o que estava fazendo. ― Sua voz parecia estranha... morta.

Sacudi a cabeça, pensando no que ela tinha ouvido. A frase da

enfermeira deu a entender outra coisa.

― Lily... ― comecei, mas, antes que pudesse continuar, a linha ficou

muda.

Fiquei de pé em um salto, ignorando a porra da ferida. Uma pior se

estendia em meu peito. Tentei ligar para ela, mas o telefone chamava sem

parar. Lily não queria atender.

― Porra! ― praguejei, olhando o GPS, que mostrava que ela ainda

estava em casa.

― Aconteceu alguma coisa? ― sondou a enfermeira com o cenho

franzido.

Respirei fundo para me controlar. Não podia descontar nela, mesmo

que fosse sua culpa o que aconteceu, embora ela não soubesse disso.
― Nada, só costure essa merda logo. Preciso resolver algumas coisas.

― Como ir até a Liliane e esclarecer que não houve nada do que ela

pensou.

A mulher assentiu, suturou-me e fez um curativo. Como suspeitei, deu

apenas três pontos. Eu sabia que uma batalha se desenrolava ali fora, mas

minha mente estava em Liliane e no que eu queria dizer a ela, então era isso

que eu faria, e que tudo se fodesse. Queria esclarecer tudo para Lily, afinal

não queria que ela continuasse sofrendo. Um pensamento me ocorreu: aquilo

podia mostrar a ela o que realmente sentia por mim.

Porém, não foi por isso que não fui correndo até ela, e sim porque

estava na porra de uma zona de guerra. Havia corpos em vários lugares.

Além disso, precisava checar se tudo dera certo com a libertação das

meninas e pegar Pablo; eu era sua carta de alforria da máfia, ao menos até

Matteo ocupar o poder.

Fui até os caminhões para onde as meninas estavam sendo levadas.


Alguns dos MCs estavam por perto, com vários cadáveres amontoados

à sua frente. Por sorte, não eram do nosso lado, e sim do de Lorenzo.

Avistei Daemon.

― Dizimamos tudo ― indicou ele. ― Pena que não pude aproveitar

da forma que gostaria.

Antes que eu respondesse, Shadow saiu puto de uma das alas,

correndo para a lateral da floresta, onde antes tinha uma cerca, que foi

removida. A ruiva que reconheci como sendo Evelyn foi atrás dele, assim

como Kill, o irmão dela.

― O que está acontecendo? ― sondei, vendo-os sumir na mata.

Daemon franziu a testa, avaliando-os também.

― Não sei, mas posso jurar que foi o que Matteo pediu para Vip fazer

― mencionou e saiu antes que eu pudesse perguntar de que diabos estava

falando.

A única coisa que pedimos para que Shadow fizesse foi forjar a morte

de Pablo, que estava no calabouço daquele lugar. Agora seria uma boa hora
para fazê-lo desaparecer, assim ninguém saberia dele.

Eu soube que Shadow estava namorando a Evelyn, algo de que Matteo

não gostou, afinal também tinha uma paixonite pela ruiva.

Ignorando os cadáveres, fui até onde Pablo devia estar, o único

cômodo que deixamos com a câmera ativa, assim mostraríamos um pouco do

que tinha acontecido. Poderiam suspeitar dos motivos de só uma das

câmeras funcionar, mas eu não acreditava que Lorenzo pensaria nisso assim

que soubesse que havia perdido as meninas.

Pablo estava no canto, respirando de modo irregular. Ainda era jovem,

tinha um futuro promissor pela frente.

― Está pronto para ir? ― perguntei assim que cheguei até ele. ― O

pessoal quer destruir o local.

Ajeitou o corpo, parecendo estremecer. Balas de borracha deixam o

corpo dolorido por um tempo.

― Demorou. Não vejo a hora desta porra desabar.

Fomos para o carro e apontei para o porta-malas.


― Entre. É só para o caso de alguém nos vir saindo daqui e nos seguir

aonde precisamos ir.

― Qualquer coisa para sair daqui ― assentiu e olhou para o local em

que esteve preso por anos. ― Sempre pensei que o inferno fosse na Terra,

mas nada se compara a este lugar.

Eu não podia ir contra essa ideia.

― Hoje será a queda de Sodoma e Gomorra. O ruim é que não

seremos nós que destruiremos este antro.

O fogo emergiu nas casas onde as meninas viveram antes de serem

resgatadas. Observei os caminhões se afastando com elas. Vários foram

necessários para caber as duzentas crianças e adolescentes.

― Citando uma passagem bíblica? ― O garoto sorriu, embora eu

pudesse ver o abismo em seus olhos. ― Pena que Lorenzo não está nestas

chamas, sendo destruído com o lugar.

― Deus destruiu aquelas cidades; aqui, os MCs vão fazer o mesmo. ―

Dei de ombros. ― Um dia Lorenzo também irá para o inferno.


Desviei os olhos das chamas incendiando o local para fechar o porta-

malas assim que Pablo entrou.

Demorou muito, mas finalmente nosso plano foi concretizado. As

meninas foram resgatadas e seriam entregues às suas famílias. Eu estava

ansioso para contar aquilo a Liliane. Então me lembrei do incidente de mais

cedo, e meu peito se apertou.

Enquanto ligava o carro, telefonei para ela, mas não atendeu. Isso era

incomum, pois, toda vez que eu ligava, ela atendia rapidamente, como se

ficasse com o telefone o tempo todo. Isso só me dizia uma coisa: Lily estava

machucada por algo que eu não tinha feito.

Deixei Pablo no esconderijo e fui para casa, mas antes liguei para

Matteo. Agora era com os MCs para terminarem tudo.

― Pacote entregue ― falei assim que ele atendeu. Ouvi um alvoroço

do outro lado. ― O que está acontecendo?

― Meu pai soube do ataque às instalações da fazenda e teve um

infarto ― respondeu.
― Espere... o quê? ― O maldito não podia morrer daquela forma, ele

merecia coisa pior.

― Estamos aqui no hospital tentando salvá-lo. ― Não tinha emoção

alguma em sua voz.

― Quem está aí com você? ― Pela forma como falava, não parecia

estar sozinho. Era muito vago.

― Luca e meu tio. Estamos torcendo para meu pai sair dessa. ― Sua

voz soou preocupada no final, mas não era apreensão ali. Ele apenas não

queria que Lorenzo morresse daquela forma. Eu apostava que eram aqueles

os seus pensamentos, ou eram só os meus, desejando que aquele maldito

sobrevivesse para pagar de modo adequado.

― Preciso ir em casa resolver um problema, depois vou para aí ―

avisei.

― Tome seu tempo. Fiquei sabendo que, ao fazer o que pedi, você foi

ferido, então se recupere ― disse em tom baixo, provavelmente para

ninguém ouvir.
A enfermeira devia ter se antecipado e revelado a ele sobre a facada

que eu tinha levado.

― Tudo bem. ― Naquele momento, só tinha uma coisa em minha

mente: conversar com Liliane.

― Mantenha contato caso saiba de algo ― pediu em um sussurro.

― Pode contar comigo. ― Sabia que se referia aos MCs.

Desliguei, mas, antes de guardar o celular, notei ligações perdidas da

minha avó e de Moor. Liguei para ela primeiro.

― Vovó, aconteceu alguma coisa?

De repente pensei em Liliane.

― Samuel, não acho Lily em lugar nenhum! ― A voz alterada da vovó

fez meu sangue gelar.

Deviam ser por isso as ligações de Moor.

― Vou dar um jeito, Moor está vigiando-a. Ela ficará bem. ―

Esperava que sim, porque, se Lily tivesse se machucado, alguém iria sangrar.
Assim que a tranquilizei, liguei para Moor.

― Espero que esteja com ela sob suas vistas. ― Acelerei o carro

enquanto falava.

― Liguei algumas vezes para relatar que ela saiu da casa. Agora está

aqui, na praia, olhando para o lago e chorando.

― Porra! ― amaldiçoei. ― Não deixe ninguém se aproximar dela.

Estou a caminho.

― Sim, chefe.

Encerrei a ligação e respirei fundo para me controlar. Por mais que

estivesse com raiva de mim por ter demorado a vir atrás dela, também

estava contente por ela ter saído de casa. Perguntei-me quais as razões para

Liliane ter feito isso. O que pensava? Estaria ela querendo ir embora e me

deixar? Isso não ia acontecer, não antes de ela saber a verdade.

Em poucos minutos, cheguei à praia, onde o sinal do GPS apontava.

Então ele começou a se mover. Saí do carro às pressas e corri pela areia,

ignorando as pontadas de dor na região suturada. Essa merda ia me dar


problemas depois, pois sentia minha barriga molhada. Eu estava sangrando.

Contudo, naquele momento, só Liliane me importava.

Não precisei andar muito, avistei-a em uma área deserta. Não tinha

ninguém por perto, só dois homens em uma barraca à distância, sendo que

um deles devia ser o dono. O outro era Moor.

Ela olhava para o imenso lago, imersa em seus pensamentos, mas seus

ombros tremiam um pouco.

― Lily. ― Cheguei mais perto dela.

Ao som da minha voz, suas costas ficaram eretas. Ela nunca reagira

assim a mim. Foi como receber um soco no estômago.

Liliane virou a cabeça, e o que vi em seus olhos me atingiu com uma

enxurrada de fúria contra mim mesmo, porque fui eu que a deixei assim. A

dor que se estendeu em meu peito era pior do que a que eu sentia naquela

ferida cujos pontos deviam ter estourado.


Liliane

Estava feliz ao lado de Samuel e vovó, mas, depois que ele fez a

tatuagem, eu me peguei a pensar sobre não conseguir ver meu corpo. Se eu

não conseguia me olhar nua, como poderia dizer ao Samuel que o amava?

Como poderíamos ser um casal de verdade? Como eu lhe daria o que ele

precisava?
Doía fundo pensar que eu não era completa. Queria ser, mas como

superar meus traumas? Como ser alguém compatível com ele?

Pensava em tudo isso antes de a bomba cair sobre minha cabeça.

Sempre pensei que ele não estava com ninguém, e meu mundo ruiu quando

ouvi a voz de uma mulher interagindo com ele quando lhe telefonei. Samuel

estava com outra, enquanto eu estava ansiosa para fazer um jantar para ele.

Tinha passado a manhã toda animada e sentindo a sua falta, afinal trabalhou

muito durante as últimas semanas.

Eu devia ter dito antes que o amava, mas era tarde demais. Eu o havia

perdido para outra pessoa, tudo por não ser uma mulher igual às outras. Se

fosse, teria lhe confessado meus sentimentos e dito que podia ser o que ele

quisesse, mas não, não tive a capacidade! Nem podia sair de casa sem ele,

exceto quando ia à praia. Como ele poderia querer uma mulher assim?

Estava farta daquele medo aterrorizante, daquela porcaria toda. Por

causa disso, estava sofrendo. Aqueles homens destruíram minha vida, e,


como consequência, eu agora era uma covarde e, por isso, meu coração

estava sangrando.

Saí de casa, querendo fugir da dor que me consumia, mas sabia que,

para onde eu fosse, ela me acompanharia. Na praia, encarei o lago e me

sentei na areia, pondo a mão no peito e desejando arrancar aquela dor, mas

era impossível.

Tinha conseguido lidar com cada passo dado até ali, mas não sabia o

que fazer com aquela dor. Estava angustiada, sofrendo por Samuel ter

seguido em frente.

Poderia ficar feliz por estar mais uma vez do lado de fora e admirar a

perfeição daquele lago imenso, mas o buraco em meu peito impedia tal

sentimento.

Por que Samuel não me revelou que está vendo alguém? Bem, não

seria mais fácil, de qualquer jeito ia doer, pensei amarga, embora não teria

sido pega de surpresa.


Não conseguiria viver na casa dele sabendo que, a qualquer hora,

poderia levar aquela mulher para lá. Além disso, quando ele saísse, eu me

perguntaria se estava com ela. Ou talvez até a trouxesse para morar em sua

casa. Se isso acontecesse, a dor ia me matar, mas o que eu poderia fazer?

Para onde iria?

Logo uma ideia me veio à cabeça. Poderia ir morar com Bonnie! Não

dependeria dela, claro, poderia arrumar um emprego. Não sabia como nem

qual, só precisava ir para longe dali. Bonnie sempre me ajudava, ainda que,

atualmente, nós nos falássemos mais por telefone. Sentia sua falta.

Peguei meu celular no bolso do short e liguei para ela. Tinha chegado

a hora de tomar as rédeas da minha vida.

― Oi, Liliane! Como vai você, querida? ― perguntou ela assim que

atendeu.

― Bonnie... ― Minha garganta se fechou por uns segundos. Limpei as

lágrimas que desciam pelo meu rosto.


― Aconteceu alguma coisa? ― Sua voz se toldou de preocupação. ―

Está chorando?

― Posso ir morar com você? ― Pigarrei para clarear a voz. ―

Prometo que vou lutar para conseguir um emprego e não depender de você.

Ela ficou em silêncio, como se eu a tivesse pegado de surpresa. Se eu

não pudesse ficar em sua casa, para onde poderia ir? Não tinha dinheiro e

não queria pedir nada a Samuel.

― E o Samuel? O que ele pensa disso? ― sondou, aparentando

confusão. Quando hesitei, ela prosseguiu: ― Me diz o que aconteceu para

querer deixá-lo e vir para cá.

Alisei meu peito como se isso fosse fazer a dor parar, então contei a

ela o que ouvi.

― Oh, Lily, tem certeza de que ele estava com outra? As aparências

enganam.

― Pelo que ela falou, parecia ser isso mesmo. Além do mais, eu o

senti vago quando perguntei o que estava fazendo. ― Na hora, achei


estranho. Ele geralmente não era assim.

― E se for outra coisa? Sabe a vida que ele leva...

― Ouvi a voz da mulher chamando-o para continuar de onde pararam!

― Encolhi-me. ― Ele encontrou uma mulher normal...

― Você é normal, Liliane.

― Não sou! ― Sacudi a cabeça, revoltada. ― Passei anos presa,

temendo o mundo! Só há pouco tempo comecei a sair sozinha, e apenas para

vir à praia!

― Isso é normal, leva tempo para curar um trauma dessa magnitude.

Está do lado de fora agora?

Ela podia estar certa, mesmo eu não gostando nada daquilo.

― Sim, estou.

― Fico feliz por você estar dando um passo desse. O que a motivou a

tomar essa atitude?

Não sabia se estava perguntando como psicóloga ou apenas por

curiosidade.
― Estava farta de tanto medo, por isso resolvi sair a primeira vez.

Queria me sentir livre, sabe? Fazer coisas sem depender de ninguém.

― Depender dos outros não é ruim até certo ponto. No seu caso,

entendo que queira trilhar o seu próprio caminho, embora os motivos pelos

quais anseia fazer isso sejam errados, afinal você quer fugir dele. ―

Suspirou. ― De qualquer forma é bem-vinda para ficar comigo.

― Então posso ir ficar com você? ― chequei, um pouco mais

relaxada.

― Claro que sim, mas acho que deve falar com Samuel antes. Depois

que conversarem, se ainda quiser vir, as portas estarão abertas. Mas promete

ouvi-lo antes?

Eu não iria embora por ele ter ficado com outra pessoa, ele era livre

para fazer o que quisesse. Só não podia ficar ali, esperando que, a qualquer

hora, aquela mulher ou outra qualquer aparecessem. Não suportaria ver isso.

Entretanto, ela estava certa; não custava nada conversar com Samuel,

era o mínimo que eu podia fazer depois do tanto que ele havia me ajudado.
Uma parte de mim queria correr para longe, assim não o ouviria confessar o

que tinha feito com outra mulher, pois Samuel não era de mentir.

― Prometo ― garanti.

― Você o ama? ― inquiriu.

― Sim. Dói demais imaginá-lo com outra ― sussurrei. ― O pior é

pensar que não sei se poderia dar o que ele precisa caso me amasse.

― Por que pensa assim?

― Não está claro? ― Ri amarga. ― Não sou completa. Como posso

beijá-lo e fazer outras coisas se temo o contato físico?

― Não teme o dele. Eu o vi tocar em você, e nem estremeceu com

isso. É um bom começo ― apontou.

Podia ser um bom sinal se ele me amasse também.

Ficamos falando um pouco mais, até que notei pessoas chegando à

praia.

― Preciso ir. Depois nos falamos mais.


― Tudo bem, querida. Fique bem. Qualquer coisa, me chame ―

pediu. ― Não sei, mas algo me diz que não é nada do que você pensa.

Bonnie parecia confiar nisso. Eu queria poder dizer o mesmo. No

fundo, não culpava Samuel. Nunca tinha visto nenhuma nuance de que ele

estivesse interessado em mim, apenas me tratava bem. Seria normal ele ter

encontros com outras mulheres.

Também era por isso que eu não podia ficar. Não queria que se

sentisse culpado por não retribuir os meus sentimentos.

― Chamarei, sim, e vou falar com ele ― respondi e desliguei.

Samuel devia ter deduzido o que eu sentia após ter encerrado a ligação

e não atendido seus telefonemas depois.

Fiquei de pé, pronta para voltar para dentro de casa. Tinha dado um

passo gigante ao resolver sair sozinha, alguns meses antes, e dera certo; o

próximo seria andar no meio das pessoas.

Antes de voltar para casa, esgueirei-me até a beira da praia. Gostava

de sentir meus pés na areia e cobertos com água. Recordava-me de que eu e


os meninos das minhas lembranças gostávamos de tomar banho no mar.

Fazíamos isso sempre. Até então eu não havia conseguido lembrar quem eles

eram. Esperava fazê-lo um dia.

Doeria dizer adeus a tudo aquilo, a Samuel. Sentia-me como se

estivesse dentro de uma fornalha. Tinha planos de ficar boa, mas queria fazer

isso com ele ao meu lado. Sua presença me dava mais força, provavelmente

porque eu o amava.

Respirei fundo e já ia me virar para voltar para casa, quando ouvi a

voz dele. O som fez meu coração balançar.

― Lily. ― Passei a conhecer essa voz como a minha própria.

Inspirei fundo para controlar os batimentos cardíacos e a dor que me

consumia e olhei para ele, encolhendo-me de dor ao pensar que talvez eu

logo tivesse de partir.

― Eu lamento tanto, Raio de Sol. ― Eu podia ouvir a culpa em cada

palavra, e não queria isso. ― Vamos entrar e conversar?


Estava a ponto de assentir, quando vi sangue em sua mão, que

pressionava a lateral da barriga.

― Oh, meu Deus! O que aconteceu?! ― indaguei, correndo até ele,

esquecendo minha própria dor.

― Levei uma facada ― respondeu automaticamente, como se fosse

algo corriqueiro.

Pisquei aturdida.

― O quê? Você foi esfaqueado? ― Minha voz se elevou. ― O que faz

aqui e não em um hospital?!

― Precisava falar com você. Não é fundo, só precisou de três prontos.

― Três pontos? ― Sacudi a cabeça, aturdida. ― Vamos embora

cuidar disso.

Peguei sua mão livre e o puxei de onde estávamos em direção à nossa

casa. Nossa casa! Queria que fosse... No entanto, não era hora de pensar

nisso, eu tinha coisas mais importantes e preocupantes para fazer.

― Lily...
― Samuel, depois conversamos. Agora você está sangrando. ―

Estava aflita.

― Não ligo. Só não quero ver essa dor em seus olhos. ― Sua voz saiu

em um sussurro de dor.

Atravessamos a estrada para chegar à casa às pressas. Não queria

conversar sobre meus sentimentos ainda.

― Raio de Sol...

― Vamos cuidar de você, depois nos falamos, tá? ― pedi quase

suplicante.

Ele não queria, mas assentiu e me seguiu até a porta de casa. No

entanto, parou e limpou o sangue da mão na sua roupa preta.

― Não diga à vovó sobre a facada. Ela surtaria e me obrigaria a ir ao

hospital. ― Ele fechou a jaqueta que usava.

― Tudo bem. ― Entendi suas razões. Não queria preocupar sua avó.

Eu teria feito o mesmo.


Entramos na casa e encontramos vovó com um olhar preocupado.

Achei que já soubesse do neto, mas seus olhos estavam em mim. Correu e me

abraçou forte, parecendo esquecer-se do meu receio de contato físico.

― Estava tão preocupada com você, menina ― sussurrou com a voz

rouca.

Encolhi-me por dentro ao vê-la assim. Devia ter-lhe dito algo quando

saí.

― Lamento por isso, não queria preocupá-la. ― Estava com raiva de

mim por tê-la angustiado.

De repente, ela se afastou, parecendo dar-se conta de algo.

― Me desculpe por abraçá-la assim, é que...

Sorri.

― Sem problemas. ― Não doeu ser abraçada por ela. Estava

emocionada pelo carinho que tinha por mim. ― Peço desculpas por ter saído

assim.
― Tudo bem, mas o que aconteceu? ― sondou, olhando entre mim e

Samuel.

Encolhi-me, não querendo pensar naquilo.

― Vovó, vou falar com Lily e esclarecer algumas coisas. Depois

conversamos. ― Ele me puxou, e subimos a escada. No final, estava meio

ofegante.

― Devíamos ir ao médico ― falei assim que entramos no seu quarto.

― Sem médico. Estou bem ― esquivou-se, tirando a jaqueta e a

camiseta.

― Bem? ― zombei, indicando o local vermelho. ― O sangue saindo

daí mostra que não está bem. Agora vamos cuidar disso. Sente-se ali. ―

Indiquei a cadeira.

― Tem um kit de primeiros socorros no gabinete do banheiro, na

gaveta de baixo.

Fui buscá-lo e o trouxe junto a uma toalha molhada.


― Como levou a facada? ― indaguei, colocando o kit na mesa e

limpando o sangue.

― Fui defender a mulher cuja voz você ouviu ao telefone. O cara

tentou...

― Defender? Alguém ia...

― Sim, mas cheguei antes e o matei ― respondeu sem emoção.

Fiquei feliz por ele tê-la defendido, fosse ela quem fosse.

― Ela está bem? ― questionei. Esperava que sim. Ninguém merecia

ser atacado dessa forma, não importava se ela estivesse com o amor da

minha vida.

― Sim. ― Eu podia sentir seus olhos em mim, mas não os encontrei.

― Não aconteceu nada entre mim e ela.

― Lamento ter interrompido. ― No fundo, não lamentava, mas isso

não mudaria nada.

― Não, Lily. ― Ele tirou um bracelete de couro que tinha no pulso,

que havia colocado fazia pouco tempo, e virou o braço para mim. ― Acha
que, se eu estivesse com outra pessoa, teria colocado o seu nome aqui?

Pisquei ao ver a tatuagem de um sol com algumas palavras escritas no

centro: “Raio de Sol”.

― É só você, Liliane que ocupa minha mente, meu coração e minha

alma! ― declarou com fervor. ― Não fico com ninguém desde que a

resgatei.

Arregalei os olhos.

― Faz mais de três anos... ― sussurrei emocionada.

― Pode ser, mas não acho justo ficar com alguém, sendo que a única

mulher que desejo e amo é você.

― Me ama? ― Meu coração disparou.

― Sim, há muito tempo. ― Tocou meu rosto em uma carícia.

― Nunca suspeitei de nada, você não demonstrou nenhuma nuance de

que me amava. Por quê? ― Aproximei-me, querendo mais do seu toque.

― Sou bom em esconder as emoções. Fiquei com medo de confessar

meus sentimentos para você e assustá-la, levando-a para longe de mim.


Queria que estivesse bem emocionalmente para enfim confessar o que sinto.

Estava preparando-a para isso. E esperava que se declarasse primeiro... ―

Seu hálito quente banhou meu rosto.

― Como esperava que eu me declarasse se não sabia que me amava?

― Se eu soubesse, teria sido mais fácil revelar o que sentia.

Ele me olhou por um momento, como se só houvesse se dado conta

disso agora.

― Verdade. Sou um idiota mesmo. ― Suspirou. ― Não revelei nada,

e no final você acabou sofrendo ao pensar em algo que não existe.

― Sou uma idiota também, por fazer suposições antes de falar com

você. ― Sentia-me estúpida, mas qualquer pessoa teria reagido daquela

forma. Ainda bem que ele não tinha estado com ninguém, que tinha me

esperado por todo aquele tempo.

― Sinto muito por ter sofrido. ― Tocou o contorno dos meus olhos,

que provavelmente estavam vermelhos por causa do choro.


― Não importa. Agora estou feliz por saber que retribui meus

sentimentos. ― Sorri.

Seu olhar era intenso no meu, deixando-me quente e necessitada.

― Quero tanto beijá-la que dói ― sussurrou.

― Sinto a mesma dor ― confessei, mordendo o lábio inferior. ― Mas

e se eu...

― Se não estiver pronta, esperamos ― assegurou. ― Vamos com

calma.

Ouvir isso dele era muito importante para mim, mas tinha cansado de

esperar ficar pronta. Fazia tanto tempo que eu desejava aquilo, e agora o

tinha ali, ao meu alcance. Não custava nada tentar. Levei o meu rosto ao

dele, meu olhar se alternando entre seus olhos e lábios.

Minha boca se firmou sobre a sua suavemente, e me senti queimando

de forma prazerosa. Por um segundo, fechei os olhos diante da melhor

sensação do mundo.
― Olhos em mim, Raio de Sol ― ele pediu nos meus lábios. Fiz o que

pediu e notei que temia que eu surtasse. Isso me fez amá-lo ainda mais, se

fosse possível.

Em seus braços, senti-me realizada, a mulher mais feliz do mundo. Por

um momento, achei que tinha perdido tudo, e então descobri que um milagre

havia acontecido em minha vida. Samuel era o milagre que Deus enviara

para me deixar completa de novo.


Samuel

Olhei para aquele rosto perfeito tão próximo ao meu, sentindo seus

lábios macios roçarem a minha boca. Porra, não havia nada melhor do que

aquilo.

Por um instante, achei que perderia Liliane. Fui estúpido ao esconder o

que sentia, devia ter deixado meus sentimentos mais claros, embora o fizesse

às vezes, pois a forma como eu a tocava mostrava que a amava, mas ela não
teria como saber disso, afinal nunca havia namorado ou tido algo nem

remotamente parecido com aquilo.

Mesmo o beijo sendo casto, foi o melhor da minha vida até então. Meu

corpo todo parecia em chamas.

Suas mãos foram até minha barriga, fazendo-me gemer. Não pude

segurar o som.

Ela arfou, afastando-se. Aparentava estar chocada demais.

― Droga! ― Avaliei seu rosto para ver se detectava algum sinal de

surto, mas não consegui. ― Ficou com medo? Se for demais...

― Não é isso. Sua ferida. ― Apontou para ela. ― Desculpe, esqueci

que estava sangrando.

― Não se desculpe, valeu a pena. ― Para falar a verdade, eu até tinha

me esquecido da dor.

Ela riu.

― Vamos cuidar da ferida. ― Limpou-a, aplicou um remédio sobre

ela e colocou um esparadrapo sobre o ferimento. ― Ainda bem que os


pontos não arrebentaram. Por que estava sangrando, se tinha feito um

curativo? Seria pelo fato de os pontos serem recentes?

― Não, acho que foi por eu ter corrido para chegar até você.

― Lamento por isso. ― Deixou o material usado na mesinha e pegou

minha mão.

― Não lamente, está tudo bem. Esse local sangra fácil. ― Não queria

que se sentisse culpada. ― Só vou trocar essa calça suja, então podemos

conversar.

Tínhamos alguns assuntos importantes a tratar.

― Ficou sério de repente. O que é? ― Ela parecia ansiosa e receosa.

Beijei sua testa.

― Já volto, aí conversamos. ― Peguei um short e uma camisa no

closet e entrei no banheiro.

Após trocar de roupas, já estava saindo, quando meu telefone tocou.

Não queria atender, mas podia ser importante, não podia me dar ao luxo de

evitar ligações. Saí do banheiro atendendo o telefonema.


― Oi, Bonnie ― cumprimentei assim que vi seu nome piscando na

tela.

Liliane estava sentada na cadeira e já tinha guardado o material do kit

de primeiros socorros. Sua cabeça se levantou ao nome de Bonnie. Não

entendi a razão dos seus olhos arregalados.

― Samuel, que história é essa de Lily querer morar comigo? O que

aconteceu para ela desejar deixá-lo? ― Sua voz se elevou. ― Você

realmente ficou com outra?!

― Então a Lily pediu para morar com você? ― Cheguei perto dela,

que observava a minha reação.

― Sim. Deu a entender que você ficou com outra mulher. Ficou? ―

Frisou a pergunta.

― Não, não fiquei com ninguém. Foi um mal-entendido. Estou agora

esclarecendo as coisas. ― Toquei o rosto de Liliane, fazendo sua respiração

acelerar um pouco com meu toque. ― Ela nunca irá embora daqui, não é?
― Não irei ― respondeu Lily meio ofegante. Seus olhos diziam que

jamais me deixaria.

Sorri pelo que meu toque fazia com ela, a forma ansiosa como

almejava mais. Sabia que teria um caminho longo a percorrer ainda, só tinha

subido um degrau. Agora era lutar para ir para o próximo e o próximo, até

chegar ao topo.

― Depois ligo de volta, Bonnie. ― Ainda estava faminto pela boca de

Liliane, aquele beijo não tinha sido mais do que um selinho. Fiquei com

gosto de “quero mais”.

― Tudo bem, estou feliz que vocês se acertaram, estava rezando para

esse dia chegar! ― Ela parecia eufórica. ― Agora aproveite, casal.

Assim que desliguei, deixei o telefone de lado sem deixar de olhar

para Lily.

― Então pensou em ir embora. Ia fazer isso sem falar comigo antes?

― No fundo, fiquei um pouco ressentido.


― O quê? Não! Ia conversar com você. Não podia ficar aqui quando

pensava que tinha outra. E se a trouxesse aqui? ― Estremeceu. ― Eu não

saberia lidar com isso.

― Mesmo se eu estivesse com outra, jamais faria isso se soubesse que

você me amava.

― Eu sei, por isso sou estúpida por não ter perguntado antes em vez

de agir como uma menina apaixonada com ciúmes. ― Suas mãos vieram

para o meu peito.

― Não há motivo para ter ciúmes, sou só seu, Raio de Sol ― declarei.

Sorriu.

― Meu! ― Acariciou meu peito. ― Só meu.

― Sim, seu. ― Gostava de ver aquele brilho feliz em seus olhos. ―

Então, antes de conversarmos, preciso saber se ainda quer ir embora. Não

que eu a deixe ir.

― Não, eu nem queria. Já te contei qual era o meu medo, mas, como

não aconteceu, estou realizada aqui, com você. ― A sinceridade permeava


suas palavras.

― Que bom. ― Puxei-a para minha cama e me sentei, colocando-a ao

meu lado. ― Antes de começarmos a namorar, quero que saiba de algo,

então poderá decidir se quer ficar comigo ou não.

Ela perdeu o sorriso.

― O que foi? Está me preocupando.

― Não fui eu que a salvou naquele dia, foi meu chefe. O nome dele é

Matteo ― comecei avaliando sua expressão.

Ela piscou.

― Mas só vi você naquela clínica ― sussurrou. ― Como foi que

apareceu lá? Recordo só da sua voz naquela noite.

― Não sabíamos sobre a fazenda, o que acontecia lá, até que Zaira

entrou em contato e nos informou. Matteo, Luca e eu fomos ao local tentar

impedir o que estava por vir. ― Dei um suspiro. ― Ao chegarmos lá,

ouvimos os gritos. Aquele som ficará gravado em minha cabeça para

sempre.
Ela estremeceu com a lembrança.

― Você chegou a ouvir?

― Sim. Corremos e chegamos àquele antro. Matteo me ordenou ficar

do lado de fora, dando cobertura a ele e Luca, mas fez isso porque sabia que,

se eu entrasse lá e visse o que ele acabou presenciando quando entrou, com

toda maldita certeza eu mataria a todos. ― Cerrei os dentes. É claro, eu

morreria no processo, mas não dava a mínima.

― Então foi seu chefe que me salvou ― murmurou ela.

― Sim. Eu estava de vigia quando ele saiu com você... Aquela visão.

― Estremeci. ― Nunca irei esquecer. Porra, a fúria que eu sentia era

imensa. Só não os matei ali mesmo porque Matteo me mandou cuidar de

você.

― Foi ele que ordenou que cuidasse de mim? ― Tentei avaliar como

ela estava reagindo a tudo aquilo, mas seu rosto estava em branco.

― Eu teria feito isso mesmo se não pedisse ― afirmei, querendo que

ela entendesse. ― Consegui tirar você daquele lugar, mas sua pulsação
estava fraca. Enquanto a carregava em meus braços, só queria que

continuasse viva. Não sabia que você ouviria, mas pedi que lutasse pela

vida.

Ela ficou em silêncio, provavelmente assimilando aquela revelação.

― Ouvi sua voz na escuridão em que me encontrava ― assentiu por

fim.

― Fico grato que tenha ouvido e lutado para estar aqui, ao meu lado.

Só queria que você sobrevivesse. ― Apertei sua mão, que ainda segurava.

― Levei-a à clínica, onde os médicos a ajudaram a voltar, embora eu

acredite que o Deus em que você confia tenha ajudado também.

― Você pediu a Deus pela minha vida? ― sondou ela.

― Não acho que Ele ouviria alguém como eu, um assassino, alguém

determinado a matar um por um a todos que a machucaram. De qualquer

forma, após você acordar, me falou que acreditava nele, então suspeito que o

Cara Lá de Cima ― apontei para o teto ― ouviria alguém como você.


― Se uma pessoa tem fé, Deus a ouve, não importa quem seja ―

afirmou convicta.

Eu não acreditava nisso, mas não a contradisse, só fingi concordar.

― Pode ser.

Ela piscou.

― Você realmente matou todos aqueles monstros?

― Meu plano era esse. Não podia sair por aí acabando com todos de

uma vez, embora fosse meu desejo. As mortes não deviam ser relacionadas à

máfia, pois Lorenzo podia desconfiar, e as coisas sairiam mal. Ele podia se

livrar das outras meninas, bem como desconfiar do objetivo de seu filho.

Enquanto eu buscava vingança por você, Matteo procurava aliados para

derrotar o pai louco dele.

E agora o infeliz estava na porra de um hospital, quando devia estar

sangrando como um porco.

― Você... matou todos? ― indagou.


― Não, só alguns. Era minha meta, mas se lembra do homem do seu

passado? ― Esperei ela assentir e continuei: ― O maldito matou todos que

restavam. Não sei como descobriu os nomes, mas se livrou deles antes que

eu pudesse evitar.

Ela arregalou os olhos.

― Ele os matou por mim?! ― Sua voz se elevou. ― Descobriu quem

é?

Sacudi a cabeça.

― Não, é como se o infeliz tivesse sumido da Terra, mas agora, com

as meninas libertas, vou atrás dele e descobrirei quem é. ― Era algo que, se

eu pudesse, teria feito naquele dia mesmo.

― Vai atrás dele para... matá-lo? ― Sua voz falhou, enquanto ela

colocava a mão no peito. ― Meu coração bate forte quando penso nisso.

Como não queria preocupá-la, não mencionei o que faria, ocultei o

meu desejo de fazê-lo sangrar.


― Não vou matá-lo ― menti. ― Só preciso saber quem você

realmente é. Ele me falou para não ir atrás de respostas, ou você correria

perigo, e fiquei longe até descobrir uma coisa.

― O que descobriu?

― Ouvi você sonhando, dizendo que seu pai ia vendê-la. Suplicava

para ele não fazer aquilo. ― Eu poderia ter-lhe dito isso antes, mas achei

melhor guardar comigo. E como, após o seu sonho, ela não mencionou nada,

supus que não recordava.

― Fui vendida?! ― Soou horrorizada.

― Tudo indica que sim, então preciso de respostas. Os únicos que as

têm são você, que não lembra, e o russo, por isso pretendo achá-lo, para

obter as informações de que preciso.

Ela ficou em silêncio por um instante.

― Queria poder recordar. A única coisa que sinto é que esse homem

da praia e as outras crianças, bem como a mulher sem rosto, de algum modo

eram importantes para mim ― finalmente disse.


― Não podemos continuar sem respostas ― comentei.

― Eu sei. Só não o machuque. Também quero conversar com ele ―

sussurrou.

― Darei meu jeito ― assegurei.

De repente ela arfou.

― Espera... Você disse que as meninas foram libertas? Você as

resgatou? Todas elas? ― Sua voz subiu duas oitavas.

― Sim, hoje. ― Contei-lhe sobre o plano que bolamos, tanto a fuga de

Evelyn quanto a aliança que fizemos com os MCs, assim como a queda do

lugar.

― Esse Matteo levou um tiro só para libertar uma das meninas? ―

Ela parecia aturdida.

― Sim, mas não foi só por ela. Da fuga de Evelyn, dependia a

segurança das outras meninas. ― Suspirei. ― Ele será um bom capo assim

que Lorenzo morrer.

― Por que você não o matou?


― Não posso. ― Expliquei a ela a regra que não nos permitia

eliminar o infeliz, que só por isso ainda respirava. ― Embora eu esteja

surpreso com o fato de o russo não ter feito isso. Ele deve saber de Lorenzo.

― Teria minha resposta de qualquer forma, assim que o encontrasse. ― De

todo modo, Lorenzo infartou hoje. Dá para acreditar? Ele merecia morrer de

outra forma! ― soltei com um rosnado.

Ela me olhou com os olhos arregalados ante minha explosão.

― Não precisa ter medo...

― Não tenho medo de você. Só é estranho ver esse seu lado feroz,

brutal e impiedoso. ― Sacudiu a cabeça. ― Estou tão acostumada com a

forma como me trata que às vezes esqueço que é da máfia.

Eu geralmente tentava esconder os meus reais sentimentos dela a fim

de que não se assustasse com o jeito que eu era por dentro.

― Isso muda o que sente por mim? ― Não sabia se queria ouvir a

resposta, mas precisava escutá-la de qualquer maneira.


― Não. Sei que nunca me machucaria. Alguém que salva donzelas em

perigo jamais faria tal coisa. ― Indicou o meu ferimento, que tinha parado

de sangrar, embora ainda doesse. ― Isso me faz te amar ainda mais.

Sorri, puxando-a para meus braços.

― Obrigado, linda. ― Esquadrinhei seu queixo com ternura, fazendo

com que me olhasse. ― Também amo você mais do que tudo no mundo.

Aproximei-me e depositei meus lábios nos dela. Antes foi só um

selinho, mas agora coloquei um pouco de pressão, fazendo-a abrir a boca.

Quando senti seu calor e sabor de framboesa, quase perdi o fio da meada,

mas controlei meu impulso de acelerar da forma como gostaria. Não queria

assustá-la.

Minhas mãos estavam em suas costas. As dela vieram para o meu

peito, enquanto retribuía com tanto vigor quanto o meu. Ainda sentia que

estava sonhando ao ter aquela mulher em meus braços, correspondendo aos

meus sentimentos. Tinha valido a pena a espera. Aguardaria a vida toda se


fosse preciso caso no final pudesse tê-la daquela forma. Meu Raio de Sol, a

mulher por quem eu mataria e morreria.


Samuel

Um mês se passou após eu saber que Liliane me amava, e não podia

estar mais realizado. Tínhamos aperfeiçoado mais nossa relação, embora

ainda só nos beijássemos. Não ousei ir mais a fundo, estava indo com calma.

Algo que estava me deixando à flor da pele era o trabalho. Lorenzo

estava em coma, o que tornou Matteo capo. Isso era bom, mas surgiram

muitos problemas diante da mudança em algumas leis. Muitos dos membros


não concordaram com elas, principalmente aqueles que eram casados com

meninas menores de idade. Matteo queria devolvê-las às suas famílias até

que completassem a maior idade.

Meu amigo e chefe precisou se livrar de muitos deles. Boa parte dos

homens casados tinham oficializado a cerimônia apenas para cumprir a lei

da família, mas não tocaram nas jovens esposas. Tinha muita honra em nossa

família ainda, mesmo com a presença de maçãs podres no pacote.

Luca e Matteo estavam com as mãos cheias nas últimas semanas. Eu

queria ajudá-los, mas o capo me deu a ordem de me curar. Eu não queria,

porém aproveitei a folga para ver se descobria algo sobre o russo.

Vasculhei tudo, e nada de ele aparecer nos dias que se seguiram. Se ao

menos eu tivesse a imagem de seu rosto, poderia usar um software de

reconhecimento facial. Esperava que as câmeras que mandei colocar em

vários lugares que eu sabia que eram sedes de grupos de assassinos de

aluguel me ajudassem a encontrá-lo.


Meu telefone tocou enquanto eu vasculhava os computadores da sala

secreta que tinha no meu quarto. Uma batida na porta soou.

― Entra! ― gritei, sabendo quem era. Atendi a ligação de Hendrik,

deixando-a no viva-voz. Era um dos melhores hackers que eu conhecia.

Desisti de pedir ajuda a Daemon, pois queria evitar envolver os MCs

naquele assunto.

― Espero que tenha boas notícias. Estou até agora aqui, e não consigo

achá-lo ― falei após atender.

Liliane entrou, piscando ao ver tantas telas de computador contendo

imagens de variadas cidades.

Peguei sua mão e a puxei para mim, colocando-a sentada na minha

coxa direita. Senti-a ereta por um segundo, mas a fiz relaxar com o toque

suave de minha mão em suas costas.

― Tenho, sim. Achei alguns russos assassinos de aluguel. Vou enviar

as fotos e tudo que consegui descobrir sobre eles para você. Um deles me
chamou a atenção. Após você verificar as informações, conversamos. ―

Ouvi o som de um sinal de mensagem assim que ele desligou.

Abri meu e-mail no notebook e comecei a olhar as fotos dos homens,

lendo cada linha escrita sobre eles. Alguns eram matadores por linhagem

familiar, outros foram transformados em assassinos.

Lily arfou enquanto eu passava para outro grupo de fotos.

― É esse aqui que estava na praia! ― Apontou para um homem

vestido com jaqueta de couro, de cabelos loiros e olhos azuis, parecido com

ela.

― Santa merda! ― Puxei a ficha.

Conhecido como Beast, o homem era letal, forjado em assassino por

Lyn, o Fantasma.

― Beast? Quem colocaria o nome de “Besta” em seu filho? Ou é um

apelido? ― indagou Liliane.

― Ele é famoso por ser brutal no submundo, um assassino renomado,

assim como seu mentor, Lyn. ― Suspirei. ― O estranho é que não há nada
do passado dele antes de ter se tornado quem é.

― Sabe seu nome? ― Ela levou a mão até a tela, tocando na imagem

do rosto dele. ― Seus olhos parecem tão sem vida.

Realmente eram. Embora fossem muito claros, era possível ver o

abismo neles.

― Muitos que vão por esse caminho perdem parte de si ― falei e

retornei a ligar para Hendrik.

― Chefe, é algum deles? ― sondou assim que atendeu a ligação.

― Beast. Como descobriu sobre ele? Tentei por anos, e nada de

conseguir qualquer informação. Parece estranho obtê-la do nada.

― Quem está protegendo seus dados é bom. Na verdade, só fui capaz

de entrar porque ele me permitiu. Há também uma mensagem criptografada,

mas a decodifiquei, e é para você.

― Para mim?

― Não exatamente, para alguém que você cuida, codinome

Babochka...
― Certo ― interrompi-o. ― O que está escrito nessa mensagem, além

dessa palavra em russo?

― Vou enviar ― respondeu, desligando, e abri a mensagem assim que

ele a mandou.

“Minha Babochka,

Você se tornou tão linda. Lamento não estar ao seu lado. Sinto tanto

por não ter sido capaz de impedir que aqueles miseráveis a tocassem.

Quero que saiba que, assim que eu soube que estava viva, procurei-

a, mas não tive êxito, até vê-la naquele dia na praia. Eu a reconheci na

hora, embora esse rosário que carrega também tenha ajudado com isso.

Fui eu que o dei a você, afinal parecia amar quando íamos à igreja nos

domingos.

Princesinha linda, não sabe o que sinto por não a ter protegido. Não

posso fazer muito agora, a não ser fazer todos pagarem caro, mesmo
sabendo que nada é suficiente para apagar o que você sofreu.

Posso jurar que eles estão sofrendo a cada dia. Inclusive irei fazer

pagar também quem a vendeu. Todos chorarão lágrimas de sangue.

Eles a deixaram com medo do mundo. Você não sabe, mas era uma

menina valente, mesmo com apenas oito anos, adorava lutar conosco, e

seu sonho era ser um soldado. Não sabia que, em nossa família, lutar não

é permitido a mulheres, mas recordo que insistiu tanto com nosso pai que

ele cedeu. Pensou que, com o tempo, você acabaria desistindo, mas eu

sabia que não faria isso; a ferocidade que tinha não podia ser apagada

com o tempo.

Hoje mesmo, ainda que não se recorde das coisas, sei que essa

ferocidade está escondida em algum lugar em seu interior, por isso não

matei nenhum dos que sequestrei, estou mantendo-os em cativeiro,

esperando até que você esteja pronta para fazer isso.

Sei que ainda não é capaz, mas em breve será, sinto isso. Eu até lhe

daria Lorenzo, mas o infeliz entrou em coma, então dificultou as coisas


para nós. Irei antecipar sua morte, afinal é um peso morto em uma cama.

Não se preocupe; se não conseguir matá-los, eu o farei por você.

Enquanto isso, estou tentando descobrir quem é o traidor de nossa

família, quem vendeu nós dois como se não fôssemos nada. Saberei quem

tirou tudo de mim, quem matou nossos pais e minha outra bonequinha

linda.

É bom você não recordar nada disso, porque a dor é imensurável,

ainda mais ao saber que alguém da própria família foi capaz de fazer algo

dessa magnitude. Dói para cacete. Eu os farei pagar profundamente.

Agora só quero que você fique com Samuel. Em hipótese alguma vá

atrás de nossos familiares. Um deles nos vendeu, e, enquanto eu não

souber quem foi, você corre perigo. Espero que Samuel a mantenha

segura, ou terei que fazer a porra de um recorde ao desmembrá-lo em mil

pedaços, mesmo que você se importe com ele.

Logo irei até você, Babochka.


Seu irmão mais velho.

Liliane arfou ao ler a mensagem, assim como eu.

― Ele é meu irmão? ― Ela piscou, com os olhos alagados de

lágrimas.

― Tudo indica que sim. ― Alisei suas costas no intuito de acalmá-la.

― Ele disse que nossos pais e nossa irmã... Será que é a mulher sem

rosto e a menininha que recordo? ― Sua voz falhou com a descoberta.

― Acredito que sim, Liliane, afinal recorda deles, não é? ― Não

queria mentir para ela, então optei pela verdade, mesmo que fosse dolorosa.

― Queria conseguir me lembrar de tudo, mesmo que doa. Só não

consigo entender algo: quem nos traiu? Foi mesmo nosso pai? Pelo que ele

mencionou, não parece saber disso.

Era verdade. Pela forma como o russo escreveu, deu a entender que

tinha sido outra pessoa, ainda que da família.


― Pode ser que não saiba a verdade sobre o pai ou que não tenha sido

mesmo ele. No entanto, seu irmão sabe de outras informações que

precisamos, e só ele pode nos dar.

― Como saberemos, se não temos ideia de onde ele está? ― sondou

ela.

― Vou lhe dar algo que o faça vir até mim. ― Escrevi uma mensagem

comentando sobre o sonho de Liliane, em que ela mencionava o pai deles e

implorava para não ser vendida.

― Vai mandar isso para ele?

― Sim. Ele busca quem vendeu vocês dois, e, pela forma que

mencionou, os pais pareciam sentir sua perda. Acredito que não saiba que o

pai de ambos foi o mandante. ― Não gostei de saber disso, afinal tinha

esperanças de colocar as mãos nele.

Algo que o russo disse me chamou a atenção. Parecia que ele não

havia matado os infelizes estupradores e que estava fazendo com que


pagassem em um cativeiro. Eu não podia entender como tinha vazado nas

notícias que todos foram mortos.

Liguei novamente para Hendrik.

― Chefe ― falou.

― Vou enviar alguns documentos que preciso que analise. Espero que

possa me ajudar com isso. ― Mandei as notícias que estavam armazenadas

em uma pasta no meu computador.

― O que é? Pelas manchetes, todos foram mortos.

Sacudi a cabeça.

― Leia tudo com atenção e busque fundo a verdade por trás dessas

reportagens, pois tem algo aí que não está batendo. Suspeito de que estejam

vivos. ― No fundo, queria que estivessem; só assim para eu ter minha vez

com eles. ― Cave até os esqueletos.

Mandei também a mensagem sobre o sonho de Liliane para ele a

enviar ao russo. Agora era só esperar que ele entrasse em contato comigo.
― Pode contar comigo, chefe. Ligo logo que tiver notícias ―

respondeu Hendrik e desligou.

Liliane ficou calada, enquanto continuava olhando para a foto do seu

irmão.

― Ele está mantendo todos vivos só para que eu os matasse... ― Sua

voz falhou.

Aquilo me deixou chocado ao ler. Se Beast conhecesse Lily agora,

veria que isso seria algo impossível. Ela não tinha nascido para ser uma

assassina; com aquela alma pura e fé inabalável em Deus, jamais

massacraria seus inimigos.

― Não irá fazer nada que não queira ― prometi a ela. ― E o russo

disse que, se você não desse conta de fazer o serviço, ele mesmo faria.

A realização tomou minha mente ao me lembrar de uma frase de Beast.

― Ele vai atrás de Lorenzo! ― Olhei para ela, ainda sentada no meu

colo. ― Vou precisar sair.

O medo se instalou em seus olhos.


― Você vai...

― Prometi que só ia falar com ele, e vou fazer isso ― tranquilizei-a,

embora não pudesse ter certeza de que não o mataria, afinal ele poderia

tentar me matar antes.

― Obrigada. Se ele aparecer lá, diga que precisamos conversar. ―

Suspirou, ficando de pé.

― Aviso, sim. ― Beijei seus lábios de leve. ― Lamento por seus pais

e sua irmã.

― Também lamento, mas não é como seria se eu me lembrasse de

verdade deles ― sussurrou.

― Talvez seja melhor não se lembrar, pois a dor pode ser pior. ―

Sentia isso dentro do meu ser.

Ela me avaliou.

― Isso tem a ver com sua família? ― Podia ver a curiosidade

estampada em seu rosto.

― Não quero falar sobre isso agora. Talvez depois, o.k.?


― Quando estiver pronto.

Eu não sabia quando estaria, mas queria fazer aquilo logo, contar-lhe

tudo sobre o meu passado. Só precisava estar com a mente aberta, e naquele

momento não estava.

― Obrigado. ― Beijei sua testa.

Ela colocou a cabeça em meu peito e fungou.

― Ele foi vendido assim como eu ― murmurou. ― O que será que

aconteceu? Seus olhos...

― Vamos descobrir ― prometi.

Fosse o que fosse, o que aconteceu a ele o havia transformado em um

monstro sem barreiras para concretizar sua vingança. Aquilo era visível em

suas palavras e atos. O fato de ele estar por todo aquele tempo com os

homens que machucaram Liliane, fazendo-os sofrer, só provava o quanto sua

vingança era profunda e meio sórdida, mas os infelizes mereciam.

Eu não o culpava, faria igual se tivesse a chance com o meu pai. O

bom era que, se ele não tinha matado nenhum deles, eu daria um jeito de ter
minha oportunidade com os infelizes, mas primeiro precisava localizar o

russo, Beast, o meu cunhado.


Samuel

Quando li a mensagem do russo, fui ao hospital em que Lorenzo estava

internado, pensando em acertar minhas contas com o irmão de Lily. Achei

que ele iria para lá, até fiquei algumas horas de tocaia, mas nada de o infeliz

aparecer.

No decorrer das últimas semanas, passei a ir direito ao hospital,

esperançoso de conseguir pegá-lo, mas não aconteceu, e, com o passar do


tempo, isso me deixou furioso.

Eu estava no hospital de novo, mas era hora de desistir; Beast não iria

comparecer. Antes de ir embora, entrei no quarto, olhando para o homem que

eu mais odiava naquela época.

― Você não devia estar aqui, mas queimando no inferno. ― Cerrei os

punhos, segurando o instinto de socar sua cara. ― O tanto que sonhei em

fazê-lo sangrar, mas não será possível.

Muitas coisas aconteceram durante aquelas semanas. Matteo estava se

dando bem como capo, só houve alguns imprevistos com os vermes que não

aceitaram as mudanças na organização.

O meu telefone tocou, impedindo-me de continuar desejando em

pensamento matar o infeliz, esmagando-o com minhas próprias mãos.

― Luca.

― Onde está? Preciso de sua ajuda aqui ― falou, e ouvi gritos ao

fundo.

― Está tendo um dia cheio hoje? ― Ignorei a primeira pergunta dele.


― Sim. Quero que vá atrás dos homens que estão dando problemas

por não querer entregar as garotas com quem são casados e os traga aqui, ao

galpão. Vou mandar os nomes deles.

― Estou a caminho. ― Desliguei e olhei mais uma vez para Lorenzo.

― É uma pena que esses gritos que ouvi não sejam os seus.

Depois que saí do hospital, cacei todos os desgraçados que se casaram

com as menores e estavam dando trabalho para devolvê-las às suas famílias.

Como desobedeceram às ordens do capo, eu estava contente em me livrar

deles.

Após reuni-los num galpão, não só os homens que se recusavam a

devolver as esposas menores, mas muitos que compactuavam com as festas

das meninas na seita na fazenda, fiquei de frente a todos. Matteo e Luca

estavam comigo. Eles se livrariam dos infelizes que estavam ligados à

compra de meninas, assim como a de Lily. Eu queria matá-los, mas me

resignei a acabar com aqueles malditos que tinham se aproveitado de

crianças em virtude daquela lei horrível. Eu os faria sangrar.


Meu sangue fervia ao enxergar aqueles miseráveis em minha frente.

Por tantos anos estive impotente devido ao velho asqueroso do Lorenzo. Não

podia ajudar nenhuma daquelas meninas, já que só cumpria ordens. Enfim

minha vingança chegara; podia não ter quem eu queria, mas aqueles

serviriam.

Sorri com frieza vendo os homens presos e nus diante de mim. Seus

medos eram meu alimento. Alguns diziam que eu não tinha alma; nessas

horas, quando estava eliminando homens, acreditava neles.

― Você não sabe com quem está mexendo... ― sibilou John. Ele era

casado com uma menina de 12 anos e passava informação para

governadores, senadores, políticos do alto escalão conhecidos por todos.

Alguns dias antes, descobri onde seria a reunião que o mercado negro

teria com seus convidados. Falei com o capo e apreendi o grupo inteiro.

― Estão todos aqui? ― perguntou Matteo.

Havia uns cinquentas naquela sala no galpão, amarrados em cadeiras,

e outros em outra sala ao lado. Eram tantos que foi necessário dividi-los, e
alguns ainda foram mortos no processo.

― Todos, fora os que morreram durante a emboscada ― respondi.

Um cara riu com frieza.

― Seus vermes, ainda falta o pior de nós, mais poderoso do que você!

― rosnou o senador Miles para o capo.

― Acredito que vá me dizer o nome, não é? ― Matteo se aproximou

dele com uma expressão mortal.

Merda, se tinha faltado um, isso não era nada bom, ainda mais após

acabarmos com toda a quadrilha de bandidos estupradores.

― Samuel… Luca e eu cuidaremos destes aqui. Você e Frank dão

conta dos que estão na outra sala. Faça-os sofrer antes da morte ― disse

meu chefe, tirando suas adagas do bolso e posicionando-se em frente ao

senador.

― Sim, senhor ― respondi e me virei. Antes de sair, ouvi os gritos.

Olhei a tempo de enxergar o capo enfiando sua adaga na barriga do verme,


deixando um imenso buraco, pelo qual suas tripas logo cairiam. Matteo era

um bom torturador, assim como eu.

Entrei na outra sala, repleta de homens que eliminaria. Ali estavam

todos que eu queria ver sofrer por machucarem mulheres e crianças. Eu era

um bastardo de coração frio, sim, porém, tinha minhas regras: não curtia

estupro e pedofilia, por isso amaria acabar com aqueles monstros.

― Por favor, me deixe ir! Prometo que não vou mais a lugares como

aquele! ― implorou um gorducho.

Ignorei-o. Peguei galões de gasolina e a joguei em cada um deles.

― O que pensa que está fazendo? ― perguntou um cara apavorado,

cuspindo o líquido.

Sorri de modo sinistro.

― Mandando todos para o inferno. Vocês não merecem uma bala, isso

não os faria sofrer. Terão uma morte muito dolorosa, seus malditos, igual

fizeram com algumas mulheres, não é?

― Não! ― gritou quando acendi o isqueiro e joguei-o em uma poça.


― Você também vai para o inferno, seu miserável! Posso ver o brilho

em seus olhos por nos matar! ― urrou outro, vendo o fogo se aproximando.

— Patrick Petrova vai acabar com você, fique ciente disso!

— Sim, então nos veremos em breve. — Sorri, assistindo às labaredas

subirem e os envolverem. Aqueles homens mereciam algo pior do que

morrer queimados.

— Ele dizimará todos que você ama…

Virei as costas assim que o fogo começou a se alastrar entre todos.

Ignorando os gritos daqueles merdas, saí de lá, trancando a porta, embora

nenhum deles conseguiria fugir se tentasse.

Patrick Petrova? Bosta! Isso ficaria feio. Ele era o chefe de uma das

máfias russas. A guerra se aproximava.

Eu precisava ver Lily, ninguém poderia tocá-la. Derrubaria quem

ousasse entrar em meu caminho. Meu peito se apertou ao pensar nela

correndo perigo de novo. Por mais que eu a quisesse comigo, não permitiria.

Havia chegado a hora do adeus.


Adeus? Poderia afastar-me dela, quando tudo entre nós estava indo

bem? Não sabia se seria capaz. Nos últimos meses ela vinha se esforçando

para conseguir lidar com seus medos. Estava mais independente, indo mais

sozinha à praia e ao restaurante com minha avó. Moor a seguia e me contava

cada passo seu. Conversei com vovó sobre isso, e ela me contou que Liliane

queria me fazer uma surpresa assim que conseguisse lidar com aquele seu

outro medo, de estar entre pessoas. Fingi que não sabia. Estava orgulhoso da

minha menina linda. Se ela queria me fazer uma surpresa, que assim fosse, e

eu não deixaria nada nem ninguém entrar em nosso caminho. Dizimaria todos

se fosse necessário.

― Tenho até pena da pessoa a quem for dirigida essa fúria iminente ―

comentou Luca chegando perto de mim. Matteo estava ao seu lado com a

expressão tão tensa como a minha.

― Merda, isso vai ser uma merda fodida! Patrick Petrova! Porra! ―

rosnou o capo. ― Não preciso dessa porcaria toda agora, com tantos

problemas.
― Verdade, sem contar com a menina por quem você está louco ―

apontou o primo.

― Menina? A irmã de Nikolai e Alexei Dragon? ― Estava meio

absorto nos últimos dias, mas percebi que Matteo estava interessado em

Irina, a irmã caçula dos Dragons, que morava em Chicago com um nome

falso.

― Ela mesma. ― Luca sacudiu a cabeça enquanto seguíamos para

outro cômodo.

― Você está fodido ― afirmei para Matteo. ― Vai ficar longe dela?

Ele pegou um copo, encheu-o de uísque e tomou um longo gole.

― Estou fazendo o possível ― falou com um suspiro duro. ― Mas,

porra, é difícil ignorá-la, ainda mais depois do que aconteceu.

Avaliei-o de perto.

― Merda, vocês transaram! ― Não era uma pergunta, estava claro em

sua expressão. ― Se os irmãos dela souberem, você estará ainda mais


ferrado, chefe. Já basta o que Lorenzo fez. Só isso já faz aumentar bastante o

risco de uma guerra estourar em breve.

― Acha que não sei disso? ― Sacudiu a cabeça. ― Vou lidar com as

coisas. Agora me diz o que anda tanto fazendo no hospital? Parece que vigia

alguém. Tenho certeza de que não é o Lorenzo.

Eu ainda não tinha lhe contado nada, estava esperando falar com o

russo primeiro. Tinha chegado a hora de revelar a verdade sobre o que eu

sabia. Não podia manter segredos do meu capo.

― Samuel... ― Ele me avaliava. ― O que está acontecendo? Não

pensa em matá-lo, não é?

― Não, mas, há algumas semanas, recebi uma mensagem. ― Contei-

lhe o que descobri do russo.

― Beast? Maldição! Isso não podia estar acontecendo, seremos

atacados de todos os lados. Petrova, Nikolai e agora um dos assassinos mais

letais já vistos. ― Encheu seu copo de bebida novamente e me olhou. ― Por

que não me contou antes?


Também me servi de uma dose, precisava disso.

― Queria descobrir por mim mesmo antes ― comentei.

Ele franziu a testa.

― É por ele ser irmão de Lis?

Estreitei meus olhos.

― Está insinuando que eu guardaria segredos de você só por esse

infeliz ser irmão de Liliane? ― Controlei minha voz, que soou fria.

― Não, mas o amor pode direcionar sua lealdade mais a ela do que a

mim. ― Ele parecia conhecer o sentimento.

Perguntei-me se sua história com Irina tinha ido mais a fundo e se ele

havia esquecido Evelyn, embora eu achasse que ele nunca tinha amado a

ruiva de verdade.

― Pode ser, mas se fosse um segredo que nos prejudicasse, não o

guardaria de você ― retruquei.

― Eu sei, é só que... ― Levou as mãos aos cabelos. ― Isso tudo é tão

fodido.
― Bota fodido nisso. Não lhe contei ainda, mas Beast não matou todos

os estupradores como foi informado nas manchetes.

― Como assim? Ele forjou tudo? Mas com qual finalidade? ―

indagou Luca.

― Talvez o infeliz tenha armado tudo só para que nós não

procurássemos mais por eles ― apontou Matteo após pensar um pouco. ―

Tem certeza de que as notícias são falsas?

― Pedi que checassem mais a fundo, e realmente eram falsas. ―

Suspirei, frustrado. ― Pela forma como ele se expressou na mensagem,

creio que estejam sendo castigados em algum lugar. Ele está guardando os

monstros para que a própria Liliane possa se vingar, por isso achei que ele

iria atrás de Lorenzo para matá-lo. Eu só quero saber onde eles estão.

― Ele está fazendo-os pagar? ― questionou Luca. ― Devem estar

sofrendo muito.

― Merecidamente. Só queria fazer eu mesmo o serviço ― comentei.


― Talvez tenha a chance, afinal não vejo a Lis matando alguém ―

Matteo mencionou.

― Ela não vai fazer isso. Farei em seu lugar.

― O que pensa em fazer? Ir atrás de Beast? ― inquiriu Luca,

sentando-se no sofá.

― Até gostaria disso, mas no momento acho que temos problemas

demais.

― Isso é porque nem sabe do resto... Ao menos é uma ótima notícia.

― Matteo se sentou.

― O que é?

― Dalila está viva ― respondeu com um suspiro emocionado.

― Viva?! ― Custei a acreditar que tinha ouvido aquilo. Era possível?

― Tem certeza?

― Sim. Enzo sabia há algum tempo e não nos disse. Estou apurando os

fatos. Nós só soubemos depois que Luca ouviu uma conversa de Enzo ao

telefone.
Tínhamos grampeado seu celular para descobrir caso ele tivesse a

intenção de ir atrás de alguma das meninas que foram libertas e estavam com

suas famílias.

― Não sabemos onde ela está. Vou precisar verificar a fundo isso para

saber o que aconteceu, pois foram anos achando que ela estava morta. ―

Sacudiu a cabeça. ― Seja qual for o motivo, espero que ela esteja bem.

― Por que não obrigou Enzo a dizer?

― Ele só sabe que ela está viva, mas não o lugar em si.

― Como ele descobriu sobre ela, mas não sabe onde está? ― Tinha

algo estranho ali. ― Por que não o interrogamos?

― Porque podemos estragar tudo em vez de achá-la. Seja quem estiver

com ela pode levá-la para longe. Preciso ver onde estou pisando.

Eu sabia que ele tinha razão, mas, antes que comentasse algo, meu

telefone tocou.

― É Liliane? ― Luca sorriu. ― Pelo visto você e meu primo estão

apaixonados.
― Não fale besteira ― rosnou o capo.

― Vai precisar de mim? ― chequei.

― Não, pode ir. ― Escorou-se na cadeira, olhando para a janela.

― Qualquer coisa, é só me chamar ― falei e, antes de atender a

ligação, olhei para Luca. ― Não se esqueça da menina Morelli a qual está

aguardando.

Fechou a cara, e saí antes que ele soltasse sua fúria dirigida a mim.

Sabia que fazia algum tempo que ele não ia mais à Itália ver a garota. Não

entendia os motivos de ter se afastado, mas não era da minha conta.

― Samuel ― Liliane falou ofegante assim que atendi.

― Raio de Sol, tudo bem? Aconteceu algo? ― Fazia tempo que ela

não surtava ou temia algo. Sua presença no restaurante teria piorado as

coisas?

― Meu irmão está aqui, no restaurante da vovó...

Antes que ela terminasse de falar, saí do galpão como um maldito raio,

indo acertar minhas contas com uma certa fera. Beast.


Liliane

Fazia algumas semanas após descobrirmos que eu tinha um irmão.

Fiquei feliz em saber disso e queria vê-lo, mas não conseguimos localizar

seu paradeiro. Era só esperar que ele entrasse em contato comigo. Eu sabia

que entraria.

Contudo, resolvi focar em superar meu medo de estar com pessoas ao

meu redor, especialmente estranhas, e pensei que o melhor lugar para isso
era o restaurante da vovó. Ela se prontificou em me auxiliar na cozinha.

Comecei por lá; depois poderia tentar servir as mesas.

Estava animada, queria fazer uma surpresa a Samuel quando

conseguisse prática. Vovó ficou de guardar segredo até eu conseguir fazer o

que queria. Lutei tanto desde que fui resgatada para não ficar dependente dos

outros, e enfim estava conseguindo lidar com o mundo ao meu redor e

trabalhar. Trilharia meu caminho, mas queria fazer isso com Samuel ao meu

lado.

― Vou ao hospital ver se encontro Beast. Ao menos tenho um nome

agora ― Samuel me disse quando estava de saída mais uma vez para tentar

encontrar meu irmão.

Eu esperava que os dois se acertassem e não brigassem.

― Ainda bem que ele não matou Lorenzo ― comentou.

― Por que não quer isso? ― sondei curiosa. Ele não escondia a raiva

que sentia do homem que estava em coma.


― Porque agora sei quem ele é. Se por acaso matar Lorenzo, terei que

relatar ao meu capo, e Matteo o mataria.

― Não! ― Arfei, temendo o pior.

― Não se preocupe, vou impedir que ele faça isso. Além do mais,

Lorenzo está vegetando, não sentiria nada caso fosse morto. Tanto eu quanto

Beast queríamos que ele sofresse aqui, não apenas no inferno, afinal tudo o

que fez foi na Terra. ― Sacudiu a cabeça soltando um suspiro.

Eu sabia que ele merecia pagar por tudo que fez, mas Deus sabe de

todas as coisas, e eu acreditava que o infarto daquele homem era um castigo.

Samuel me contou uma vez sobre a lei da máfia Salvatore de um

membro não poder matar Lorenzo, bem como, caso alguém de fora o

matasse, o próximo capo ter de vingá-lo. Só havia uma forma de eliminar

aquele homem cruel, se ele matasse alguém da família, então sua sentença

seria a morte.

Quando eu soube que Lorenzo estava em coma, só senti alívio por

saber que ele nunca mais machucaria alguém.


Agora que as garotas estavam com suas famílias, perguntava-me

quando iria ver a minha. Meu coração doía ao imaginar que não iria ver

minha mãe e minha irmã.

Nos últimos dias, havia recordado o sonho que tive com o meu pai.

Tinha algo estranho nele, não era parecido com um sonho. Parecia tão real...

Por que o meu irmão não acreditava que fosse o nosso pai o traidor? Sua

mensagem dera a entender justamente isso.

― Volto já. ― Samuel roçou os lábios nos meus. ― Te amo, Raio de

Sol.

― Também te amo demais! ― Tudo nele me deixava feliz, seu toque,

sua bondade, seu carinho. Era um homem que muitas mulheres pediam a

Deus, mas eu fui abençoada com seu amor. Graças a Deus e ao chefe dele,

por ter me resgatado daquele inferno, agora eu estava ali.

Samuel estava saindo quando o chamei. Virou-se e me olhou.

― Sim?
― Agradeça ao seu chefe por ter salvado minha vida. ― Um dia

esperava ter a oportunidade de fazê-lo pessoalmente.

― Agradecerei. ― Ele foi embora, enquanto segui para a cozinha,

ansiosa por mais um dia no restaurante.

― Está pronta para irmos? ― perguntou vovó. ― Estava só esperando

você.

― Estou ― afirmei, sorrindo. ― Mais um dia de luta para conseguir

lidar com meus medos.

― Achei que contaria a Samuel ― disse assim que fomos para o

restaurante. Não era longe de onde morávamos, apenas a duas quadras.

― Vou contar até final do mês. Só quero superar um pouco mais o

medo de ficar perto de pessoas estranhas. ― Queria poder sair com ele, ir a

restaurantes e outros lugares, como um casal de verdade.

No começo, quando comecei a trabalhar no restaurante, foi difícil.

Quando um homem, como um garçom ou fornecedor, entrava na cozinha, eu


corria para o banheiro ou ficava no canto o mais longe possível, mas depois

comecei a fazer a amizade com todos.

Agora até ia às vezes ao salão para chamar vovó quando necessitava

de algum auxílio na cozinha. Descobri que adorava cozinhar. Ela me

ensinava bem, e talvez eu fizesse algum curso de culinária quando estivesse

apta a seguir adiante. Uma senhora me ajudava quando vovó saía, seu nome

era Dorotéia. Eu gostava muito de trabalhar ali.

― Você ama muito meu neto. ― Não era uma pergunta. ― Fico feliz

pelos dois.

― Demais ― declarei. ― Obrigada. Sou muito grata por ter

aparecido na vida de vocês.

Por volta de 2h da tarde, o lugar estava apinhado, mas eu adorava a

correria. Nunca tinha me sentido tão viva quanto ali.

Um dos garçons, Nijan, entrou na cozinha. Ele era quase da minha

idade e muito simpático.


― Liliane, pode pegar guardanapos na despensa para mim? Estou

atolado lá na frente e não tenho tempo ― pediu sem se aproximar.

Desde a primeira vez que eu entrei no restaurante, provavelmente por

perceber meu medo, mesmo eu tendo relaxado em sua presença ultimamente,

ele não se aproximava muito de mim.

― Vou pegar ― falei e fui à despensa, que ficava nos fundos do

estabelecimento.

Estava a ponto de sair do local quando algumas palavras me fizeram

travar.

― Está indo bem, Babochka. ― Era uma voz que eu parecia conhecer

como a minha própria.

Olhei para a porta aberta. Ele entrou e a fechou, escorando-se nela.

― Não precisa temer, eu jamais encostaria um dedo em você. Aliás, é

justamente o contrário, mato se a tocarem ― disse, avaliando meus olhos

arregalados.
Estava em choque por vê-lo ali. Não era medo, aliás, no fundo, estava

feliz por sua presença.

― Não tenho medo de você ― afirmei. ― O que está fazendo aqui?

Sua expressão mudou um pouco. Foi breve, porém, consegui ler.

― Não me quer perto de você? ― Tinha uma nuance em sua voz que

tentou esconder, mas percebi a dor.

― Não é isso ― apressei-me a explicar. ― Samuel acha que você vai

aparecer no hospital para matar Lorenzo.

― Ele acha que vou matar o miserável? ― Riu com a expressão

relaxada, embora o vazio estivesse em seus olhos.

― Por que deu essa pista se não ia aparecer lá? ― sondei, querendo

entendê-lo.

― Precisava mantê-lo ocupado, assim ele não iria atrás dos outros que

estou mantendo prisioneiros.

― Por que não os matou ainda? Saiba que não vou matar nenhum

deles. ― Estremeci com a ideia.


Ele me avaliava atentamente. Lembrava a forma como Samuel fazia

com frequência.

― Quer que eu os mate?

Sacudi a cabeça.

― Não ligo para o que faça com eles, só não vou eu mesma me vingar.

Quero seguir minha vida e não posso fazer isso se tiver de pensar neles a

cada segundo. ― Fazia anos que lutava contra os meus demônios, contra o

trauma causado pelo que eles cometeram.

Assentiu.

― Vou cuidar de todos, não vou deixar isso respingar em você. ―

Sorriu. Agora parecia ter calor em seus olhos. ― Estou feliz que esteja

conseguindo lidar com tudo que sofreu.

― Obrigada. Também desejo o mesmo para você. Pode me dizer o que

aconteceu ao ser vendido?

Sua expressão se fechou, e ele olhou para a janela do local, mas não

parecia ver nada do que havia do lado de fora. O abismo dominava seus
olhos claros, tão lindos, o que não acontecia com a criança de minha

imaginação.

― Fomos moldados pela vida. Antes éramos crianças felizes, agora

somos sombras de nosso antigo eu. ― Sabia que ele não falaria. Fosse o que

tivesse acontecido, o tormento em sua vida era profundo demais. ― Temos

vidas diferentes agora, mesmo assim não conseguimos tirar da cabeça tudo

que vivenciamos. Estou contente que esteja seguindo em frente.

Pela forma que ele falava, parecia que teve o mesmo caminho que eu.

Não, não podia ser.

― Não tem outro nome com que possa ser chamado além de Beast?

Não sei, é um apelido tão...

― Andreas. Me chame assim.

Sorri.

― Bonito nome. Deveria usá-lo sempre ao invés do outro ―

comentei, fazendo-o sorrir.


― Vou pensar nisso ― assentiu, parecendo abandonar aquela

escuridão que vi em seus olhos pouco tempo antes.

― Vai contar sobre mim? ― inquiri, indo direto ao assunto que eu

queria saber fazia muito tempo.

― Do que se lembra realmente? ― Ele parecia curioso. ― Me conte,

e vamos a partir daí.

Contei o que me lembrava desde criança e as memórias novas,

adquiridas a partir da viagem no jatinho a caminho da Austrália.

― Recordei também desse apelido que você me chama. Éramos

crianças na época. ― Suspirei.

― Sobre o nosso pai, o que recorda? ― questionou.

― Tive um sonho... A princípio, não lembrava muito bem, mas depois

notei mais coisas... Não sei ao certo, é meio confuso. Parecia mais uma

recordação do que um sonho... ― Nem eu entendia o que havia sonhado.

― Do que se lembrou? Qualquer ajuda serve em uma hora dessas. ―

Era notável o quanto ele estava ansioso por aquilo.


― Não muito. Um homem discutia com alguém sobre a minha venda,

eu suplicava para ele não fazer aquilo, mas é confuso. Eu queria ver a

imagem perfeitamente, mas está embaçada. ― Sacudi a cabeça. ― Queria

recordar direito.

Ele ficou em silêncio por um momento.

― Então suas lembranças voltam quando você passa por alguma

situação ou lugar parecidos com o que viveu no passado. ― Ele parecia

falar consigo mesmo.

― Geralmente, sim. Tive mais lembranças quando viajei, mas nos

últimos anos, nem tanto, só algumas de um tempo que passamos na praia

quando crianças. ― Franzi a testa. ― Morávamos perto de uma praia?

― Não, mas tínhamos uma casa nas Maldivas, íamos para lá direto.

As lembranças devem ser dessa época. ― Suspirou. ― Me responda uma

coisa: lembrou-se dessas imagens na praia que fica em frente à casa do

Samuel?

― Sim. ― Franzi o cenho. ― Por que pergunta?


Ele assentiu ainda com aquele ar avaliador.

― Acho que posso resolver isso. ― Pela sua voz, parecia bem

esperançoso.

― Como?

― Simples. Se suas lembranças ressurgem quando você está em

lugares semelhantes aos que possivelmente esteve, então a levarei a todos os

locais aos quais ia quando era criança. ― Ele parecia convicto de que sua

ideia teria êxito.

Arregalei os olhos, sacudindo a cabeça, aturdida.

― Não quer ir? ― indagou. ― Prometo que a protegerei, nada irá

machucar você.

― Sei que me protegerá, não é isso. Não posso ir sem Samuel, e vocês

dois...

― Nós dois? ― Ergueu as sobrancelhas.

― Um sempre quer pegar o outro. Por que não me conta quem é de

fato? Quem sou eu? ― Precisava saber ao menos nosso sobrenome. A única
coisa que eu sabia era o nome dele, mas isso não ajudaria muito a descobrir

mais sobre meu irmão e nossa família.

― Venha comigo, que eu conto. ― Não parecia haver mentiras em

seus olhos.

― Ir a todos os lugares? ― indaguei com a voz se elevando. ― Acha

que isso resolveria?

― Pode ser que sim ou que não, mas precisamos tentar.

Eu sentia que podia confiar nele. A única coisa que me incomodava

era saber que Samuel não gostaria daquilo. Entretanto, eu queria recordar

mais coisas sobre mim. Talvez isso me ajudasse a me entender um pouco. Se

tinha uma chance de isso acontecer, eu aceitaria o seu oferecimento, mas não

iria sem Samuel.

― Vou com você, mas... ― Como contaria aquilo ao meu anjo

protetor? Esperava que ele entendesse que eu precisava fazer aquela viagem.

― Ninguém tocará em um fio de seu cabelo, pode acreditar nisso. ―

A promessa estava em cada palavra.


Não era bem nisso que eu estava pensando, mas deixei passar.

― Tudo bem, só preciso avisar à vovó...

― Vovó? ― Ele riu parecendo deliciado. Notei que aquela reação era

rara nele.

― Gosto dela como se fosse minha avó. Não quero que se preocupe

caso eu saia do nada. Vou dizer a ela que irei para casa mais cedo.

Recordava-me de quando pensei que Samuel havia me traído e saí sem

dizer nada a Donatella. Isso a deixou preocupada. Eu não queria isso.

― Me encontre nos fundos daqui a pouco ― pedi.

Ele parecia animado.

― É bom que, enquanto você se lembra de algo, passarei um tempo ao

seu lado. Senti tanto sua falta.

Depois que eu soube que Andreas era meu irmão, peguei-me a pensar

muito nele. Desejava conhecê-lo, entender por que ele viera a ser quem era.

Preferi não tocar nesse assunto por ora, sabia o quanto era doloroso.
― Obrigada. Prometo que não vou demorar ― falei, aproximando-me

dele, afinal estava encostado na porta.

Andreas se afastou, e eu saí, mas olhei uma última vez para ele.

― Estou feliz por ter um irmão, ainda mais tão lindo como você. ―

As últimas palavras foram uma provocação, embora fosse verdade.

― Lindo, hein? ― Sorriu.

― Logo estarei de volta. ― Fui para a cozinha com o telefone na mão,

pronta para chamar Samuel. Esperava que entendesse meu desejo de saber

do meu passado.

Antes que eu fizesse a ligação, Nijan apareceu na minha frente, embora

não muito perto.

― Demorou muito... Aconteceu algo? ― sondou.

― Não. ― Cheguei mais perto dele e lhe estendi o pacote de

guardanapos, o que o deixou surpreso, pois eu sempre colocava o que me

pedia em algum lugar e me afastava.

― Obrigado.
Assenti e olhei para vovó.

― Vem comigo, menina. ― Fomos para uma salinha. ― O que foi?

Contei o que aconteceu e o que eu pretendia fazer.

― Seu irmão está aqui? ― Olhou ao redor aparentando preocupação.

― Ele não vai fazer nada, confio nele. Preciso saber mais de mim, por

isso vim avisar que pretendo sair. Não quero que fique preocupada.

― Menina, isso é impossível. Não deve sair assim, precisa falar com

meu neto antes.

― Vou ligar para Samuel e avisá-lo. Preciso recordar mais sobre meu

passado.

― Sei que meu neto vai dar um jeito de conseguir ajudá-la com isso

sem que você tenha de ir só com seu irmão. ― Percebi que ela temia que eu

saísse sozinha.

Seria melhor enfrentar as lembranças trancafiadas no meu cérebro com

Samuel ao meu lado.


― Vou ligar para ele, era a minha intenção. Não vou sem Samuel. Se

ele estiver ocupado, podemos adiar a viagem para outro dia.

Ela pareceu mais relaxada e saiu, deixando-me a sós para falar com

seu neto. Liguei para ele, que, como sempre, atendeu logo.

― Samuel. ― Respirei fundo, não sabendo como começar a falar. E se

ele quisesse matar meu irmão?

― Raio de Sol, tudo bem? ― Era essa sua pergunta quando eu ligava

fora de hora. ― Aconteceu algo?

― Meu irmão está aqui, no restaurante da vovó... ― falei, sentindo-me

leve ao dizer isso a ele.

― Beast? Que raio ele faz aí?! ― rosnou com uma fúria capaz de

destruir uma população inteira.

― Veio conversar comigo, e acabamos chegando a uma conclusão,

mas antes quero que prometa que não vai machucá-lo ou brigar com ele ―

supliquei. Percebi, pelos sons ao fundo, que ele estava entrando no carro.

― Liliane...
― Ele só veio conversar e sugeriu me levar a lugares aos quais fui

quando criança para que assim eu possa recordar de algo...

De repente o telefone sumiu da minha mão. Pisquei, vendo com quem o

aparelho estava.

― Samuel ― cumprimentou Andreas assim que comprimiu o celular

em sua orelha. ― Não precisa me ameaçar, jamais irei machucar minha

irmã.

Houve silêncio do outro lado, depois um som agudo que indicava que

Samuel tinha levantado a voz, mas não consegui entender as palavras.

― Vou levá-la comigo. Acho que sei uma forma de fazê-la se lembrar.

Bom, é uma teoria, vamos ver se funciona. ― Ele soltou um suspiro duro

após ouvir algo do outro lado. ― Vou esperar você no restaurante de sua

avó. Espero que venha sozinho, não estou a fim de me livrar de ninguém

hoje, mas farei se for necessário.

Suspirei.

― Deixe-me falar com ele.


Andreas me olhou um segundo e assentiu.

― Certo. Samuel? Não demore; aonde vamos não é perto ― falou e

me entregou o telefone. ― Vou comer algo no salão enquanto espero.

― Obrigada. ― Respirei fundo, abafando o celular para Samuel não

ouvir minhas palavras, embora não fosse nada que eu precisasse esconder.

― Desculpe por chamá-lo, mas não posso ir sem ele. Samuel e vovó

ficariam preocupados.

― Entendo perfeitamente. Vou esperar lá fora.

Saiu antes que eu pudesse dizer algo.

― Samuel ― falei assim que levei o aparelho à orelha.

― Ia sair com ele sem me dizer? ― Não tinha emoção em sua voz.

― Jamais iria sem você. Por isso liguei, porque preciso ir, mas com

você ao meu lado.

― Não precisa ir...

― Samuel, todas a minhas lembranças vieram quando estive em

lugares e situações semelhantes a momentos que vivi. O único que sabe


aonde eu ia é ele.

― Eu sei. Já estou a caminho.

― Obrigada. ― Então pedi: ― Por favor, tenha a mente aberta e não o

machuque.

― Por você, Lily. ― Foi sua resposta.

Eu era grata a ele por me dar a chance de procurarmos respostas

juntos. Sabia que não tínhamos garantias, mas sentia que daria certo. Com

Samuel e o meu irmão Andreas ao meu lado, apoiando-me, eu me sentia mais

esperançosa em descobrir informações sobre o meu passado.


Samuel

Após receber a ligação de Lily, saí praticamente correndo. Contava

que o infeliz do irmão dela fosse até Lorenzo, não a Liliane.

Saber disso me fez ver vermelho, tanto que podia sentir a bile subindo

por minha garganta e deixando minha boca amarga.

Tentei ligar para Moor enquanto dirigia rumo ao restaurante, mas ele

não atendeu. Isso não era um bom sinal. Chequei as câmeras do restaurante e
vi Beast sentado a uma mesa na parte da frente, próximo à entrada do lugar.

Sua atenção estava na direção dos fundos, onde ficava a cozinha. Sabia quem

ele olhava. Perguntava-me se tinha me enganado ao seu respeito quanto à

possibilidade de ele machucar Liliane. Devia ter alertado Matteo, mas ele

estava com tantos problemas que eu não queria acarretar mais um. Outro

motivo para eu não contar a ele era o fato de saber que ele me mandaria

matar o russo, e Liliane seria capaz de nunca me perdoar. Bem, não

importava o que viesse a acontecer, eu lidaria com tudo.

Assim que estacionei o carro em frente ao restaurante, saí checando ao

redor, sondando se Beast estava ali sozinho. Não vi nada à vista, mas podia

sentir que estava sendo vigiado. Ele não estava sozinho.

Entrei no lugar, cheio de clientes. Vovó estava perto do balcão com a

expressão preocupada. Ignorei meu cunhado e fui até ela.

― Veio sozinho? ― sondou.

― Sim, vovó.
Esperava que, ao fazer isso, não caísse em uma armadilha e fosse

atacado e morto, mas não era provável. Se Beast quisesse aquilo, já teria ao

menos tentado.

― O que está acontecendo? ― perguntou ela ansiosa, olhando entre

mim e o russo. ― Ele parece bem sombrio.

― Vou lidar com tudo, vovó, não se preocupe. ― Deixei-a e fui até

onde ele estava.

Retribuiu meu olhar com a mesma frieza.

― Samuel. ― Elevou o queixo, relaxado na cadeira.

Sentei-me de frente a ele e, por debaixo da mesa, peguei minha arma e

a apontei para suas bolas.

Ele sorriu.

― Não carece disso, não vim aqui para machucá-la, como já deixei

claro. ― Ele não parecia nada preocupado em levar um tiro. Ou pensava que

eu não ia atirar, ou não se incomodava em morrer. Eu apostava na segunda

opção.
― Jura? E aquele seu comparsa que sinto nos olhando? ― zombei.

― Lyn só veio me dar cobertura caso eu precisasse. ― Deu de

ombros. ― Espero não irmos por esse caminho.

― Não gosto que me ameacem ― rosnei.

― Não ligo para o que você gosta. ― Colocou os cotovelos na mesa e

se aproximou, o olhar letal.

Éramos dois assassinos se encarando.

― Se você...

― Samuel! ― Eu acreditava que essa voz seria capaz até de me tirar

do inferno. Só Liliane podia controlar minha fúria naquele momento.

Guardei a arma sem demonstrar a ninguém que estava com uma.

― Vocês não estão brigando, não é? ― Era perceptível a tensão em

sua voz.

Nós dois nos levantamos, e eu me virei para olhá-la. Ela estava perto

de nós, fitando-nos com preocupação.


Deixava-me contente o local estar cheio.

― Raio de Sol... ― Puxei-a para os meus braços, beijando seus

lábios.

Ouvi um rosnado do russo e o ignorei, mas Lily se afastou, olhando

entre nós dois.

― Estamos bem, Babochka. Não vamos brigar, não é, Samuel? ― Era

audível o aviso na voz dele.

― Estamos lidando bem ― falei. Não me importava com o que ele

pensava, mas com Liliane. Ela estava superando seus medos ao trabalhar ali,

e eu não queria piorar as coisas ao quebrar a cara do seu irmão.

― Está pronta para ir, Babochka? ― ele perguntou a ela. ― O terreno

a checar é grande.

― Sim, estou pronta ― Liliane assentiu, nervosa, mas ansiosa, depois

se virou para mim. ― Vem comigo?

Eu não gostava disso, mas não havia uma chance no inferno de ela ir a

algum lugar com ele sem mim.


― Não a deixaria ir sozinha ― falei e depois, revelando meu

desprazer, virei-me para ele. ― Aonde vamos?

Beast fechou a cara.

― Ela não estaria sozinha, só para constar ― argumentou, controlando

sua fúria.

Ignorei-o, esperando sua resposta.

― Precisamos pegar um jatinho para Detroit ― continuou, embora

seus olhos brilhassem como aço.

― Detroit? Mas lá é território dos Darkness. ― Eu não levaria Liliane

para lá.

― Não achei que tivesse medo deles ― zombou.

Cerrei a mandíbula.

― Não é medo. ― Dei um passo até ele por instinto, mas Lily apertou

minha cintura para me impedir de quebrar a cara do infeliz.

― Então vamos logo com isso; cada minuto ainda aqui é um

desperdício de tempo. ― Passou por nós e nos olhou. ― Espero vocês no


carro, e não demorem, pois a viagem é longa.

Trinquei os dentes, vendo-o sair do estabelecimento.

― Samuel, por favor, não fique com raiva ― pediu Liliane.

― Não estou ― menti. Precisava me controlar; era minha chance de

saber tudo sobre ele. ― Vamos, preciso de respostas. Acredito que terei

minha oportunidade no jatinho.

Espero que sim, ou jogarei o maldito lá de cima, pensei, gostando

dessa ideia.

― Vai dar certo, vou recordar de algumas coisas ― falou

esperançosa.

Despedimo-nos de vovó e saímos do restaurante.

Entramos no carro. Beast estava na frente, no lado do passageiro, e no

do motorista havia um homem que reconheci como sendo Lyn, o Fantasma,

assassino de aluguel que, quando matava, deixava como marca um origami.

Parecia estranho, mas devia significar algo para ele.

― Onde está Moor? ― perguntei em russo assim que entramos.


― Logo acordará. Está bem ― respondeu no mesmo idioma.

― Do que estão falando? ― sondou Lily e depois acrescentou: ―

Essa língua é familiar.

― É claro, era nossa língua nativa. Ao menos era antes da porra

explodir. ― A expressão de Beast se tornou assustadora.

― Preciso de respostas. ― Fui direito ao ponto enquanto o carro saía.

― Estranharia se não estivesse ansioso para saber ― comentou.

― Qual seu nome verdadeiro?

― Andreas Grigorievich Volkov.

Reconheci o nome de família, relacionado à Máfia das Sombras, ou

Darkness. Dois dos filhos do casal Volkov foram dados como desaparecidos.

Um deles era o filho mais velho; a outra era uma de suas filhas. Anos mais

tarde, os pais e a outra irmã morreram em um incêndio. Liliane era a filha

desaparecida!

― Andreas, o primogênito da família Volkov... ― declarei meio

aturdido. Era sempre controlado, mas não consegui controlar minhas


emoções diante daquela revelação.

― Faz anos desde que alguém me chamou assim. ― Havia uma

tristeza profunda na voz de Beast.

― Volkov é nosso sobrenome? ― indagou Liliane. ― É familiar.

― Sim, Liliane Volkov ― falou, olhando para ela. ― Seu nome

significa “pura”, “inocente”, “bela como um lírio”, “Deus é juramento” ou

“Deus é promessa”.

― São muitos significados para um nome só ― comentou ela

emocionada.

― Você merece todos, Babochka. ― Piscou para ela com um sorriso.

Liliane corou.

― Obrigada.

Ele não estava exagerando; a minha menina era tudo aquilo e muito

mais.

― Seu nome e o dela não são russos como os dos seus irmãos.

Geralmente famílias russas gostam de dar a seus filhos nomes de sua origem
― mencionei.

Ele soltou um suspiro.

― Foi em homenagem aos nossos avós maternos. Eles não eram

russos.

― Como se chamam os meus outros irmãos? E os meus avós? ― Lily

perguntou, respirando fundo. ― Meus pais...

― Vou começar dos caçulas até os mais velhos. Faina era a caçulinha

das mulheres... Ela tinha apenas três aninhos quando a vi pela última vez e

sete quando morreu junto aos nossos pais, Grigori e Iris.

― Faina tinha sete anos quando... ― Ela se encolheu. ― O que

aconteceu? Foi nosso pai? Não, é impossível, afinal ele morreu também.

― A mansão onde morávamos pegou fogo, e eles estavam dentro... ―

Encarou a janela lá fora com seus pensamentos longe. ― Voltando aos nomes

dos outros irmãos...

― Quantos somos? ― Ela piscou. ― Nunca pensei que tivesse

irmãos, mas as lembranças das crianças que vinham à minha mente me


faziam querer isso.

Ele virou a cabeça e sorriu para ela, embora o abismo estivesse em

seus olhos.

― Então está com sorte, são sete com você. Depois de Faina vem

Kostya, hoje com 19 anos, seguido por Misha e você, com 23.

― Misha é o menino protetor de olhos azul-esverdeados? Temos a

mesma idade. Isso significa que somos...

― Sim. Vocês dois não são idênticos, mas são gêmeos ― assentiu

Andreas. ― Ele era muito protetor com vocês duas, mas mais com você.

― O que ele faz?

― Luta em arenas...

― É um bom lutador ― interrompi-o, encontrando os olhos dele com

um aviso claro nos meus.

Não queria que Lily soubesse o que seu gêmeo fazia, a forma como

lutava. Não achava que ela lidaria bem com isso. Misha, assim como

Demyan, eram lutadores do submundo de Detroit e outras cidades. As arenas


em que lutavam era cercada por cães assassinos. Caso um dos competidores,

se caísse delas ou tentasse fugir, seria estraçalhado na hora, embora eu

soubesse que nenhum dos dois fugiria de uma disputa. Os Volkovs ganhavam

muito dinheiro com lutas clandestinas, tinham muitas arenas pelo mundo

afora.

Liliane assentiu, parecendo gostar daquilo. Era melhor do que saber a

verdade.

― Demyan tem 25 anos, depois dele vem o Sergey, com 27. Ele é o

chefe atual da nossa família. ― Suspirou após me avaliar por um momento.

Ele não tinha falado tudo que seus irmãos faziam. Eu não queria Lily

envolvida naquilo, mas eventualmente ela descobriria.

― E qual a sua idade? ― ela inquiriu.

― Tenho 29 anos.

― Sergey é um chefe cruel ― comentei. Não acho que seja diferente

de Lorenzo, pensei. ― Por que não assume o seu lugar de direito? Afinal é o

primogênito.
Fiquei curioso por ele não ter feito isso antes. Acreditava que tivesse

um motivo.

― Nenhum deles pode saber que estou vivo. ― Encarou a nós dois.

― Quero descobrir quem nos vendeu. Além disso, estou perto de ter o poder

que preciso para fazer a máfia Darkness vir a mim implorar misericórdia.

― Como José do Egito ― sussurrou Liliane. ― Os irmãos dele o

venderam, e anos depois José se tornou governador do Egito, e seus irmãos

no final se prostraram aos seus pés, implorando ajuda. É isso que quer fazer?

― Basicamente, sim. ― Ele sorriu para ela, que não retribuiu; na

verdade, estava com o cenho franzido.

― Não entendo. Nossos irmãos fariam algo assim? Eles eram crianças

na época. Seria impossível, não? ― Por suas palavras, ela não acreditava na

possibilidade.

― Acha que foram eles? ― inquiri a Andreas.

― A única coisa que sei é que foram pessoas da família. Estávamos

em casa, que era superprotegida. Alguém de fora entrou, nos pegou dormindo
e nos levou assim ― estalou os dedos, ― em um passo de mágica? Isso não

existe. Só podia ser alguém que queria se livrar de mim, só não sei o motivo.

Seja qual for, irá pagar caro. Irei mostrar à ele como o inferno é realmente.

Não havia hesitação em suas palavras; na verdade, tinha ferocidade,

como se ele ansiasse a caçada e a descoberta. Se fosse comigo, eu me

sentiria da mesma forma.

― Misha... ― Lily colocou a mão no peito. ― Dói imaginá-lo

machucado. Não acredito que aquele menino das minhas lembranças tenha

feito isso. De toda forma, na época tínhamos apenas oito anos. Quem fez isso

devia ser adulto.

― Recordo que eu dormia, então uma mão cobriu minha boca e nariz,

mas, antes que eu pudesse ver quem era, tudo ficou escuro. Acordei no

inferno em que fiquei por anos. ― Tanto sua voz quanto sua expressão

estavam mortas.

― Quando soube de Lily? ― Apertei a mão dela, que segurava desde

que entramos no carro.


― Quando fui resgatado por Lyn do lugar em que estava preso. ―

Olhou para o homem ao seu lado e depois para a irmã. ― Busquei

informações sobre a minha família, então soube o que aconteceu a Faina e

meus pais.

― Pela forma que fala, não parece acreditar que seja seu pai o

mandante do rapto. Por quê?

― Perguntei isso a ele antes, mas se esquivou e não me disse ― falou

Liliane. ― Vai responder agora?

― Não acredito que seja nosso pai. Sempre pensei que pudesse ser um

dos nossos tios, Fyodor ou Maksim, ou até alguns dos nossos primos. A lista

é grande, mas nunca pensei no nosso pai, porque sinto que não foi ele. Na

verdade, agora tenho certeza disso, após Liliane sonhar com nosso pai a

vendendo. Suponho que seja nosso tio Fyodor, que era gêmeo idêntico a

nosso pai. ― Tinha veneno em sua expressão.

― Vai torturá-lo em busca de respostas? ― Se ele fosse fazer aquilo,

eu o ajudaria.
― Torturá-lo não resolveria nada, a única coisa com que se preocupa

é com a imagem perfeita de poder que passa nas colunas sociais. Vou

destruir a imagem do culpado, depois o farei pagar, ele e quem quer que

esteja aliado ao infeliz. O império Volkov vai virar cinzas e então será

reconstruído.

― Posso ver fotos da família para saber como são agora? ― pediu

Liliane. ― Deixei meu celular no restaurante.

Dei o meu para ela, que procurou pelo sobrenome. Logo apareceram

as imagens da sua família. Ela se deteve numa foto do rapaz chamado Misha.

Os dois eram parecidos mesmo, ainda que não fossem gêmeos idênticos.

Depois passou para outra imagem.

― Esse é Sergey? ― Antes que Andreas respondesse, ela deixou o

celular cair e levou as mãos à cabeça, gritando.

O carro parou, mas não notei onde. E única coisa que me importava

era o meu Raio de Sol.


― Lily! ― Peguei-a em meus braços, mas seus gritos se tornaram mais

altos. O pior era que ela lutava e, se permanecesse assim, iria se machucar.

Tentei chamá-la, fazê-la voltar a si, mas não tive êxito.

― Tenho clorofórmio. Faça a garota cheirar, ou vai acabar se

machucando ― ouvi Lyn dizer.

― Estou me lembrando... estou me lembrando... ― Ela caiu na

inconsciência antes de terminar a sentença.

A dor apertou meu peito ao vê-la daquela forma. Era minha culpa por

levá-la a se lembrar do seu passado.


Samuel

Eu estava puto porque Liliane estaria bem se eu não tivesse entregado

meu celular a ela.

― Porra! ― praguejei, sentando-se na minha cama com ela ainda

inconsciente.

Após Lily apagar, nós a levamos a uma clínica. O médico a dopou

para que ela não surtasse quando o visse ao acordar. De acordo com os
exames, ela estava bem, por isso a trouxe para minha casa, mesmo ainda

inconsciente. Andreas veio comigo. Lyn estava no andar de baixo,

aguardando-o.

― Algo desencadeou isso ― Andreas murmurou. ― O que ela estava

olhando?

Eu tinha guardado meu telefone no bolso. Peguei-o e ativei a tela,

olhando o histórico do navegador. As últimas imagens vistas por ela era uma

de Sergey quando criança e outra dele adulto, todo brutal, sem expressão, ao

lado de Fyodor, um dos tios.

Entreguei o aparelho a Andreas. Sua expressão se fechou como uma

tempestade.

― Sergey! Ele era uma criança na época ― parecia falar consigo

mesmo. ― Não é possível... Talvez ela só tenha recordado dele... Meu

irmão não pode ter feito aquilo comigo e com Liliane...

― Se foi mesmo ele, não pode ter feito sozinho, e você acredita que

seu pai jamais faria isso, então deve ter sido o seu tio, que parece com seu
pai na lembrança de Lily. ― Quando pegasse o maldito, eu o faria sangrar.

Ele andava de um lado a outro no meu quarto, não parecendo ouvir.

― Se foram os dois, as coisas vão mudar... ― Soltou um rugido que

estrondou o quarto.

― Quero estar nessa com você ― avisei. ― Tanto com esse maldito

como com seu tio, caso a tenham vendido, pois ela só foi abusada por causa

disso.

Ele se virou, e o que vi me fez piscar, pois a dor estava estampada em

seus olhos antes mortos.

― Teremos um banquete depois que eu tirar tudo deles, pode

acreditar. ― O veneno permeava sua voz.

― Sim, incluindo os caras que a tocaram, aqueles que você mantém

em cativeiro. Por que não os matou ainda?

― Há sofrimentos piores que a morte. Acredite, passei por isso. ―

Entregou-me o celular. ― O inferno deles tem que ser aqui na Terra, assim

como foi o meu e o da minha irmã.


― Seja o que for que tenha planejado, você e eu estamos dentro, mas

Lily não fará parte disso. Ela não vai matar ninguém. ― Não a deixaria fazer

aquilo nunca.

― Ela me contou que não vai participar e até me pediu que encerrasse

tudo, pois quer seguir sua vida e não pensar no passado. Sinto que minha

irmã ficou mais forte desde a última vez que a vi. ― Olhou para Liliane.

― Sim, ela até começou a trabalhar no restaurante há algum tempo.

Está indo bem, embora devia ser uma surpresa para mim. ― Eu estava

orgulhoso da minha menina. ― Ficar indo atrás de suas memórias talvez não

ajude. Tenho medo de que piore seu estado.

― Se não fosse por eles, ela não teria que lutar para ser forte, ela

seria forte ― rosnou, cerrando os punhos. ― A Liliane do passado se foi.

Ela era uma criança valente. Só agora está voltando a ser assim após passar

pelo inferno. Não sou eu que vou tirar isso dela.

― O que fará a partir daqui?


― Vou pôr em prática minha vingança, aliás, ela já está em andamento,

mas eu pensava que os culpados eram algumas pessoas. Agora preciso

conferir se Sergey está envolvido. Se estiver, isso vai mudar as coisas.

Custo a acreditar que ele fez algo assim. Porra, ele só tinha 12 anos da

época! ― Sacudiu a cabeça.

― Então não quer mais que ela se lembre do que aconteceu? ― Franzi

a testa.

― Não se o custo for lhe trazer dor. Vou buscar respostas do meu jeito.

― Chegou perto dela e tocou seu rosto. ― Depois do que aconteceu hoje,

acho que têm coisas em nossas cabeças que precisam permanecer enterradas.

Concordava com ele nisso. É claro que saber de tudo acerca do

passado seria bom, mas certas memórias só trariam dor.

― Sim. Antes, eu também queria que ela recordasse, mas agora penso

que é melhor deixar quieto. ― Estava furioso por ter de concordar com

aquilo.
― Agora preciso ir embora. Mas, antes, peço que não conte a ninguém

sobre mim. Nem ao seu chefe.

Estreitei os olhos.

― Não posso esconder nada dele...

― Só preciso de tempo. Tem gente da máfia dos meus irmãos

infiltrada em sua organização, então, quanto menos vazamentos melhor. Não

quero que caia nos ouvidos da minha família que eu ressurgi.

Infiltrados? Mas que merda! Agora, que tínhamos nos livrado de

algumas laranjas podres no nosso mundo, ainda faltavam mais algumas que

nem sabíamos quem eram?

― Só me dê um ou dois meses. Agora que sei quem é ao menos um

dos culpados, será mais rápido conseguir o que eu quero.

Meu chefe tinha desconfiado de mim mais cedo naquele dia, algo que

nunca havia acontecido antes. Jurei que nunca mentiria para ele. E agora?

Olhei para minha menina. Ela gostava do irmão e sofreria caso

acontecesse algo com ele.


― Um mês, depois conto a verdade sobre quem você é ― decretei.

― Só preciso disso mesmo. É por pouco tempo. ― Afastou-se para ir

embora.

― Antes de ir, me diga uma coisa: por que não matou Lorenzo? Foi só

por querer que a própria Lily se vingasse dele? ― Estava curioso. Algo me

dizia que não foi só por aquele motivo.

― Sim, embora pudesse ter sequestrado o infeliz e deixado que ele

sofresse enquanto esperava que ela estivesse forte o bastante. Mas há outra

razão. Existe alguém que procuro para fazê-lo sangrar, e Lorenzo sabe dele.

Fiquei esperando que mantivesse contato com a pessoa. ― Deu um suspiro

pesado. ― Demorou três anos para isso acontecer, mas o cara deve ter me

visto por aqui, olhando a área, então se escondeu. Quando me afastei, ele

apareceu e ligou para Lorenzo no dia do infarto.

― Como sabe disso?

― Tenho escutas em alguns aparelhos telefônicos e alguém capaz de

rastrear quem eu quiser. Foi através dessa última conversa que ele recebeu
uma notícia que não esperava. Foi por isso que o maldito enfartou ―

grunhiu.

― O que foi revelado e quem é essa pessoa? ― inquiri.

― Que sua filha está viva e que tudo aquilo de homenageá-la foi em

vão. ― Ele riu amargo. ― O desgraçado é louco da cabeça. Machucou todas

aquelas garotas por causa de uma menina morta, mas que na verdade está

bem viva.

― Sabe onde ela está? ― E eu achei que o enfarto de Lorenzo fosse

culpa do resgate das meninas que mantinha prisioneiras.

― Sabe dela?

― Na verdade, soube hoje, antes de Lily ligar e dizer que você estava

no restaurante da minha avó.

Ele assentiu.

― A única coisa que sei é que ela mora em Nova Jersey. Pode

procurar a partir daí.


Isso facilitaria a procura por Dalila, embora eu não entendesse por

que, se ela morava ali, no mesmo estado do irmão, não sabia dele.

― Você também tem um infiltrado em nossa família? ― Fechei a cara,

não gostando disso. Matteo não ia gostar de saber que tinha um espião em

nossa organização.

― Não, mas tenho alguém de olho em minha irmã 24 horas e gostaria

que não o procurasse. Pode confiar nele. ― Suspirou. ― Também sei dos

problemas que estão tendo com Nikolai e Petrova e gente do seu próprio

povo. Só quero Liliane fora dessa bagunça.

― E diz que não tem um infiltrado lá ― rosnei com os dentes

cerrados.

― Não tenho, mas meus irmãos têm, e eu tenho alguém que os espiona

para mim, então sei das coisas. ― Deu de ombros. ― Antes que pergunte

quem é, peço não faça nada com ele ainda, vou precisar de sua ajuda depois,

na hora certa para que vaze uma mensagem aos meus irmãos.
― Certo, também não quero Lily envolvida em nada disso. Até pensei

em deixá-la ir, mas... ― Olhei para ela, depois tornei a encará-lo. ― Minha

ajuda?

― Sim, com uma informação falsa que vazará, mas na hora certa. ―

Seu telefone tocou. Ele olhou para a tela e desligou, olhando para a irmã

mais uma vez. ― Você a ama. Sei disso; se não o fizesse, ela não estaria ao

seu lado, mas ao meu.

― Liliane ficará comigo, e vou mantê-la segura como venho fazendo

até agora. ― Era uma promessa que eu cumpriria a todo custo.

― Ótimo ― assentiu e saiu. Não me passou despercebido que ele não

revelou o nome do homem que procurava, mas não me importei, contanto que

aquilo não respingasse em nós depois.

Enquanto Liliane dormia, liguei para Matteo a fim de relatar o

paradeiro de sua irmã, mas ele não atendeu, então telefonei para Luca.

― Samuel ― saudou-me.

― Sabe do chefe? Estou tentando ligar para ele, mas não consegui.
― Ele teve que resolver uma coisa no hospital, mas logo vai estar

aqui. O que é?

― Soube por uma fonte segura que a irmã dele mora em Nova Jersey,

mas não conseguir descobrir a localização exata ― informei.

Após relatar isso, desliguei e telefonei para minha avó.

― Menino, está tudo bem?

― Sim, está, vovó. Não deu para irmos aonde o irmão dela sugeriu. ―

Preferi não contar o que realmente aconteceu, não queria preocupá-la.

― Tem certeza de que vocês estão bem? ― sondou ela.

― Sim, não se preocupe ― tranquilizei-a.

Após isso, fiquei esperando minha menina acordar, ansioso porque não

sabia como estava sua mente naquele momento. Esperava que ela não tivesse

nenhuma sequela.

Já haviam se passado algumas horas quando Liliane acordou piscando.


― Liliane, amor, está tudo bem? ― Podia ser uma pergunta tola após

tudo que ela passou, mas eu estava realmente preocupado com Lily.

Ela se sentou aparentando estar confusa e olhou ao redor.

― O que aconteceu? ― sondou, levando a mão à cabeça.

― Está sentindo dor? Quer que eu pegue algum analgésico?

― Não. Achei que íamos viajar com meu irmão. O que aconteceu? Por

que estamos aqui? ― Franziu a testa.

― Não se lembra do que aconteceu? ― Ela tinha sofrido um apagão?

― O que quer dizer?

― Do que se lembra? ― Precisava saber o que ela recordava antes de

lhe contar o que houve.

― Estávamos no carro, eu, você, meu irmão e outro rapaz, nos

preparando para ir aos locais aos quais eu ia quando criança, para tentar

recordar algo, então minha cabeça começou a doer, e não lembro mais de

nada. ― Piscou, ainda com a mão na cabeça. ― Foi isso que aconteceu? Eu

apaguei?
― Então não se lembra de ter descoberto sobre seus outros irmãos? ―

Fiquei chocado por ela ter esquecido tudo aquilo. Teria que ir ao médico

procurar saber sobre isso, se era normal ou não no seu caso.

― Achei que fosse só Andreas, mas há o outro menino de olhos claros

e a menininha... São meus irmãos? ― Ela parecia falar consigo mesma. ―

Por que não lembro?

Não queria mentir, mas dizer-lhe sobre Sergey poderia piorar seu

estado, e nem sabíamos se ele estava envolvido no rapto deles. Talvez o

maldito fosse cruel por natureza.

― Não falaram muito ― menti. ― Só conversaram sobre vocês e o

que viveram.

― É estranho... Por que estou aqui? E onde meus outros irmãos estão?

― Estão bem. ― Não era realmente uma mentira, exceto pela irmã

caçula, Faina.

― Que bom! ― Ela suspirou aliviada.


― Sua cabeça começou a doer, então você desmaiou. Fiquei

preocupado, mas a médica disse que você ficaria bem. Acho que anda

trabalhando muito, devia pegar leve. Vovó me contou do seu trabalho. ―

Esperava que ela aceitasse aquela desculpa.

― Era para ser uma surpresa. Eu amo trabalhar lá, é tão relaxante ―

disse com um meio sorriso. ― Estava pensando em, após superar

completamente meu medo de estar entre as pessoas, fazer um curso de

gastronomia. Queria seguir essa profissão. O que acha?

Sorri.

― Adorei essa ideia. ― Beijei sua testa. ― Estarei do seu lado

sempre.

― Obrigada. ― Suspirou. ― Vamos prosseguir depois com a ideia de

meu irmão, não é?

― Surgiu um imprevisto, seu irmão foi resolver uns problemas e

demorará alguns dias para voltar. ― Não era bem uma mentira, embora eu

omitisse o fato de ele ir atrás de vingança contra os seus irmãos, um deles,


para ser exato; não sabíamos se os outros estavam envolvidos. Eu esperava

que nenhum deles estivesse, só o tio. Eu tinha certeza de que esse estava

relacionado a tudo. Apostava que era o cabeça.

― Será que vou vê-lo de novo? ― Liliane parecia ansiosa. ― Queria

conhecer os outros também.

― Claro, ele vai voltar em breve, assim terá oportunidade de

conhecer os demais. ― Eu queria mesmo isso, não desejava ter de lhe dar

uma notícia ruim caso Sergey fosse realmente culpado e fizesse algo contra

Andreas.

― Na próxima vez vou estar mais alerta para não desmaiar. Estarei

descansada. ― Colocou a cabeça em meu peito. ― Obrigada por estar

comigo.

― Quando precisar. ― Apertei meus braços à sua volta.

Estava grato por sua crise não ter deixado nenhuma lembrança sombria

que pudesse atormentá-la mais. Esperava que, quando essas recordações


viessem, eu estivesse ao seu lado. Na verdade, torcia para que ela não se

lembrasse nunca, se isso a fizesse sofrer.


Liliane

Nos últimos dias, tentei convencer Samuel a me ajudar a pesquisar

mais sobre mim, mas ele não quis, alegando estar ocupado. Achei estranho,

pois antes queria a mesma coisa.

Eu sentia que algo tinha acontecido no dia em que saí com ele e meu

irmão, que havia desaparecido do mapa. Não que fosse presente antes.
Quando perguntei a Samuel o que aconteceu e ele me disse que

desmaiei, eu sentia que não tinha sido só isso. Eu e Andreas havíamos

conversado sobre meus outros irmãos. Então por que eu não recordava?

Eu tinha certeza de que a hesitação de Samuel em me ajudar a procurar

saber mais sobre mim tinha a ver com meu desmaio e que era por isso que

ele não queria me contar mais sobre aquela hora.

Ninguém desmaia do nada e acorda sem lembranças. Mesmo que eu

estivesse inconsciente, seria capaz ao menos de me lembrar dos minutos que

antecederam ao desmaio. Só um pensamento me vinha à cabeça, que eu devia

ter surtado com alguma recordação.

Seria por isso que Samuel tinha me levado à neurologista na manhã do

dia seguinte após eu surtar no carro? Falou com ela em outra língua, por isso

não entendi. Na hora, fiquei frustrada, pois achei que fôssemos uma equipe.

Éramos namorados, mas ele escondia coisas de mim. Até pensei em discutir

com ele quando voltamos para casa, mas ele teve que sair após seu chefe

chamá-lo.
Eu contava tudo a ele. Por que não podia fazer o mesmo? Além disso,

a nossa relação fisicamente tinha regredido. Antes já nos beijávamos com

paixão, agora os beijos não passavam de selinhos. Quando eu tentava

aprofundar, Samuel dizia que precisava sair para fazer algo.

Isso gerava muita desconfiança, não que ele tivesse com outra, pois

Samuel não era desses caras, mas de que havia coisas que ele não estava me

contando, por isso se mantinha mais distante de mim. E tudo isso aconteceu

após o dia em que desmaiei e acordei na cama dele.

Estava decidida a não deixar passar. Não permitiria que nossa relação

se deteriorasse assim. Ele não devia hesitar em me tocar; eu ansiava por isso

e muito mais.

Vovó tinha ido a um congresso de culinária. Na hora, eu quis muito ir

com ela, mas no fundo não sabia se estava pronta para enfrentar uma

aglomeração tão grande de pessoas estranhas. Então, como precisava

conversar com Samuel, aproveitei que estaríamos sozinhos. De hoje não

passa, pensei decidida.


Preparei um jantar especial para uma noite romântica, algo que eu

pretendia que tivéssemos, mas antes precisávamos saber se estávamos na

mesma sintonia.

O carro dele parou em frente à casa. Respirei fundo, controlando-me.

― Lily? ― chamou da porta, mas não me movi.

― Estou aqui ― falei quando ele entrou e parou ao me ver sentada na

poltrona da sala, de pernas cruzadas.

― Pensei ter entendido você dizer que queria jantar fora hoje ―

comentou, avaliando-me.

Quando falei com ele mais cedo sobre um jantar, estava pensando em

casa mesmo, não porque achava que não estava pronta para sair, mas sim por

querer ficar a sós com ele.

― Vamos, mas depois de conversarmos. ― Encontrei seus olhos.

― Tudo bem. Aconteceu alguma coisa? ― Veio até perto de mim.

― Precisamos conversar, não acha? ― Indiquei o sofá de frente para

mim. ― Por que não se senta?


Ele assentiu, não mostrando nada em sua expressão, mas seus olhos

diziam que estava confuso.

― Conversar sobre o quê? Há algum problema?

― Você é o problema. ― Fui direta.

Seu corpo se sacudiu. Ele tentou esconder, mas notei como enrijeceu.

― O que eu fiz?

― Esse é o problema. Você coloca essa fachada para não revelar o

que acha que não preciso saber. Anda escondendo coisas de mim,

mentindo...

Interrompeu-me.

― Não menti...

Cortei-o, ficando de pé e soltando tudo que estava entalado em minha

garganta.

― Não? Deixe-me ver... Acordei em sua cama após ter desmaiado no

meio de uma conversa com meu irmão. Você ― apontei o dedo em sua

direção, com a voz se elevando ― disse que aconteceu por eu estar cansada,
mas não acredito nisso, não pela forma como vem agindo, fugindo de mim

como se eu tivesse lepra.

― Eu não...

― Não acabei! ― Exaltei-me, fazendo com que ele arregalasse os

olhos. ― Estou farta de você me tratar como se eu fosse de vidro e fosse

quebrar! Se estamos namorando, quero a verdade seja ela qual for!

― Lily, somos mais que namorados. Você é a coisa mais preciosa para

mim ― declarou com firmeza.

― Então aja como tal e me conte o que está me escondendo desde

aquele dia! E por que não me toca? ― Cruzei os braços sobre o peito,

esperando.

― Não toco você? ― Ele parecia confuso. Isso me deixou mais

frustrada.

― Desde que acordei do desmaio, mal me beija, logo sai correndo

como se não quisesse ficar perto de mim. ― Suspirei.

― Mal beijo você?


― Quer parar de repetir tudo que eu falo!? ― rugi, cerrando meus

punhos.

Ele piscou aturdido, provavelmente devido à minha explosão. Eu não

fazia muito isso, mas estive guardando minhas emoções por muito tempo.

― Vamos por partes. Sente-se para podermos conversar ― pediu.

Suspirei e voltei a me sentar na poltrona.

― Primeiro, não estou evitando tocar em você; é algo que anseio e

necessito dia e noite, como o ar que respiro. Só peguei leve por causa do

que aconteceu no carro. Temia que isso lhe trouxesse outro lapso.

Não deixaria suas palavras me comoverem, precisava da verdade,

embora ficasse feliz ao ouvi-las. Significavam o quanto ele ansiava por mim,

assim como eu por ele.

― No carro? Então eu realmente surtei com algo e você mentiu para

mim sobre isso? ― Sacudi a cabeça, magoada. Sabia que era algo assim.

Entretanto, não queria nada disso, só que fosse honesto comigo.


― Não necessariamente. Só não podia contar e correr o risco de você

passar mal novamente. Aqueles gritos torturantes... ― Estremeceu. ― Faço

qualquer coisa para evitar que aquilo aconteça de novo.

― O que aconteceu realmente? A verdade, Samuel ― supliquei.

― Estávamos falando sobre seus irmãos, e você pediu para ver fotos

deles. Enquanto as olhava, acredito que alguma imagem deve ter trazido

lembranças perturbadoras, pois começou a gritar.

― Então surtei vendo a foto de um dos meus irmãos?

― Sim. Tinha uma foto de um deles já adulto junto ao tio que é irmão

gêmeo idêntico de seu pai. Aposto que é por isso que você vê seu pai

vendendo-a no sonho.

― Será que um dos meus irmãos e o meu tio nos venderam? A imagem

de qual dos meus irmãos me fez surtar? ― Ainda bem que estava sentada.

Como alguém da própria família podia fazer algo assim? Era crueldade

demais.
― Creio que tudo esteja relacionado ao seu tio, Fyodor. Andreas foi

checar as coisas. O nome do seu irmão é Sergey.

― Sergey? ― Ouvir esse nome fez minha cabeça doer. Levei a mão à

testa.

― Por isso eu não queria contar. O que está por trás dessa lembrança

é torturante demais para você. Toda vez que ela se aproxima de sua

consciência, sua cabeça dói. ― Respirou fundo. ― Por isso não falei nada.

― Mesmo assim devo saber se esconde algo de mim. Não pode me

tratar como se eu fosse algo precioso e delicado que pode se quebrar ao

saber da verdade.

― Você é preciosa para mim, mais do que minha própria vida. ― Não

havia mentiras em suas palavras. ― Sem você, o ar que respiro não teria

serventia.

Pigarrei, emocionada.

― Samuel... ― Levantei-me e me sentei ao seu lado, pegando sua

mão. ― Não quero segredos entre nós. Quero sentir que confia em mim.
― Confio em você ― afirmou. ― Só não contei porque temia que

sofresse.

― Você esconder coisas de mim me faz sofrer. Sinto que não confia o

bastante em mim, que não acha que eu seja forte o suficiente para lidar com o

que vier. ― Apertei sua mão. ― Adoro o fato de você querer me proteger,

mas não preciso disso. Se eu estiver com você, posso lidar com qualquer

coisa, até atravessar o tormento causado pelas lembranças.

― Juro que nunca mais escondo nada de você. ― Puxou-me para os

seus braços.

― Obrigada. Então eu surtei naquele dia. ― Não ia deixá-lo me

distrair com seu toque.

― Sim. Na hora senti medo, você se debatia muito... ― Sua voz

falhou. Tocou meu rosto. ― No fundo, fico feliz por não se lembrar de nada.

― Por que será que esqueci?

― A médica falou que é normal. Alguns pacientes tendem a guardar

memórias dolorosas em um canto inacessível do cérebro para não sofrerem


ainda mais. Bonnie disse a mesma coisa.

― Ela sabia? ― indaguei, magoada com o fato de não ter me contado

nada.

― Contei sobre o seu surto para ela hoje. Liguei para saber o que

fazer. Não queria continuar escondendo as coisas de você, sabia que

precisava revelar e ia fazer isso hoje, mas você me forçou antes. ― Sorriu

torto e lindo. ― Fica ainda mais linda quando está com raiva.

― Não estava com raiva. ― Fiz careta. ― Só queria declarar as

coisas.

― Lamento se pensou que eu não queria tocá-la. ― Traçou minha

pele, que ficou quente como brasa. ― É difícil me afastar...

― Não quero que se afaste. Estava pensando que devíamos treinar. ―

Corei.

― Treinar? ― Ergueu as sobrancelhas, com um brilho ardendo em

seus olhos. ― O que sugere?


― Não sei... No decorrer desses anos, desde que o conheci, você

primeiro foi meu salvador, depois meu amigo, agora é meu namorado. Antes,

mal me tocava, depois segurava minha mão, então passou a me beijar. Amei

cada experiência ao seu lado, mas quero mais com você. Acho que, para

darmos outro passo, já que você teme que eu surte, devíamos treinar. ―

Respirei fundo, ganhando gás.

― Se tentarmos, tenho medo de que isso...

― Me faça entrar em pânico? ― terminei por ele. ― O que fará? Vai

aceitar estarmos juntos só nos beijando para sempre? Pelo que sei, homens

têm suas necessidades. Vai atrás de outra?

― Jamais trairei você! ― declarou com veemência. ― Se não

conseguir, ainda assim ficarei ao seu lado. Sou controlado o bastante, além

disso posso cuidar de mim mesmo. Tenho medo por você, porque falar e

fazer são coisas completamente diferentes.

Pisquei, imaginando-o dando prazer a si mesmo. A visão me fez ficar

molhada entre as coxas. Por um segundo, isso me fez perder o fio da meada.
― Não sei como vou reagir. Você tem razão, falar que estou pronta é

uma coisa, agir é outra. O que peço é para tentarmos. Não saberemos do que

eu sou capaz se não testarmos. ― Inspirei, controlando-me. ― Quero ser

mulher para você.

― Você é mulher para mim ― afirmou.

― Quero ser completa, Samuel, te dar tudo ― insisti.

Ele ficou em silêncio um instante, o que me deixou nervosa demais.

― Tudo bem, vamos tentar, mas, se você passar mal, me avise

imediatamente, que paro na mesma hora ― rendeu-se.

― Prometo! ― assenti, mordendo o lábio inferior, nervosa. Deveria

ter pesquisado antes sobre como um casal podia dar prazer um ao outro, mas

temi que isso fosse demais. Na verdade, queria aprender e sentir tudo com

Samuel.

Ele se aproximou e me beijou com doçura a princípio, depois foi

ficando mais feroz, exigente, tanto que me deixou ofegante.


Senti minhas costas no sofá, enquanto ele pairava em cima de mim.

Uma de suas pernas se encaixou entre as minhas, e a coxa triscou no meu

centro.

Os ofegos que saíam de meu peito eram constrangedores, mas não me

incomodei, só o queria ali, em meus braços, e sentir aquele turbilhão de

sentimentos.

Uma de suas mãos estava em meu rosto, e a outra, em meu corpo,

esquadrinhando cada parte. Onde tocava, minha pele se incendiava, vibrava.

Estava tão bom, mas, quando sua mão foi até minha coxa, gelei

conforme imagens terríveis se apossavam de minha cabeça. Minha

respiração ficou aguda.

Não, não vou deixar essas lembranças horríveis tomarem conta de

mim e estragarem o que eu tenho!, pensei, ordenando que meu cérebro

focasse no que acontecia ali, naquele instante.

Sentia que Samuel ia tirar sua mão, mas não deixei. Não queria dar

aquele gostinho aos meus demônios.


― Não pare ― pedi ofegante e com os olhos úmidos, mais de raiva do

que de medo.

Ele me olhou por um segundo. Uma sombra atravessou sua expressão.

― Lily...

― Por favor, preciso lutar contra isso...

Sacudiu a cabeça com tristeza.

― Não é assim que funciona, Raio de Sol. ― Sentou-se, puxando-me

para sentar-se em seu colo e me abraçou. Fiquei chorando ali, com a cabeça

em seu ombro.

― Como posse te dar o que precisa? ― Estava puta com aqueles

infelizes e comigo, por deixá-los ganhar aquele round.

― Olhe para mim. ― Ele pegou meu rosto entre suas mãos, e não tive

escolha a não ser fitá-lo. ― Você me dá tudo que preciso. Tudo! Não pense o

contrário. Eu te amo demais, não importa quanto tempo eu tenha que esperar.

Aguardaria a eternidade se fosse imortal, mas, como não sou, vou esperar a

minha vida toda se necessário.


Meu coração acelerou com suas palavras, tão verdadeiras que me fez

amá-lo ainda mais.

― Podemos fazer mais vezes até eu conseguir. ― Eu não ia desistir

agora.

― Estarei aqui para você ― jurou, beijando minha testa com uma

respiração profunda. ― Il mio cuore, la mia anima.[8]

Ficamos assim até meus pensamentos torturantes irem embora por

completo, restando somente aquele homem maravilhoso em meus braços.

― Obrigada por tudo, por tentar...

― Liliane, meu amor, vamos conseguir se for importante assim para

você.

Limpei meu rosto molhado e o fitei.

― E para você não é importante? Achei que queria, eu o senti...

pronto... ― divaguei, corando.

Ele riu, deliciado com meu rosto vermelho.


― Oh, sim, anseio por você como uma pessoa sedenta por água. ―

Sorriu.

― Vamos conseguir, é só praticarmos todos os dias ― assegurei.

― Como quiser ― acatou e suspirou. ― Não íamos jantar? Estou

faminto.

Avaliei-o para ver como estava lidando com tudo aquilo, mas não

consegui ler sua expressão. Ele era bom em esconder o que sentia.

Antes que eu dissesse alguma coisa, ele se levantou comigo nos

braços.

― O que está fazendo? ― indaguei enquanto me levava para a

cozinha.

― Não quero sair, quero jantar com você aqui, ao meu lado. ―

Depositou-me na cadeira.

― Desde o princípio eu não queria sair, preparei o jantar. Preciso

servir a mesa...
― Eu faço isso ― anunciou, fazendo-me franzir a testa. ― Sei que é

capaz, mas você fez o jantar, então eu o sirvo. Ensinamento da vovó, que nos

manda compartilhar os afazeres de casa.

Sorri emocionada por ele falar com tanto carinho da sua avó. Nossa

avó, corrigi mentalmente.

― Obrigada ― agradeci assim que Samuel esquentou a comida e

colocou o prato à minha frente, servindo-se depois.

― Não foi nada.

― Às vezes custo a acreditar que isso seja real, que existam homens

como você na Terra ― sussurrei.

― Um homem que serve sua namorada e que está irrevogavelmente

apaixonado? ― Deu-me um sorriso torto e sexy.

Meu coração se aqueceu de felicidade.

― Também, mas quis dizer paciente, generoso, disposto a me ajudar a

superar meus demônios, estar ao meu lado, me amando dessa forma. ―


Encontrei seus olhos lindos. ― Agradeço a Deus a cada dia da minha vida

por ter me enviado você.

― Sou também privilegiado por você amar um homem como eu, um

assassino sem alma.

― Na verdade, você tem uma alma, sim...

― Não vamos tocar nesse assunto. Eu sei que não tenho uma...

― Então mentiu para mim? ― Estreitei os olhos.

― Não menti. ― Olhou-me como se não entendesse do que eu estava

falando.

― Você me disse em italiano que sou seu coração e sua alma. Se não

acreditasse que tivesse uma, jamais diria isso, não é? ― Ri de sua cara

perplexa. ― O que foi? Estou aprendendo sua língua com a vovó. Devo

dizer que adoro quando você diz palavras para mim em sua língua materna.

Sorriu.

― Haverá mais delas, ainda mais quando eu estiver com meu rosto

enterrado entre suas pernas. ― Pegou o vinho e colocou a língua para fora,
traçando a taça.

Engoli em seco, apertando minhas pernas uma contra a outra.

― Está com tesão? ― sondou-me.

Assenti muda, ainda olhando sua boca, enquanto imagens passavam

por minha cabeça.

― Ótimo. Acho que sei como começar com o treino de um jeito que

você não entre em pânico.

― Vai colocar sua boca...

― Espere e verá. ― Sorriu confiante.

― O que você...

― Confia em mim para te ajudar do meu jeito? ― pediu com aqueles

olhos lindos fixos nos meus.

― Com a minha vida ― declarei.

― Fizemos do seu jeito, e não deu certo; agora farei do meu. Acredito

que dará certo.


Queria perguntar do que se tratava, mas confiaria nele como sempre.

Tinha certeza de que logo quebraria aquela barreira também, assim como fiz

ao sair de casa e trabalhar em um local cheio de pessoas. Eu logo seria uma

garota normal de novo.


Liliane

Durante as semanas seguintes, era para Samuel e eu termos treinado,

mas seu trabalho foi corrido, e ele teve que fazer uma viagem à Rússia com

seu chefe.

Na hora sugeri ir com ele, como quando fomos à Austrália, afinal não

queria ficar longe dele. Porém, Samuel me disse que não podia, pois não me

queria lá caso o perigo surgisse. Ele iria para território inimigo.


Antes, eu não pensava muito sobre o seu trabalho, mas passei a fazê-lo

após ele chegar machucado no dia do resgate das meninas. Agora estava em

outro país, onde podia estar correndo perigo. Isso me afligia, mas eu não

achava justo lhe pedir que saísse da máfia.

Uma vez dona Zaira me disse que ser da máfia tinha seu lado sombrio,

mas havia também a lealdade familiar. Pela forma como Samuel era próximo

ao seu novo capo, pelo jeito que falava dele, havia muito carinho e

admiração entre ambos. Eu nunca tiraria algo assim dele, mesmo se tivesse

esse poder. Só rezava para que ele ficasse protegido e voltasse seguro para

mim.

Dona Zaira também me contou que tinham muitas pessoas valorosas na

máfia. Eu acreditava nisso. O chefe de Samuel me salvou, e não só a mim,

mas também as outras prisioneiras, que estavam de novo com seus

familiares.

Não tive a oportunidade de conhecer Matteo e lhe agradecer o que fez

por mim. Esperava que um dia tivesse essa chance. Também queria ver dona
Zaira. Até pedi algumas vezes ao Samuel que me ajudasse a encontrá-la. Ele

disse que o faria assim que voltasse. Fiquei contente com isso. Nunca seria

suficiente agradecer-lhe o que ela fez por mim dentro daquela prisão ao não

permitir que eu ficasse louca.

Como Samuel não estava em casa, passei a ir todos os dias ao

restaurante, focando no trabalho, assim não pensaria na falta que sua

ausência me trazia. Ao chegar em casa à noite, limpava e arrumava tudo,

ainda assim não era suficiente para me deixar cansada e adormecer. Não

conseguia pregar os olhos.

Ainda bem que Bonnie estava ali, então eu passava o restante do

tempo com ela.

― Você precisa dormir, ou vai parecer um zumbi andando por aí ―

falou minha amiga, tirando-me dos meus devaneios. ― Já é tarde.

― Eu sei, mas é tão vazio sem ele aqui. Esta casa parece maior do que

é ― sussurrei.
― Faça um esforço ― pediu ela, sentando-se à minha frente no sofá.

Segurava uma bolsa.

― Vou fazer depois. Agora quero pedir sua opinião. ― Estava

nervosa pelo que ia falar.

― Claro. O que está te incomodando? ― Indicou que eu prosseguisse.

― Por que acha que tem algo me incomodando? ― Remexi-me no

sofá, respirando fundo.

― Simples, a conheço há muito tempo. ― Sorriu para mim. ― Vá em

frente e fale comigo.

Assenti.

― Combinei com Samuel sobre treinarmos...

― Treinar?! ― indagou com a voz se elevando. ― Com armas?! Ele

vai fazer isso?!

― Não! ― Sacudi a cabeça. ― Estou falando em dar um passo a mais

em nosso relacionamento, sabe? Sobre toques e tudo mais.


Eu devia aprender a me defender também, mas agora havia outra

prioridade para eu conseguir lidar com o trauma por que passei e superá-lo.

― Está falando sobre sexo? ― sondou, avaliando-me.

― Sim. Tentamos dar um passo a mais antes de ele partir, mas na hora

não consegui, gelei de medo... Não dele, mas ao pensar na dor que passei

antes. Isso me fez travar...

― É compreensível, dado o que aconteceu. Então o que houve depois?

― Samuel ficou ao meu lado. Às vezes penso que ele é muito bom

para ser verdade, para ser real. Desacredito que existam homens como ele.

― Samuel sempre foi assim, desde criança. Salvou minha vida mais

vezes do que pode imaginar.

― Salvou? ― Franzi a testa, tentando imaginá-lo protegendo alguém

quando criança. ― Do que ele a salvou? Pode me contar?

Sempre achei que algo sombrio tinha acontecido com ela, mas nunca

me disse nada, então achei que não estava pronta para falar. Um dia estaria,

eu confiava nisso.
― Minha vida não foi fácil. Uma criança deve receber carinho e

proteção dos pais. ― Abriu a bolsa e pegou uma garrafa de bebida. ― Acho

que vou precisar disto para termos esta conversa. Não é uísque ou Martine,

mas vai servir.

― Você anda com bebidas? ― indaguei confusa, pois não era de seu

feitio, e vovó não mantinha bebidas em casa.

Ela riu com os olhos tristes.

― Não, mas estava pensando em conversar com você sobre isso,

então me preparei quando saí mais cedo. ― Respirou fundo, abrindo a

garrafa.

― Estava?

Ela assentiu.

― Sim. ― Bebeu um pouco e depois me ofereceu: ― Quer?

― Não, obrigada. ― Fiquei esperando que ela tivesse seu momento e

me contasse sua história.


― Nós morávamos em um vilarejo pequeno na Itália. Toda a cidade

participava de uma seita. Falo assim porque ninguém que preze a palavra de

Deus de verdade usaria uma igreja para o que eles faziam com os seus

filhos. ― Tinha asco em sua voz.

― O que eles faziam com as crianças? ― questionei preocupada.

― Os adultos eram rígidos. Se as crianças cometessem um erro, eram

castigadas, mas não usavam castigos normais, eles a levavam à frente do

altar da igreja, onde nos obrigavam a confessar o que tínhamos feito, em

geral pequenas falhas que jamais deveriam ser levadas em conta. ― Sacudiu

a cabeça com desgosto evidente. ― Porra, não havia nada mais fodido! Nos

castigavam por abrir uma maldita geladeira ou chamar o nome de nossos

pais!

― Como castigavam vocês? ― Minha voz soou horrorizada com o

que ouvi.

― O revendo, que era meu pai, só no nome, devo dizer, e todos os

infelizes da cidade faziam reuniões e no levavam à frente do altar. ― Sua


voz falhou. ― Éramos crianças! Sua obrigação era nos proteger, mas não! O

que os malditos faziam? Abusos, espancamento... Meu próprio pai me

entregou a homens da congregação para me molestarem, uma criança de sete

anos!

Arregalei os olhos, pensando no que ela devia ter sofrido todos

aqueles anos com pessoas que deveriam significar proteção, mas, em vez

disso, permitiam que outros a tocassem de uma forma cruel e desdenhosa.

― Oh, meu Deus! ― Saí do meu lugar e me sentei ao seu lado. ― Seu

pai era um monstro!

― Sim, ele era. ― Seus olhos estavam molhados. ― Eu implorava a

minha mãe que me ajudasse a cada vez que era castigada, forçada a...

Meu coração acelerou quando imaginei que ela havia passado pelo

mesmo que eu.

― Bonnie, se não quiser me contar, não precisa. ― Entendia a sua dor,

pois era a minha. Ainda doía pensar no assunto, embora eu tenha melhorado

muito com a ajuda de Samuel e pessoas que gostavam de mim.


Sabia que ainda tinha de lidar com meus medos, mas acreditava que

conseguiria. Samuel me ajudaria com isso. Eu esperava que um dia Bonnie

tivesse alguém que a amasse daquela forma. Ao menos ela tinha amigos que

a amavam de todo coração, como eu.

― Preciso falar com alguém, isto está entalado em minha garganta, em

meu peito. ― Respirei fundo. ― Começou com eles me molestando, mas,

quando fiz dez anos... meu pai me entregou a um dos membros após eu ter

respondido. Não podia ver toda aquela porcaria calada. Não contava que ele

fosse ser capaz de me fazer mais mal do que já fazia.

― Bonnie...

― A dor em minha alma foi pior do que a física... Seus cheiros

repugnantes... ― Estremeceu com desgosto. ― Suas vozes grotescas.

― Seu pai deu você para ele...

― Sim. ― Sua voz estava sem vida, embora os olhos revelassem

tormento. ― Passou a acontecer com frequência depois disso. Muitas vezes


Samuel me ajudava, mas eu não gostava disso, afinal também era castigado.

Então passei a esconder dele quando não estava nas reuniões.

― Samuel também era castigado?! ― Minha voz se elevou de medo.

― Eles também...

― Não assim. Os castigos para os garotos versavam mais sobre

torturas, espancamentos. Ele era inúmeras vezes açoitado até desmaiar. ―

Bebeu mais um gole da bebida. ― Eu queria fugir, mas para onde iria uma

menina da minha idade na época? Não tinha família ou estrutura para fazer

tal coisa.

― E a lei? Policiais e outros órgãos que ajudam crianças e

adolescentes?

― A cidade toda era devota dessa seita, não havia ninguém a quem eu

pudesse pedir socorro. O único era Samuel, mas ele era da minha idade e

passava por maus tratos como eu. Então não podia fazer muita coisa a não

ser se machucar. ― Sacudiu a cabeça com um olhar vazio.


Cerrei os punhos, com raiva daqueles infelizes por machucá-los.

Ninguém merecia uma vida cruel assim.

― Como se libertou deles? ― perguntei, curiosa e grata por ela ter

conseguido a liberdade.

― Quando tinha 15 anos. ― Levou a garrafinha à boca novamente,

mas a tomei de sua mão. Bonnie não era de beber assim. No fundo, eu

entendia por que estava recorrendo ao álcool, mas tinha de ajudá-la, pois

não levaria a nada.

― Depois você toma mais.

Ela não pareceu se importar. Seus olhos estavam distantes.

― Era o dia da “iniciação” aos castigos de Renan e Raiane, os irmãos

gêmeos de Samuel, de sete anos. O meu pai aplicaria o castigo na garotinha.

― Asco toldou sua voz.

― Esse ser abonável tocou na criança? ― Coloquei a mão na boca,

horrorizada demais.
Finalmente entendia a dor que via nos olhos de Samuel. Nunca

tínhamos falado sobre o assunto, mas eu sabia que era doloroso demais para

ele. Quando estivesse pronto, ele me contaria tudo.

― Não, Samuel chegou e matou todos os homens que estavam na

igreja, restando só as mulheres.

― As mães aceitavam que fizessem tais coisas abomináveis aos seus

filhos?! ― Se um dia eu tivesse crianças, jamais permitiria algo assim, aliás,

as amaria demais, não permitiria que nada acontecesse a elas. ― Como

podiam ficar do lado dos maridos em vez do dos filhos?

― Pois têm muitas assim neste mudo ― falou e deu um suspiro duro.

― Elas acreditavam que aquilo tudo tinha um propósito, que era para um

bem maior. Todos fodidos! ― zombou com repulsa. ― Como não viam que

aqueles vermes eram pedófilos, estupradores...

― Todos eram doentes da cabeça ― comentei enquanto colocava a

garrafa de bebida na mesinha. ― E sua mãe? O que aconteceu com ela?


― Não sei, não procurei saber, só tentei esquecer que ela ainda

respirava por aí. Sorte dela que Samuel não mata mulheres, ou estaria morta.

― Olhou-me. ― Tentei fugir de tudo isso, mas não podemos fugir dos

demônios, Liliane. Temos que ser fortes e enfrentá-los.

― Eu sei. Já enfrentei muitos dos meus demônios e estou tentando

acabar com mais um ― sussurrei.

― Lutei muito para chegar onde estou hoje, mesmo assim você pode

ver... ― Apontou para si mesma e depois para a garrafa. ― Precisei disso

para revelar o meu passado a você. Às vezes acho que devo abandonar

minha profissão, já que não consigo tratar nem de mim mesma.

― Não faça isso! ― pedi, pegando sua mão. ― Você é brilhante,

Bonnie.

― Sério? Nem estou conseguindo ajudá-la direito. Talvez deva

procurar outra pessoa para te auxiliar...

― Você me ajudou muito! Eu tinha medo da minha própria sombra;

hoje trabalho em um restaurante cheio de pessoas. Creio que logo andarei


pela cidade toda sozinha. ― Tinha fé em Deus que faria isso.

― Mas ainda tem esse empecilho que não a deixa ter relações sexuais

com Samuel, não é? ― Não esperou que eu respondesse. ― Como posso

auxiliá-la com uma coisa que também não superei ainda?

Pisquei.

― Você não fez...

― Não faço. Até tentei uma vez, mas senti repulsa e não consegui,

então nunca mais tentei. ― Respirava de modo irregular.

Eu estava chocada demais e com raiva daquelas pessoas que a

machucaram daquela forma.

― Amava essa pessoa com quem ficou? ― sondei.

― Não, nem sequer o queria, só estava tentando ver se conseguia

ficar...

― Deve ser isso. O amor cura algumas feridas. O toque, que eu tanto

temia, com Samuel consegui superar. Na verdade, anseio por ele. ― Apertei

sua mão. ― Sei que não estou cem por cento, mas estou chegando lá. Creio
que vou conseguir dar esse passo. Sabe por quê? ― Não esperei que

respondesse, acrescentando: ― Porque almejo o toque dele tanto quanto o ar

que respiro.

Ela ficou em silêncio por um momento, depois riu.

― Você é uma ótima amiga! ― disse e depois suspirou. ― Quem sabe

um dia não testo essa teoria? Queria encontrar um amor igual ao seu e de

Samuel.

― Acredite que encontrará. Você é tão perfeita ― assegurei. ― Há de

ter alguém especial em algum lugar só esperando você.

― Obrigada por estar comigo, por ser essa pessoa maravilhosa, tão

doce. Fico feliz por meu amigo e irmão te amar. Vocês merecem um ao outro.

Samuel merece ser feliz após tudo que passou.

― O que aconteceu com a família dele? ― Sabia que seus familiares

estavam mortos e suspeitava que o pai dele os tinha matado, após ouvi-lo

falando em seu pesadelo logo quando acordei na clínica, mais de três anos

antes.
― Desculpe, Liliane. Isso é ele quem tem de contar.

― Tudo bem, eu sei ― assenti. Queria mesmo ouvir aquela história do

própria Samuel, quando estivesse pronto.

― Agradeço-lhe por estar ao meu lado. Sinto-me melhor após ter me

aberto com você. ― Sorriu, mas os seus olhos estavam tristes.

― Sou eu que lhe agradeço por ter me ajudado inúmeras vezes. ― Era

grata tanto a ela como a vovó e Samuel. Tinha com eles uma família que me

amava, embora ainda torcia para encontrar a verdadeira, além de Andreas.

Enfim seria a mulher mais feliz desse mundo.


Samuel

As semanas que se seguiram foram uma loucura. Eu devia ajudar

Liliane com seu medo de um toque mais íntimo, mas tive que fazer uma

viagem com meu chefe para a Rússia. Ele teve de ir para lá a fim de proteger

sua irmã.

Matteo descobriu que Dalila, agora Samira – seu atual nome –, foi

adotada quando criança por uma mulher, que morreu. Estava fazendo
faculdade e namorava ninguém menos que Nikolai Dragon. Entretanto, ela foi

encontrar Nikolai em Moscou, porém, aconteceu alguma coisa entre eles, e

ela acabou fugindo. O chefe e eu a seguimos até sua antiga cidade, onde sua

irmã viveu até se mudar para Nova Jersey havia alguns anos.

Depois de a encontrarmos, Nikolai apareceu no local em que ela e nós

estávamos. Na hora, achei que a guerra tão esperada fosse acontecer ali, mas

me enganei. Nikolai me surpreendeu pedindo uma aliança.

O amor realmente mudou a situação para melhor. Tanto a relação de

Matteo com a irmã dos Dragons quanto a de Nikolai com Samira fizeram

com que entrassem em um acordo e se aliassem.

Fiquei contente com o resultado, afinal só tinha algo em minha mente:

fazer Sergey e seu tio pagarem caro. Só não o tinha feito até então porque

estava esperando Andreas cumprir seu objetivo.

Meu telefone tocou assim que pousei em Chicago, de volta da Rússia.

― Já chegou? ― perguntou Matteo.

Ele tinha ficado lá após Nikolai ser baleado. Logo ambos retornariam.
― Sim, acabei de pousar. Deseja alguma coisa? ― Peguei minha

mochila.

― Cheque a ligação entre Enzo e Petrova e veja se descobre alguma

coisa.

― Claro, vou cuidar disso ― assegurei.

― Não vou demorar a chegar aí. Enquanto isso, tome conta de tudo ―

ordenou.

― Estou a postos. Escuta, queria trazer Zaira para encontrar Liliane.

Pode ser? Lily sempre me pede para vê-la. ― Entrei em um Uber e segui

para casa.

― Claro, ela está lá em casa, chame-a. Preciso ir.

Ele desligou, e, depois, disquei o número da sua casa. Não demorou

muito para atenderem. Devia ter pegado o número de dona Zaira; depois

faria isso.

― Residência dos Salvatores, posso ajudar? ― saldou Zaira.

― Sou eu, o Samuel.


― Menino, como vai? O que deseja? O senhor Matteo não está aqui

― informou.

― Eu sei, queria falar com você sobre vir visitar Liliane. Ela sempre

me pede para vê-la.

― Liliane quer falar comigo? ― Tinha muita emoção em sua voz,

carinho pela minha garota. ― O senhor Matteo relata para mim como anda o

estado dela. Ele disse que ela enfim está conseguindo lidar com o que

aconteceu.

Eu não gostava de pensar no sofrimento dela, ou minha fúria

ultrapassava o auge.

― Sim. Sou grato a você por ter tentado ajudá-la naquele dia ― falei

o que tinha vontade havia muito tempo.

― Não fiz o bastante ― sussurrou. ― Pensei que ela não queria me

ver, que me culpava.

Sacudi a cabeça.
― Liliane é incapaz de tal sentimento. Ela entende que você também

era prisioneira de Lorenzo, assim como todas as meninas que estavam

naquele lugar. ― Olhei para fora da janela. O sol estava nascendo.

― Que bom, fico muito feliz. Pode marcar, que vou vê-la, sim!

Assim que acertei de trazê-la para ver Lily dentro de alguns dias,

desliguei, ansioso para ver minha garota. Antes de continuar meu caminho

para casa, parei na boate, que vendia alguns produtos de sexy shop, e

comprei alguns itens que achei que poderiam ajudar Lily.

No dia em que fiz o que ela meu pediu, algo me dizia que não daria

certo, não por eu ser duvidoso, mas por ser realista. Sabia dos seus

demônios, especialmente do fato de enojar seu corpo. Se se sentia assim

consigo mesma, não sentiria prazer quando alguém a tocasse.

Eu percebia que frases eróticas a deixavam quente, mas, quando havia

contato físico, particularmente na parte de baixo, tudo mudava. Acreditava

que a técnica que eu usaria a ajudaria a se soltar mais. Antes do sexo, ela
precisava confiar em mim nesse sentido, não só com seu corpo, mas também

com seu cérebro.

Cheguei em casa, encontrando vovó na cozinha.

― Samuel! ― Veio me abraçar. ― Estava com saudades de você. Por

que não avisou que vinha?

Retribuí o abraço e logo me afastei.

― Fiquei fora só alguns dias. E queria surpreender... ― Olhei ao

redor. ― Cadê Lily? Achei que ela fosse trabalhar com a senhora.

― Não, ela mal dormiu esses dias em que você esteve fora. A menina

estava indo trabalhar esgotada, então pedi que ficasse e descansasse, mas

não quis. Por isso, essa madrugada, em razão de sua insônia, dei um

calmante a ela para que dormisse até mais tarde.

Franzi a testa.

― Ela não me contou isso. Eu até lhe perguntava se estava bem toda

vez que ligava, e ela me dizia que sim. ― Suspirei.


Queria tê-la levado comigo, mas era perigoso demais. Não a queria

perto dos russos; já bastavam os irmãos dela.

― Acho que ela não queria que você soubesse. Até me pediu que não

lhe contasse nada.

― São os pesadelos? ― Enfim ela estava melhorando nessa questão.

Eu não podia acreditar que minha viagem tinha desencadeado aqueles sonhos

horríveis novamente, mas e se tivessem?

― Não são pesadelos, perguntei isso a ela. Liliane sente sua falta. ―

Sorriu. ― Vai ficar contente ao vê-lo.

Suspirei aliviado por ela estar bem.

― Vou ao quarto dela e depois subir e tomar um banho. ― Beijei a

testa de vovó e me encaminhei ao quarto de Lily.

― Ela não está aí ― disse vovó à meia-voz, fazendo-me parar de

andar.

― Onde está então? ― inquiri, fitando-a com o cenho franzido. Tinha

chegado cedo para vê-la ainda dormindo ou ao menos antes que fosse ao
trabalho.

― Em seu quarto. Dorme lá todas as noites. Acho que é uma forma de

ficar perto de você. ― Vovó parecia extasiada com isso.

Assenti e subi para o meu quarto em silêncio, assim não a acordaria.

Ao entrar, coloquei minha mochila no chão e a sacola com os itens que

comprei na mesinha, depois me aproximei da cama, onde Lily estava

adormecida.

Minha vontade era me aproximar e beijá-la com a fome que eu estava

do seu cheiro, do seu gosto, de tudo dela. Porém, como não vinha dormindo

bem nos últimos dias, eu a deixaria descansar um pouco mais. Enquanto isso,

fui tomar banho, pensando que também precisava de um bom sono. Ficar

aqueles dias longe dela também não permitiu que eu dormisse bem, além de

toda tensão e correria. Esperava não ter que sair de casa tão cedo.

Assim que terminei o banho, coloquei um short e entrei no quarto,

enxugando meu cabelo.

― Samuel? ― Essa era a voz que eu mais adorava na vida.


Levantei a cabeça, deparando-me com minha menina linda vestida com

uma camiseta minha que batia em suas coxas torneadas. Os cabelos

amarrotados a tornavam ainda mais perfeita e sexy do que já era.

Ela correu para os meus braços. Peguei-a a tempo, apertando meus

braços ao seu redor e devorando sua boca. Enquanto isso, suas pernas se

envolveram ao meu redor. Levei uma das mãos aos seus cabelos. A outra

segurava sua bunda, firmando-a para que não caísse. Saboreava seus lábios

de modo faminto. Seu sabor era meu alimento. Com seu corpo quente contra

o meu, não pude controlar minha ereção, e Lily ainda não estava pronta para

isso.

― Não acredito que voltou! ― declarou nos meus lábios, após isso

afastou o rosto, seus olhos arregalados. ― Oh, meu Deus!

Achei que estivesse sentindo meu pau duro, embora eu tivesse feito de

tudo para deixá-la longe dele.

― Não escovei os dentes, devo estar com mau hálito. ― Ela parecia

realmente preocupada com isso, o que fez uma cor linda tingir suas
bochechas.

Relaxei e puxei sua cabeça para beijá-la de novo, mostrando que não

me importava.

― Seus lábios são a própria fonte do sabor de framboesa ― declarei.

Riu deliciada.

― Por que não me contou que viria hoje? Teria acordado antes.

― E correr o risco de não ter esse momento, com você se atirando em

meus braços? ― provoquei, beijando cada lado de sua bochecha. ― Queria

fazer uma surpresa e consegui. Essa cor em seu rosto é tão linda.

Escondeu a face no meu pescoço e inspirou fundo, apertando os braços

em meu pescoço.

― Senti sua falta demais ― admitiu.

― Eu também, você nem faz ideia ― assegurei, levando-a para a

cama e me sentando com ela ainda escanchada em mim. Arfou ao me sentir

duro. ― Não precisa temê-lo. Ele não vai a lugar nenhum até você estar

pronta.
― A forma como você fala é como se ele não pertencesse a você. ―

Olhou-me de lado.

Sorri, triscando seu nariz.

― Pertence, mas eu o controlo, não o contrário.

― Não ligo. Estava pensando, durante esses dias em que esteve longe,

que estou pronta. ― Ela parecia ter decorado essas palavras; ficou claro

pela forma como disse.

Virei-a, deitando-a de costas na cama e pairei em cima dela,

apossando-me de sua boca, saboreando cada gota do gosto que eu amava.

Suas pernas ainda estavam à minha volta. Mantive meu pau longe de seu

centro e tentei não me esfregar nela como um cachorro no cio. Sou mais

controlado que isso, pensei.

Adorava vê-la em meus braços, desmanchando-se de desejo. Era um

sacrifício ter que ir com calma, mas freei o beijo, ignorando seus protestos.

Foi até bonitinho vê-la assim.

― Estou pronta! ― assegurou com firmeza.


Sorri, dando mais um selinho em seus lábios, e me afastei.

― Samuel... ― Eu sabia que a insistência não era por ela estar louca

por sexo. Talvez estivesse um pouco, mas não era só isso. Liliane queria

tentar e saber se iria entrar em pânico. Para que isso não acontecesse, eu

precisava trabalhar com ela.

― Tenha calma, querida. Se lembra do que eu disse? Chegou a minha

vez de tentar do meu jeito. ― Sentei-me na cama.

― Me deixar ansiosa assim é o seu jeito? ― indagou ela, toda

vermelha.

Sorri e saí da cama, tentando manter meu controle. Era difícil, pois,

quanto mais a beijava, mais queria me enterrar dentro dela profundamente e

não sair tão cedo.

― Não, mas, antes de progredirmos e dar continuidade ao que

estávamos fazendo, pegue o meu presente para você. ― Indiquei a sacola.

Ela ficou de pé, olhando a embalagem, ainda com a respiração

irregular.
― Presente? ― Foi até a mesinha e abriu a sacola, pegando um dos

itens que comprei. Era uma lingerie vermelha. Arregalou os olhos para mim.

― Isso é...

― Uma lingerie sexy...

Ela me interrompeu:

― Eu sei, mas você quer que eu vista isto? ― questionou com a voz

falha.

Suspirei.

― Não me importo que use isso ou nada. Você é linda de todo jeito.

― Não entendo ― sussurrou.

― No fundo, entende, mas está com medo. ― Fui até ela e peguei sua

mão. ― Estive pensando. Sei que teme o sexo devido ao que aconteceu, mas

o que faremos não é nada comparado àquilo. Quero lhe mostrar o verdadeiro

prazer sexual.

― Para isso preciso usar isto? ― Levantou o tecido.


― Sim, pois sinto que não é só pelo que você passou que tem tanto

medo de eu vê-la nua. Se fosse, não sentiria prazer, não ficaria quente

quando digo que vou chupar sua boceta até matar a minha fome dela. ― Sua

respiração acelerou com minhas palavras. ― Viu? Em um lado de sua mente,

noto a luxúria, no outro, noto que passou a odiar seu corpo. Então pensei: se

você não o ama, como espera que eu o faça?

― Pensa que reluto um pouco por achar que não gostará do meu

corpo? ― Piscou.

― É uma teoria. Então vamos tentar lidar com isso para ir para o

próximo passo? ― Toquei seu rosto. ― Deseja tentar? ― Esperava que sim,

pois não podia forçá-la. Ela precisa querer aquilo. ― Lily, eu amo seu

corpo, assim como a amo. Desejo passar a língua e beijar cada centímetro

seu. ― Beijei seu rosto quente. ― Quero ouvir seus gemidos quando eu fizer

amor com você. Não faremos hoje, mas logo. Por ora, adoraria vê-la nessas

roupas.
Como falei, não era a roupa em si, mas sim ela confiar em si mesma,

que era bonita, que eu a via assim.

― Se não estiver pronta, podemos nos trocar e sair para passear. ―

Minha vontade não era sair, mas sim ficar com ela em meus braços para tirar

todo o seu medo e incerteza.

Ela arregalou os olhos.

― Então, se eu não vestir isto, não vamos tentar de outra forma? ―

inquiriu.

― Não, porque não irá resolver. Não quero que entre em pânico de

novo. Desejo vê-la se remexer de prazer. ― Coloquei a boca no lóbulo de

sua orelha, fazendo com que ela tremesse toda. ― Tão tentadora... Amo tudo

em você.

Após um segundo, afastei-me dela mesmo sem querer.

― Aonde vai? ― sondou Liliane assim que me viu dirigir-me à porta

do quarto.
― Vou lhe dar um tempo enquanto como alguma coisa. ― Não queria

comer nada, só oferecer um momento a ela para se decidir.

Lily assentiu enquanto eu saía do quarto. Provavelmente também sentia

que precisava de uns minutos.


Liliane

Acordar e encontrar Samuel foi o epítome da felicidade, um sonho que

povoava minha mente desde que ele foi viajar, então me derreti em sua boca

e braços. Uma parte de mim sentia que eu estava pronta. Fiquei feliz quando

ele retribuiu o carinho com o mesmo vigor. No entanto, tudo mudou após ele

me dar uma lingerie para eu usar.


O medo de ver meu corpo e as lembranças perturbadoras retornarem

era demais, embora fazia tempo que eu não sentia isso, desde que Samuel

começou a me ajudar a lidar com o trauma. Bem, cada dia eu sentia que era

uma vitória, então por que temer?

Fiquei parada por um momento no quarto após Samuel sair para me

dar tempo. Eu realmente precisava disso, assim ele não veria a minha

indecisão.

Seja forte, Liliane, pensei como um mantra. Não podia temer a tudo o

tempo todo.

Entrei no banheiro com a peça de renda vermelha nas mãos,

segurando-a com força. Confiava em Samuel, nas palavras dele quando dizia

que eu era bonita e que não havia nada a temer. Ele me deixava quente em

todos os lugares e, quando me olhava, era como se eu fosse a coisa mais

linda do mundo. Uma parte minha acreditava seriamente nele, mas outra, uma

pequena parte do meu cérebro, temia que estivesse apenas massageando meu

ego. Além disso, tinha medo de surtar quando ele me olhasse tão pouco
vestida. Sabia que era errado não gostar do próprio corpo, mas foi por causa

dele que me machucaram... Era uma luta com meu subconsciente.

Porém, não podia ceder a isso. Samuel era meu tudo, ajudou-me

inúmeras vezes, fez com que eu me apaixonasse perdidamente por ele. Eu era

mais forte que os demônios que queriam me destruir ainda mais do que

tentaram um dia.

O homem por quem me apaixonei é meu anjo perfeito. Ao seu lado,

supero tudo, entoei como um desafio à parte mais profunda e inacessível de

meu cérebro.

― Confie em si mesma, Liliane ― falei, respirando fundo enquanto

ainda apertava a peça vermelha. ― Ele te acha linda.

Depois dessas palavras, tirei minhas roupas e vesti a lingerie. Não

olhei para ver como ela ficou em meu corpo; temia que os meus nervos não

aguentassem.

― Isso, vai com tudo ― insisti decidida.


Antes de sair do banheiro, escovei os dentes e lavei o rosto, assim

ficaria ao menos mais apresentável. Enrolei a toalha firmemente à minha

volta e entrei no quarto com a minha respiração entrecortada. A cada passo,

sentia como se uma bola de chumbo esmagasse meus ombros, mas então

Samuel entrou no quarto, olhando-me com todo aquele amor e adoração, e

senti a insegurança diminuindo até ele chegar a mim.

Com ele ao meu lado, eu estava no céu, longe do inferno em que vivi e

para o qual nunca mais retornaria. Samuel, o meu anjo vestido de justiceiro,

era a minha redenção, a minha luz. A cada respiração que eu dava, confiava

nele e em suas palavras com a minha vida.

Samuel

Não desci, fiquei no corredor, escorado na parede e peguei meu

celular, configurando a câmera que eu tinha no meu quarto. Devia tê-la


checado quando estive fora, assim teria visto que Liliane estava dormindo

lá, mas a correria foi tanta que mal dormi.

A tela brilhou. Eu não ia espiá-la se trocando, isso seria invadir sua

privacidade; só queria saber o que ela estava fazendo. Por um bom momento,

Liliane permaneceu no mesmo lugar, encarando a peça em sua mão. No

entanto, não pude ver sua expressão. Seus ombros demonstravam que ela

respirava muito rápido.

Talvez não tivesse sido uma boa ideia. Não queria forçá-la a nada.

Quando eu a via assim, temerosa, receosa, uma fúria me dominava, fazendo-

me querer destroçar aqueles malditos. Era bom que em breve eu teria minha

chance com o que havia sobrado deles.

Estava a ponto de entrar no cômodo e dizer a ela que não íamos fazer

nada para o qual não estivesse pronta, que eu podia esperar o tempo que

fosse, mas Lily levantou a cabeça e aprumou os ombros, parecendo decidida,

e entrou no banheiro.
O meu peito doía por vê-la assim, sem poder ajudá-la. Se fosse por

mim, esperaria mais, mas ela insistia em “treinar”. Eu gostava de sua

tenacidade, de sua força de vontade de lutar contra os demônios que a

atormentavam.

Era uma lição para mim, afinal protelava lutar contra os meus havia

muito tempo. A perda dos meus irmãos e da minha mãe era uma questão

difícil de lidar, mas eu o faria, embora a culpa da morte deles nunca sumiria.

Logo eu diria tudo a Lily sobre aquele assunto. Se ela está conseguindo

enfrentar tudo, então também posso, pensei.

Respirei fundo, focando no instante, então a avistei saindo do

banheiro. Podia ver, pela alça da peça fora da toalha em torno do seu corpo,

que Liliane tinha se trocado.

Entrei no quarto novamente, fazendo barulho na porta para que ela

percebesse, e fui até perto dela, que me fitava com os olhos arregalados.

― Quer desistir agora? ― sondei, estendendo-lhe a mão e tentando

descobrir o que se passava em sua mente.


Ela mordeu o lábio inferior, mas notei sua expressão decidida. Isso era

bom.

― Não, quero ir até o fim ― afirmou. ― Vamos voltar ao treino

agora?

Sorri, puxando-a pela mão até um espelho de corpo inteiro que havia

num canto do quarto.

― Samuel... ― Parecia nervosa.

― A qualquer hora que quiser desistir, é só me dizer ― falei,

beijando suas pálpebras.

― Não quero, mas achei que fossemos treinar. ― Olhou para a cama.

Sorri, respirando o aroma delicioso de sua pele.

― Essa cor fica tão perfeita em você, assim como em suas bochechas

neste momento. ― Sua doçura e inocência me fascinava. ― Há um treino

antes de darmos o próximo passo, lembra?

Piscou, encontrando meus olhos.

― Qual?
― Fazer você amar seu corpo como eu. ― Apontei para o espelho. ―

Deseja dar esse passo?

Ela arfou, olhando para todo lugar, menos o espelho.

― Quer que eu me veja?! ― Sua voz se elevou. ― Achei que você

quisesse me ver!

― Não vai resolver eu ver a beleza dele, pois você não acreditaria se

eu dissesse o quanto é atraente e perfeita. Precisa ver por si mesma e se

adorar.

Ela ficou em silêncio.

― Feche os olhos, Raio de Sol ― pedi, tentando outro método. Não

era um psicólogo, mas tinha aprendido algumas coisas com Bonnie durante

seus anos de profissão.

Liliane, como sempre, fez o que pedi. Em outro momento, eu teria

adorado sua submissão no quarto, mas esse não era o caminho agora; meu

objetivo era outro.


Posicionei-me atrás dela diante do espelho e levei minhas mãos à

toalha, que ela segurava como se fosse um bote salva-vidas.

― Confia em mim? ― perguntei em seu ouvido, fazendo-a tremer.

― Sim, com tudo que há em mim. ― Ela arfava. Ao menos não senti

medo em sua voz, só ansiedade e certo receio. Pela gravação em que os

infelizes a forçavam, eles a menosprezavam com palavras de baixo calão,

por isso ela não se via como era e talvez sentisse medo de que eu pensasse a

mesma coisa que eles quando olhasse seu corpo. Tentei não pensar mais

nisso, ou minha fúria estragaria aquele momento lindo. Agradecia por não

ver pavor em sua expressão, ainda que seus olhos ainda estivessem

fechados. Isso me aliviou um pouco.

― Então solte a tolha ― pedi calmamente.

Ela respirou fundo e assentiu, soltando-a. Vi a peça de tecido cair no

chão, mas não apreciei seu corpo no mesmo instante. Queria admirá-lo

quando ela estivesse fazendo o mesmo.

Suas mãos ficaram ao lado do corpo, mas ela não abriu os olhos.
― Sabe o que eu vejo? ― sussurrei, arrastando minha voz, tornando-a

mais sensual. ― Uma deusa da perfeição. Sabe o que mais?

Sacudiu a cabeça com a respiração irregular, mas não era medo, então

continuei, pois minhas palavras estavam mexendo com ela da forma que eu

queria:

― Responda. Sabe o que mais estou vendo ao olhar para você?

― Não...

― O que você sente quando olha para o sol? ― Mudei a pergunta.

― Um esplendor. Que é a coisa mais linda feita por Deus. ― Inspirou

fundo.

Sorri beijando a sua cabeça e encarando no espelho o rosto da mulher

à minha frente.

― Pois para mim você é a coisa mais esplendorosa que Ele pode ter

criado ― confidenciei. ― Nunca duvide disso, Raio de Sol. Ou não acredita

em mim? Acha que estou mentindo? ― Deixei meu tom sair magoado no

final. Sabia que isso ia chamar sua atenção.


Seus olhos se abriram, encontrando os meus no espelho.

― Confio em você! ― declarou com fervor.

― Então olhe para a mulher nesse espelho e me diga se ela não é a

personificação da beleza? ― Meus olhos foram atraídos para a parte

superior da lingerie, de onde descia uma faixa de renda que prendia a parte

de cima à de baixo, deixando as laterais da barriga expostas. ― Essa é a

mulher por quem eu vivo, mato e morro.

Ela arregalou os olhos.

― Não quero nem imaginar você ficando ferido ou pior, morrendo! ―

Sua voz se elevou, toldada de preocupação.

― Nada irá acontecer ― prometi, embora não pudesse afirmar isso

com todas as letras. Morrer era sempre um risco no meu ramo de “trabalho”,

mas não ia dizer isso a ela.

Lily assentiu e respirou fundo, enfim encontrando primeiramente seu

rosto no reflexo, depois descendo o olhar pelo corpo. Quanto mais baixo

olhava, mais tensa ficava.


― Esse é o meu anjo, que veio para transformar as minhas trevas em

luz ― anunciei, alisando sua barriga e a fazendo prender a respiração por

um segundo. ― A mulher que tem meu coração negro e minha alma, se eu

tiver uma alma.

― Seu coração não é negro, e, sim, você tem uma alma ― ela

asseverou, erguendo os olhos para me observar, mas não deixei.

― Mantenha os olhos em seu belo corpo e veja o quanto cada

pedacinho seu é deslumbrante. Sinta o quanto eu a desejo e a amo. ―

Pressionei as mãos em seu ventre, fazendo com que ela encostasse a bunda

no meu pau duro e as costas em meu peito.

Arfou.

― Este é o meu desejo, não só pelo seu corpo, mas por sua alma

também, por tudo em você. ― Beijei seu pescoço. ― Acredita que a almejo

mais do que o ar que respiro?

Assentiu.
― Fale. Quero ouvir a sua voz. ― Precisava saber o que estava

acontecendo em sua cabeça.

― Sim, acredito ― assegurou com confiança.

― Ótimo! Agora vamos fazer o seguinte: todos os dias, ficará um

tempo dessa forma durante o espelho, admirando-se. Depois o segundo

passo é ficar nua ― anunciei e acrescentei quando seus olhos se abriram

ainda mais: ― Não preciso estar presente nessa hora, isso é com você. Faça

isso até colocar nessa cabecinha linda que você é perfeita, que é tudo que

amo.

Seus olhos brilharam ao encontrar os meus.

― Preferia que estivesse comigo ― declarou. ― Gosto do seu toque e

de suas palavras tranquilizadoras, faz todo receio e medo irem embora. Ao

seu lado, creio que passarei por isso, assim como passei pelos outros

empecilhos para chegar até aqui.

― Obrigado, linda. ― Beijei sua cabeça. ― Vamos passar por essa

etapa primeiro. Pode passar a dormir comigo vestida assim.


Ela piscou.

― Nua?

― Se quiser, pode também. ― Sorri. Seria difícil dormir à noite com

ela despida ou vestida com tão pouco.

― Você consegue lidar com isso? ― Avaliava-me.

Estreitei os olhos.

― Jamais faria algo se não estivesse pronta. ― Fiquei tenso,

pensando se Liliane achava que eu a tocaria contra sua vontade.

― Não disse isso, sei que não faria ― afirmou. ― É só que será

difícil ignorar esse desejo explodindo dentro de nós, embora eu ache que

você é controlado demais. Não sei se posso dizer o mesmo de mim.

Sorri com sua declaração.

― Isso é bom, não é? Significa que me deseja.

Ela bufou.
― Creio que todas as mulheres o desejam ― comentou com tom

enciumado.

― A única que quero me desejando é você! ― declarei com fervor. ―

Fique parada. Quero te mostrar uma coisa. Enquanto isso, continue

contemplando essa perfeição à sua frente.

A menina tinha o corpo mais perfeito que eu já tinha visto, tudo no

lugar certo, bunda empinada, cintura estreita, seios do tamanho ideal para

mim. Respirei fundo, controlando meu pau diante dessa imagem. Não era

hora para isso.

Afastei-me, peguei o que queria e voltei para o seu lado, estendendo a

peça para ela.

― Uma coisa para colocar em sua pulseira.

― Nossa, é tão lindo... ― sussurrou, admirando o pingente formado

por um diamante amarelo na forma de um sol e uma opala no formato de uma

lua crescente. ― Brilha tanto...

― Sim, o sol e a lua brilhantes, assim como você.


Ela se virou e me abraçou.

― Quando acho que não é possível te amar mais do que já amo, você

faz isso... ― Colocou a mão em meu peito. ― O meu amor ultrapassa o

Universo inteiro.

Meu peito inchou de felicidade.

― O meu também é infinito.

Colei meus lábios aos dela para provar o quanto a venerava e a amava

mais que tudo no mundo.


Liliane

Durante as últimas semanas, eu estava completamente feliz. O meu

treino com minha própria imagem estava indo bem. A cada dia eu sentia que

uma camada de incerteza e medo ia caindo por terra. Entendia o que Samuel

estava tentando fazer. Queria que eu confiasse nele com meu corpo. Eu já o

fazia, mas existia aquela parte do meu cérebro que resistia. Porém, a cada

noite eu sentia a barreira se dissipando.


― Não fique nervosa ― pediu Samuel, tirando-me dos meus

devaneios.

― Não estou... ― disse, embora estivesse um pouco. Estava ansiosa

porque finalmente veria Zaira, uma mulher que me ajudou tanto naquele lugar

horrível. Ela era uma luz lá dentro para mim e, eu apostava, para as outras

meninas também.

― Ela também está ansiosa por vê-la. ― Ele me puxou para a sala,

onde dona Zaira estava conversando com Bonnie. Vovó tinha saído havia

pouco tempo.

Assim que viramos o pequeno corredor, dona Zaira me olhou. Quando

a vi, meu coração se aqueceu por dentro. Estava com tantas saudades dela!

― Oh, minha menina! Sinto tanto por não ter protegido você... ― Sua

voz se quebrou.

Corri e a abracei forte, saboreando aquele momento.

― Vamos deixar vocês sozinhas ― disse Samuel à meia-voz.


Assenti, então tanto ele quanto Bonnie saíram, deixando-me a sós com

a mulher que me protegeu.

― Sinto muito! ― ela chorava enquanto se desculpava.

Afastei-me um pouco para olhar seu rosto.

― Não foi sua culpa. Jamais pense isso. ― Os únicos culpados eram

aqueles monstros que machucaram não só a mim, mas inúmeras garotas.

Peguei sua mão, e nos sentamos no sofá.

― Você me ajudou muito naquele lugar, mais do que era sua

obrigação. Aliás, sua função não era se preocupar com nenhuma de nós.

Mesmo assim, estava lá, nos ajudando a não enlouquecer ou temer o que

viesse.

Ela suspirou.

― Deus me perdoe, mas Lorenzo não merece viver. Creio que o que

ele está passando agora seja castigo devido a toda a crueldade que fez. ―

Sacudiu a cabeça.
― O importante agora é vivermos nossas vidas. Não quero deixar o

passado tomar conta de mim e da minha vida. ― Eu tinha lutado muito para

chegar aonde estava e acreditava que estaria ainda melhor com o tempo.

Ela me olhava com um semblante reluzente, provavelmente pela

veemência em minha voz.

― Fico feliz pelo menino Samuel cuidar de você tão bem. Rezei tanto

a Deus por isso, por você, pelas outras meninas, até pelas que não

conseguiram sair de lá.

Seu semblante ficou triste com a menção às meninas que tiveram suas

vidas ceifadas naquele antro abominável.

― Também rezo por elas ― sussurrei. ― É tanta injustiça no mundo

que me dá raiva às vezes.

― Lorenzo fez toda aquela atrocidade para venerar a filha que

pensava estar morta. ― Cerrou os punhos. ― Um louco de pedra. Se ele não

fosse líder de uma máfia poderosa, estaria num hospício há muito tempo, de

preferência antes de fazer todas essas atrocidades.


Como não podíamos mudar o passado, devíamos seguir em frente. Era

melhor do que ficar remoendo todo aquele sofrimento.

― Muitas meninas perderam sua vida de forma cruel por algo que não

aconteceu ― ela continuou e suspirou. ― Minha Dalila está viva e bem,

graças a Deus.

― Viva? ― indaguei, surpresa.

― Sim. A mãe dela, Giulia, antes de morrer, a deixou com outra

família e forjou a morte da menina para ela não ter de retornar ao mundo da

máfia, para que tivesse uma vida longe de tudo isso. ― Sua voz soou baixa.

― Na época, Dalila tinha dez anos e estava na idade de se casar, de acordo

com a lei da máfia Salvatore. Giulia não aceitava isso.

O som que saiu de minha garganta era uma mistura de pesar e repulsa.

― O menino Matteo mudou essa lei. Graças aos Céus, sua bondade é

infinita. ― Tinha muito carinho em sua voz ao falar sobre ele e Dalila.

― Queria conhecê-lo e lhe agradecer por ter me salvado, mas Samuel

disse que eu esperasse um pouco, pois as coisas estão meio tensas no


momento.

― Dalila retornou, e as coisas não estão nada bem...

― Achei que ele estivesse feliz por ela estar bem. ― Franzi a testa.

― Não é isso, é que ela está namorando Nikolai Dragon. ― Então ela

narrou que a mãe de Dalila não só forjou a morte da filha, mas colocou a

culpa nos Dragons. Como vingança, Lorenzo matou os pais de Nikolai,

Alexei e Irina, a mulher por quem Matteo tinha se apaixonado.

Então Nikolai estava com Dalila, e Irina com Matteo? Isso devia ser

obra do destino, unindo-os após tanto sofrimento, afinal nenhum deles tinha

culpa pelos erros dos pais.

― Os pais dos meninos Dragons morreram por algo que não

aconteceu, assim como as meninas na fazenda. Todos eram inocentes. ― O

mundo era muito injusto. Ainda bem que havia também muita bondade,

pessoas como dona Zaira, Matteo, Samuel, vovó, Bonnie, que cuidaram de

mim e me ajudaram. Com mais pessoas assim, eu esperava que um dia nosso

mundo melhorasse.
― Verdade, menina. Espero que tudo se resolva. ― Suspirei, e ela

sorriu para mim. ― Estou tão feliz por você estar bem. Queria ter vindo

antes, mas estava arrumando coragem.

Franzi o cenho.

― Coragem?

― Achei que me culpava por não a ter ajudado ― sussurrou, cheia de

remorso.

― Não tinha como você ter feito nada, era uma prisioneira lá. ― Era

verdade, eu não a culpava.

Ficamos o restante da tarde conversando sobre as minhas superações,

as dela, o meu processo de cura, não só físico, como também mental. Em

vários momentos nós duas choramos e nos abraçamos. Ficamos de nos

encontrar mais vezes, e eu estava contando com isso.

Para minha felicidade ser completa, só estava faltando resolver a

questão do meu passado, quem havia vendido a mim e meu irmão, assim ele

poderia seguir em frente. E, claro, ser completa para o Samuel.


Até aquele momento, Andreas não tinha dado sinal de vida, nem

sequer telefonado, e passei a me preocupar, mas Samuel me garantiu que ele

estava bem.

Não contei sobre o meu irmão a Zaira. Samuel disse que, por

enquanto, quanto menos pessoas soubessem, melhor. Eu esperava que logo

tudo isso se resolvesse e eu pudesse passar uma borracha no passado ou ao

menos seguir em frente.

Seria um sonho toda essa dor ficar para trás, mas ainda restavam as

lembranças que eu não conseguia rememorar por completo. Sentia que

faltava algo. Mesmo se recordar tudo me levasse a um poço de dor, ainda

assim preferia.

― O que tanto pensa? ― Samuel sondou, tirando-me dos meus

pensamentos. Abraçou-me por trás, enquanto eu olhava a janela sem nada

ver.

Não sabia havia quanto tempo estava ali após Zaira partir, mas devia

ser muito, pois estava escuro lá fora.


― Sabe quando a gente está tão feliz que parece que a qualquer

momento tudo se dissipará e vamos acordar, pois não é real? Sinto isso às

vezes. ― Encolhi-me com essa possibilidade.

― Pare de pensar nisso. Hoje é um dia para ser apreciado, aliás,

todos os dias ao seu lado são ― comentou ao meu ouvido, abaixando a voz,

o que me fez arrepiar. ― Se saiu muito bem essas semanas. É hora de

darmos o próximo passo.

Com “próximos passos”, deduzi que estivesse falando sobre nossos

treinos, algo que eu ansiava muito.

― Vejo que pensa nisso. ― Ouvi o sorriso em sua voz.

Afastei-me e encontrei seus olhos.

― E você não?

― Nesse treino, a única que se beneficiará será você.

Franzi a testa.

― Por que você não será beneficiado também? Não quer o mesmo? ―

Meu peito se apertou com esse pensamento.


Seu sorriso lindo sumiu ao ver a minha expressão.

― Esse treino não é o mesmo que tem em mente, é outro, com

brinquedos que vão lhe dar prazer ― declarou com uma voz calma, que não

combinava com sua expressão.

― Brinquedos? ― Tentei imaginar como eram, mas não tive êxito.

― Sim. Eles são prazerosos e lhe mostrarão uma parte do sexo que

você não conhece e espero que ame. ― Beijou meu rosto. ― Depois deles,

aí vamos ao que você pensou.

― Estou pronta. Por que não treinamos isso também? ― inquiri.

Ele sorriu, o que afastou aquela sombra de sua expressão.

― Vai gostar desse treino também, pode confiar, mas, para isso,

precisamos ir agora. ― Ele me puxou até a porta de casa.

― Aonde vamos? ― sondei curiosa.

― A um lugar onde possamos ficar sozinhos ― sussurrou antes de

chegar ao carro. ― Onde eu possa ouvi-la gritar meu nome no ápice do

prazer.
Um tremor passou pelo meu corpo, deixando-me molhada. Um mero

toque ou palavra dele me deixava fervendo, por isso acreditava que estava

pronta para dar esse grande passo.

― Precisamos avisar Bonnie...

Interrompeu-me:

― Já foi avisada.

― O que disse a ela? ― Corei enquanto entrava em seu carro.

― Falei que ia passear com minha garota e ter uma noite agradável. ―

Sorriu torto assim que entrou e ligou o carro.

Ele saiu de Evanston e pegou a estrada para Chicago. Já tínhamos ido

para lá algumas vezes, e eu gostava daquela cidade e de estar ao lado dele.

― Então não vamos ficar em Evanston? ― Comecei a balançar a

perna em um gesto ansioso.

― Não. ― Colocou uma de suas mãos no meu joelho, parando o

movimento. ― Está com medo?


― Não. Seu toque nunca me traz dor ou medo, ele me faz sentir como

se estivesse em uma fornalha. ― Minha voz saiu rouca.

― É bom saber que eu te deixo quente e molhada. ― Ele começou a

fazer círculos com os dedos em minha coxa. ― Sua boceta está molhada

para mim, não está?

Suas palavras sujas me fizeram remexer no banco.

― Sim, está... ― Ofegava pelas carícias de seus dedos em minha pele.

― Bom. ― Ele parecia deliciado. Um fogo ardia em seus olhos.

― Mantenha os olhos na estrada ― pedi, pois ele me observava a

cada minuto.

Sorriu, mas direcionou sua atenção para a frente.

― É bom que esteja molhada. Vai ajudar ainda mais no treino que

faremos. ― Sua voz soou tão rouca quanto a minha.

― Que tipo de coisa, se não é aquilo que mencionou antes? ― Corei e

olhei para sua boca, imaginando o que ele disse naquele dia que ia fazer com

ela...
― Não acontecerá hoje o que está em seu pensamento, mas em breve

vou usar minha língua entre suas pernas, degustar desse sabor, provar se tem

o gosto de cereja de seus lábios. ― Aproximou-se e me deu um selinho,

depois se afastou e encarou a estrada, deixando-me ali, necessitada de mais

do seu toque.

― Falou em brinquedos; que tipo? ― Estava curiosa quanto a isso,

mas, pela sua expressão, não achava que me diria.

― Brinquedos que vão deixá-la quente e farão você gozar. Só não são

tão bons quanto a minha língua e meus lábios sugando seu broto molhado.

― Você escondeu tudo isso de mim, essas palavras sujas. Não sabia

que falava assim ― assinalei.

― Se eu tivesse dito, não estaríamos tendo essa conversa, pois você

teria fugido de mim. Agora está pronta. ― Deu um sorriso torto e lindo.

― Sim, tem razão. Não estava pronta antes. ― Suspirei. ― Você me

esperou por muito tempo. Muitos teriam desistido e partido para outra.
― Desistir não faz parte do meu vocabulário ― disse sério. ― Além

disso, quem ama de verdade espera o tempo que for. Fui o que você

precisava até hoje e sempre serei.

― Onde pensa em estar daqui a alguns anos? ― sondei.

― Casado com você, tendo uma vida ao seu lado, dando tudo que

você precisa. ― Enquanto falava, continuava fazendo círculos com os dedos

em minha pele, deixando-me elétrica.

― Pensa em se casar? ― Pisquei.

― Não quer fazer isso comigo algum dia? ― Tinha uma nuance em sua

voz que não entendi. Seria preocupação com a minha resposta? Ele não

necessitava disso, eu era toda dele agora e sempre.

― Me casaria com você agora se assim quisesse ― afirmei.

― Podemos ir para Vegas. ― Sorriu.

― Vegas? Essa não é a Cidade do Pecado, onde muitos se casam por

diversão? Li sobre ela uma vez, mas, quando eu me casar, quero algo

diferente ― sussurrei.
― Lily, eu estava brincando. ― Sua expressão ficou séria.

Sobre as duas coisas? Casar-se em Vegas ou o casamento em si? Eu

não me importava com a primeira, mas com a outra, sim.

― Quando eu me casar com você, será da forma que você sonhar.

Tudo será do seu gosto ― continuou ele.

Suspirei aliviada, mas, antes de pensar sobre o futuro, queria ser

completa para ele e para mim.

― Obrigada. ― Coloquei minha mão sobre a sua e a apertei,

agradecida.

― De nada. ― Sorriu e ficou em silêncio por um tempo. ― Mas estou

curioso. Quando formos nos casar, como gostaria que acontecesse?

― Não pensei muito à frente, mas quero meus amigos, minha família

assistindo... e você esperando por mim no altar. Não preciso de mais nada.

― Sua família?

― Espero que, até lá, eu conheça meus irmãos e que você e eles se

deem bem. ― Estava ansiosa por isso.


― Estou me dando bem com Andreas. Com os outros, preciso

primeiro saber se estão ou não aliados ao tio, assim como Sergey deve estar.

― Qual o nome dos outros? ― Como eu podia ter me esquecido

deles? Da minha família?

― Demyan, Kostya e Misha...

― Misha... ― Levei a mão à cabeça, sentindo uma pontada, então logo

veio mais uma recordação do menino de olhos claros. Fechei os meus olhos,

respirando de modo irregular.

― Não pode me proteger para sempre, Misha ― falei, lutando com

ele durante o treino.

― Claro que posso. Você é metade de mim, mas sou mais velho que

você. ― Sorriu com orgulho.

― Cinco minutos de diferença ― apontei.

― Não importa, eu sou um homem e a protegerei com a minha vida

se for preciso ― frisou com veemência.

― Eu te amo, maninho ― declarei.


― Eu também te amo, mais que a mim mesmo! ― afirmou com

convicção e ferocidade.

Sorriu para mim com os olhos tão brilhantes que fez meu coração

aquecer ainda mais.

― Lily ― chamou Samuel com preocupação. ― Está passando mal?

Pisquei, saindo das minhas lembranças.

― Misha e eu somos gêmeos? ― indaguei com a voz fraca.

― Lembrou-se disso?

Olhei para ele, que me avaliava.

― Sabia disso? ― perguntei, então assentiu. Continuei, magoada: ―

Por que não me contou?

― Foi uma das lembranças que você esqueceu naquele dia. Na hora,

eu estava mais preocupado com você, porém, tem razão, era para eu ter dito

antes, mas temia que, se dissesse, você fosse à sua procura. Isso pode ser

perigoso. ― Sua expressão era séria, assim como seu tom. ― Peço

desculpas por lhe ocultar algo assim. Prometo que não farei de novo.
Não fiquei com raiva dele, pois no fundo entendia sua preocupação

após o meu surto, mas agora eu estava melhor e estaria ainda mais logo.

― Misha e eu éramos tão ligados... A forma como meu coração

acelerava quando ele sorria para mim... Eu o amava demais. ― Esperava um

dia poder lembrar-me totalmente desse sentimento, além de outras memórias.

― Dizem que gêmeos tem esse tipo de ligação ― Samuel comentou.

Já tinha ouvido falar sobre isso em algum lugar.

― O que ele não deve ter sentido quando fui vendida? Quando

desapareci do mapa? A minha mãe... O que ela não deve ter passado com

minha ausência? ― Cortava meu coração imaginar isso.

― Seja quem for o culpado disso tudo pagará caro ― garantiu

Samuel.

Eu confiava que ele faria mesmo isso, embora não mudaria nada, pois

não me traria de volta tudo que perdi nem desvaneceria todo o sofrimento

que passei.
Liliane

Samuel parou o carro em frente a um edifício enorme e me disse que

era onde ficava seu apartamento em Chicago.

― Antes de subir, podemos jantar primeiro ― disse ele.

Olhei-o e vi preocupação com meu silêncio.

― Estou bem ― garanti.


Uma parte de mim estava faltando, minhas memórias, e era essa a

razão do meu silêncio e de meus pensamentos dispersos, mas não ia pensar

nisso agora; naquele momento, eu tinha Samuel, e bastava; um dia seria

completa novamente.

― Eu sei, mesmo assim vamos jantar. ― Ligou o carro e tornou a

dirigir, indo para uma zona mais movimentada.

― Samuel...

― Querida, se não estiver pronta para ficar no meio das pessoas,

podemos ir a um restaurante mais sossegado, sem tanto movimento ― falou,

olhando-me de lado.

Não era por isso que eu estava hesitante, mas sim por pensar que ele

achava que eu estava passando mal. Não estava, só fiquei pensativa um

momento em razão de tudo que perdi, porém, agora não era hora para isso;

focaria em Samuel, o homem que havia me ensinado o que era felicidade.

― Pode ser qualquer um, não ligo mais para a presença das pessoas,

posso lidar com isso. ― Esperava mesmo que sim.


― Sei do lugar certo para irmos. ― Virou uma esquina, e seguimos

mais alguns quilômetros pela rua movimentada.

Eu estava ansiosa pelo nosso treino, mas sair com Samuel também era

muito bom.

Não passou muito tempo até que ele estacionou diante de outro

edifício maior que o anterior, rodeado por paredes de vidro, o que dava uma

beleza a mais. Saiu do carro, abriu a porta para mim e pegou minha mão.

― Não fique nervosa, estou aqui. ― Passou o braço pela minha

cintura.

― Não estou ― admiti, olhando o prédio. ― O lugar é lindo.

― Fala isso porque não viu a vista lá de cima. ― Ele me levou a um

elevador. Eu nunca tinha estado em um, não que me lembrasse.

Alguns minutos depois, chegamos a um restaurante elegante, mas não

foi isso que chamou minha atenção, e sim a vista das paredes de vidro: dava

para apreciar a cidade toda.


― Uau! É mágico aqui ― sussurrei espantada. Se a visão era assim à

noite, como seria durante o dia?

― Sabia que você ia gostar ― disse com um meio sorriso.

Uma moça se aproximou de nós.

― Boa noite. A reserva está no nome de quem?

― Não temos ― respondeu ele.

― Sinto muito. Sem reserva, não posso fazer nada, pois não temos

mais vagas... ― Ela se interrompeu ao olhar para Samuel e engoliu em seco

ante sua expressão fechada.

― Chame Leonel, diga que Samuel Mancini está aqui. ― Foi tudo que

ele falou.

― Samuel Mancini? ― A jovem piscou. ― Desculpe, senhor, sou

nova aqui e não o conhecia pessoalmente.

Franzi a testa para os dois e percebi que a jovem estava nervosa.

― Não tem problemas, só me arrume uma mesa na sacada, por favor.

― Indicou o local.
Samuel não era rude com os outros, só não era espontâneo como era

comigo, vovó e Bonnie. No geral, com os outros ele era muito sério.

― Sim, claro, por aqui. ― A moça seguiu à frente e nos levou ao local

indicado. ― Fique à vontade. Chamarei o garçom para que façam seus

pedidos.

― Obrigada ― agradeci, enquanto Samuel só balançou a cabeça, não

tirando os olhos de mim.

Ela saiu, deixando-nos sozinhos.

― Bem que você disse que eu ia gostar. É uma vista esplendorosa ―

comentei, observando a cidade iluminada e depois a ele. ― Conhece o

dono? Parece ser um lugar bem procurado.

― Sim ― respondeu sorrindo. ― Sou eu.

Arregalei os olhos.

― O dono?

― Sim, não só do restaurante, mas de todo o prédio. ― Deu de

ombros.
― É lindo! Então por que vovó não vem cozinhar aqui?

― É russo, e a especialidade dela é comida italiana, originária de

nossa terra. Minha vó não pensa em fazer outra coisa.

― Adoro comida italiana.

― Eu sei. ― Sorriu. ― Vamos ver o que acha de comida russa? ―

Olhou o cardápio. ― Solyanka é uma sopa picante e cremosa. Quer

experimentar?

― Adoro coisas apimentadas. ― Sorri.

Seus olhos ficaram mais escuros.

― Estou contando com isso. ― Pela forma como disse, enrolando a

língua, não parecia estar falando de comida.

Fechei minhas pernas, tentando controlar o desejo.

― Vou adorar experimentar. ― Finalmente fiz minha voz sair, embora

fraca.

Ele sorriu, então fez nossos pedidos.


― Quantos imóveis você tem? ― perguntei curiosa.

O restaurante estava começando a encher, e isso estava me deixando

um pouco nervosa, então era melhor conversar.

― Está segura aqui comigo. ― Esse homem me conhecia tão bem.

― Sim, eu sei. ― Respirei fundo. Será que esse medo um dia se

dissipará?, pensei.

O jantar finalmente chegou, e logo provei. Era melhor comer a pensar

no que eu não devia.

― Hummm... Isso é uma delícia! ― exclamei ao saborear a comida.

Ele sorriu.

― Sabia que ia gostar... ― Seu sorriso lindo morreu ao encarar algo

atrás de mim. Praguejou em italiano.

― Samuel? ― Virei a cabeça para checar o que o havia incomodado.

Um jovem vinha em nossa direção. Usava jaqueta de couro aberta

mostrando uma camisa preta. Tinha uma corrente grossa no pescoço e uma

barba leve e parecia ser jovem, mais ou menos da minha idade, porém, o
rosto era duro, como se fosse esculpido em gelo ou pedra. Seus olhos eram

órbitas negras, apesar de serem azul-claros.

Samuel olhou ao redor, notando o estabelecimento lotado. Pela forma

como reagia, queria estar em qualquer lugar, menos ali.

O rapaz tinha como foco Samuel, pois não desviou o olhar dele um

segundo.

Fiquei tensa, temendo que fosse algum inimigo. Encontrei os olhos

frios de Samuel. Sua expressão também era pétrea.

― Samuel? ― chamei de novo, preocupada que houvesse uma luta ali.

Antes que ele respondesse, ouvi a voz do jovem.

― Posso me juntar a vocês?

― Não. É melhor ir embora ― rosnou Samuel.

O rapaz o ignorou e se sentou entre mim e ele.

― Não queremos escândalo, e não estou a fim de matar alguém agora

― falou com um sorriso sinistro.


Algo piscou em minha mente, mas não o bastante para reconhecê-lo.

― Pode acreditar, isso é um milagre vindo dele ― disse uma voz um

pouco mais forte, porém, tão fria quanto. Isso me fez sobressaltar, mas não

me movi.

O rapaz que chegou tinha cabelos longos amarrados em um rabo de

cavalo e barba mais cheia. Os dois se pareciam, então supus que fossem

parentes, talvez irmãos.

― Moor? ― sondou Samuel, trincando os dentes.

― Inconsciente. Acordará com uma baita dor de cabeça, mas viverá,

não se preocupe ― respondeu o de cabelos compridos. Sua expressão era

fria, assim como a de Samuel.

Minhas mãos tremiam no meu colo, mas eu não ia surtar. Não posso

viver assim, não se queria ser a mulher que tanto Samuel quanto eu mesma

precisávamos. Se aqueles rapazes eram mafiosos, eu tinha de lidar com o

que quer que atingisse meu namorado. Sou forte para isso, pensei.
― Devia ter mais vigias ao invés de só um ― o de olhos claros falou.

Ainda bem que não tinha me olhado nenhuma vez.

― O que vocês querem? ― rosnou Samuel e depois começou a falar

em russo. Não entendi nada, mas pelo tom das palavras a conversa não era

amistosa. Ele conversava com o de olhos claros, enquanto o cabeludo ficou

de pé e de braços cruzados.

― Acho que vocês dois estão deixando a moça aqui confusa ― disse

ele, olhando-me de lado, mas minha atenção estava em Samuel.

Meu namorado encontrou meus olhos e deu um suspiro pesado.

― Vão embora. Eu entro em contato. ― Pela forma como falou,

parecia que ia fazer mais do que aquilo.

O de olhos claros riu, mas seu riso pareceu mais o rugido de um leão e

me provocou um arrepio na espinha.

― Isso não vai acontecer. Vamos conversar agora. ― A mão dele veio

em minha direção, como se fosse me tocar. Afastei-me, mas o outro segurou

meu ombro, mantendo-me no lugar.


Congelei e tentei manter o controle, mas o medo prevaleceu. Tudo em

minha frente se desfez, não pude mais manter o pavor trancafiado, saiu como

uma avalanche, fazendo-me pular da cadeira.

Ouvi o barulho de algo caindo, sons de vozes, gemidos. Foi só então

que notei que era eu quem os fazia.

― Liliane, meu anjo, sou eu... ― Essa era única voz capaz de me tirar

do abismo em que me encontrava.

Achei que tivesse superado o toque de pessoas desconhecidas, mas,

pelo visto, não tinha. Eu tremia nos braços do meu namorado. Pisquei,

encontrando seus olhos. Eles me deixaram mais calma, bem como seu cheiro

inebriante.

― Não há perigo. Confia em mim? ― perguntou com amor em seus

olhos e acariciou meu rosto.

― Com a minha vida ― finalmente disse, ainda um pouco ofegante e

com o coração batendo rápido.


― Não pode ser! ― ouvi a voz do rapaz de olhos claros. ― Esse

gemido de medo...

― Não é o momento... ― começou Samuel.

― Porra, eu conheceria esse gemido mesmo se eu estivesse

queimando na porra do inferno! ― rosnou o cara. ― Liliane, é você?

Enfim eu estava mais controlada ao encontrar os olhos atormentados

do jovem.

Estava confusa. Aqueles rapazes me conheciam? Antes de eu

responder, notei a cadeira caída no chão e as pessoas nos olhando.

― Desculpe. Eu fiz isso? ― Estava com raiva por ter surtado assim.

― Não se preocupe, Raio de Sol. ― Samuel encontrou meus olhos. ―

Vamos embora. ― Depois se virou para os dois. ― Vocês me sigam para

falarmos em outro lugar.

Virei a cabeça, encontrando finalmente o de olhos claros. Antes, seu

olhar estava duro, mas agora a dureza ia dando espaço a um tormento vivo.

Esse olhar... era tão familiar, igual ao do menino das minhas lembranças.
Como não tinha visto isso antes? Talvez sua expressão brutal tivesse

impedido que, no primeiro momento, eu visse a familiaridade que via agora.

Aquele olhar...

― Misha? ― indaguei.

― Sim, sou eu. ― Ele parecia espantado, como se tivesse visto um

fantasma. ― Como é possível?!

Antes que eu respondesse, Samuel me puxou dali.

― Aqui não é o lugar, as pessoas estão olhando, e não quero chamar

atenção ― interveio. ― Vamos para a cobertura. Lá falaremos com mais

calma.

Todos seguimos Samuel no elevador. Não demorou muito para

estarmos em uma cobertura com uma bela vista, mas não notei ao redor,

focada em meus irmãos ali comigo. Finalmente estava conhecendo-os, não

da maneira que gostaria, mas ainda assim era bom.

Misha ficou de pé, enquanto Samuel me puxou para um sofá, onde

fiquei de frente para os dois.


― Se lembra dele? ― sondou Samuel.

― Os olhos são do menino das minhas lembranças ― respondi, ainda

chocada por estar em sua presença.

― Como? ― Sua expressão parecia chocada.

― Acreditávamos que estivesse morta. ― A voz do cabeludo falhou.

― Nunca aceitei isso. ― Misha deu um passo em minha direção, mas

fiquei tensa. Foi mais por hábito do que outra coisa. Ele se deteve, notando

minha reação. ― Está com medo de mim!?

― Não ― respondi.

Seus olhos se estreitaram ao me avaliar. Ele parecia tão bom em ler as

pessoas como Samuel.

― Você está. ― A dor tomou conta de sua expressão, então ele se

virou, encarando a vidraça, provavelmente para eu não avistar mais o

tormento em seu olhar.

O meu peito doeu ao ver que minha reação o machucou. Levantei-me,

dando um passo até ele, mas parei.


― É complicado. As vezes não consigo ter controle do meu corpo ―

sussurrei, dizendo isso ao meu cérebro e a eles. ― Por saber quem você é,

não tenho mais medo. Eu reagia assim a Andreas, mas já não faço mais ―

pronunciei, tentando fazê-lo se virar para mim.

Os dois irmãos arfaram em sincronia e me olharam.

― Andreas? ― indagou o de cabelo comprido.

― Ele também está vivo? ― Finalmente Misha encontrou meu olhar,

mas seu tormento estava escondido, embora eu pudesse ver uma nuance dele

por trás da fachada.

Arregalei os olhos.

― Não sabiam sobre ele?

― Nem tínhamos conhecimento de você! ― Misha sacudiu a cabeça,

parecendo descrente e encarou Samuel. ― O que está acontecendo? Você

sabia que ele estava vivo?

― Sim, há pouco tempo, mas não era para vocês saberem ainda. ―

Não tinha emoção na voz de Samuel.


― Como diabos não!? Ele é nosso irmão! ― O cabeludo deu um

passo até Samuel, mas entrei na frente de sua fúria desenfreada contra o meu

namorado.

Samuel me escondeu atrás de si, mas não era preciso; o rapaz havia

parado antes de se aproximar mais.

― Não vou machucá-la! ― rosnou.

― Demyan, as coisas são complicadas ― começou Samuel.

― Então descomplica essa porra! ― esbravejou Demyan, fazendo-me

pular por ter sido pega de surpresa.

― Abaixe o tom ― Samuel avisou, letal, e depois se virou para mim.

― Está bem?

― Não vou surtar. Só quero saber o que está acontecendo. Por que

nenhum deles sabe de mim?

― Porque eu pedi que Samuel não contasse ― respondeu atrás de mim

uma voz que eu não ouvia havia algum tempo.


Liliane

Avistei Andreas entrar na sala, o que fez meu coração bater mais

rápido. Estava com saudades dele.

― Devo estar fazendo algo errado, já que vocês três invadiram meu

espaço. ― Samuel parecia estar grilado. ― Vou precisar do nome do

infiltrado para poder matá-lo.

Os três o ignoraram.
― Andreas? ― indagou Demyan, piscando, parecendo custar a

acreditar que ele estava vivo.

― Sou eu ― respondeu ele, mas não se aproximou dos irmãos.

― Onde esteve todo esse tempo? ― Misha olhou entre mim e ele. ―

Os dois, aliás.

― Vou responder, mas antes me digam, o que fazem aqui? ― inquiriu

Andreas.

― Viemos a mando do nosso chefe para saber de Samuel o paradeiro

de Beast ― respondeu Demyan.

― Beast? O que seu chefe pediu para fazer com ele? ― Andreas

estreitou os olhos, como se não estivesse falando de si próprio. Meus irmãos

não deviam saber que os dois eram a mesma pessoa.

― Matá-lo ― respondeu Misha, sombrio.

Meu coração acelerou com essas palavras. Isso não podia acontecer!

― E vocês vão fazer isso? ― Andreas o avaliava de forma minuciosa.


― Não, queremos fazer uma aliança com ele. As coisas mudaram

muito nos últimos anos. ― Demyan suspirou.

― Ouvir dizer ― comentou Andreas, não mostrando qualquer emoção.

Parecia estar se precavendo, então me lembrei do comentário de Samuel

sobre ele precisar checar se eles eram de confiança ou não.

― Por que não voltou de onde estava para assumir seu lugar de

direito? ― Misha o fitava. ― Tudo seria diferente caso estivesse lá.

Andreas franziu a testa.

― Acha mesmo? Sergey e Fyodor teriam conseguido seu objetivo não

importa quem tivessem de tirar do caminho. ― Tinha aço em sua voz.

― O que está dizendo? ― frisou Misha.

― Fyodor nos vendeu como gado, não ligando para o que acontecesse

a nós dois, se iríamos passar pelo inferno. ― Andreas trincou os dentes.

O veneno gotejava em seu tom. Entretanto, não creio que foi isso que

fez Misha dar um passo para trás, olhando-me. Demyan se escorou na parede
como se não tivesse mais forças. Eles no fundo deviam saber que tinha

acontecido algo conosco.

― Lily perdeu a memória, mas está recuperando-a. Há alguns meses

ela sonhou que nosso pai nos vendia. Era o rosto dele na lembrança. Então

me diz, irmão, acredita que nosso pai faria isso? Um homem que doou um de

seus próprios rins para salvar Kostya quando quase morreu por problemas

renais? ― Sua voz era carregada de fúria, mas não parecia ser contra nossos

irmãos.

― Papai jamais faria isso! Ele morreu para tentar salvar nossa mãe e

Faina! ― exclamou Demyan.

Andreas estreitou os olhos.

― Como sabe disso? ― sondei.

― O servidor das câmeras ficava fora de casa, e havia câmeras na

sala e no escritório do nosso pai. Durante o incêndio, nossa mãe ficou presa.

Ele até foi salvá-la, mas ela pediu para ele tirar Faina de lá primeiro, então

ele saiu da sala, mas voltou logo depois para tentar salvá-la novamente. Foi
quando... tudo se dissolveu em fogo. ― Sua voz saiu falha no final. Misha

respirou fundo e estremeceu como se doesse se lembrar e falar daquilo. ―

Não pode ter sido ele, pois nos protegia com sua vida.

― Exato. Se não foi nosso pai que Liliane viu, então com certeza foi

Fyodor, e vou fazê-lo sofrer amargamente ― disse Andreas. ― E, se Sergey

estiver junto com ele, os dois vão sofrer.

― Por que se escondeu de nós? ― Demyan cruzou os braços. ― Se

esconder de Fyodor é compreensível, mas de seus irmãos?

― Porque ele desconfia de nós. ― A expressão de Misha me fez ter

um arrepio na espinha. Estava tão diferente do garotinho sorridente e

protetor das minhas lembranças.

― Precisava ter certeza de que podia confiar em vocês. ― Andreas

suspirou.

― Nós dois? E Kostya? Acha que ele estaria junto a eles? Nosso

irmão tinha apenas quatro anos na época em que vocês desapareceram...

― Que fomos vendidos ― destacou Andreas.


― Sim. Era impossível ele estar junto a Fyodor. ― Misha sacudiu a

cabeça. ― E Sergey? Merda, sei que ele é um monstro, mas todos somos, de

uma forma ou de outra.

― Você estupra menores, mulheres? ― Demyan questionou. ―

Nenhum de nós três faz isso. No fundo sabemos que nossa lealdade a ele se

findou há muito tempo.

― Por isso viemos até Samuel, para conseguir ter uma palavra com

Beast e nos aliarmos a ele. Beast expôs na mídia vários negócios sujos de

Sergey, que está puto ― frisou Misha.

― Kostya... Onde ele está? ― inquiriu Andreas. ― Por que não veio

com vocês?

Misha soltou um suspiro duro.

― Quando saímos, Sergey não deixa que Kostya venha junto. Ele acha

que vamos desertar, então o usa para nos manter na coleira ― respondeu,

depois me olhou. ― E você? O que aconteceu?

Suas mãos estavam fechadas em punhos.


― Como Andreas disse, eu não recordava de vocês. Às vezes tinha

flashes de nós quando crianças, mas não tinha nomes nem um local para

tentar buscar ajuda e, de toda foram, não podia. ― Contei-lhes sobre como

abri os olhos na fazenda sem recordar nada do meu passado. Após algum

tempo começaram os flashes, mas eu era prisioneira. Então relatei a respeito

de como quase morri, se não fosse por Samuel e o chefe dele me salvarem.

Narrei também acerca da minha recuperação, sobre como Samuel foi meu

porto seguro e se tornou tudo para mim.

Após terminar o relato, encarei meus irmãos. A expressão dele

beirava a ira.

― Lorenzo a entregou para... ― A voz de Misha morreu. O tormento

reapareceu em seus olhos mil vezes pior do que antes. ― Vou estraçalhar

todos eles!

― Lorenzo está vegetando em uma cama ― sussurrei. ― Samuel

cuidou de alguns dos outros, e o que restou, Andreas ficou de cuidar deles,

não é?
Eu queria que essa parte de meu passado fosse encerrada. Não queria

ouvir mais sobre aqueles homens. Já bastava quando eu tinha pesadelos com

eles ou algumas recordações invadiam minha mente sem eu querer.

― Não tive tempo, os últimos meses foram corridos para mim, mas

vou fazer isso logo. Prometo que nenhum será mais mencionado na sua frente

― disse Andreas olhando para mim, depois contou aos meus irmãos o que

tinha feito e o pedido que eu tinha feito a ele.

― Compreensível, dadas as circunstâncias ― disse Demyan, sombrio.

― Quero participar quando for se livrar deles ― falou Misha a

Andreas.

Estremeci com o veneno letal em sua voz.

― Não toquem nesse assunto na frente de Lily ― grunhiu Samuel.

Misha me fitou com um olhar inalcançável.

― Vou fazê-los pagar caro. Por culpa deles, não posso nem abraçar

você. ― Pela forma que falou, isso o estava matando. ― Saber que está viva
e bem aqui, na minha frente, e não poder tocar em você... Sabe o que é isso?

É a porra de uma tortura.

Eu queria muito dizer que ele podia fazer aquilo, que eu saberia lidar

com o medo, mas e se eu não conseguisse? Ele não me fará mal, pensei

decidida. O meu coração estava estraçalhado com a ideia de ele sofrer

assim, ainda mais de ir embora com aquela tortura em seus olhos. Mesmo

que tivesse se tornado um homem, ainda era aquele garotinho protetor que

me amava mais que sua vida. Seu sorriso lindo se foi, e no lugar dele agora

havia apenas frieza, dor e tristeza.

Respirei fundo e dei um passo até ele.

― Podemos tentar, afinal é meu irmão e não me fará mal algum ―

entoei mais para mim mesma.

Estreitou os olhos.

― Não, ouço sua voz tremendo... ― Interrompeu-se quando corri e me

joguei em seus braços sem nem mesmo pensar. Não gostei de sentir a dor na

voz dele assim como vê-la em seu rosto.


No momento em que meu corpo tocou o dele e senti aquele cheiro

familiar, lembranças invadiram minha cabeça.

Misha e eu estávamos em um quarto que não era nosso, mas do

nosso tio Fyodor. Ele tinha um arsenal lá, então eu quis dar uma olhada.

Misha não queria que eu viesse sozinha, por isso me trouxe, embora

tivesse insistido para não virmos.

― De quem foi a ideia de vir aqui? ― perguntou meu tio após nos

encontrar em seus aposentos.

Eu estava com medo de sua expressão fria. Era tão diferente de

papai, que nos olhava com amor.

― Fui eu, tio, queria ver suas armas. A Liliane tentou me impedir,

mas não ouvi ― Misha falou antes de mim, enquanto apertava minha mão

para eu não o contradizer.

Não ia deixá-lo ser castigado por minha causa. Estava a ponto de

falar a verdade, quando ouvi um baque. Pisquei, não acreditando que meu
tio havia esbofeteado o rosto de Misha, que chegou a virar a cabeça pela

força do impacto.

― Nunca entre no meu quarto... ― sibilou entre dentes. Tirou sua

cinta com a clara intensão de bater em meu irmão novamente.

― Não toque nele! ― gritei, cerrando meus punhos.

Nunca gostei do meu tio Fyodor, ele era um monstro. Uma vez o vi

bater em sua namorada. Já o meu outro tio, Maksim, era bom, eu gostava

dele.

Entrei na frente de Misha para receber as cintadas. Assim que ele

levantou sua mão com o cinto, fechei os olhos, esperando. Ouvi o baque do

cinto, mas não senti dor, então abri os olhos, vendo Misha recebendo a

surra por mim.

― Não! ― gritei, chorando de raiva por ele machucar meu irmão.

― Fui eu que insisti em entrar aqui, não ele!

― Liliane, não adianta tentar assumir a culpa só para me proteger...

― Eu podia ouvir a dor na voz de Misha, que me segurava longe do meu


tio. Apesar de termos a mesma idade, ele era mais forte do que eu.

― Por favor, tio, não o machuque mais! Não vamos mais entrar

aqui! ― implorei, mesmo sabendo que era uma fraqueza. Não me importei

com isso, só não permitiria que ele continuasse a bater no meu irmão.

A fúria assumiu a expressão de Fyodor de tal forma que cheguei a

me encolher.

― Fora daqui os dois ― rosnou.

Não foi preciso ele ordenar duas vezes. Peguei o braço de Misha, e

saímos do quarto do meu tio. Levei-o ao meu.

― Você não devia ter feito isso! ― Chorei, tocando sua boca

machucada.

― Faço qualquer coisa por você! ― declarou com fervor. ― Jurei

que nada nem ninguém a machucariam e, enquanto eu viver, cumprirei

essa promessa.

― Misha... ― Pisquei, com o coração doendo. ― Era eu que

deveria ter apanhado, não você.


― Não ia deixá-lo machucá-la, mesmo que para isso tivesse que

pagar o preço que fosse! ― Sua ferocidade era tremenda, mesmo que

ainda fosse uma criança.

― Eu te amo, irmão! ― Abracei-o.

― Também te amo, mais que a vida! ― A veemência em seu tom me

deixou feliz.

Pisquei, arfando e saindo das lembranças e encontrando os olhos

daquele mesmo garotinho corajoso e valente, mas agora em um homem feito.

― Liliane, está bem? ― Sua expressão era preocupada.

― Você apanhou de nosso tio para me proteger. ― Meu coração se

aqueceu com uma emoção forte.

― Por você eu faço qualquer coisa, até entrar no inferno se for

preciso. ― Levantou a mão hesitantemente e tocou minha face. ― Sonhei

tanto em ver esse rosto mais uma vez... Pedir perdão por não ter conseguido

protegê-la.
Respirou fundo.

― Éramos crianças, não tinha como você ter feito nada. O importante

é que Deus me deu mais uma chance de viver. E, assim, conheci Samuel. ―

Sorri para meu namorado. ― Ele está me ajudando a me curar dos traumas.

― Vocês estão namorando? ― sondou Misha, ainda não se afastando

de mim.

Olhei para ele e assenti.

― Sim.

― Você o ama? ― Ele me avaliava.

― Com toda a minha alma ― declarei.

Ouvi a respiração de Samuel ficar pesada, mas ele não me

interrompeu.

― Ele te faz feliz?

Não entendia suas perguntas. Talvez fosse apenas preocupação de

irmão.
― Sim ― respondi a verdade.

― Fico feliz por você, maninha. ― Inspirou fundo e olhou para

Samuel. ― Preciso falar com Beast e tentar fazer uma aliança com ele para

salvar nosso irmão e continuar a deixar Liliane no escuro para Fyodor e

Sergey.

Aquele menino gentil e protetor tinha ido embora, dando espaço a um

assassino frio.

― Você está diferente ― afirmei ao ver seu rosto duro.

Seu olhar voltou para o meu rosto.

― Foi preciso me tornar quem sou. ― Esquadrinhou minha face. ―

Embora eu seja o mesmo que sempre vai amar você.

― Sinto que também te amo, mesmo não me lembrando de muita coisa.

― Suspirei. ― Pelo que você disse, parece que Kostya está preso. O que

estão fazendo com ele?

― Nada, mas Sergey o usa para fazermos o que ele quer ― disse

Demyan. ― Estou farto disso.


Afastei-me um pouco de Misha, pois precisava falar com meu irmão

mais velho.

― O que pode fazer a respeito? ― sondei.

Andreas avaliava nossos irmãos, então assentiu, parecendo tomar uma

decisão.

― Sou Beast, mas isso não pode sair daqui.

― Você?! ― Misha soltou um suspiro. ― Isso explica muita coisa.

― Qual é o plano? Destruir todo o nosso império? ― Demyan

desencostou-se da parede. ― Seja o que for, estou dentro. Depois

reerguemos tudo do zero.

― Sim, têm muitas pessoas lá que não gostam do governo de nosso

irmão, e com razão, pois é a porra de uma carnificina. ― Misha sacudiu a

cabeça, revoltado. ― Seja qual for o plano, estamos dentro.

― Vou explicar depois. Agora me digam por que nunca introduziram

Kostya nos negócios?

Misha suspirou, mas foi Demyan que respondeu:


― Kostya não gosta de crueldade, de lutar, matar, bater, é um garoto

bom demais para o nosso mundo. Seu sonho é entrar em uma faculdade e ser

jogador de futebol, nada que Sergey esteja disposto a deixá-lo fazer. ― Seus

olhos castanhos ficaram escuros. ― Misha e eu negociamos com Sergey.

Fazemos tudo que ele manda, contanto que deixe Kostya longe de tudo.

― Isso é muito nobre da parte de vocês ― destaquei. ― Kostya

aceitou?

― Na verdade, ele não sabe o que tivemos que fazer para que ficasse

imune. Kostya pensa que Sergey teve um momento de lucidez, de bondade e

permitiu que ele ficasse de fora. ― A escuridão estava nos olhos do meu

irmão gêmeo.

Perguntava-me o que eles tiveram de fazer para ajudar o irmão caçula.

Fosse o que fosse, parecia que tinha levado um pedaço de cada um deles.

― Mesmo quando achei que tinha perdido vocês dois... ― olhou de

mim para Andreas ― uma parte de mim tinha esperança de que estivessem

vivos. Eu os procurei escondido de Sergey todo esse tempo, lutando no


submundo à procura de informações, mas não tive êxito. Após perdermos

nossos pais e a doce Faina (ela e Kostya eram iguais nesse departamento),

só nos restou o nosso irmão caçula, e por ele fazemos tudo. Éramos só nós

três contra o mundo, pois Sergey há muito tempo deixou de ser a nossa

família.

― É por ver como protegemos Kostya que Sergey o usa, dizendo que

vai fazê-lo matar alguém ou coisa pior se não lhe obedecermos ― falou

Demyan.

― Quando Kostya descobrir a verdade, não vai gostar do que vocês

tiveram que fazer para que nada chegasse a ele. ― Se fosse comigo, iria me

sentir culpada.

― Depois lidamos com isso; agora vamos focar em resolver as coisas,

pois não dá para continuar assim. ― Misha tocou minha cabeça. ― Agora

que sei que está viva e bem, preciso estar livre para vir vê-la na hora que eu

quiser.

Meu coração se aqueceu.


― Será sempre bem-vindo ― declarei e olhei para os outros dois. ―

Todos vocês.

Demyan sorriu um pouco.

― Pode acreditar que viremos vê-la, sim.

― Então vamos? ― chamou Andreas. ― Quero agilizar algumas

coisas.

― Tudo bem. ― Misha se virou para mim e beijou minha testa. ―

Logo todos nós retornaremos a vê-la.

Meu coração deu uma batida dolorosa com sua partida. Quando

Andreas foi embora, senti sua falta, mas com Misha só a ideia parecia pior.

Devia-se ao fato de sermos gêmeos?

― Eu sentia que, mesmo estando feliz, ainda faltava uma parte de mim.

Achei que fosse as lembranças, mas agora vejo que não. ― Toquei seu

coração. ― Era você, aliás, todos vocês. ― Olhei para Demyan e Andreas.

― Vocês e Kostya.
Misha me abraçou forte por um tempo, parecendo não querer me soltar

mais.

― Também senti que faltava metade de mim. Agora sinto que estou

completo de novo. ― Afastou-se um segundo, encontrando meus olhos. ―

Prometo que voltarei.

― Confio em você. ― Sorri.

Assentiu e olhou para Samuel.

― Não deixe que nada aconteça a ela e a mantenha longe da vista da

sua gente; têm muitos ratos lá.

― Ela está segura. ― O juramento do meu namorado estava em cada

palavra.

― Também senti sua falta, pequena. ― Demyan se aproximou

hesitante, não sabendo se deveria me abraçar ou não.

Respirei fundo e assenti. Eles eram minha família e jamais me

machucariam.

Em vez de me abraçar, ele me rodopiou como se eu não pesasse nada.


― Estou tão feliz por você estar aqui com a gente ― sussurrou

emocionado.

― Eu também estou. Não vejo a hora de tudo isto ser resolvido ―

comentei.

― E será ― prometeu Misha.

Achei que teria receio ao ser tocada por eles, mas era tão bom ser

amada assim. Por muitos anos, naquele lugar, senti-me sozinha; agora, não

mais.

Só não abracei Andreas, porque o senti tenso quando me aproximei,

então peguei sua mão.

― Obrigada por tudo ― agradeci.

― Somos família, devemos ficar juntos. ― Notei gratidão em seus

olhos. Seria por eu não o ter abraçado?

Sentia que algo terrível acontecera a ele, assim como ocorreu comigo.

E não era só eu a notar isso; pelas suas expressões, meus outros irmãos

também perceberam.
Assim que os três saíram, Samuel veio me abraçar.

― Não era a noite que eu tinha em mente ― comentou ele, mas não

parecia ser uma acusação.

― Estou feliz por vê-los ― confessei. ― Espero não demorar muito

para acontecer novamente.

― Você os verá em breve, pode acreditar ― assegurou Samuel.

Eu estava contando com isso, estar ao redor de todos, tanto de minha

nova família quanto da antiga, que eu esperava que se tornassem uma só.
Samuel

Franzi a testa ante a ligação. Até pensei em não a receber, pois estava

frustrado por, na noite anterior, Andreas e seus irmãos terem atrapalhado o

meu momento especial com a irmã deles. Não ia deixá-los fazer isso de

novo.

― O que você quer? ― perguntei direto.

― O que está fazendo agora? ― Ignorou meu tom frio.


― Se não estiver telefonando para matarmos os malditos, então estou

ocupado. O que é tão importante para me ligar? ― Após ele sair ontem à

noite com Misha e Demyan para deixar os irmãos por dentro do seu plano,

eu não soube mais deles. Não quis saber, pois assim não esconderia mais

nada do meu chefe. A única coisa que queria era matar os vermes que

Andreas estava mantendo presos.

― Ainda não, mas tiveram uma lição de Misha e Demyan ontem à

noite. ― Deu um suspiro. ― Um deles já era; não pude controlar a fúria de

meus irmãos.

― Por que nãos os matou ainda? ― Sentei-me na cadeira da sacada,

esperando a Lily acordar. Eu tinha saído mais cedo e comprado outros

brinquedos que ela precisaria.

― O tempo está corrido, e é por isso que estou ligando. Vou resolver

tudo quando pegarmos Sergey e Fyodor. Eu os quero juntos nesse local onde

todos os outros estão presos.


― Ainda não os pegou? Sabe que são eles, então é só os capturar e

matá-los, simples. ― Teria feito isso eu mesmo, mas entendia que era um

assunto dele. Se eu tivesse uma chance de me vingar do meu pai, gostaria

que alguém o entregasse a mim para eu ter o gostinho de matar o miserável.

― Não é simples assim. Misha não contou antes, mas a nossa irmã

Faina está viva, e, até pouco tempo, o único que sabia dela era Sergey. Se os

dois se voltarem contra ele, o infeliz vai fazê-la pagar por isso. ― Trincou

os dentes. ― Também foi por esse motivo que eles nunca o mataram, não foi

só por causa de Kostya.

Franzi a testa. Quando foi dito que os irmãos dela estavam seguindo as

ordens de Sergey por causa da ameaça ao irmão caçula, achei estranho, pois,

se fosse só uma simples ameaça, os dois mais velhos teriam matado Sergey.

Eu teria feito isso no lugar deles, então supus que devia ter outro motivo, só

não sondei na hora porque não queria que Lily ouvisse até ter certeza do que

era.
― Ela não tinha morrido no incêndio? ― Lembrei-me de Misha

relatar que o pai levara a filha para algum lugar e voltara para salvar a

esposa, então os dois morreram. Então a garotinha tinha sobrevivido?

― Não. Parece que, na hora do incêndio, Sergey apareceu e a levou

do lugar onde nosso pai a tinha colocado.

― Como sabe disso? Dentro de casa não tinha câmeras, só na sala e

no escritório?

― Na verdade, quando Demyan e Misha disseram a Sergey que

queriam partir, ele lhes contou que nosso pai entregou Faina para ele e foi

resgatar nossa mãe. Revelou também que ficou lá, encarando as chamas

como se fossem uma obra de arte enquanto nossos pais morriam nelas ―

rosnou. ― Inclusive tivemos a prova em forma de filmagens.

Tal como existem pais monstros, também existem filhos e irmãos,

pensei.

― Por que essas gravações não surgiram antes? ― Não fazia sentido.
― Antes, Misha e Demyan não suspeitavam que nosso próprio irmão

tivesse mandado matar nossos pais. Depois que souberam, foram à procura

de provas e encontraram DVDs nas coisas de Sergey. Não sabíamos dessas

câmeras, não estavam conectadas ao servidor. Ele vacilou ao deixar algo

assim, guardado sem a mínima proteção, em seus pertences pessoais. Deve

ser doente demais e gostar de ouvir os gritos de nossos pais enquanto

morriam. ― O asco era evidente em sua voz. ― Seja como for, descobriram

a placa do carro que a levou, mas não deu em nada. Tenho pessoas

capacitadas atrás disso.

― Sergey só a levou embora ou mantém contato com a irmã? ― Eu

estava chateado com tudo isso. Esperava que não respingasse em minha

garota. ― Acha que ela teve o mesmo destino de Lily?

Sua respiração ficou aguda do outro lado da linha, e ele ficou em

silêncio por um tempo.

― Não sei, mas temo que sim. Nada bom vem dele, e não, ele não

mantém contato com ela. Acho que é para ninguém descobrir nada.
― Busque alguém em quem Sergey confia. Tem que ser próximo dele

ou do tio de vocês. Talvez tenhamos a sorte de que esses sociopatas

mantenham contato com a garota ou saibam dela. É um tiro no escuro, mas

talvez ajude. ― Se tivéssemos mesmo essa sorte, eu poderia matar todos que

queria de uma só vez.

― Sim, vou fazer isso. Só entrei em contato com você para lhe pedir

um pouco mais de tempo a fim de encerrar tudo isso. Sei que me deu um mês,

mas acho que, se nenhum deles mantiver contato com Faina, irei demorar um

pouco mais para encontrá-la.

Eu sabia o que ele estava realmente me pedindo, para eu não contar

nada ao meu chefe por enquanto. Eu não gostava disso, mas que escolha

tinha? Esperava que, depois, Matteo não ficasse muito puto comigo.

― Tudo bem. Também vou ver o que posso fazer para tentar localizá-

la...

― Não faça nada! Não quero que Sergey tenha conhecimento de

Liliane, isso a colocaria em perigo. Já basta não saber onde Faina está e o
que está acontecendo com ela. ― Praguejou. ― Essa porra é tão fodida.

― Por que eles não contaram para Liliane? ― sondei, embora tivesse

uma suspeita.

― Não sabem como Faina está e nem o que está se passando com ela.

Misha não queria preocupá-la, e ele tem razão. Agora que Lily está indo

bem, não devemos estragar tudo. ― Suspirou. ― Preciso ir, mas, antes,

saiba que não posso lhe agradecer o suficiente por tomar conta dela, por

ajudá-la.

― Não precisa me agradecer. Ela é a luz no meio das trevas e me tirou

do inferno que eu vivia em minha cabeça.

Nós nos falamos mais um pouco, então ouvi passos. Avisei a ele para

me manter informado do que estava acontecendo e desliguei.

Mudei minha expressão, escondendo a raiva que estava sentindo

daquela situação, e guardei o celular. Nada mais ia atrapalhar nosso

momento.
Entrei na sala da cobertura, deparando-me com a mulher mais perfeita

do mundo. Até meio descabelada e sonolenta, ainda era um anjo iluminado.

Liliane sorriu, ajeitando os cabelos envergonhada. Fui até ela,

pegando-a pela cintura e a beijei faminto.

― Acordei e não vi você ― sussurrou, corando.

― Vim fazer café. Quer tomar um pouco? ― indiquei a cozinha,

separada da sala por um longo balcão. Preferi deixar de fora o telefonema

do seu irmão. Andreas tinha razão, era melhor Liliane não saber sobre Faina

até descobrirmos onde e como a menina estava. Só esperava que estivesse

bem.

― Claro. ― Levei-a para a cozinha. Ela piscou, vendo a mesa farta.

― Você fez tudo isso? Não sabia que cozinhava.

― Sou neto de vovó, então eu sei. ― Pisquei para ela. ― Sente-se e

coma, enquanto arrumo a sua surpresa no quarto.

― Você não vai comer? ― sondou, depois arregalou os olhos. ― Que

surpresa?
Sorri.

― Já tomei café da manhã. E, se eu contasse, deixaria de ser uma

surpresa. ― Beijei seus lábios de leve conforme ela se sentava. ― Ontem

fomos interrompidos. Hoje quero saber se está pronta para prosseguir. Se

não estiver, tudo bem...

― Estou bem e adoraria dar continuidade! ― falou rápido demais,

interrompendo-me, o que me fez dar pulos de alegria por dentro.

― Ótimo. Tome seu café e, depois, tire suas roupas. Vou esperá-la no

quarto.

― Nua? ― indagou ela.

― Sim, mas...

― Vou fazer ― assentiu confiante.

― Obrigado, linda. ― Dei mais um selinho nela e fui para o quarto.

Não demorou muito para ela aparecer. Eu tinha deixado os itens no

carpete ao lado da cama, assim ela não os veria a princípio. Só queria que

tudo desse certo.


Liliane entrou no cômodo, nua como uma maldita deusa, fazendo-me

babar e ficar de boca aberta. Como eu queria jogá-la na cama e me enterrar

nela... Contudo, controlei esse desejo e meu pau duro.

Suas mãos estavam ao lado do corpo nu. Eu podia senti-la nervosa.

― Quer continuar? ― Evitei olhar sua boceta.

― Sim. O que preciso fazer? ― sondou, mordendo o lábio inferior e

olhando para a cama.

― Deite-se ― pedi, não saindo do meu lugar até que ela fez o que

pedi, então admirei a mulher esparramada na minha cama. Não havia nada

mais magnífico que ela, o meu raio de sol reluzente.

― Linda demais! ― Beijei sua testa, encontrando seus olhos claros.

― Confia em mim?

― Sim. ― Ela ofegava.

Como ela tinha se acostumado a ficar quase totalmente despida na

minha frente nas últimas semanas, agora iríamos para o próximo passo. Eu
mostraria a ela que sexo não tinha de ser doloroso conforme sua péssima

experiência. Além do mais, aquilo não foi sexo, e sim um estupro coletivo.

Não, eu não queria pensar nisso agora; naquele momento, iria deleitar

a minha menina linda.

Afastei-me e peguei ao lado da cama, na sacola, um vibrador rosa no

formato de um pênis.

Ela piscou.

― Isso é...

― Um vibrador. No começo, você pode só esfregá-lo do lado de fora,

em seu clitóris, depois colocá-lo dentro. Quer experimentar? ― Sentei-me

ao lado da cama, em uma cadeira.

Ela respirou fundo.

― Sim, vamos. Pode colocar. ― Suas pernas se abriram, e juro que

tudo em mim queria se apossar daquela boceta rosada e molhada, mas me

controlei. Aquele momento era para ela, não para mim.


― Você irá se dar prazer. Sentirá a maravilha que é gozar. ― Achava

que ela gostaria, afinal ficava quente com minhas palavras. Agora mesmo eu

a via molhada apenas por olhar para mim.

― Eu? ― indagou, olhando o objeto. Achei que fosse desistir, mas

estendeu a mão e parecia decidida. ― Como faço?

Quando falei que íamos usar brinquedos, até pensei que ela fosse

pesquisar sobre o assunto, mas Liliane não o fez. Minha garota não era

curiosa e adorava descobrir as coisas comigo. Meu peito inchava com isso,

por ela confiar em mim a esse ponto.

Mostrei-lhe como ligar e onde apertar após o colocar em sua boceta.

― Esfregue em seu clitóris. ― Terminei de explicar o funcionamento,

entregando o objeto a ela e me afastei um pouco. ― Enquanto o faz, olhe

para o espelho.

Sacudiu a cabeça.

― Não, quero ver você ao fazer isso ― disse, encontrando meus

olhos.
Assenti e me sentei na cama, escorando as costas na cabeceira e a

puxei para que ficasse entre minhas pernas, com suas costas apoiadas em

meu peito. Atrás dela, eu tinha uma boa visão de seu corpo no espelho.

― Obrigada. ― Corou, encontrando meus olhos no reflexo.

― Estou aqui para servir você ― afirmei, pegando seus cabelos e os

colocando sobre um dos ombros, deixando o outro livre para eu beijar atrás

de sua orelha. ― Sente-se arrepiada? Meu toque faz você pulsar aí embaixo

e querer gritar?

― Sim ― respondeu ofegante.

― Ótimo, então vai amar a sensação que esse vibrador irá dar a você.

― Controlei meu pau, pois só vê-la com as pernas abertas quase me fazia

gozar nas calças como um adolescente. ― Vamos começar?

Ela assentiu, fazendo como ensinei ao ligar.

― Agora abra bem essas pernas e o coloque em seu broto rosado ―

sussurrei em seu ouvido.

Ela fez o que pedi.


― Argh! ― Arfou e afastou o objeto.

― É ruim? ― Temi que ela não tivesse gostado, mas, vendo a forma

como ficou molhada, devia ser o contrário.

― Não, é bom, mas por que não faz em mim? Adoro quando me toca

― sussurrou com os olhos pesados.

― Quer que eu use o vibrador em você? Não o fiz antes porque temia

que você sentisse alguma repulsa...

― Samuel, seu toque nunca me causaria repulsa, aliás, amo cada

carícia, almejo isso. ― Largou o objeto na cama e se virou para mim,

colocando os joelhos em cada lado de minhas coxas. Encontrou meus olhos.

― Amo tudo em você, seu cheiro, sua forma de querer me fazer bem, amo a

forma que parece enxergar minha alma, então jamais o repudiaria. Aliás, eu

o almejo tanto que dói. Não quero esses brinquedos, quero você todinho, as

suas mãos em mim, seu cheiro na minha pele, cada pedacinho seu.

Meu coração parecia que ia explodir com essa declaração.

― Liliane...
― Estou pronta para você, para nós, pois eu o amo ― afirmou com

convicção.

― Também amo você, mais que tudo na vida. ― Rodopiei-a,

deitando-a na cama e pairando em cima dela. ― Vamos tentar, mas, se for

demais, me avise, tá?

― Não vai ser demais, confio a minha vida e alma a você. ― Tocou

meu rosto. ― Sei que vou amar cada coisa que fizermos agora e depois.

Tinha muita confiança nela. Eu esperava que estivesse certa quanto a

isso, não suportaria vê-la magoada e sofrendo.

Beijei-a, deliciando-me com aquele gosto maravilhoso que eu

adorava, com a forma como ela gemia de necessidade, parecendo que doeria

caso eu não desse o que ansiava. Isso me enchia de júbilo.

Suas mãos vieram para minha camisa, então me afastei um pouco e

joguei a peça longe.

― Você é lindo! ― Alisou meu peito, descendo pela minha barriga até

chegar ao cós da minha calça. Um arrepio se apossou de minha pele com o


toque sensível de suas mãos.

Peguei seu pulso, impedindo-a. Se eu ficasse nu agora, meu

autocontrole iria pelos ares. Ela vinha primeiro, não eu.

― O que foi? Fiz algo errado? ― Ela parecia realmente preocupada.

Merda! Quis me socar na hora.

― Não fez nada de errado, é perfeita! ― declarei, beijando seu pulso

em cima da tatuagem. Sua respiração engatou. ― Lembra-se da vez que eu

disse o que tinha vontade de fazer com você e que queria descobrir o sabor

que tem?

Ela engoliu em seco, olhando para minha boca, mas assentiu, corando.

― Vamos experimentar primeiro. Está com vontade que eu faça isso?

― Abaixei minha boca, tomando seu seio direito e o chupando.

― Samuel! ― ela gritou, tão sensível, da forma que eu adorava.

― Isso, chame meu nome, querida. Quero ver você se desmanchando

debaixo de mim. ― Com a outra mão, segurei o outro seio dela e o apertei

delicadamente. Quero que Lily só sentisse prazer, não dor, embora existisse
prazer com uma pitada de dor. Os dois juntos podiam ser muito bons, mas

pensei que isso não se aplicava a Liliane, não com tudo que ela tinha

passado. Queria lhe dar tudo o que ela precisava e ansiava. Se fosse só

prazer, que assim fosse.


Liliane

Nunca imaginei sentir aquele turbilhão de sensações. É claro que o

desejava como nunca tinha feito na minha vida, mas o que eu estava sentindo

naquele instante era o esplendor dos deuses, um arco-íris explodindo em

cada célula do meu corpo, fazendo até as mortas ressuscitarem.

Como Samuel podia pensar que eu temia seu toque? No começo, podia

ter acontecido, mas após todos aqueles anos? Eu o almejava tanto que doía.
Não me importei com os sons que saíam de minha boca, nem me

incomodei se eram constrangedores ou não, só me deleitei com sua boca

chupando meu seio.

Minhas pernas se abriram, e eu o senti pronto e duro através de seu

jeans.

― Olhos em mim, Raio de Sol ― pediu, pois eu os tinha fechado,

tamanha era a sensação que tomava posse de mim.

Fitei-o, tentando entendê-lo, e só então notei que era preocupação que

eu pudesse ter pensamentos ruins, o que não aconteceria. Eu estava muito

feliz com o toque dele. Aquelas novas sensações que só ele podia me dar me

deixavam completamente em êxtase.

― Me sinto como se fosse arrebatada ― sussurrei.

Sorriu.

― Isso não é nem perto do que quero fazer com você. ― Seu hálito

quente me fez tremer. ― Quer conhecer a sensação de como é ter sua boceta

chupada?
Gemi.

― Sim...

Seus olhos nunca deixavam os meus enquanto ele seguia beijando

minha barriga lisa. Isso me provocou arrepios de prazer.

― Quer que eu beije aqui? ― Salpicou beijos em uma das minhas

coxas e depois na outra. ― Ou aqui?

― Não aí. O meu centro está... ― Minha voz sumiu quando senti sua

língua deslizando em minha boceta e em cada canto de minha intimidade.

― Sim, tem o mesmo gosto de sua boca, a cereja do meu bolo. O meu

sabor preferido ― ele falava enquanto degustava minha intimidade.

Cada chupada dele me fazia sentir mais prazer, então a coisa mais

maravilhosa aconteceu, cheguei ao ápice, explodi como um gêiser de luz

brilhante, fui arrebatada.

No passado, quando me tocaram e me fizeram temer o sexo, eu não

imaginava que a intimidade entre duas pessoas pudesse ser tão bom assim, e

nem bem tínhamos começado. O que tive antes não era nada como aquela
sensação. Naquela época e lugar, roubaram tudo de mim; ali, eu estava

entregando meu corpo a um homem que morreria antes de me machucar.

A sensação abrasadora em meu coração foi tamanha que chorei. Sentia

lágrimas caindo em minhas bochechas.

― Lily... Merda! Sou eu aqui. ― A dor na voz de Samuel me fez abrir

os olhos e contemplar o homem que roubou minha alma e meu coração.

― Eu amo você mais que a vida. ― Sorri, tranquilizando-o ao mostrar

que eu não estava surtando, mas amando cada coisa que fazíamos. ― Sinto

que estou liberta de tudo, e isso só foi possível graças a você.

― Lily... ― Havia incerteza em sua voz e rosto.

― Samuel, estou completamente feliz, pois agora sinto que posso ser a

mulher que você precisa. ― Acariciei seu rosto perfeito. ― Acredita

quando digo que estou pronta para ser sua de todas as maneiras?

Ele me avaliou por um momento e assentiu.

― Você sempre foi mulher para mim. ― Beijou meus lábios. ― Sente

esse gosto? É o meu sabor preferido. Sei que está pronta, confio em você
mais que tudo na vida.

― Então tire as calças. Quero vê-lo nu, assim como está me vendo

agora. ― Corei diante do seu olhar abrasador.

Ele se afastou e saiu da cama, o que me fez sentir falta de seu calor,

mas não ficou longe muito tempo, apenas o suficiente para tirar a calça e a

cueca boxer. Seu corpo era perfeito, cada pedacinho dele. O homem era sexy

como o pecado.

Estava ereto e era muito grande. Uma parte de mim temia ter algum

receio, mas nada descrevia a forma como eu estava me sentindo com sua

simetria perfeita. Nada nele me fazia temer, aliás, deixava-me muito viva.

― Amo cada parte sua ― destaquei, varrendo o olhar sobre seu

corpo, então fitei seus olhos ansiosos, temendo a minha reação. ― Não

precisa temer, nada em você me faria repudiar ou algo parecido a isso. ―

Estendi minha mão para ele. ― Me diz uma coisa: como você se satisfazia

no banheiro sozinho?
Estava havia muito tempo curiosa quanto a isso, a forma como ele ia

para o banheiro quando nossas sessões de amassos ficavam muito ativas. Era

bom falar, assim ele via que eu estava pronta e não temeria mais que eu

surtasse.

Piscou com minha pergunta inesperada.

― Quer saber como me dou prazer?

Assenti.

― Há muito tempo estou curiosa quanto a isso. ― Nunca tinha lido um

livro de romance erótico nem pesquisado sobre o assunto, ainda era muito

inexperiente.

Ele colocou a mão em seu membro viril, tão duro, cuja cabeça saía um

líquido espesso e claro.

― Dessa forma ― destacou, subindo e descendo sua mão apertando

seu membro algumas vezes. ― Pensava em você enquanto fazia.

Não havia nada mais lindo que aquela visão, e, por incrível que

pareça, deixou-me mais quente e necessitada. Fechei as pernas, excitada com


o atrito entre elas.

― Essa visão te dá tesão? ― Ele pareceu aliviado assim que assenti.

Uma parte sua ainda parecia temer que eu surtasse. ― Mas vou parar de me

masturbar, pois quero gozar dentro dessa bocetinha que está pulsando por

mim.

Ele se aproximou e pairou em cima de mim, com uma das mãos em

meu rosto.

― A qualquer momento que pedir que eu pare, eu faço, está bem?

― Sim, mas não se preocupe. Eu estou pronta. ― Toquei seu coração.

― Confio em você.

Ele se abaixou e me beijou ardente e ferozmente, embora tão

carinhoso, como se eu fosse uma joia que cuidava e protegia.

Senti-o entre minhas pernas, pronto para mim, mas não entrou, só

permaneceu me beijando. Estava me deixando mais molhada, embora eu

tivesse pensado que isso fosse impossível.

Remexi-me, fazendo com que sua cabeça ficasse em minha abertura.


Ele afastou o rosto e me fitou enquanto prosseguia guiando seu

membro rígido para dentro de mim. Arfei, fechando os olhos ante a plenitude

maravilhosa que eu estava sentindo. Nada se igualava a isso

― Lily, quero ver seus olhos... ― Ele parou de se mover assim que

estava em meu interior.

Encontrei seus preciosos olhos ansiosos, que me observavam.

― Eu estou bem, mais do que bem. ― Sorri, corando. ― É tão bom...

― Fico feliz em ouvir isso. ― Ele me beijou com amor e ternura,

movendo-se dentro de mim. A cada estocada, eu me sentia como se estivesse

nas nuvens. ― Perfeita demais... ― sussurrou quase como uma prece.

Ele também era perfeito, mais que isso, era o homem que me ajudou a

ficar curada e chegar aonde estava agora, livre do passado, daquele medo,

restando só o meu futuro à frente, com Samuel.

Enrolei minhas pernas nas suas, fazendo com que ele entrasse mais em

mim e me deliciando com isso.


Cada vez os movimentos ficavam mais frenéticos, não só os dele, mas

os meus também, era como se meu corpo ganhasse vida própria.

― Ah... ― Minha voz falhou com um movimento mais intenso que ele

fez.

― Goza para mim, il mio cielo, la mia vita... ― começou a falar

palavras em italiano. Isso sempre me deixava mais eufórica por ele, se fosse

possível.

Meu corpo desfaleceu, explodindo com um grito chamando o nome

dele. Nada foi como eu pensava. É claro que eu sabia que ia amar tudo que

acontecesse, mas aquela sensação de êxtase foi fenomenal.

Seu rosto ficou tenso, e seus olhos focaram nos meus. O fogo ardente

estava em seu olhar, como brasas. A forma como ele gozava era linda.

― Isso foi tão bom! Amei cada segundo! ― Respirava de modo

irregular. Beijei de leve os seus lábios.

― Nunca achei que pudesse amar alguém como amo você! ― declarou

com fervor, ainda dentro de mim.


― Eu também amo você, mais que tudo na vida ― afirmei, com meu

coração emocionado. ― Obrigada por ser paciente, não me apressar. Sei

que foi um longo tempo de espera.

― Valeu cada segundo. Na verdade, eu esperaria a vida toda por você.

― Saiu de mim, mas me puxou para seus braços, beijando minha testa.

― Estou me sentindo realizada. Você me fez a mulher mais feliz do

mundo. Sinto que estou completa de novo. ― Suspirei, em êxtase.

― Você sempre foi completa para mim, meu anjo, mas entendi o que

está dizendo. Também sinto que uma parte de mim se foi há muitos anos,

mas, com você na minha vida, ela ressuscitou.

― Quer falar a respeito? ― Não sabia se estava pronto, por isso

deixei-o tomar seu tempo.

― Hoje não, não quero estragar este momento perfeito. ― Pairou

sobre mim e me beijou com delicadeza. ― O melhor de toda a minha vida.

Sorri, colocando os braços em seu pescoço e as pernas em sua volta.


― Todos os momentos com você são os mais preciosos para mim. ―

Remexeu-se e entrou em mim de novo, já pronto. ― Me realiza em todos os

sentidos.

― Então vamos completar ainda mais essa felicidade. ― Capturou

meus lábios e mais uma vez me fez sua de corpo e alma.


Meses depois

Liliane

Durante os meses seguintes, não pensei que pudesse ser mais feliz do

que já era. Ao estar livre das amarras do passado, podia seguir em frente.
É claro que às vezes as lembranças ruins vinham. Provavelmente,

nunca esqueceria o passado por completo. Era uma coisa com que eu tinha

de aprender a conviver. O bom era que eu tinha muitas pessoas que me

amavam, e eu também os amava. Isso ajudava muito quem um dia foi tão

machucada como eu.

― Vamos, Liliane ― chamou Bonnie, tirando-me dos meus devaneios.

Iríamos à escola, pois resolvi voltar a estudar. Encontrei um

estabelecimento de ensino especializado em educação de adultos. Com muito

foco nos estudos, eu esperava que em pouco tempo estivesse me dando bem

em todas as matérias.

Samuel ficou em êxtase quando lhe contei minha ideia. Estava mais do

que na hora de eu enfrentar a sociedade. Naquele dia, ele iria comigo, mas

parecia que o seu chefe estava com problemas, então precisou sair para

encontrá-lo. Resolvi ir com Bonnie em vez de esperar outro dia. Sabia que

estava pronta.
Bonnie tinha retornado à sua cidade fazia algum tempo, mas voltou

semana passada para comemorarmos o aniversário de vovó, dali a alguns

dias.

― Por que não mora aqui? ― sondei pouco antes de sairmos de casa.

― Sinto muito sua falta quando vai embora.

Ela colocou o braço em meu ombro.

― Talvez eu resolva ficar mesmo. ― Deu um suspiro. ― Embora eu

ame Barcelona, sinto muita falta de todos. Além disso, resolvi dar uma pausa

em meu trabalho.

― Bonnie, você é boa, olha o que fez por mim...

Sorriu parecendo triste.

― Não fui eu que fiz, foi você mesma, e Samuel a ajudou. Não posso

levar o crédito por isso. ― Encarou a praia pela janela. ― Após o que

conversamos, notei que não estou apta para a minha função, não agora.

Preciso me descobrir.
― Bonnie, somos humanos e falhos. Não pode se culpar por não estar

pronta para algo...

― Lily, eu tentei de novo. Fui a uma festa e vi um rapaz que me

chamou atenção. Senti atração, melhor do que foi com o anterior, mas na

hora não consegui, senti repulsa dele e de mim e corri ao banheiro para

vomitar. ― Sacudiu a cabeça. ― Foi quando descobri que preciso desse

tempo. No dia em que me formei, tinha só um intuito, conseguir ajudar as

pessoas que passaram pelo mesmo trauma que eu, nem pensei em me curar.

Devia ter feito isso antes. Seja como for, não é um adeus à minha profissão,

só uma pausa. Desejo retornar logo.

― Tudo bem, te entendo. Precisei me curar para fazer muitas coisas.

― Inclusive estudar.

― Fico feliz por você. ― Sorriu enquanto íamos para a garagem. ―

Os dois merecem.

Entramos no carro com Bonnie na direção. Logo eu pretendia aprender

a dirigir, para poder andar sozinha.


Ela ligou o veículo, e saímos, mas, quando tínhamos acabado de sair

da calçada, Bonnie pisou no freio, levando nós duas para frente. Ainda bem

que estávamos de cinto de segurança.

Seis carros cantaram pneu na frente do nosso e outros atrás, fazendo-

nos gritar. Fiquei petrificada no banco.

Eles começaram a trocar tiros. De onde surgiram? Parecia que

estavam de tocaia havia um bom tempo.

Um dos homens que estavam nos carros de trás gritou algo. Eles

estavam do nosso lado, mas eram poucos, não tinham como vencer. Nós

estávamos no meio do fogo cruzado. Era uma sorte que as balas não nos

atingiam, mas isso não nos deixava com menos medo.

― Se rendam ou vão morrer! ― gritou um dos que estava nos

defendendo. ― Sabem com quem vocês estão se metendo?

― Com frangotes dos Salvatores ― zombou um dos bandidos. ― Uma

família que só sabe violentar uns aos outros.


― Olha quem fala! Soube que seu chefe é igual, gosta de mocinhas

novas e virgens e as faz gritar só para matá-las depois.

Pela forma que ele falava, parecia saber quem nos atacava. Seria um

inimigo de Samuel? Teria algo a ver com o problema que ele tinha ido

resolver?

― Está me chamando de estuprador? ― rosnou uma voz sombria e

gelada como uma geleira.

Minhas mãos tremiam, mas não gritei ou gemi de medo. Não vou

surtar agora, não posso!, pensei.

― Sergey ― um dos homens de trás cuspiu o nome como se fosse algo

estragado.

Sergey? O meu irmão malvado? Esse nome fez doer minha cabeça.

Coloquei a mão nela para aliviar a ardência. Sabia que não devia olhá-lo,

que devia fingir que não estava ali, porém, não resisti e encarei o homem em

nossa frente.
Era alto, de olhos claros, mas tão sombrios como uma noite sem lua.

E, à sua frente, como um escudo, estava vovó.

― Um tiro ou qualquer gracinha, e a velha já era ― rosnou Sergey.

Indicou algo na direção do mar; era um barco. ― Tenho um atirador de elite

ali; antes que alguém pisque, já terá morrido.

― Vovó... ― sussurramos Bonnie e eu em uníssono.

Samuel... Eu precisava dele comigo, mas e se eu o chamasse e aquele

homem o matasse? Nem o chamava de irmão, não um ser que tinha feito

tantas coisas abomináveis.

― Olá. Se lembra de mim, maninha? ― Seus olhos encontraram os

meus, e não pude mais desviar um segundo enquanto o gelo tomava minha

alma. ― Venha comigo, e todos aqui poderão viver.

Eu não acreditava em nada do que me dizia, mas o que podia fazer? Se

eu não fosse, vovó se machucaria. Ela me olhava assustada e com uma

mordaça.
― Ela não vai a lugar nenhum com você ― rosnou um dos soldados

ferozmente.

― Vou fazê-lo pagar caro por me desafiar, seu inseto. ― Não tinha

nenhuma emoção na voz de Sergey. Tão diferente dos meus outros irmãos.

― Liliane! ― chamou Bonnie, mas sua voz estava distante, ou era o

zumbido em minha cabeça, que doía cada vez mais? ― Foi ferida?

― Não, mas a minha cabeça está explodindo de dor. ― Respirei

fundo, tentando controlá-la.

Uma bala atingiu o para-brisa, que rachou um pouco. Pelo jeito, havia

armas que quebravam vidros à prova de balas. Entretanto, não liguei muito

para isso, pois a dor na cabeça me fez gritar.

― Mandei atirarem nela? Se ela morrer, não conseguirei nada dos

meus malditos irmãos ― rosnou Sergey com frieza. ― Aqueles traidores.

Então aquela não era uma luta de Samuel, mas da minha família?

― Podem matar o resto, já que ela não virá a mim... ― falou com um

suspiro duro.
Meu sangue gelou. Olhei para Bonnie, ao meu lado, que estava com os

olhos assustados, os seguranças que estavam me defendendo e vovó. Não

havia chance de eles continuarem vivos se eu não fosse até Sergey. Não

podia deixar que fossem feridos por minha causa.

Mesmo tremendo de medo, saí do carro e encarei o monstro que era o

meu irmão.

― Eu vou, então não os machuque! ― gritei, pois estava a uns bons

metros dele. O estranho foi que não notei mais ninguém no local. Teria ele

limpado a zona antes?

― Não farei isso se vier comigo ― falou com aquela frieza de dar

calafrios.

― Não, Liliane... ― começou Bonnie, tentando pegar meu braço, mas

fui mais rápida e bati a porta do carro. Dei mais alguns passos na direção de

Sergey. Tudo dentro de mim dizia para eu correr, mas não podia fugir.

― Isso, vem para mim ― chamou ele, estendendo a mão em minha

direção.
Um dos homens que estava me protegendo correu até mim para me

impedir também. Eu estava a ponto de pedir que ele ficasse escondido atrás

do carro, senão iria...

― Não, senhorita... ― Sua voz morreu quando ele caiu no chão, mole

e sem vida, com um tiro na testa.

Olhei para Sergey, que apontava a arma para o rapaz cujo nome eu

nem sabia. Foi ele quem atirou e o matou...

Meu corpo travou no local, cerrando os punhos, com uma fúria que me

tomou como nunca havia sentido. Fuzilei meu irmão, que sorria como um

maníaco.

― Menos um inseto para me atrapalhar ― rosnou, empurrando vovó

no chão e puxando meu braço com força, fazendo com que minha pulseira

caísse, levando a minha única chance de ser rastreada por Samuel,

colocando-me na frente dele. ― Atirem, e ela será ferida. Aposto que o

chefe de vocês não vai gostar disso.


Sua frieza me enfureceu ainda mais, então tentei bater nele com os

punhos e cotovelos, não me importando com sua arma. Na hora nem liguei

para a dor de cabeça explosiva que eu estava sentindo.

― Seu desgraçado! ― Bati em seu peito com força, fazendo-o grunhir.

Sergey me olhou com aquele abismo sem emoção alguma e rodou a

coronha da arma, batendo-a em minha cabeça. A dor latejou, o que me fez

arfar. Podia sentir meus olhos se fechando, mas, antes que pudesse dizer algo

ou me forçar a não desmaiar, ouvi um estrondo e depois vi chamas... Os

carros dos homens que me protegiam explodiram. Não consegui gritar, a

escuridão chegou antes.

Passado

Liliane aos oito anos


Alguns estalos vieram do andar de baixo, então fui na direção dos sons

que estava ouvindo. Eram barulhos que não identifiquei.

Olhei para Andreas, adormecido, cansado do treino pesado que estava

fazendo nos últimos dias. Eu tinha vindo deitar-me com ele para não ficar

sozinha. Sempre ia até Misha, mas ele e meus outros irmãos foram com

minha mãe a Detroit para ajeitar a nossa nova casa, onde iríamos morar. Eu

desejei ter ido, mas não queria faltar aos meus treinos, e foi uma luta para

fazer Misha ir sem mim. Meu irmão gêmeo e eu éramos inseparáveis, os dois

lados de uma mesma moeda.

Somos de Samara, na Rússia, mas atualmente moramos na Flórida

desde crianças, era uma cidade que eu adorava. “Papai, não vende a nossa

casa, por favor”, cheguei a implorar para ele, mas não teve jeito.

Parei de pensar nisso e foquei naquela noite. Devia ter acordado

Andreas, mas ele estava tão cansado que preferi não o despertar. Então fui

procurar meu pai ou Sergey para saber que sons eram aqueles.
Fui ao quarto de Sergey, que ficava do outro lado do corredor na

forma de L, mas não o encontrei na cama, depois fui ao do meu pai, mas

também não o achei. Pensei em ir ao do meu tio, mas ele não estava em casa,

tinha ido fazer uma viagem. Talvez fosse meu pai e meu irmão que estavam

fazendo os ruídos.

Desci a escada e procurei no andar de baixo, mas não encontrei

ninguém. O barulho lá fora cessou, então decidi voltar para a cama, mas, ao

me virar, parei de olhos arregalados ao ver meu pai com Andreas

desacordado sobre os seus ombros saindo da sala.

Corri atrás deles, ofegante e com medo de o meu irmão ter passado

mal.

Lá fora tinha um carro preto para o qual papai estava levando

Andreas.

― O que ele tem? ― perguntei assim que parei de correr.

As costas de papai ficaram eretas, mas ele se virou, olhando para algo

atrás de mim. Foi então que notei que aquele homem não era meu pai, mas
meu tio.

― O que ela faz aqui? Devia ter ido com sua mãe ― grunhiu.

Virei-me para ver com quem ele falava, então vi Sergey com uma

expressão vazia.

― Ela insistiu para ficar treinando, ninguém conseguiu fazer com que

fosse ― respondeu somente.

Fiquei confusa com a conversa deles, então passaram a falar em um

idioma que eu não conhecia e me olharam após um momento. Outro homem

surgiu e pegou Andreas, levando-o para o carro.

Olhei para o meu tio.

― Para onde o está levando? ― Tinha algo errado ali, muito errado,

mas eu não sabia o que era.

Meus olhos foram até Andreas, deitado no banco de trás,

desacordado...

― Vamos precisar nos livrar dela também, ou vai estragar nossos

planos ― disse tio Fyodor.


― Papai... Onde ele está?

― Mandou se livrar de você, não a quer mais como filha ― rosnou

sombrio.

― Papai nunca diria isso, ele me ama ― falei com os lábios

tremendo.

― Seu pai não ama ninguém. ― Riu zombeteiro, olhando-me com

frieza. ― Não quer Andreas nem você.

― Andreas... ― Sacudi a cabeça, com os olhos molhados.

― Ele não pode ficar aqui, estragaria meus planos e os de seu pai, e

agora você também deve ir embora.

Eu estava com medo, não sabia do que ele estava falando. Que planos

estávamos estragando? Meu tio estava pensando em me levar para longe da

minha família? Não! Isso não pode acontecer!

Um sujeito alto apareceu ali, fazendo-me arrepiar. Gritei, com o meu

coração acelerado.
― Vamos, Liliane. ― Meu tio pegou meu braço, dando-lhe um aperto

feroz. Gritei mais alto. Ele me deu um tapa na cara. ― Cale a boca! Você vai

fazer o que eu mandar.

Chorei enquanto era arrastada até o homem sinistro.

A chuva caía, relâmpagos estrondavam o céu, fazendo sons

assustadores.

― Fique quieta e pare de chorar ― sibilou.

― Por favor, não... ― Parei de suplicar diante da presença de mais

dois homens ao lado de Sergey. Eram altos e usavam óculos. Suas

expressões me deram mais medo do que nunca.

― Cale-se! ― Exasperou-se tio Fyodor, dando um aperto insuportável

em meu braço.

Eu queria gritar, fugir para longe, mas não consegui me mover. Papai

não podia estar naquilo. Ele nunca me mandaria embora assim. Eu estava

com muito medo do que estava acontecendo. Meu tio e meu irmão me dariam

àqueles homens? Por quê?


― Então essa é a menina? ― Um deles se aproximou, deixando-me

ainda mais paralisada.

― Sim ― respondeu Sergey, frio, de braços cruzados. ― Pode levá-la

com vocês. ― Encarou meu tio. ― Eu disse que tinha um plano para ela.

Tio Fyodor sorriu para meu irmão como se ele tivesse dito que lhe

daria o Universo.

― Hummm... ― O de idade passou as mãos nos meus cabelos lisos e

loiros, no meu rosto, como se estivesse esquadrinhando-o, levantou meu

queixo, fazendo meu corpo tremer, mas não me movi, com medo demais. ―

Ela será uma linda mulher no futuro.

Futuro? O que aquilo significava? Por que me queriam? Eu era só uma

criança de oito anos.

― Sim, será. O chefe vai gostar dessa mercadoria ― respondeu o

outro homem e olhou para meu tio e Sergey. ― Negócio fechado. Vou ficar

com ela.
Mercadoria? Negócio? Eles estavam me vendendo para aqueles

homens? Como um tio e um irmão podiam fazer isso com a sobrinha e irmã?

Seu sangue? E, se papai estava envolvido, era como eles, um monstro.

Tio Fyodor me empurrou para um dos homens como se eu não fosse

nada, apenas um objeto descartável. Andreas também estava sendo vendido?

O homem pegou meu braço, fazendo arrepiar meu corpo inteiro. O

outro tinha uma cicatriz na bochecha.

― Por favor, não me venda! Serei obediente! ― supliquei, chorando.

― Obedeça a eles, Liliane ― respondeu, mal me olhando ou se

importando para meu clamor e choro. ― Esqueça sua família, ninguém quer

você aqui, nem seus irmãos, nem sua mãe, nem seu pai. Acredite ou não, foi

ele que me mandou dispensar você e Andreas.

Como meu tio podia nos vender a estranhos que podiam nos machucar

ou matar?

― Vamos embora, temos mais mercadorias para colher ― respondeu

o da cicatriz, puxando-me para fora do pátio em direção a outro carro, não o


mesmo em que o meu irmão estava.

― Papai jamais se sujeitaria a tal coisa com seus filhos! E você? ―

Fuzilei Sergey. ― Como pode se sujeitar a tal coisa comigo e Andreas, seus

irmãos?

Ele me olhou como se eu não fosse nada.

― Eu vou ser o chefe um dia, não Andreas. O trono tem que ser meu,

e, para isso, ele precisa sumir, e você também, por ter decidido ficar. ―

Não tinha emoção em sua voz.

Chorei e gritei, querendo que alguém ouvisse, mas todos os que

estavam ali pareciam não se importar para o que acontecia. Deviam ser

homens do meu tio.

― Cale a boca! ― grunhiu o homem, arrastando-me para um carro.

Minha visão estava embaçada pelas lágrimas, e o pavor me consumia

por estar sendo levada com aqueles homens sabe-se lá para onde. Pior, o que

fariam comigo?
Tentei lutar, mas como, se eram adultos, fortes e tantos? Eu não

poderia vencê-los.

Um braço me pegou por trás, apertando-me e roubando um pouco do

meu oxigênio.

― Sergey, por favor...

― Seu irmão não dá a mínima para você, menina, não se importa! ―

grunhiu o da cicatriz no meu ouvido.

― Socorro! ― gritei para alguém me ajudar e impedir de eu ser

levada com aqueles homens maus.

― Porra! ― praguejou um deles quando mordi seu braço. ― Faça-a

calar a boca, Santino.

De alguma forma, conseguir escapar. Não podia ir e ficar longe da

minha família! Misha! O que ele sentiria quando descobrisse que eu tinha

sumido?

Corri, mas não fui muito longe. Um rosnado veio de algum lugar atrás

de mim. Seria a minha morte? Eles iriam me matar? Antes que eu pudesse
sequer pensar em mais alguma coisa, senti uma pancada na cabeça, caindo na

escuridão.
Dias atuais

Samuel

O meu telefone tocou assim que deixei Matteo em casa após nossa

reunião sobre alguns desertores que não aceitavam o comando dele, os que

sobraram dos seguidores de Enzo.


Fazia algum tempo, Enzo tinha sido morto por Luca, o próprio filho.

Descobrimos que o infeliz matou a mãe de Matteo e a própria esposa, a mãe

de Luca. Isso o deixou furioso, e ele não pôde se controlar, estraçalhando o

verme.

Luca não se arrependia de matar o pai. Não, ele se arrependia de ter

feito rápido, queria torturá-lo. Eu o entendia. Queria torturar o meu e não

tive a chance, infelizmente nem o prazer de mata-lo eu tive.

Fosse como fosse, o maldito tinha ido tarde. Finalmente tínhamos nos

livrado dos infelizes asseclas dele. Eu esperava que não houvesse

restado mais nenhum, embora sempre tivesse uma maçã podre no meio das

outras.

Estava de olho em um específico. Tinha pedido a Andreas o nome do

maldito infiltrado dos Volkov só para saber caso ele fizesse algo contra o

meu povo. Podia estar escondendo a verdade do meu chefe sobre os irmãos

de Liliane, mas era fiel à minha organização.

Franzi a testa. Era uma ligação de Andreas.


― Me diz que tem notícias. Não posso esconder tudo do meu chefe

por mais tempo.

― Sim, tenho. Eu a encontrei em um internato na Inglaterra. A porra

fica no meio do nada, é mais uma prisão do que escola. ― A sua voz era fria

como gelo.

― Assim que a pegar, você sabe que Sergey vai descobrir tudo. Como

farão isso? ― sondei.

― Já a resgatamos ontem, está segura agora. O bom é que ninguém a

tocou naquela porra de lugar. ― Seu tom saiu letal com uma faca afiada. ―

Na noite passada, invadimos o território dos Darkness e sequestramos

Fyodor.

― Fyodor? Mas e Sergey?

― Não conseguimos pegar o maldito. Ao menos derrubamos todo o

império dele. Foi uma luta boa, devo dizer. Quem ousou ir contra o meu pai

está preso, e logo vou lidar com eles, mas agora meu foco é Sergey. ―
Suspirou. ― Estou mandando alguém para vigiar Liliane só no caso de ele ir

atrás dela. Tinha alguém meu lá, mas precisei dele na luta dessa noite.

Meus músculos se enrijeceram.

― Acha que Liliane está em perigo? ― perguntei com um leve tremor.

― Não sei, por isso estou ligando. Não a deixe longe de suas vistas,

não sabemos o que ele sabe.

― Não estou em casa, mas em Chicago, deixei Moor e alguns dos

meus homens de olho nela e em Bonnie. ― Fiquei furioso com Moor alguns

meses atrás por deixar os irmãos de Liliane entrarem naquele restaurante,

mas eu entendia que eram dois contra um, e ele sempre vigiou e protegeu

Lily muito bem, além do mais eu estava junto a ela. Embora eu tenha

designado mais seguranças para ajudar na proteção dela.

― Nada deve ter... Espera um segundo... ― A linha ficou em silêncio

uns segundos.

Isso estava me dando nos nervos. Entrei no carro, ligando-o, mas

Matteo me chamou da porta da sua casa.


― Maldição! ― praguejei em voz baixa.

― Samuel, os homens que mandei para tomar conta de Liliane

chegaram à sua casa, mas... ― Andreas parou, precisando respirar.

― Desembucha, porra! ― rosnei com meus punhos cerrados. Estava a

ponto de desligar e telefonar para Moor e outros de meus rapazes, que

protegiam minha menina para descobrir o que estava acontecendo.

― Os seus homens estão mortos, há sangue no chão, e os vizinhos

chamaram a polícia, mas não há nenhum sinal de Liliane...

― Bonnie está lá? ― Merda, onde as duas estavam? Foram levadas?

Vovó não sairia da igreja até mais tarde, foi cozinhar para alguma

festividade que teria lá. Ainda bem, ou as coisas ficariam piores...

― Não tem sinal de nenhuma das duas, só da sua avó, que foi levada a

uma ambulância...

― Espere, o quê? ― Interrompi-o com meu peito apertado.

― Ela está bem, só disse que foi assaltada, acho que para não trazer

problemas a você. ― Tranquilizou-me, e pude respirar normalmente de


novo.

Ele falou com alguém do outro lado da linha, e ouvi algo se

quebrando.

― Misha, se controla... ― Os seus irmãos deviam estar com ele.

― Liliane tem uma pulseira que é um rastreador. Me deixa ver se

consigo um sinal. ― Encerrei a ligação e rastreei a bendita peça, mas não

deu em nada, era como se Lily estivesse em casa. Olhei as câmeras e não a

vi em canto nenhum. Sergey devia tê-la tirado dela. Tornei a ligar para

Andreas. ― O infeliz deve ter tirado o rastreador dela. Vou destruir essa

porra de lugar se ele a tocar. ― A dor e o medo se apossaram de mim, mas

eu não podia deixar que me controlassem agora, precisava focar em achá-la.

― Me diz que ele quer algo em troca...

Se fosse assim, eu sabia que elas ficariam bem até ele obter o que

queria.

― Eu aposto que os meus irmãos e Beast. Só não imagina que somos a

mesma pessoa ― respondeu com a mesma raiva que eu sentia. ― Qualquer


coisa, te ligo.

― Acho bom, e, se seu irmão tocar nela, juro pelo maldito Céu que

vou estraçalhar o desgraçado. ― Desliguei e dei um soco no volante,

fazendo os nós dos meus dedos doerem.

Agora que ela estava indo tão bem, eu não podia deixar que aquele

infeliz estragasse tudo. Que nada nem ninguém a tivessem machucado, ou...

― Porra!

― Samuel, o que está acontecendo? ― Era Matteo do lado de fora do

carro.

Antes que eu respondesse, vi o infiltrado dos Volkov, então tive uma

ideia do que fazer para que Sergey aparecesse mais rápido. Podia mandar

uma mensagem a Andreas contando-lhe o meu plano, mas não ia ficar ali,

esperando sem fazer nada, senão enlouqueceria.

Saí do carro, forçando a minha expressão a ficar em branco e

escondendo meus sentimentos.


― Lembra-se de Sergey Volkov? ― Encarei Matteo, mas minha visão

periférica notou a hora em que o infiltrado ficou ereto e tenso.

Matteo estreitou os olhos.

― Sim, o chefe da máfia Darkness. O que tem ele? ― inquiriu.

― Ele é irmão da Liliane, e não só isso, mas Beast também, embora

seu nome real seja Andreas, o irmão mais velho de Sergey. ― Suspirei após

dizer o que precisava. Olhei para os homens que estavam com Matteo. ―

Podem nos deixar a sós?

Matteo me avaliou, notando que tinha algo errado. Ele me conhecia

bem e assentiu para seus homens, que saíram, mas não tirou sua atenção de

mim.

― Beast é Andreas, o irmão da Liliane? ― indagou com a voz dura.

― Sim. ― Contei a ele meus motivos por ter omitido a verdade e tudo

que aconteceu relacionado aos irmãos de Liliane.

― Você fez um juramento de não me esconder nada ― acusou-me meu

chefe em uma voz dura.


Suspirei.

― Eu sei e vou arcar com as consequências disso, mas agora Sergey

pode ter levado Lily e Bonnie. Preciso resgatá-las. ― Levei minha mão aos

cabelos em um gesto exasperado. ― Me sinto impotente e não gosto dessa

sensação.

― Senti isso quando Irina foi sequestrada ― finalmente falou com um

suspiro.

Irina era sua esposa. Haviam se casado algum tempo atrás.

― Sim, é a coisa mais medonha que já senti. Prefiro mil vezes estar

em uma luta com cem homens. ― Fechei os punhos em um aperto de aço e

olhei para um canto, onde avistei Caco com o telefone em seu ouvido.

Apostava que estava ligando para seu chefe. Esperei que ele desligasse e

olhei para Matteo. ― Chame Caco aqui, depois explicarei. Só peço que

confie em mim.

― Agora confia em mim? ― Era perceptível que ele não gostou muito

de eu não ter dito nada à ele, mas não era questão de confiança, e sim de
cumprir uma promessa. Eu o entendia, jurei-lhe lealdade e depois omiti a

verdade. ― Depois que isso acabar, vamos ter uma conversa sobre lealdade

e juramento.

Assenti, esperando que ele chamasse o infiltrado. Assim que o

chamou, o meu telefone tocou, e o atendi sabendo quem era. O nome piscou

na tela.

― Espero que tenha notícias ― falei baixo antes de Caco chegar.

― Sim, Sergey ligou para meu irmão e exigiu falar comigo. Não sei

como descobriu que estou vivo... ― Interrompeu-se. ― Foi você!

― Sim, eu não podia esperar muito tempo. Busquei minha maneira de

ele entrar em contato ― rosnei.

― O infiltrado ― falou e inspirou fundo. ― Temos um encontro com

Sergey à noite em um galpão fora da cidade de Detroit.

― Vou estar junto...

― Não pode...
― Uma porra que não posso! ― esbravejei, fazendo Caco me olhar.

― Estarei na cidade em pouco tempo, então podemos ir juntos.

Não esperei sua resposta, apenas desliguei e guardei o celular.

― Me chamou, chefe? ― Caco parecia nervoso ao olhar entre mim e

Matteo.

Peguei a faca no meu coldre, fazendo-o arregalar os olhos. Eu estava a

ponto de explodir.

― Samuel... ― começou Matteo, avaliando a faca e a mim.

― Sabe o que penso de traidores como você? ― rosnei, chutando-o e

fazendo com que caísse de costas em uma moita.

Estávamos em frente à casa de Matteo, no jardim. Antes que Caco se

recuperasse, eu estava sobre ele com a faca em sua garganta, mas não o

cortei.

― Você vai me dar as respostas que preciso, ou vou parti-lo ao meio

― ameacei.

Os olhos dele pousaram em Matteo.


― Chefe, não sou só eu o infiltrado aqui. ― Fuzilou-me, não

parecendo me temer, ou, se o fazia, escondia bem. Vamos ver até quando

fica com essa cara de paisagem. ― Você não contou a ele sobre os

encontros com os irmãos da sua mulher.

― Há uma diferença nisso. Você pegava informações nossas e as

passava ao seu chefe de merda. Eu, por outro lado, só omiti o fato de ter

falado com meus cunhados, não contei nada sobre nossos negócios a ninguém

― grunhi. ― Ao contrário do que pensa, sou leal ao meu chefe. Se não

contei nada antes, foi porque tinha um motivo. Você tem um para ter se aliado

a Sergey Volkov?

― Não estou...

― Não minta! ― Com uma das mãos, apertava a faca em sua garganta,

e, com a outra, enfiei a mão em seu bolso e peguei o celular dele. ― Acho

que vou ter que descobrir para quem ligou agora há pouco

Sua cor, que já era normalmente branca, ficou ainda mais pálida. Eu

estava no caminho certo.


― Vou te dar uma chance de viver, só uma, se me ajudar a descobrir

onde ele está. Agora pergunto, sua vida vale mais que a lealdade ao seu

chefe? ― Estava sem tempo, não podia esperar pelo encontro que Sergey

tinha marcado. Além disso, as duas podiam nem estar com o infeliz na hora.

― Você trairia seu chefe para salvar sua vida? ― Devolveu a

pergunta.

― Somos diferentes, eu não trairia meu chefe ou alguém a quem sou

leal por nada, ao contrário de você, que nos vendeu por dinheiro ― rosnei.

― Vai pegar essa proposta, ou devo torturá-lo para eu mesmo conseguir a

resposta que quero?

Torturar o infeliz seria bom, mas eu corria o risco de ele não saber o

paradeiro de Sergey. Era melhor fazer algo que tivesse certeza, não queria

correr riscos.

Ele pareceu pensar. Observei-o durante esse tempo após saber quem

ele era e notei que o verme gostava de dinheiro. Quem pagasse mais seria o

seu dono. Não passava de lixo.


― Não confio que você não vá me matar. ― Avaliava-me.

― Não quebro uma promessa que fiz. Estou atrás dos tubarões, não de

peixes pequenos. ― Já estava sem paciência. ― Última oferta, ou já era.

Ele suspirou e assentiu.

― Vou ligar e tentar descobrir onde ele está, mas não acredito que iria

me dizer nada. ― Olhou para a faca em minha mão. ― Se importa?

Trinquei os dentes e me afastei, entregando-lhe o celular.

― Diga que você descobriu onde Fyodor foi levado e que vai

conduzi-lo até o local. ― Avisei: ― Uma gracinha, e sua vida já era.

Assentiu e telefonou.

― Chefe, descobri onde o seu tio está preso ― falou, e não parecia ter

um pingo de mentira na voz.

Eu não gostava de traidores por isso, eles tinham duas caras, nunca se

sabia onde e quando passariam uma rasteira.

― Sim, sei onde fica. Vou estar lá em breve ― respondeu e desligou.

Depois me olhou, ficando de pé. ― Feito. Vai me encontrar na ponte de


Detroit.

Assenti.

― Me entregue o seu celular.

Ele o fez sem reclamar.

Peguei o meu e digitei uma mensagem, passando o número de Sergey

para um colega meu rastreá-lo. Não demorou muito para eu saber que estava

a alguns quilômetros na mata. Parecia ser uma cabana de pesca.

Guardei o telefone dele no meu bolso e liguei para Andreas.

― Tenho a localização. ― Enviei-a por mensagem enquanto

continuava na linha com ele. ― Sabe onde fica?

― Sim, é uma cabana do nosso tio Maksim. ― Deu um suspiro.

― Esse seu outro tio está junto a Fyodor?

― Não, ele está do nosso lado ― respondeu. ― Vamos fazer o

seguinte...
Orquestramos fazer uma emboscada a Sergey. Talvez não fosse fácil,

mas eu estava contando que sim, ao menos para conseguir resgatar as

meninas.

Desliguei e olhei para Matteo.

― Tenho que ir. Depois nos falamos, e aceito qualquer castigo que

queira me dar por eu ter omitido algo tão sério de você. ― Talvez minha

morte estivesse mais próxima do que eu podia imaginar. O castigo por omitir

algo assim era esse afinal, a morte.

― Inclusive a morte? Porque, uma vez que me traia, não há perdão ―

falou frio, e seus olhos pousaram em Caco.

Ele estremeceu com a dureza de sua expressão.

― Você disse que eu não ia morrer! ― exclamou para mim.

― Na verdade, ele não pode prometer nada disso, quando sua própria

cabeça está a prêmio ― rosnou Matteo.

― O que eu disse foi que eu não mataria você, e não vou, mas não

mencionei o que seu chefe, a quem deve lealdade, faria ― pronunciei. Fitei
Matteo. ― Seja o que for que decidir, vou estar lá para receber. Agora

preciso ir.

Ele assentiu. Após isso corri para o meu carro, ansioso para encontrar

a minha garota. Derrubaria o maldito Estado para trazê-la de volta sã e salva

para os meus braços.


Liliane

Abri meus olhos, piscando um segundo ante a escuridão do local.

Ouvia uma voz me chamando, mas parecia distante. Forcei-me a lembrar o

que tinha acontecido.

Bonnie e eu estávamos no carro quando Sergey... o meu irmão que nos

vendeu...
Gemi com a mão na cabeça, tentando aliviar a dor, não aquela que eu

tinha quando me lembrava de algo, essa pareceu passar, e eu sabia o porquê.

Agora me recordava de tudo: a minha família, minha mãe, meu pai e meus

irmãos; a noite em que eu e Andreas fomos levados. Como alguém era capaz

de fazer aquilo com a própria família?

― Graças a Deus você acordou! Estava preocupada. ― Era Bonnie.

Pisquei mais, tentando ajustar a visão à escuridão, até que foquei nela

ali, ao meu lado. Notei que era ela que me chamava, mas meus ouvidos

estavam zumbindo, e eu mal ouvia, mas enfim a audição estava melhorando.

― Bonnie? ― Minha garganta estava arranhando, então pigarreei. ―

E vovó?

― Sim, sou eu. Faz horas que estamos aqui, neste lugar. Parece ser um

galpão ― sussurrou, mexendo-se. Foi quando notei que minhas mãos

estavam amarradas, bem como as dela. ― Eles a deixaram, pois estava

começando a chegar gente. Ele me pegou, porque tentei salvá-la.

― Oh, Bonnie! Não devia ter feito isso.


― Somos amigas, e você faria o mesmo por mim.

Ela estava certa.

― Alguém apareceu aqui? ― sondei.

― Não, mas ouvi vozes alteradas lá em cima e depois um tiro.

Falavam em russo, algo como predateli brat'ya. ― Suspirou. ― Não sei o

que significa.

― Irmãos traidores. ― Meu peito doía fundo, porque o amava quando

criança. Como ele podia ter feito tudo aquilo?

Lágrimas desciam por minhas bochechas por tudo que perdi e não

poderia ter mais por culpa de Sergey e meu tio.

― Você entende a língua desde quando? ― inquiriu.

― Recordei-me do meu passado, de tudo o que foi tirado de mim. ―

Inspirei fundo, controlando a dor, mas era impossível. Provavelmente meus

outros irmãos tinham morrido, as palavras e o som de tiro que Bonnie tinha

ouvido podiam significar isso. Antes, mesmo sabendo que eram meus

irmãos, eu não sentia amor por eles, não de verdade; o único que vinha um
pouco mais às minhas lembranças era Misha, mas, agora, tudo tinha voltado

à minha mente, inclusive o amor que sentia na infância.

― Deve ter se lembrando quando aquele desgraçado bateu a arma em

sua cabeça.

Antes que eu pudesse responder, a porta do local se abriu acima de

nossas cabeças. Então aquilo não era um galpão, mas um porão fedido. A luz

foi acesa, fazendo-me piscar.

Sergey entrou, descendo uma escada, e encontrou meus olhos. Os dele

não demonstravam nada. Isso me deixou enfurecida demais.

― Como pôde nos vender como gado?! ― gritei, lutando contra as

amarras.

Ele parou e ficou ali, de braços cruzados.

― Não era para você estar lá naquele dia ― disse simplesmente. ―

Íamos nos livrar só de Andreas. Era ele que estava estragando meus planos.

― Planos?! Que tipo de planos distorcidos um garoto de doze anos

teria para cometer tal atrocidade?! ― rugi. ― Sabe o que passamos? O que
aqueles homens me fizeram? O que Andreas passou a ponto de hoje não

conseguir ser tocado? Tem alguma noção? E tudo isso para quê? ―

desdenhei. ― Por que não nos matou logo? Teria sido melhor se o tivesse

feito!

Ele apenas continuou ali, olhando-me como se eu fosse um mero

inseto.

― Eu deveria ter feito isso, mas pensei que era melhor vender vocês e

assim ter uma aliança no futuro. É uma pena que não os matei. Se soubesse

que iam dar tantos problemas e que Andreas retornaria, teria feito isso sem

pensar duas vezes.

― Por quê? Não fizemos nada a você, nem nossos pais, muito menos

Faina! ― Não entendia como podiam existir pessoas em nossa própria

família cruéis àquele ponto. ― Como pôde destruir a sua própria família?

― Você não entende! Aquele homem que morreu junto à puta de nossa

mãe foi o irmão do meu pai, Fyodor. Meu pai é esse que está vivo e que

Andreas sequestrou, o Grigori.


― Não, Andreas disse que nosso pai morreu... ― Sacudi a cabeça,

tonta.

Ele riu de modo frio.

― Sua tola, a nossa mãe estava destinada ao filho mais velho dos

Volkov, Grigori, mas gostava de Fyodor. Como eram gêmeos, quem nasceu

primeiro levava o direito ao trono, ou seja, Grigori. Iris, a nossa mãe, não

aceitou isso, pois o repudiava.

Fiquei parada, em choque com essas palavras. Não podia ser...

― Ela marcou de fugir com Fyodor, foi quando se entregou a ele, e,

dessa relação, nasceu Andreas. ― Sua voz saiu dura, sem emoção. ― O pai

dela, o nosso avô, a impediu de fugir e a obrigou a se casar com Grigori,

contrariando a vontade dela e de Fyodor.

Pisquei, pois não sabia nada disso.

― Oh, meu Deus!

― Ele não está no meio disso. ― Revirou os olhos. ― Fyodor

implorou ao nosso avô que retrocedesse e a desse em casamento a ele, mas o


velho não aceitou. Era a lei da primogenitura, não podia ser mudada.

Mamãe não gostava do nosso avô, pois ele era cruel. Uma vez a ouvir

dizer isso ao meu pai.

― O primogênito ia se casar e ocupar o trono. Fyodor, revoltado,

decidiu sumir por um tempo, mas não foi longe, estava pensando em voltar e

sequestrar nossa mãe, mas Grigori soube dos planos do irmão e o prendeu

em um calabouço.

― Prendeu o próprio irmão? ― Sacudi a cabeça. Não conseguia

acreditar que papai faria isso.

― Para não haver suspeitas, Grigori se passava por Fyodor em alguns

momentos, só quando era necessário. Em outras ocasiões, todos pensavam

que ele estava viajando, assim ninguém desconfiaria.

O quanto minha mãe havia sofrido com tudo aquilo, amando um, mas

tendo de se casar com outro?

― Não sei como, mas Fyodor fez amizade com os guardas, e eles o

ajudaram a sair. Após isso, sequestrou Grigori e o prendeu no mesmo lugar


em que estava, então ocupou o lugar do irmão, passando-se por ele, fingindo

ser Grigori para todos. Na época, nossa mãe só tinha Andreas e a mim.

Pisquei.

― Então só você é filho de Grigori? ― Minha voz falhou.

― Todos vocês são de Fyodor, menos Faina e eu. Nossa mãe sabia

que era Fyodor, e mesmo assim ficou do lado dele ao invés do de seu

marido, o meu pai, que estava preso. ― Cerrou os punhos.

― Ela amava Fyodor. É claro que ficaria do lado dele.

― Amor... Isso não existe, só os fracos se deixam dominar por tal

sentimento ― zombou, como se essa palavra fosse uma abominação.

― Como Grigori saiu de onde estava? Porque recordo-me do homem

que viveu conosco até você nos vender, e ele era bom, nos amava

incondicionalmente. Era Fyodor, com certeza. Porque, pela forma como você

fala, Grigori jamais seria capaz disso, dessa bondade. ― Pelo visto, nem o

filho dele, aqui, na minha frente, pensei.


Ele parecia cooperativo, e eu estava ansiosa para desvendar aquele

mistério e entender toda a porcaria que tinha acontecido conosco.

― Fyodor me levou para à mansão do meu avô para pegarmos

algumas coisas. ― Eu não conhecia meus avós, eles morreram antes de eu

nascer. ― Os guardas ficavam do lado de fora, então não me viram andar

pela casa. Descobri o porão, onde ficavam as masmorras. O lugar era cheio

de grades. Foi quando o vi, barbudo, algemado a correntes. Grigori me falou

que eu era seu filho e que o lugar de chefe era meu por direito no futuro, e

não de Andreas.

― E, por causa disso, você se tornou o monstro que é, mandando-nos

para longe e matando nossos pais ― cuspi. ― Fyodor o amava como se

você fosse dele!

― O problema era que eu não era dele... ― rosnou. ― Iris deixou de

ser a minha mãe assim que eu soube do que ela foi capaz de fazer, deixando

o marido verdadeiro preso e se deitando com um impostor.


― Eles se amavam, pelo amor de Deus! ― falar com ele era como

conversar com uma parede.

― Fyodor fez uma viajem a negócios para a Rússia. Com isso resolvi

soltar meu pai para que tomasse sua vida de volta, mas ele desejava

vingança, por isso só saiu do lugar em que estava preso. Aproveitando que o

irmão impostor estava viajando, Grigori fez uma visita à nossa mãe,

enfrentando-a por dormir com o irmão e ter uma família com ele enquanto

seu verdadeiro marido era mantido preso. Eles brigaram...

Interrompi-o.

― Se eles estavam brigando e minha mãe jamais trairia meu pai, então

duvido que ela tenha se entregado a Grigori por livre e espontânea vontade...

― Pisquei, enojada. ― O desgraçado a violentou!

― Não é violação quando a mulher é sua ― sibilou. ― Uma esposa

não deve se negar ao seu marido, ele estava no direito de tomar o que era

seu. Foi quando Faina foi gerada. Era a vingança perfeita contra o meu tio

traidor.
Meu estômago estava embrulhado com tanta crueldade, e eu não era a

única; podia ouvir um som de asco vindo de Bonnie. O que minha mãe não

devia ter sentido ao saber da verdade!

― Foi bom ver o sofrimento dela após tudo que aconteceu. Pensei que

Iris fosse esconder o acontecido.

― Minha mãe nunca lhe fez nada para você sentir esse ódio por ela ―

rosnei.

― Sim, ela fez, tirou-me o lugar que era meu por direito! ― Parecia

ferver de ódio. ― Grigori conseguiu um dos guardas de Fyodor, o que era

meu segurança, e o trouxe para o seu lado, assim eu conseguia me encontrar

com meu pai sempre que podia para que ele me ensinasse tudo o que eu

devia fazer e como devia ser.

Pelos Céus, o pai havia ensinado o filho a ser o monstro que era agora!

― Tudo se resume ao seu lugar no maldito trono? Queria ser chefe a

todo custo, livrando-se de quem entrasse em seu caminho? ― A

monstruosidade dele não tinha tamanho ou idade, afinal fez isso ainda jovem.
Sacudiu a cabeça com raiva.

― Para você, é fácil falar, não foi sua vida que foi roubada por aquele

maldito Fyodor! Por isso gostei de quando ele chegou e descobriu que meu

pai tinha se deitado com Iris, fugido do cativeiro e matado os guardas que

estavam na casa! ― praticamente cuspiu.

Eu já havia tido contato com seres humanos monstruosos, mas aquele

em minha frente era um demônio encarnado.

― Ela revelou tudo a Fyodor, chorando, então os dois sofreram como

meu pai queria. Nenhum deles nunca desconfiou de mim. ― Sorriu maligno.

Trinquei os dentes.

― Seu monstro!

― Meu pai foi buscar alianças para nós. ― Sorriu como se eu o

tivesse elogiado.

Devia ter sido em uma dessas vezes que nos pegou no quarto dele e

bateu em Misha, porque papai jamais teria feito aquilo. Eu achava que papai

não devia ter fingido ser Grigori algumas vezes. Recordava-me de saber que
meu tio estava em tal lugar, e, de repente, papai desaparecia. Às vezes era

duro, talvez para ninguém desconfiar da verdadeira personalidade do meu

tio monstro e descobrir que estava tomando o lugar do irmão malvado.

Contudo, no dia em que meu irmão apanhou, aquele não era papai, eu tinha

certeza disso. Era meu tio Grigori ali.

― Como pôde fazer isso?! Ela era sua mãe também! ― Era evidente o

asco que eu estava sentindo.

― Como se eu desse a mínima para isso. ― Chegou perto de mim. ―

Eles eram traidores, mereciam o pior. O plano era fazer com que sofressem

muito. Conseguimos isso com dois filhos perdidos.

― Perdidos, não; você os vendeu ― rosnou Bonnie, fuzilando-o.

Ele a olhou como se ela fosse uma mosca nojenta.

― Verdade. ― Deu de ombros. ― Quando tive idade de ocupar meu

lugar por direito, sabia que era hora de me livrar de Fyodor e, como um

bônus, de Iris. Incendiei a cozinha primeiro, pois lá não tinha câmeras, e

tranquei toda a casa, então o fogo se alastrou. Sabia que ela estava no
escritório. Não sabia que Faina estava em casa, ela sempre ficava na casa da

árvore.

― Você matou sua própria irmã ― desdenhei.

― Não a matei. Na hora do incêndio, estava do lado de fora, vendo

pela janela pela qual tinha pulado após terminar o serviço, quando vi Fyodor

correr em minha direção com Faina inconsciente nos braços. Ele me

entregou a menina e falou para eu correr enquanto entrava para salvar Iris.

― Olhou para um isqueiro em sua mão, que eu não tinha notado antes. Isso

me deu calafrios. ― Fiquei lá, ouvindo seus gritos até desaparecerem...

― Meu Deus! Como alguém pode ser doente dessa forma?! ― Ainda

bem que Faina havia sobrevivido, mas meus pais não o fizeram, morreram

nas mãos do próprio filho, ainda que meu pai apenas o tivesse criado.

― Você é um psicopata. A ausência de sentimento de culpa, o

comportamento violento. Não sente remorso ou tem empatia, embora tenha se

preocupado com seu pai e sua irmã, então é um sociopata também. Eles têm

esses sentimentos em algum nível. Apesar disso, muitas vezes não é o


suficiente para impedi-los de prejudicar outras pessoas ― disse Bonnie,

avaliando-o.

― Todos somos sociopatas e psicopatas. Acha que meus irmãos e

Samuel são diferentes? ― Lançou-se contra ela, enfurecido, batendo em seu

rosto.

― Não toque nela! ― gritei. ― Samuel e meus irmãos nunca me

machucariam, ao contrário de você!

Ele veio até mim e me desamarrou.

― Vamos embora, já falamos demais. Vou pegar meu pai e matar todos

aqueles bastardos infelizes dos seus irmãos e pegar Faina de volta ― disse,

puxando-me dali. Então ele ainda não havia matado meus irmãos.

O terror me tomou ainda mais enquanto olhava para Bonnie, cujos

olhos revelavam o mesmo medo, provavelmente pensando que seria deixada

ali.

Não, eu não podia ir com aquele sociopata que destruíra minha

família!
Antes que saíssemos do local, tiros soaram lá fora, fazendo com que

Sergey amaldiçoasse e me empurrasse de volta, amarrando-me novamente.

Algo explodiu lá fora, então ele nos deixou e subiu a escada correndo com

uma arma na mão.

Quem estaria atacando-o? Fosse quem fosse, eu não ia ficar ali para

descobrir. Consegui me desamarrar, afinal ele não me prendeu direito

quando saiu, estava mais preocupado com a luta lá fora.

― Bonnie, consegui me desamarrar! Vou tentar fazer o mesmo com

suas amarras! ― Levantei-me e fui até ela, tentando soltar as cordas que a

prendiam. Meu coração estava acelerado, temendo que ele voltasse antes de

eu conseguir.

― Merda! Seu irmão é um monstro! ― Ela sacudiu a cabeça. ― Se

não fosse um mafioso, talvez devessem interná-lo em uma clínica.

― Não acho que seja esse o plano dos meus outros irmãos. ―

Finalmente consegui que ela se soltasse.


Bonnie olhou para o lado e pegou um machado. Depois disso, subimos

a escada. Abri a porta devagar, espiando. Não vi ninguém lá; os tiros vinham

da frente do lugar, então sairíamos pelos fundos. Não pensei mais, só peguei

a mão de Bonnie, e corremos dali, indo em direção à floresta.


Samuel

No meio do tiroteio entre os irmãos de Liliane e os homens de Sergey,

vi Lily e Bonnie correrem na direção da mata e dois soldados do russo

seguirem-na.

― Vocês dois vão atrás delas ― disse Lyn a mim e a Andreas. ― Eu e

seus irmãos vamos lidar com os homens aqui e Sergey.

― Não o quero morto ― disse Andreas.


― Ah, ele não morrerá assim, não após tudo o que ouvi que o infeliz

fez com meus pais ― rosnou Misha e me fitou. ― Proteja minha irmã.

― Sempre ― assenti e peguei a lateral da mata para dar a volta.

Tínhamos acabado de ouvir Sergey contando o que aconteceu no

passado, que o seu pai era Grigori, e Fyodor, dos outros, e que foi ele que

morreu para salvar a mulher que amava. Tinha um drone do lado de fora,

gravando e filmando tudo lá dentro através de uma janela no pequeno porão.

Chegamos ao local na floresta em que elas entraram e corremos com

nossas armas e óculos de visão noturna, afinal tinha escurecido havia pouco.

De repente, ouvimos dois gritos vindos da esquerda. Abaixei os

óculos, e corremos em direção ao som. O meu coração estava acelerado,

temendo que alguns daqueles miseráveis as machucassem.

Paramos quando o som das passadas indicava dois lugares diferentes,

à esquerda e à direita.

― Elas se separaram. ― Andreas praguejou. ― Eu vou pela

esquerda, e você, pela direita.


Assenti, e corremos em direções opostas. Eu poderia gritar o nome

dela, mas isso chamaria a atenção dos infelizes. Não demorou muito para eu

encontrar o rastro deles, e o segui.

― Foram mais deles atrás de vocês ― disse Misha através da escuta.

― Os drones vão ajudar com a orientação no lugar.

― Certo ― respondi e andei mais alguns metros mata adentro, então

ouvi o grito de Liliane. Segui a direção do som e então parei, indo devagar,

não fazendo barulho.

― Fique longe de mim! ― ouvi-a dizer com a voz tremendo. O medo

era evidente em seu tom.

― Ouvi dizer que você adorou quando aqueles homens a tomaram.

Santini até comentou que adoraria estar na fila, mas não foi convidado para o

dia ― ouvi o homem dizer com um sorriso na voz.

― Santini é o nome do homem que me comprou quando eu era criança.

O que aconteceu com ele? ― Detectei raiva em sua voz. Algo estava

diferente nela. Seria por que recuperou a memória?


Então Santini era o infeliz que comprava meninas para Lorenzo? Ah,

esse ia sofrer em breve. Ele era um dos chefes de nossos negócios no

Canadá.

― Também gostaria de saber ― falei, fazendo o infeliz se virar, mas,

quando ia me atacar, fui mais rápido, derrubando-o com um tiro na testa. ―

Acho que vou ter que ir atrás de respostas sozinho.

Liliane piscou e correu para meus braços. Eu devia ter pensado antes

de tê-lo matado na frente dela, mas não parecia preocupada com isso, só

aliviada por eu ter surgido. Eu também estava.

― Você está bem? Não se machucou? ― Toquei seu rosto e inspirei

seu cheiro, saboreando a sensação de abraçá-la, agradecendo a tudo só por

ter essa chance de novo.

― Estou bem, só estava com medo de nunca mais vê-lo ― sussurrou,

apertando-me entre seus braços. Depois se afastou, olhando ao redor. ―

Bonnie! Temos que achá-la!


― Andreas foi atrás dela ― falei, depois me comuniquei com ele pela

escuta: ― Achou Bonnie?

― Não... ― Interrompeu-se com um rosnado, então ouvi o grito de

Bonnie do outro lado. ― Você sangrará como um porco hoje.

Ele a havia encontrado, pois ouvi sons de luta.

― Vou levar Lily daqui. Te espero no helicóptero. Cuidado, que têm

mais cara vindo ― avisei-lhe.

― Pode deixar ― grunhiu, então ouvi um barulho de algo sendo

rasgado. ― Sim, um porco sangrando.

Olhei para Lily.

― Eles estão bem. Estou falando por escuta com seus irmãos. ―

Coloquei o pequeno aparelho na orelha dela. ― Pode falar com eles, estão

ouvindo, ao menos Andreas e Misha.

Ela suspirou, enquanto eu a puxava dali para seguirmos na direção em

que o helicóptero estava.


― Eu me lembrei de tudo. Só quero que saibam que amo cada um de

vocês, os nossos pais... Sergey... ele... ― Ela divagava conforme falava, e

eu não sabia se era porque não queria falar ou porque não queria preocupar

os irmãos. ― Como assim sabem? Ouviram como?

Ela ficou conversando com eles por um momento, enquanto eu olhava

nossa retaguarda. Não queria ser pego de surpresa. De repente, vi uma

explosão ao norte, seguida por outra e assim sucessivamente, umas quatro

vezes.

― Puta merda! ― Pisquei, pensando estar vendo coisa. Peguei a

escuta de Liliane às pressas e falei com Andreas. ― Está vendo esse clarão

vindo em nossa direção ou sou só eu?

― Estou vendo, precisamos correr antes que nos alcance ― respondeu

ele.

― A porra do Sergey apertou um detonador antes que o

nocauteássemos e fez uma barreira de fogo entre nós e vocês, e olha que o

impedi de explodir mais locais ― Misha falou e elevou ainda mais o tom:
― Corra na direção contrária do fogo! No final há um rio. Veja se consegue

chegar até lá. Vamos seguir a margem com o drone.

― Sim. ― Peguei a mão de Liliane, que estava paralisada vendo o

clarão começando a se alastrar na mata. ― Vamos correr!

Corremos pela mata na direção do rio, então ouvi pela escuta um

suspiro vindo de Bonnie.

― Está tudo bem com Bonnie? Ela parece estar com dor pelo suspiro

que soltou ― falei a Andreas.

― O quê? ― Ele falou com ela, mas não ouvi, ocupado em chegar

aonde tinha que ir e sair vivo dali.

― Vou ter que levá-la, seu tornozelo está torcido ― disse Andreas

com a voz estranha.

Devia ser ruim para ele, afinal eu sabia que era contra o contato físico.

Eu poderia tentar achá-lo, mas isso nos atrasaria. Não podia deixar que o

fogo se aproximasse de nós.


― Ok, vamos logo. Corra e, assim que avistar o rio, nos informe ―

pedi.

Minha visão noturna ajudava, embora o clarão do incêndio ficava cada

vez mais próximo.

― Bonnie está bem? ― sondou Liliane, ofegante pela corrida. ― Não

queria me separar dela, mas certa hora já não a encontrei mais, e, se gritasse,

os homens poderiam seguir a direção do som.

― Sim. ― Estava mesmo, só machucara o pé, mas eu não queria

dizer-lhe nem isso para não a preocupar. ― Ela ficará bem, não se preocupe.

Andreas está tomando conta dela.

Ouvi o suspiro dele, mas, como não disse nada, fingi não ter escutado.

Antes de chegarmos ao rio, ouvi tiros. Peguei Lily e a empurrei para

trás de uma pedra.

― Fique abaixada, já volto. ― Embrenhei-me na mata a fim de matar

os malditos que estavam querendo nos matar. Meu único foco agora era nos

tirar vivos daquele lugar. Com os homens, podia lidar, mas não com o fogo,
então, quem entrasse em meu caminho, eu iria dizimá-los até as cinzas.

Literalmente, pensei.

Liliane

O medo me consumia, ainda mais quando Samuel me deixou atrás de

uma rocha e saiu mata adentro. Se eu soubesse que eram ele e meus irmãos

atacando o lugar, não teria entrado na floresta. Entretanto, se ficássemos lá,

Sergey poderia ter voltado e nos usado para atingi-los.

Olhei a claridade crescente na floresta. O fogo parecia se alastrar

ainda mais, vindo em nossa direção, mas eu não entraria em pânico. Isso só

atrasaria Samuel, que ainda tinha que lutar contra aqueles infelizes que nos

perseguiam e atacavam.

O medo de sermos mortos queimados ou por aqueles cretinos

assassinos era demais, porém, eu lidaria com isso. Recordava-me de quando


eu treinava luta quando criança, mas isso não contava quando todos estavam

armados e prontos para nos matar.

Não demorou muito para Samuel aparecer, pegando meu braço.

― O que aconteceu com eles? ― sondei.

― Um morto, mas têm dois ou três atrás de nós ainda. Precisamos ir.

― Rebocou-me para frente. ― Misha disse que não estamos longe do rio.

― Não estamos, é só a alguns quilômetros por aqui. ― Indiquei o

rumo. Com a claridade do fogo, reconheci onde estávamos. ― Viemos aqui

quando crianças, àquela mesma rocha. Há uma cachoeira logo à frente,

nadávamos lá. Podemos atravessar o rio, o fogo não deve ultrapassá-lo. Ao

menos, espero que não.

O meu coração ficava cada vez mais acelerado com nossa fuga. Não

tínhamos corrido muito quando chegamos a uma clareira. Eu podia ouvir o

som da cascata que tinha ali. De dia, era o local mais perfeito que eu já tinha

visto, e Sergey destruiria tudo.

Chegamos ao mesmo tempo que Andreas com Bonnie em suas costas.


― Eles não estão longe ― falou Andreas com a voz nada amigável,

mas quem estaria com tudo aquilo? ― Você as leva através do rio, e eu tomo

conta deles. Estou farto disso.

Bonnie se mexeu em suas costas, deixando-o mais tenso ainda.

― Posso andar ― disse ela baixinho.

Ele apenas balançou a cabeça e a ajudou a descer de suas costas.

― Obrigada ― ela agradeceu e veio em nossa direção, colocando o

pé direito no chão, mas sua expressão foi de dor. Mesmo assim insistiu,

porém caiu para frente. Andreas chegou antes que caísse no chão e a pegou.

― Não pode forçar o pé. Samuel levará vocês. Vou cobri-los ―

Andreas disse a ela, depois a entregou a Samuel. ― Vão, eu cuido de tudo.

Nenhum deles passará desse rio. ― Era notável a verdade em cada palavra.

Samuel pegou Bonnie nos braços, e fomos ao barranco.

― Se tiver pedras lá embaixo... ― Bonnie piscou, olhando o abismo.

― Não têm, podem pular. Estive aqui algum tempo atrás checando a

área e as coisas do meu tio Maksim ― disse Andreas a meia voz.


Pulávamos ali sempre quando crianças, adorávamos nos aventurar.

Misha e eu sempre competíamos.

Fui até Andreas e toquei seu peito, fazendo-o tremer, mas ele não se

afastou.

― Tome cuidado ― pedi.

Ele pegou minha mão de seu coração e me puxou para seus braços,

apertando-me delicadamente.

― Sempre tomo. ― Respirou fundo. ― Estou feliz que esteja bem.

― Precisamos ir! ― falou Samuel com urgência.

Assenti, podia sentir o calor aproximando-se. Pulamos do barranco, e

respirei fundo antes que a água me atingisse. Estava gelada. Nadei para a

outra margem e, quando saí da água, olhei em volta, procurando Bonnie e

Samuel. Antes que eu ficasse preocupada, os dois emergiram.

― Vocês dois estão bem? ― questionei.

― Sim, estamos ― respondeu Samuel, trazendo Bonnie consigo.

Suspirei de alívio.
― Vamos embora? ― Ele pegou Bonnie, e saímos do rio, continuando

a andar pela mata. Eu não tinha caminhado por ali, não que recordasse. ―

Vamos seguir o drone.

― Drone? ― Tentei enxergar onde ele apontou, mas estava ficando

mais escuro quanto mais nos distanciávamos do fogo.

― Não dá para ver, estou enxergando por causa dos óculos de visão

noturna. É só me seguir ― explicou, e não fomos longe. De repente entramos

em uma clareira ampla, e havia um helicóptero lá, então vi Misha e Demyan

e outro cara, que reconheci daquele dia em que surtei. Parecia que se

chamava Lyn.

― E Andreas? ― sondou ele, olhando ao redor.

― Ficou para nos dar cobertura ― respondeu Samuel, levando Bonnie

para o helicóptero.

Lyn assentiu, e já ia entrar na mata, mas Andreas saiu dela, vindo em

nossa direção.
A lua na clareira estava brilhante, e os faróis da aeronave voadora

ajudavam a ver com clareza. Misha correu até mim, pegando-me nos braços

e girando, nem ligando para o quanto eu estava molhada.

― Merda! Nunca senti tanto medo na vida como hoje! Só em pensar na

ideia de perdê-la de novo me mata! ― falou no meu ouvido.

Eu estava feliz em estar com ele e meus outros irmãos.

― Estou bem. ― Tranquilizei-o sorrindo e abracei Demyan. ― Estou

feliz por estarem todos comigo.

― Vamos embora, pessoal? ― chamou Samuel. ― Bonnie está com

dor.

― Estou bem ― ouvi-a dizer lá dentro.

Fui até ela, pegando sua mão, ansiosa para sairmos daquele lugar.

― Conseguiu abater todos? ― perguntou Misha para Andreas.

― Sim. Agora vamos sair daqui, porque tenho assuntos inacabados

com nosso meio-irmão. ― Era possível ver o brilho predatório em seus

olhos.
Todos entraram no helicóptero, um dos grandes, pois coube todos nós.

― Vai participar? ― Andreas olhava para Samuel. ― Vou encerrar

tudo hoje.

Eles passaram a conversar em outra língua. Supus que não quisessem

que eu ouvisse.

Andreas franziu a testa e amaldiçoou. Depois ouvi algo como o nome

do chefe de Samuel.

― O que seu chefe tem a ver com o que estão falando? ― sondei.

Todos me olharam, mas não disseram nada, apenas Samuel, que pegou

a minha mão.

― Só estamos dizendo que devemos encerrar as coisas. Eles

perguntaram se você vai querer ver ou não. Na minha opinião, não acho uma

boa ideia, mas é com você.

Não detectei nenhuma mentira em sua expressão, mas, pela dos outros,

parecia haver um problema, mas o que era? Seria porque não me queriam

envolvida com os castigos dos homens que me destruíram?


Olhei para fora através da janela.

― Eu sei que eles podem ter me destruído por um tempo, mas hoje

estou razoavelmente bem e com minha família de volta. ― Olhei cada um

deles. ― Não irei me juntar a vocês. Entendo que precisam disso, mas só

quero seguir minha vida com Samuel e tentar recuperar tudo que me foi

tirado ou ao menos parte disso. ― Apertei a mão de Samuel. ― Se quiser ir

com eles, pode ir; vou tomar conta da Bonnie.

― Tem certeza? ― sondou. ― Primeiro, vou levar as duas ao médico.

Bonnie precisa ir por causa do seu pé, e você, pela sua cabeça. Afinal o que

aconteceu?

― Sergey meteu a coronha da arma na cabeça dela ― rosnou Bonnie.

― Aquele homem é um sociopata. Se não fossem matá-lo, teria que ficar

preso em uma área psiquiátrica para sempre.

― A única psiquiatria que ele verá será uma que o fará se sentir como

se estivesse no inferno, só que em vida ― respondeu Andreas.

― Não pensa em matá-lo? ― indaguei.


― Ele tirou anos da minha vida, deixando-me em um lugar que era

pior que o inferno. Ele sentirá na pele tudo que passei. ― O veneno estava

em sua voz.

― A vingança é um caminho que faz mal a sua alma ― disse Bonnie.

Mesmo ela dizendo que daria uma pausa em sua profissão como

psicóloga, não podia ouvir algo como aquilo e deixar passar.

― Não se pode prejudicar o que não se tem ― ele falou, escorando a

cabeça no banco e fechando os olhos.

Fiquei olhando para ele, assim como todos, mas ninguém disse mais

nada. Fiquei ali, com meu coração apertado. Uma vez, a minha alma foi

arrancada de mim, mas Samuel me ajudou a tê-la de volta. Eu só esperava

que meu irmão tivesse a mesma sorte. Talvez sua alma gêmea esteja mais

próxima dele do que imagina, pensei. Bonnie seria ideal. Os dois mereciam

ser felizes após terem perdido grande parte de si mesmos.

Não revelei esses pensamentos, não acreditava que nenhum deles

queria ouvi-los. Era só ter fé em Deus, pois, assim como Ele me deu a
felicidade, iria concedê-la aos dois e aos meus outros irmãos.
Samuel

Olhei para os vermes que machucaram Lily e cerrei os punhos. Todos

estavam só de calção no meio de uma arena no submundo de Detroit. Era um

presídio subterrâneo que foi construído só para lutas clandestinas.

― Foi você que construiu? ― perguntei a Andreas.

― Sim. Há vários tipos de tortura naquelas salas, e quem for preso

nelas suplicará para morrer logo, mas não terá tanta sorte assim ―
respondeu, abrindo a porta da grade que cercava os homens.

Todos que já não tinham morrido estavam lá, menos Grigori e Sergey.

― Onde seu tio e seu irmão estão? Queria ter minha vez com eles.

― Não posso dar isso a você, afinal, se o fizesse, você mataria

ambos. Ainda é muito cedo para suas mortes, a minha vingança está só

começando. Mas prometo, no dia em que eu for dar fim a eles, te chamarei.

― E eu achando que era controlado... Você é mais. ― Sacudi a

cabeça.

― Quando se vive enjaulado feito um animal, tudo que se pode ter é

controle, ou se findará. ― Bateu palmas, entrando no local. ― Trouxe

convidados para conversarem com vocês.

A fúria me consumiu ao olhar para aqueles vermes imundos, mas me

controlei. Alguns me reconheceram e pareceram até aliviados.

― Lorenzo mandou que viesse nos buscar? ― um deles sondou.

― Lorenzo está em um lugar ao qual logo vocês vão acompanhá-lo,

não se preocupe ― respondi.


― Onde? ― outro perguntou.

Sorri frio.

― No inferno. Já ouviu falar? ― Eles estavam bastante machucados.

― Acho que vocês brincaram com eles, não é?

― Não como eu gostaria ― respondeu Misha, estalando o pescoço

como os lutadores. ― Gosto de quebrar os fortes, não os fracos, embora

tenha prazer nisso também.

― Você sempre terá prazer ao sentir seu punho conectado com carne e

ossos. ― Demyan bufou.

Os miseráveis começaram a se alterar com nossa conversa.

― Por favor, nos ajude! ― implorou um deles.

Acenei para um dos rapazes de Andreas ligar o telão que tinha no

local. A cena de Liliane sendo machucada e sangrando se revelou.

― Lembram-se dela? Ela implorou para que não a machucassem, mas

o que vocês fizeram? Não se importaram, na verdade, foram os seus algozes.

― Peguei minha faca e sorri. ― Vou retribuir da mesma forma.


Os vídeos dos que matei começaram a rodar, expondo as súplicas

inúteis dos infelizes.

Os gritos começaram enquanto ainda assistiam às cenas, quando

avançamos sobre eles. Abati um, soltando a fúria reprimida que estava

segurando havia muito tempo. Senti-me livre ao esquartejá-los, embora

ainda deixando a maioria viva.

Passamos meia hora fazendo-os pagar, e ainda foi pouco. Nada

justificava as coisas que minha garota tinha sofrido.

Eles ainda estavam vivos e gemendo no chão. Peguei o combustível

que tinha separado e o joguei em cada um deles.

― Um presente só de ida para o inferno ― falei, jogando o isqueiro

aceso sobre a gasolina.

Afastei-me e fiquei olhando as chamas enquanto segurava o rosário,

apertando-o. Não pude vingar a morte de minha família, mas o fiz por Lily,

embora restassem seu tio e seu irmão.


― Esses gritos não chegam nem perto do que minha irmã passou. ―

Misha soltou o ar, com os punhos cheios de sangue, em seguida me olhou. ―

Nunca serei grato o suficiente por salvá-la e ainda tomar conta dela.

― Quem a salvou foi Matteo, o meu chefe. Eu só a levei para ser

tratada, e depois, a única pessoa cuja presença ela suportava era eu, então a

levei para minha casa, e eu e vovó tomamos conta dela. ― Suspirei. ― De

qualquer forma, sou grato por ela corresponder aos meus sentimentos.

Ficamos conversando um pouco mais, até que meu celular tocou.

Olhei-o e apertei os lábios.

― Seu chefe? ― sondou Andreas. Assenti. ― Se quiser, falo com...

― Não precisa. Sou um soldado de Matteo. Jurei não mentir para ele,

e fiz isso ao não falar de vocês. Agora vou arcar com as consequências

desse ato.

― E se ele resolver matá-lo? Minha irmã não vai ficar bem com isso

― apontou Misha.
― Matteo não vai me matar. ― Ao menos, eu esperava que não, mas o

castigo viria. Era a punição por eu lhe desobedecer. ― Como pedi no

helicóptero ontem, não digam nada a ela.

― Não vamos ― disse Andreas. ― Mas, se precisar de mim, estou

aqui.

Assenti, grato por ter mais pessoas na família.

― Antes de ir, quero lhes comunicar que vou me casar com a irmã de

vocês ― informei.

― Você está informando, não pedindo a mão dela. ― Andreas ergueu

as sobrancelhas.

― Espero que aprovem, mas, se não o fizerem, vou casar-me com ela

mesmo assim ― avisei. ― Embora acredito que Lily gostaria de ter a

aprovação de todos.

― Não posso me opor a isso. Você mudou a vida dela, tirando-a

daquele abismo em que estava. Recordo-me do seu olhar quando a vi a


primeira vez, na Austrália, tão diferente do que vejo hoje ― falou Andreas.

― Tem minha autorização.

― Eu nem sabia que ela estava viva, embora desejasse tanto isso, e

agora a tenho próxima novamente. Vejo o quanto ela é feliz e que o ama de

verdade. ― Misha me olhou de lado. ― Terá a minha aprovação também,

mas, se um dia a fizer sofrer, pode ter certeza de que pagará as

consequências.

― E somos quatro contra um , contando com Kostya. ― Demyan

sorriu. ― Bem-vindo à família.

Fiquei feliz por eles aceitarem bem. Isso deixaria minha menina

contente, e a mim também.

Saí de lá e li a mensagem.

“Venha agora”, só isso. Pela forma como ele escreveu, as coisas não

iriam bem para o meu lado. Fosse o fosse, eu lidaria com sua demanda. Jurei

honrá-lo, e iria cumprir o que quer que me ordenasse. Tinha chegado a hora

de eu enfrentar a minha sentença.


Antes de entrar no escritório me deparei com Moor na frente da sala

do chefe. Ele tinha sobrevivido, pois algum tempo antes sua irmã ligou

avisando que sua mãe foi parar no hospital, então ele me pediu liberação e

saiu às pressas. No fundo sou grato, ele é um bom soldado e amigo. Sinto

pelos outros que eram fiéis e leias. Quando penso nisso fico mais puto e

repenso em eu mesmo matar Sergey.

― Tentei avisá-lo, mas fui proibido ― me disse nervoso.

― Liliane... ― me interrompi quando fitou a porta.

Entrei no escritório parando de súbito, arregalando os olhos. ― Lily?!

― Ela estava sentada em uma cadeira, com os olhos húmidos. Fui até ela e

me abaixei, tocando seu rosto molhado, depois fuzilei meu chefe. ― O que

está acontecendo aqui?

Meu instinto me mandava lançar-me contra Matteo, mas eu não ia fazer

isso; se o fizesse, estaria morto, embora morresse com prazer, mas antes o

mataria sem problemas se ele tivesse feito Liliane chorar.


― Controle essa fúria que estou vendo em seus olhos. Não ajudaria

muito me enfrentar, quando sua mulher veio suplicar para eu não o matar ―

falou, não mostrando qualquer emoção.

O que ele disse me acertou no peito. Olhei para Liliane, que mordia o

lábio. Ficou de pé e me abraçou um momento, deixando-me meio zonzo.

― Liliane? ― Toquei sua cabeça. ― Quem falou que eu ia morrer?

― Bonnie traduziu para mim a conversa entre você e meus irmãos no

helicóptero. Ela não queria, mas estava preocupada. ― Afastou-se e me

olhou. ― Como pôde não me dizer nada?

Suspirei.

― Omiti coisas do meu capo. Não deveria ter feito isso, então mereço

ser castigado e vou aceitar a punição... ― olhei para Matteo ― seja ela qual

for.

― E se eu decidir que morrerá hoje? Irá aceitar de bom grado? ― Ele

me avaliava.

Não consegui ler sua expressão.


― Não! ― Lily o fuzilou, cerrando os punhos. Mantive-a em meus

braços para ela não tentar fazer besteira. Parecia que a sua intenção era

enfrentar meu chefe. ― Você...

― Se for esse o castigo, aceitarei morrer se assim ordenar ― falei a

verdade.

Lily me olhou como se eu tivesse perdido a cabeça, mas não era um

covarde que se escondia atrás de sua mulher, era homem para enfrentar os

meus erros e arcar com as consequências.

― Samuel! ― gritou Lily horrorizada.

Olhei para ela e toquei seu rosto.

― Lily, eu jurei lealdade ao meu chefe, além de aceitar qualquer

castigo que ele viesse a me dar caso o traísse. ― Suspirei.

― Não aceito isso! ― Sacudiu a cabeça com veemência e encarou

Matteo. ― Você me salvou uma vez! Um homem capaz disso não pode

mandar matar um dos seus! Dona Zaira disse que vocês são como família,
mas que tipo de família é essa, se, por qualquer coisa, querem matar o seu

pessoal?

― Lily...

Ela me interrompeu, não tirando sua atenção do meu chefe, que não

disse nada.

― Se o machucar, vai ter que me machucar também! ― Pela forma

como falou, estava decidida, embora eu pudesse senti-la nervosa.

― Isso não vai acontecer ― rosnei. ― Ninguém vai tocá-la.

Ela não respondeu, encarando Matteo.

― O que vai ser?

Meu chefe finalmente sacudiu a cabeça, e pude ver, por trás de sua

fachada, que não parecia que ia me matar.

― Saia e me deixe falar com Samuel ― ordenou.

― Até parece que vou sair ― rosnou. ― Não saio daqui sem ele, de

preferência inteiro e vivo.


Antes que alguém falasse mais alguma coisa, uma batida à porta soou.

Dona Zaira entrou, seguida por Luca e mais alguém, mas, antes de eu ver

quem era, prestei atenção em Matteo, checando-o novamente para tentar

descobrir o que estava armando. Entretanto, sua expressão estava em branco

de novo.

De repente, o corpo de Lily sacudiu, e seu aperto no meu braço se

tornou forte. Observei sua expressão. Não a via com medo assim havia anos.

Procurei saber o que ela olhava, foi quando vi o homem que entrou sorrindo

para Matteo.

Lily chegou ainda mais perto de mim, como se quisesse entrar em meu

corpo e fugir daquela pessoa. Nem parecia a garota que estava enfrentando

Matteo pouco antes. Encarar alguém estranho não era tão difícil quanto ver

alguém do seu passado.

― Chamou, chefe? ― o homem indagou.

Entraram mais dois, um deles era de idade, Bartimeu e Moises. Ambos

eram coletores da máfia. Eu nunca tinha achado que fossem capazes da


crueldade que tinham cometido com Liliane quando criança. Tinha falado

com Matteo no dia anterior sobre Santini, e ele disse que o infeliz não

trabalhava sozinho, não sem aqueles dois. Não achei que meu chefe os traria

ali naquele dia.

― Sim, eu os chamei. ― Matteo assinalou para Zaira. ― Pode levar

Liliane?

Ante isso, Lily piscou, encarando-o.

― Eu não...

― Não vou castigá-lo. ― Agora. Eu apostava que tinha pensado nessa

palavra.

Ela o avaliou um segundo, parecendo acreditar nele e assentindo, mas

não se mexeu. Olhou para dona Zaira.

― Deixe-me levá-la lá fora e já volto ― falei a Matteo, que

concordou.

Eu não acreditava que Lily conseguiria sair dali sozinha, ainda mais se

tivesse de passar por aqueles imundos. Saí do escritório com ela ao meu
lado.

― Samuel, foram eles... ― Sua voz tremia.

― Eu sei, querida. Vou fazê-los receber o que merecem ― jurei.

― Seu chefe... ― Olhou para mim com um novo medo.

― Ele não vai me matar, prometo. ― Beijei de leve seus lábios e

olhei para Zaira. ― Fique com ela, por favor.

Aquiesceu e pegou a mão de Lily.

― Vamos tomar algo na cozinha. A menina Irina está lá, assim vocês

se conhecem. ― Zaira a levou.

Cerrei os punhos e voltei para o escritório. Assim que entrei, todos

estavam sentados. Nenhum deles a tinha reconhecido. Ainda que fizesse

quinze anos, os olhos e cabelos delas não tinham mudado nada. Eu havia

pedido uma foto de Liliane quando pequena a Misha.

O que eu faria não era só por ela, mas por todas as meninas que

aqueles malditos compraram para Lorenzo.


― Chefe, estávamos dizendo aos outros aqui que estamos felizes em

seu governo.

― Sim, por isso eu trouxe vocês. Vamos para o porão, tem alguém lá

que quero que conheçam ― disse Matteo, levantando-se. ― Quero que

vocês deem uma lição nele.

O peito de todos os três incharam por receber uma ordem direta do

chefe. Bando de puxa-sacos. Eu soube que eles não gostavam do novo

governo, inclusive estavam organizando um motim para derrubar nosso capo.

O infeliz do Santini queria tomar posse do trono, como se isso fosse

possível. Se Matteo morresse, o cargo seria de Luca, por herança de família.

― Obrigado, chefe, por nos honrar assim. ― Santini sorriu.

Eu logo esculpiria um sorriso em seu rosto. Esperava matá-los. Ainda

faltava terminar minha vingança. Depois deles, só restariam Sergey e

Grigori, mas eu era paciente quanto a esses. Enquanto isso, aproveitaria com

aqueles.
Eles foram atrás de Luca, que os levou para baixo. Eu estava a ponto

de ir também, quando Matteo me chamou. Merda! Eu tinha me esquecido do

meu castigo.

― Sim. ― Fiquei de frente para ele.

― Entre os meus homens, em que eu mais confiava era você. Eu o

tinha como parte da família, estava pensando em torná-lo meu consigliere.

Como pôde fazer aquilo? Esconder coisas de mim?

Percebi que o que fiz realmente o estava matando. Isso foi como um

soco, pois Matteo e eu estávamos juntos havia muito tempo. Ele esteve do

meu lado nos momentos ruins e bons, lado a lado comigo, confiou em mim,

mas então estraguei tudo ao não lhe contar sobre os irmãos de Lily.

― Não vou justificar meus erros. Não foi por não confiar em você que

não contei, embora isso não justifique a minha decisão. Andreas me pediu só

um tempo até seu plano estar em ação, aí eu contaria tudo a você ― falei

com um suspiro. ― Lamento por quebrar a confiança que tinha em mim e por

isso aceitarei qualquer punição que me der.


Ele se aproximou tanto de mim que nossos narizes quase se tocavam,

os olhos nos meus, revelando a dor da traição.

― Eu te amava como a um irmão, mas você escolheu ficar do lado

deles. Me pergunto se está tentando mudar para a outra máfia ― cuspiu,

mesmo assim pareceu dilacerado.

Porra! O tenho como um irmão e não contei nada a ele!

― Jamais sairia do seu lado, a não ser que me expulsasse, e mesmo

assim não seguiria o selo dos Darkness. Os Volkovs são só meus cunhados e,

espero, aliados. Minha lealdade está com você ― declarei. ― O meu capo,

amigo e irmão.

Era a verdade, eu não iria para outra organização, era fiel, mesmo que

fosse expulso. Esse pensamento apertou meu peito, porque não queria ir

embora e deixá-lo. Estava como Matteo, e me dilacerava só a ideia de me

afastar dele.

― Entendo que por causa de seu amor por Liliane, pensou que tivesse

que ficar do lado da família dela, e aceito isso, mas não quando minha
organização está envolvida. Maldição, tinha um infiltrado dos Volkovs aqui,

e não me falou! ― Sacudiu a cabeça.

― Estive de olho no traidor assim que soube. Não permitiria que

soltasse nada, a não ser o que eu queria para pegar Sergey e Grigori.

Já tinha lhe contado sobre o resgate de Liliane e Bonnie e que

descobrimos que Fyodor era, na verdade, Grigori.

― Acha que isso justifica a traição?

― Não, não justifica ― respondi sinceramente. ― Matteo, sei que

esconder algo assim de você foi ruim, eu me senti mal também. Só queria

que essa porra acabasse logo e que Liliane ficasse bem longe de tudo isso,

mas no final ela foi sequestrada e quase morta por eles e por um maldito

incêndio na mata.

Ele me avaliou.

― Não posso deixar isso passar em branco. A maioria de meus

homens sabe o que você fez. Se deixasse impune, duvidariam da minha

liderança.
― Não estou pedindo isso, jamais o faria. Sou um dos seus soldados;

se desobedeci a uma ordem, o mínimo que você tem que fazer é me dar um

castigo. Aceito isso e vou recebê-lo seja o que for. ― Não me desviei de

seus olhos, querendo que visse a sinceridade neles, embora meu peito se

aquecesse por ele pensar em me perdoar se dependesse só dele.

― O castigo para isso seria a morte, assim como aconteceu com o

infeliz do Caco. ― Trincou os dentes.

Eu soube que Matteo o havia matado, dilacerando o infeliz. Muito

possivelmente sua raiva de mim também contribuiu com o estrago que fez no

sujeito.

― Se assim tiver que ser, será ― assenti. Não queria morrer, não

quando tinha um futuro com Liliane pela frente, mas não fugiria da minha

sentença.

― Só dessa vez vou deixar passar, Samuel, só dessa vez. ―

Aproximou-se mais. ― Nunca minta ou esconda nada de mim de novo. Não

vou matá-lo, pois é mais leal do que pensei. Se fosse algum outro, estaria
implorando por perdão e que eu não o matasse, mas posso ver que aceitaria

a morte caso eu ordenasse.

― Sim, fiz um juramento a você e o cumprirei até o dia em que eu

morrer ― declarei.

Perguntava-me se Caco suplicara a ele antes de ser morto. Muito

provavelmente sim pelo calhorda que era.

― Vá embora. Depois vejo qual vai ser o castigo que vou lhe dar. ―

Afastou-se e indicou a porta.

― Santini...

― Ele não é problema seu ― virou-se e me encarou com os olhos

duros como aço ―, é meu, e você vai pegar Lis e ir embora agora, antes que

eu mude de ideia e, em vez de soltar essa fúria que estou sentindo nos

homens lá embaixo, libere em você.

Não discuti, não por temer apanhar dele, mas sim porque obedecia às

suas ordens, além disso estava feliz por poder ficar com Liliane, ainda que

ansiasse por matar os homens no porão.


― Samuel? ― Matteo chamou quando eu estava abrindo a porta.

Parei, sem me virar, e ele continuou: ― Última chance. Na próxima, pagará

com a vida, e eu lamentaria ter de matar um irmão.

― Não vai ser preciso, pois jamais farei aquilo novamente ― jurei e

cumpriria essa promessa a todo custo.


Liliane

Após saber que o chefe de Matteo pretendia castigá-lo, não pensei

duas vezes e corri para vê-lo e suplicar pela sua vida, afinal ele não fez nada

demais, só ajudou meus irmãos a pegar meu meio-irmão.

Quando aqueles homens que me venderam quando criança entraram no

cômodo, o medo de que pensei nunca mais sentir tomou posse de mim.

Queria enfrentá-los e dizer-lhes algumas verdades, mas na hora fique


congelada. Achei que estava bem. E se isso significasse que não estava?

Não, não pensaria mais naqueles monstros, que estragaram não só a minha

vida, mas a de muitas jovens e crianças. Confiava que Samuel resolveria

tudo.

― Vai ficar tudo bem, Raio de Sol ― disse ele ao meu lado.

Estávamos no seu carro. Tínhamos acabado de sair da casa do de seu

chefe. Ainda bem que Samuel estava vivo e inteiro. Eu temia que o seu capo

o matasse.

― O que vai acontecer com aqueles homens? ― perguntei, embora

tivesse uma ideia.

― Pagarão pelo que fizeram não só a você, mas a muitas meninas ―

respondeu.

Assenti. Uma parte de mim ficou aliviada por saber que não fariam

mais nada de ruim a qualquer pessoa.

― Seu chefe decidiu não o castigar? ― Suspirei. ― Achei que eu ia

gostar dele por ter me salvado, mas isso não vai acontecer, se ele está
pensando em matá-lo...

― Ele não vai me matar, só me castigar ― falou, como se isso não

fosse grande coisa.

― Castigar? Como? ― Cerrei os punhos. Não gostava de Samuel

sendo machucado.

― Não vamos falar disso. Tenho uma surpresa para você. Na verdade,

estava preparando-a para a noite, mas acredito que eu tenha que antecipar as

coisas, afinal estamos aqui agora. ― Sorriu.

― Samuel...

― Lily, você não entende, mas fiz um juramento ao meu capo, e a

sentença ao quebrá-lo é a morte. Apesar de tudo, ele não vai me matar. Estou

muito grato a ele por me dar mais uma chance. Então, seja qual for a punição

que ele decidir, vou recebê-la. ― Apertou minha mão. ― Agora não quero

pensar nisso, mas sim na surpresa que preparei para você.

Quis retrucar, mas faria o que ele estava me pedindo. Fiquei ansiosa

para saber qual surpresa estava preparando para mim.


― O que é? ― sondei, empolgada.

― Isso, fique animada. Aposto que vai adorar. ― Piscou.

Ele era bom em me fazer esquecer dos problemas. Acreditava que

tinha o poder de fazer eu não me lembrar nem do meu nome.

― Você ia fazer essa surpresa à noite? Como ela está pronta agora, se

estava com meus irmãos em Detroit? ― inquiri.

― Vovó cuidou das coisas para mim, pedi sua ajuda. Bonnie a auxiliou

orientando, já que não pode se locomover.

Fiquei feliz em saber que todos se reuniram para aquela surpresa. Isso

me fez pensar.

― Falei com Kostya e Faina. Vamos nos encontrar em alguns dias.

Estou animada em vê-los ― sussurrei.

― Sim, seus outros irmãos os querem fora do radar enquanto estão

limpando a casa de traidores. ― Suspirou. ― Sei como é isso, demoramos

muito para fazer o mesmo.


Estacionou o carro no prédio que ele tinha em Chicago, e entramos,

seguindo para um elevador.

― Minha surpresa está lá em cima? ― questionei, curiosa e animada.

― Sim, mas, de certa forma, é uma surpresa para mim também, afinal

não sei como ficou, só pedi algo romântico que mostrasse o amor que tenho

por você. ― Puxou-me do elevador, e paramos na porta do apartamento. ―

Pronta?

― Com você? Sempre ― afirmei, respirando fundo.

Entramos depois que abri a porta, e me deparei com o aroma de rosas

e não só isso; o chão tinha uma trilha de pétalas de rosas vermelhas.

― UAU! ― exclamei.

― Vamos seguir a trilha para ver onde vai dar? ― Sorriu, e seguimos

andando.

O chão da sala estava lotada de pétalas também, mas a trilha seguia

para o quarto. Após entrarmos, dei um passo à frente, mas ele ficou atrás de
mim. O quarto tinha balões em forma de coração suspensos no teto e mais

pétalas no chão. Parei perto da cama, chocada demais.

“Casa comigo?” estava escrito sobre a cama com pétalas de rosas.

― Você diz que eu a salvei, mas foi o contrário... ― Ouvi a voz de

Samuel atrás de mim.

Virei-me e levei a mão à boca, arregalando os olhos. Ele estava

prostrado em um joelho com uma caixinha vermelha na mão.

― Antes, eu andava pela escuridão, à deriva, vivia e respirava, mas

uma parte de mim estava morta. Porém você me fez reviver no momento que

a conheci, aquele anjo perfeito brilhante como um raio de sol. Hoje sou o

homem mais feliz deste mundo por tê-la em minha vida e ficaria ainda mais

feliz se você, Liliane Volkov, aceitasse ser minha esposa. ― Seus olhos

brilhavam. ― Prometo amá-la incondicionalmente, mover céu e terra para

fazer seus sonhos se realizarem e fazê-la feliz a cada dia enquanto eu

respirar.

Pisquei, com meus olhos alagados de lágrimas.


― Sim, aceito me casar com você agora e sempre ― concedi, entre

choro e um sorriso de alegria.

Ele se colou de pé e pegou o anel na caixinha, colocando-o no meu

dedo, então ficou em minha frente enquanto eu admirava a pedra de diamante

amarelo em formato de uma meia lua entrelaçada a uma estrela.

― Lindo demais... ― sussurrei maravilhada.

― O sol e a lua. Pedi a um ourives que fizesse nesse formato, pois

tinha certeza de que você amaria. ― Beijou o anel no meu dedo e depois

minha tatuagem, mantendo os olhos em mim. ― Minha, só minha.

Um calor se apossou de mim diante daqueles olhos magnéticos, que me

deixavam com as pernas bambas.

― Sua agora e sempre. ― Joguei meus braços à sua volta. ―

Obrigada! Hoje estou mais do que feliz.

― Ah, é? ― Pegou-me nos braços, colocando-me na cama com

delicadeza. ― Vamos ver se a faço ainda mais feliz.

Sorri.
― Seu toque é como um vulcão. Toda vez que o sinto, acho que vou

explodir em todos os lugares.

Tirei suas roupas, enquanto ele fazia o mesmo com as minhas. Logo

estávamos os dois nus, amando-nos naquela cama enfeitada para nós.

― Combustão não chega nem perto do que você me faz sentir ― ele

declarou com os olhos cheios de desejo e amor enquanto estocava dentro de

mim.

Fazer amor com Samuel era como andar sobre as estrelas. Eu nunca

tinha feito isso, claro, mas podia imaginá-las ainda mais brilhante de perto,

com o sol à espreita. Era mesmo como se meu corpo estivesse em

combustão. Essa palavra resumia tudo.

― Tão perfeita quando goza! ― falou com ardor. ― Aliás, você é em

todos os momentos linda demais, o meu tesouro mais valioso.

Tremendo, abri meus olhos, pois os tinha fechado na hora do êxtase

que me arrebatou. Corei.

― Você também é lindo ― declarei com um sorriso tímido.


Ele saiu de mim, mas me puxou para seus braços. Coloquei a cabeça

em seu peito, enquanto seus dedos mexiam no meu anel.

― Antes de nos casarmos, eu quero te contar uma coisa. ― Sua voz

estava séria. Afastei-me para ver seu rosto, mas ele não permitiu. ― Sei que

não devia falar nesse momento perfeito, mas não quero mais guardar para

mim. Se vamos dividir uma vida juntos, quero que saiba do que aconteceu

com meus irmãos e minha mãe.

― Estou aqui para qualquer coisa! ― declarei com fervor.

Ele ficou em silêncio por um tempo, talvez organizando seus

pensamentos, então respirou fundo.

― Por minha culpa, eu perdi minha mãe e meus irmãozinhos. ― A dor

estava em cada palavra.

Meu coração rachou por ele.

― Não acredito que isso seja possível. Ouvi dizer que salvou muitos

garotos, inclusive Bonnie. ― Fiquei ouvindo o som de seu coração, que

batia acelerado.
― Ela te contou o que aconteceu? ― sondou com a voz distante.

― O que aconteceu com ela, sim, mas não a respeito de sua família.

Acho que não queria invadir sua privacidade e preferia que você mesmo me

contasse tudo quando estivesse pronto.

Não respondeu nada por um tempo, até achei que não ia mais falar,

então ouvi sua voz quebrada.

― Por muito tempo tenho arquitetado tudo, a minha fuga e a dos meus

irmãos, Raiane e Renan. Os dois iam completar sete anos, e eu sabia o que

isso significava. ― Sua voz soou letal: ― Todos faziam parte de uma seita.

Eu a chamo assim porque quem segue uma religião e fé verdadeiramente

jamais se submeteria àquela merda. Eles nos castigavam. Os meninos eram

espancados, e as meninas, molestadas, isso quando não acontecia nada pior.

Ainda bem que eu já tinha superado a raiva desde o dia em que Bonnie

contou; não queria demonstrar meus sentimentos ainda, Samuel poderia

resolver não me dizer nada.


― Não tinha a mais remota possibilidade de eu deixar que

acontecesse essa atrocidade com meus irmãos, então organizei tudo. Naquele

dia fui armado com a intenção de matar todos os malditos pedófilos naquela

igreja. Era a iniciação dos meus irmãos. ― Respirou de modo irregular. ―

Tinha uma lei que não permitia entrar armado lá, por isso fui com a intenção

de acabar com aquela coisa fodida, e sabia que aqueles monstros não

estavam armados. O pai de Bonnie estava com Raiane e ia...

Sua respiração ficou pesada. Eu sabia que logo viria o pior. Bonnie

tinha me contado essa parte, mas havia mais coisa naquela história horrível.

― Pedi que Bonnie levasse todos os garotos que estavam lá na hora,

inclusive meus irmãos e, depois, atirei em todos os malditos, que estavam

com olhos cheios de luxúria ao pensar que presenciariam o desgraçado do

reverendo tocando minha irmã. ― O asco era evidente em sua voz, como

também em meus pensamentos, mas não o interrompi, pois não queria que ele

perdesse a coragem de me contar.


― Eu me senti bem matando todos, ou achava que tinha matado. Devia

ter checado se estavam realmente mortos... Se tivesse feito isso, minha

família ainda estaria viva...

A dor estava em sua expressão. Isso cortou meu peito, pois eu não

podia fazer nada.

― Eu estava saindo com eles e Bonnie, quando minha mãe apareceu

dizendo que ia conosco, mas, antes de eu ter tempo de ficar feliz, Giovanni,

o homem que se dizia meu pai, apareceu atirando em todos nós. Recordo que

minha mãe caiu, depois meus irmãos. Eu ia revidar, mas aconteceu tão

rápido que me vi caindo de dor ao ser atingido também. ― Sua respiração

estava acelerada. ― Quis lutar, porém os ferimentos de balas foram demais.

A última coisa que me lembro é dele tirando sua própria vida e dizendo que

todos nós íamos nos encontrar após a morte.

― Você não podia ter feito nada ― finalmente falei e, dessa vez, me

afastei para olhar seu rosto. Ele deixou, ou estava sem forças para impedir.

A dor que vincava sua expressão era tortura pura. ― Estava ferido.
Olhou o teto, mas parecia não o ver.

― Acordei no hospital dias depois, quando vovó me contou que eles

tinham morrido. Ela sofria de um lado, e eu, do outro. Nem pude ir ao

enterro deles, pois tinha se passado muito tempo. ― Inspirou fundo, mas

tremeu como se doesse.

― Lamento por sua perda. ― Olhei sua barriga cheia de tatuagens,

sob as quais era possível ver uma cicatriz que eu já tinha percebido. Toquei

o local. ― Seu pai era um monstro. Por pouco não o matou também.

― Sim, ele era ― respondeu. ― Nem pude fazer com ele o que

desejava por tirar tudo de mim. Restava apenas Lorenzo, pois deixava aquilo

acontecer como se fosse natural, aquela podridão. Eu me aliei ao filho dele

para derrubar o pai. E, no final, nem pude matar Lorenzo também. O velho

infeliz teve que ficar em coma antes de eu vê-lo destruído e no final morreu,

mas não da forma que eu gostaria.

Fiquei em silêncio um momento, ouvindo o veneno em sua voz. A

veemência enfurecida que vinha dele era quase palpável.


― Não tenha medo. Mesmo que eu fique furioso com algumas coisas,

nunca será com você nem nunca descontarei em você ― disse-me em voz

baixa.

Tirei minha atenção de sua cicatriz e encontrei seus olhos agora cheios

de remorso.

Pairei em cima dele, montando-o, e levei meu rosto a centímetros do

seu, não desviando-me de seu olhar.

― Jamais sentiria medo de você. Sei que iria preferir cortar um braço

a me machucar independentemente se estiver com raiva ou não. Alguém que

faz o que você fez por sua família, por Bonnie e por mim nunca iria

machucar alguém inocente. ― Toquei seu rosto. ― Sua bondade e

generosidade me fizeram amá-lo ainda mais durante esses anos. Graças a

você, sou completa e realizada em todos os sentidos.

― Você também me fez ser completo de todas as formas. ― Beijou

minha testa. ― Felicidade é uma palavra fraca para o que estou sentindo

agora.
Absorvi essas palavras e seu toque.

― Fico feliz em fazê-lo feliz. ― Sorri.

Ele sorriu também. Fiquei contente por aquela sombra sair de sua

expressão.

― Eu sei de algo que pode me deixar ainda mais do que feliz. ―

Pegou meus quadris e me levantou, então me abaixou, entrando em mim com

um gemido. ― Porra, isto é bom demais! Eu poderia morrer aqui, dentro de

você, e ainda ser feliz. Pode realizar isso? Me fazer ainda mais feliz?

Por ele, eu realizaria tudo que estivesse ao meu alcance e ainda mais.

Como não podia tirar a dor das suas lembranças, eu lhe daria o que pudesse

para deixá-lo feliz e, de bônus, a mim também.


Liliane

Durante as semanas seguintes, fiquei ansiosa pelos resultados do

exame que eu tinha feito para saber se podia ser mãe ou não. Quando recebi

a notícia de que talvez não pudesse ser mãe, fiquei em choque, nunca havia

pensado nisso, mas conversei com Samuel e, mesmo se eu ainda tivesse essa

capacidade, não ia querer por agora, afinal estava me descobrindo, ia

estudar e me tornar uma cozinheira. No futuro, podia pensar na maternidade,


e, se o resultado do teste desse negativo, quando chegasse a hora certa,

poderíamos adotar uma criança. Fosse como fosse, eu tinha colocado aquilo

nas mãos de Deus.

Samuel ficou do meu lado como sempre, e eu não podia estar mais

feliz. Todavia, não era só isso que estava me deixando inquieta. Enfim veria

meus irmãos Faina e Kostya. Fazia tantos anos que eu não os via que não

sabia como reagiria.

― Ainda está cedo para que eles cheguem aqui ― disse Bonnie

sentada no sofá com o pé com a tala para cima. No dia seguinte ela tiraria “a

coisa”, como chamava.

― Eu sei, é que faz tanto tempo ― sussurrei nervosa.

― Enquanto isso, por que não abre o exame? ― sondou Bonnie,

indicando onde o envelope estava.

― Não quero abri-lo sem o Samuel estar presente, afinal esse

resultado cabe a nós dois. ― Uma parte de mim temia o resultado do que

aqueles homens tinham me feito.


― Verdade. ― Piscou e deu um sorriso. ― Será que logo vou ter

sobrinhos por aí?

Fiquei contente que ela quisesse me animar.

― Mesmo se eu puder, nós não queremos filhos no momento. Tenho

outras prioridades, além de aproveitar o que perdi. Se puder, apenas no

futuro. ― Dei um suspiro.

― Tudo dará certo, Lily ― assegurou, confiante.

― Eu sei. ― Resolvi mudar de assunto ou pretendia, mas um carro

parou na frente de casa chamando minha atenção. Fiquei ansiosa.

Não demorou muito para Samuel entrar seguido por Andreas, Demyan

e Misha, que me abraçou e me rodopiou como se eu não pesasse nada.

― Sou pesada! ― Ri baixinho.

― Na verdade, é uma pena ― disse entre risadas, mas me colocou no

chão. ― Estava com saudades. Não sei como conciliar esse longo espaço

entre nossas cidades.


― Também quero ficar perto de vocês, mas aqui é onde pertenço. Um

dia, quando encontrar sua alma gêmea, entenderá ― falei, pensando em

Samuel.

Alguém deu uma risada.

― Misha com uma alma gêmea? Só quando o inferno congelar. ― A

risada era gostosa, como eu me recordava de quando era criança. Vinha de

trás dele. Kostya.

Afastei-me de Misha, que fez uma careta.

― De repente posso ensinar você a...

― Acho que não é hora para uma briga de irmãos ― Demyan entrou

na conversa, com um sorriso.

Sorri também e olhei para o menino sorridente que tinha virado um

homem de cabelos escuros, olhos claros e um sorriso torto. A menina ao

lado dele tinha cabelos loiros e olhos claros também, um rosto juvenil,

embora seus olhos escondessem algo escuro. Viver trancada por tanto tempo

é doloroso demais, ainda mais quando se acha que perdeu tudo.


Pelo que Samuel me disse algumas noites atrás, Faina achava que

todos nós tínhamos morrido enquanto esteve presa todos aqueles anos

naquele internato.

― Oi, é bom rever vocês dois. Um se tornou tão alto e lindo como um

modelo. ― Sorri para Kostya, depois para Faina. ― E você está ainda mais

linda.

― Não diga que Kostya é lindo. ― Misha revirou os olhos. ― O

moleque já é convencido demais, e um galanteador.

Seu sorriso conquistador de covinhas mostrava que era justamente

isso.

― Vocês querem ir para o terraço? Lá tem mais espaço, e podemos

ficar à vontade ― sugeri. ― Preparei uma sobremesa de framboesa e cereja

para vocês.

― Meu sabor favorito ― disse Samuel, abraçando-me por trás.

Pensar nesses sabores me fez recordar das palavras de Samuel. Evitei

corar, assim ninguém notaria o duplo sentido em suas palavras, embora


Misha tenha estreitado os olhos, mas não disse nada.

― Sabe cozinhar? ― perguntou Faina, curiosa.

― Sim, vovó me ensinou. ― Sorri.

― Vovó? ― Franziu a testa.

― A avó de Samuel. Eu a chamo assim.

Bem na hora, ela entrou na sala com um sorriso doce.

― Sou Donatella. É um prazer conhecer vocês.

Elas se apresentaram, e por último, Kostya.

― É uma honra conhecer a senhora mais bela em que tive o prazer de

colocar os olhos. ― Pegou a mão dela e a beijou em um gesto tão antigo

quanto o mundo.

― Oh, menino, assim você me deixa sem graça. ― Vovó deu um

sorriso.

― Agora entendo o que você quis dizer com galanteador ― sussurrei

para Misha.
Kostya se afastou, soltando a mão da senhora.

― Sou educado demais comparado aos vândalos dos meus irmãos. ―

Revirou os olhos. ― Principalmente Misha.

Antes que virasse uma discussão, vovó entrou na conversa.

― Subam ao terraço, que vou levar a sobremesa e a louça para servi-

los.

― Vou encaminhá-los ― disse Samuel, afastando-se de mim e

seguindo para a escada.

Misha o seguiu, depois Demyan e Faina.

Fui ajudar vovó e, quando entrei na sala com uma das tigelas de

sobremesa, ouvi Bonnie dizer:

― Eu consigo subir.

Olhei para a escada. Não podia vê-los dali, mas sabia que ela tentava

subir, mas, mesmo com o pé quase sarado, ainda devia estar dolorido.

― Eu a carrego ― Andreas disse.


― Não precisa. Sei que o contato físico o incomoda e não quero lhe

causar dor ― ela sussurrou.

― Pode doer, mas não vai me matar. ― Ouvi um barulho. ― Coisas

piores não me mataram, não será algo assim que o fará.

― Andreas, me coloque no chão ― ela pediu ofegante.

Não ouvi uma resposta, mas passos pesados subindo a escada.

― Esse menino sofreu tanto. Posso ver em seus olhos tão lindos,

mesmo assim parecem mortos ― ouvi vovó dizer ao meu lado.

― Desejo que os dois sejam a alma gêmeas um do outro. ― Respirei

fundo, querendo que meu irmão fosse feliz, assim como minha amiga.

― Deus tem um plano para tudo, menina. Quem sabe os destinos deles

não foram cruzados por um motivo? ― Trazia uma bandeja com a outra

tigela de doce. ― Vão ficar faltando as taças e talheres.

― Deixa que ajudo vocês duas ― disse Samuel, descendo a escada e

vindo até nós.


― Não, vovó, eu levei a louça mais cedo, então vamos ― informei, e

subimos as escadas.

Todos estavam ao redor da mesa, conversando.

― Eu estava falando que vocês têm uma bela vista aqui ― disse

Faina, suspirando.

― Sim, adoro este lugar. ― Olhei para o lago após colocar a tigela na

mesa. ― Depois, se quiserem dar um mergulho, fiquem à vontade.

Ficamos conversando por algum tempo, matando a saudade que

tínhamos uns dos outros.

― É uma sobremesa deliciosa, irmã ― disse Demyan, sorrindo para

mim.

― Todos sabem que você gostou, afinal já é a quarta taça. ― Kostya

sacudiu a cabeça.

― Olha quem fala, é a sua terceira ― apontou Misha.

Faina sorriu vendo a interação dos nossos irmãos. Eu sabia que isso

devia ser tão estranho para ela quanto era para mim, afinal, algum tempo
atrás, não tínhamos nada disso, nem sabíamos que era possível. Então, do

nada, não apenas ganhamos um irmão, mas cinco de uma vez.

― Estar ao redor de vocês me deixou muito feliz. Eu nem imaginava

há algum tempo que teria essa oportunidade. ― Eu estava mais do que

realizada.

― Nós também fomos presenteados, três vezes ― disse Misha,

olhando Andreas, Faina e a mim.

Andreas estava calado e sentado ao lado de Bonnie. Ela também não

dizia nada.

― Quando eu estava naquele internato, orava para que um dia saísse

de lá e pudesse conhecer o mundo do lado de fora. Estudávamos sobre ele,

mas conhecer é diferente ― disse Faina. ― Conhecer a todos vocês é um

sonho que eu não sabia ser possível.

Ficamos mais um tempo falando do que passamos para chegar aonde

estávamos agora, mas deixei de fora as partes sombrias. Não queria estragar

o momento.
Os homens foram jogar sinuca, enquanto as mulheres ficaram à mesa

conversando. O tópico era meu casamento.

― Em que dia vai ser a cerimônia? ― sondou Faina, aparentando

animação.

― Em alguns meses ― respondi e depois acrescentei: ― Queria

vocês duas como minhas damas de honra.

Elas gritaram animadas.

― Aceito! Ainda bem que não vou usar essa coisa. ― Bonnie apontou

para o pé.

― Posso ficar aqui para ajudar nos preparativos? ― perguntou Faina

ansiosa.

Ela era um amor de pessoa, tão diferente do seu irmão, que também

era meu por parte de mãe. Eu não sabia de Sergey e no fundo não queria

saber o que tinha acontecido com ele.

― Se Kostya ficar, então pode ― respondeu Demyan jogando, mas de

olho em nós.
Bonnie franziu a testa.

― Não confia em nós com ela aqui? ― inquiriu acusatoriamente.

Ele suspirou, mas foi Misha que respondeu:

― Nossa família tem regras. Uma delas é que as mulheres são criadas

protegidas com os pais ou, na ausência deles, os irmãos. O primogênito. ―

Fitou-me com um olhar significativo. ― Sei que ela está segura aqui,

protegida até, mas, enquanto Faina não se casar, só poderá se ausentar com a

presença de um irmão. Como Demyan, Andreas e eu estamos ocupados

recuperando o que é nosso, Kostya pode ficar.

Kostya estreitou os olhos. Pude ver que ele estava prestes a retrucar,

mas falei primeiro, pois sabia que tinha um significado nas palavras do meu

irmão:

― Adoraria que vocês dois ficassem aqui. ― Sorri para Kostya e

Faina.

Os dois assentiram com um sorriso.


― Ficaremos, então. Mas apenas se fizer mais sobremesas como essa

que comi. ― Kostya piscou com aquele sorriso lindo.

― Prometo! ― Fiquei contente com a presença deles, mas depois

perguntaria ao Samuel do que se tratava tudo aquilo.

― O casamento será realizado onde? ― perguntou Faina.

Algumas pessoas sabiam, mas ela ainda não.

― Na igreja ― respondi.

― Vamos ter que discutir como vamos fazer para conciliar nossos

costumes e crenças com os de Samuel. Russos e Italianos. ― Demyan

colocou o taco na mesa. ― Há regras que devem ser seguidas antes do

casamento.

― Por exemplo? ― sondei, não gostando do sorriso de Misha.

― Uma delas é o noivo escravo...

― Noivo escravo? ― Samuel estreitou os olhos ― Não vai me dizer

que seguem essas tradições?


― Sergey não seguia, mas nós fomos ensinados pelos nossos pais que

devemos obedecer às tradições ― apontou Misha. ― Uma delas é que o

homem que pretende se casar deve se submeter a pagar alguns micos

escolhidos pela família da noiva.

― Ou seja, nós. ― Kostya estava sorrindo.

― Se não for bom o suficiente para pagar os micos, pode agradar-nos

com bombons e outros mimos ― disse Demyan.

― Só isso? ― Samuel sorriu. ― Recordo-me que tem outra regra em

que o noivo procura a noiva e a deixa nua.

Misha fez uma careta.

― Não vamos precisar que cumpra essa. ― Sacudiu a cabeça.

― É sério isso, gente? Parece meio louco. ― Bonnie franziu a testa.

― Fala isso porque não ouviu as outras tradições! Tem uma em que o

noivo chicoteia a noiva na frente de todos! ― Kostya gargalhou.

Bonnie arfou.
― Bom saber, assim não me caso com um russo, pois, se meu marido

me chicotear, dou um jeito de enfiar a minha bota em sua bunda e mandá-lo

para a lua ― falou e sorriu para Samuel. ― Embora eu esteja animada com

os micos.

Notei Andreas olhando para ela de relance.

Samuel fez uma careta.

― Não vou fazer isso ― respondeu.

― Então não vai se casar com a nossa irmã ― disse Misha. ― Você

segue suas tradições, e nós seguimos as nossas.

Ele olhou para Misha como se quisesse pisar nele como um inseto.

Suspirei e me levantei, batendo a mão na mesa.

― O casamento é meu, eu decido a forma como vou me casar.

Podemos conciliar as duas tradições de modo que seja bom para ambas as

famílias. Depois cada um dite as suas tradições a Bonnie. Vou verificá-las e

decidir quais devem ser seguidas ― anunciei. ― Agora voltem a jogar e nos

deixem organizar algumas coisas.


Passamos a tarde decidindo algumas coisas do casamento. Eu estava

ansiosa para que esse dia chegasse logo.

Mais tarde naquela noite, após meus irmãos irem embora, perguntei a

Samuel:

― Por que meus irmãos insistiram na tradição de Faina não ficar longe

de um dos irmãos? Não recordo de muitas delas, mas acho que essa não

existe.

― Não, eles só queriam Kostya longe de casa também. A coisa está

ficando meio feia lá, todos querendo a liderança. Acredito que terão que

decidir quem ocupará o trono caso Andreas não o aceite.

― Andreas pensa em não aceitar? ― Ele tinha ficado em silêncio

quase a tarde toda, só conversava o básico. Eu sabia que aquilo tudo era

novo para ele, então o entendia. Esperava que ele pudesse se encontrar,

agora que sua vingança havia terminado.


― Se ele optar pelo cargo, terá que deixar a organização de Lyn, Dark

Revenge, embora eu ache que possa lidar com os dois. ― Suspirou e mudou

de assunto: ― Então não abriu o envelope?

Olhei para ele, na cabeceira da cama.

― Queria estar com você nessa hora ― respondi e respirei fundo. ―

Pode abrir.

Ele assentiu, embora eu pudesse ver que estava nervoso.

― Seja qual for o resultado, saiba que estarei sempre ao seu lado ―

disse, fitando meus olhos.

― Eu sei que sim.

Ele abriu o envelope e leu o resultado do exame, mas sua expressão

não mostrava nada, deixando-me tensa.

― O que... ― Não consegui terminar a sentença, com meu peito

apertando-se. Abaixei a cabeça.

― Você não tem nenhum problema que a impeça de ter filhos um dia

― revelou com um sorriso na voz.


Olhei para ele.

― Não tenho?

― Não. ― Pulei em seus braços assim que ele repetiu. ― É bom

saber que nenhum deles me destruiu a esse ponto no final.

Seus braços reforçaram o aperto em mim. No entanto, eu não ia deixar

que ele pensasse nisso agora; era o momento de ser feliz.

― O que é aquilo sobre deixar a noiva nua? ― Ele parecia saber das

tradições da Rússia.

Ele suspirou e me olhou.

― Na tradição, as amigas da noiva a ajudam a se vestir com muitas

roupas, igual a uma múmia, e a escondem para que o noivo a ache. Quando

consegue deve lutar com a noiva e vencer, só então ele pode tirar as roupas e

tomar posse de seu corpo, selando a união. ― Tocou minha pele, fazendo-me

arrepiar.

― Hummm... Não quero ser coberta de panos na noite de núpcias,

aliás, quero estar sem nada. ― Peguei sua camisa e a tirei, empurrando-o
para a cama, onde caiu sentado.

Eu tinha aprendido algumas coisas naqueles meses.

― Ah, sim?

Sua respiração engatou quando tirei seu cinto e puxei sua calça,

deixando-o nu e todo pronto para mim. Caí de joelhos em sua frente e o

peguei em minha mão, sentindo-o inchando ainda mais.

― Lily...

Eu gostava da forma como ele dizia o meu nome, com adoração e

fome. Coloquei-o em minha boca. Nunca havia feito isso, mas tínhamos

conversado algumas vezes sobre o assunto, e ele disse que era como chupar

um pirulito, então fiz como sugeriu. Apreciei seu gosto. A princípio, achei

que não ia gostar, mas vê-lo gemendo por mim deixava-me ainda mais

excitada.

Colocou as mãos em meus cabelos, mas não me forçou, deixou que eu

fizesse em meu próprio ritmo.


― Merda, isso é bom demais... ― rosnou e me pegou pelos braços,

colocando-me na cama e pairando sobre mim.

― O que foi...? ― Minha voz falhou quando ele entrou em mim.

― Por mais que eu ame sua boca em meu pau, hoje quero gozar dentro

de você, senti-la e agradecer a quem a enviou para mim. ― Ofegava, com os

olhos ardentes, enquanto estocava em meu interior. ― Sou o homem mais

sortudo do mundo. Por você, faço qualquer coisa.

― Até pagar micos para a minha família? ― provoquei, ofegante.

Revirei os olhos assim que ele acertou um ponto mágico dentro do meu

corpo.

― Por você, eu andaria sobre brasas. ― Capturou meus lábios,

beijando-me faminto, mostrando tudo o que faria por mim, mas nem

precisava, pois eu faria o mesmo por ele, o meu noivo, em breve marido.
Meses depois

Samuel

Demorou mais do que eu imaginava para organizar o casamento,

depois aconteceram alguns problemas relacionados a Patrick Petrova, e,

como agora éramos aliados de Nikolai Dragon, estaríamos do lado deles


caso houvesse uma guerra. Eu esperava fervorosamente que isso não fosse

necessário.

Finalmente estava chegando o grande dia. No dia seguinte, Liliane

seria minha.

Eu estava indo para casa após um dia cheio com coletores que estavam

devendo, quando tive que fazer uma visita, pois fui chamado por meu chefe.

Nossa relação ficou um pouco estremecida após eu esconder dele sobre

meus cunhados e o infiltrado que tinha em nossa organização. Eu sabia que

não foi a traição que o deixara com raiva, pois acreditava que ele confiava

em mim nesse caso, mas sim o fato de ele achar que eu não confiava nele o

bastante para dizer. Percebi que isso o magoou. Devia ter revelado tudo, não

só pelo juramento que fiz a ele, mas também por ser meu amigo e estarmos

juntos havia muitos anos.

Respirei fundo e entrei na sala.

― Me chamou? ― questionei assim que entrei.


Matteo estava sentado em sua cadeira, olhando algo no computador,

mas parou assim que entrei e me fitou. Não conseguir ler seu humor.

― Sim, sente-se. ― Indicou a cadeira.

Fiz o que mandou, mas não disse nada, esperando que falasse algo.

― Luca vai casar-se com a irmã do Alessandro Morelli, Jade.

― Casar-se? ― Não entendia o que isso tinha a ver comigo, mas não

indaguei os motivos dele para me contar, esperei que explicasse.

― Sim, por isso te chamei. Conversei com Alessandro, que me disse

que Jade vai viver na mesma cidade em que ele e os irmãos vivem. Como os

Destruttores têm negócios em Milão, vão ceder uma parte a nós, então eu sei

que logo Luca vai embora para acompanhá-la e assim tomar conta dos

negócios lá para mim. A noiva dele é próxima à família.

― Luca sabe disso? ― Eu duvidava muito. Ele não gostava muito de

responsabilidade, não àquele ponto. Eu o entendia. Ter pessoas dependendo

de nosso julgamento e auxílio quando precisassem não era como apenas

seguir ordens.
― Não, mas vai saber após se casar. No fundo, o amor sempre

prevalece. Ele não vai querer deixar sua noiva longe da família.

Perguntei-me se ele pensava assim com Irina, mas ela já vivia nos

Estados Unidos quando o conheceu, não na Rússia.

― De qualquer modo, quero você como meu consigliere após ele

partir e se tornar chefe de uma das nossas organizações de Milão. ― Fitou-

me.

Eu não sabia se era uma ordem ou não, mas, de qualquer forma, fiquei

chocado com essa oferta.

― Você parece surpreso ― comentou ele.

Eu não devia ter escondido a tempo.

― Na verdade, achei que tinha me chamado para informar o castigo

que ficou de me dar, mas não o fez durante todos esses meses que passaram

― comentei.

― Nunca foi sobre castigar ou não, Samuel. No fundo, eu sei que não

houve traição, afinal você estava de olho no sujeito infiltrado. Só fiquei


ressentido, pois não confiou em mim, assim como confiei em você em muitos

sentidos ― finalmente ele falou o que eu tinha notado antes.

― Não foi sobre confiança ou temor de que algo vazasse. Confio a

minha vida a você. Não é só meu chefe, mas meu amigo também. Tinha muita

coisa para você tomar conta, eu não queria jogar mais isso sobre suas costas,

sendo que eu podia lidar com tudo sem precisar de sua ajuda.

― No fundo, eu sabia disso. Acho que precisava de tempo para

assimilar tudo. O bom foi que resolvi meus problemas. Agora, com a

chegada de minha filha, espero que continue em paz por aqui e que essa luta

dos Dragons contra Petrova não respingue em nós. No entanto, se acontecer,

eu o quero comigo, ao meu lado.

― Só me quer pela luta que pode vir, chefe? ― Se fosse assim, eu

podia aceitar, mas, a longo prazo, isso não estava nos meus planos. Merda!

― Não. Como você e Luca são meu braço direito, e ele vai para

Milão...

― Ele pode não querer ir...


Matteo arqueou as sobrancelhas.

― Não faria isso por Liliane? Caso ela quisesse ficar ao lado da

família dela?

Dei um suspiro.

― Ela não vai, gosta de onde moramos ― destaquei.

― Isso porque não foi criada com os Volkovs, mas Jade Morelli foi

criada com os irmãos. Luca vai fazer tudo que ela deseja. Outra coisa, a

menina está se formando em medicina, e Milão é um dos melhores lugares

para se cursar essa faculdade. ― Deu de ombros. ― De qualquer forma,

mesmo se ele não for, quero você como meu consigliere. Luca tem

problemas com cargos. A única pessoa que o fará ir por esse caminho é sua

noiva, assim espero.

― Merda, chefe, isso é muita responsabilidade...

Interrompeu-me.

― Samuel, não muda muito o que você já vem fazendo, é um dos meus

homens mais leais, um que faria e faz qualquer coisa por esta organização e
por nossas famílias. Lutou ao nosso lado em muitas batalhas, e vencemos. É

o mesmo que fará ao assumir esse cargo, a única diferença é que não será

mais executor, coletando as dívidas, mas orquestrando tudo que

precisaremos nesse nosso começo. ― Eu podia ouvir a verdade em sua voz.

Fiquei em silêncio um minuto, pois ele tinha razão quanto a isso.

― Pelo que me lembro, você conseguiu eliminar os homens que

tocaram em Lis sem chamar atenção para nós ― continuou. ― É um mestre

em arquitetar planos, então fará só isso. Além do mais, esse cargo lhe dará

mais tempo com sua futura esposa.

Estar com Liliane mais tempo era bom; os últimos meses foram muito

corridos, e mal tivemos tempo de organizar alguns preparativos para o

casamento. Foram ela, vovó, Bonnie e Faina que fizeram tudo. Então

acreditei que esse cargo seria bom para mim, se no final eu teria mais tempo

com minha garota.

― Se você tem certeza de me dar esse cargo, eu o honrarei até o dia

em que morrer, assim como reforço o meu juramento de não esconder nada
do meu capo. Serei leal a você como venho sendo esses anos ― anunciei.

― Ótimo, fico feliz em saber disso. ― Escorou na cadeira. ― Agora

me diz, como andam os seus cunhados? Como Beast está lidando com seu

novo cargo de chefe? Afinal era só o braço direito de Lyn, o chefe da Dark

Revenge.

― Todos estão limpando a sujeira do lugar, dizimando as maçãs

podres. ― Suspirei. ― Embora eu sinta que Andreas faz isso pelos irmãos.

Tem algo nele que se perdeu quando foi vendido.

― Não quando foi vendido, mas depois. Uma fonte me disse que sua

vida foi dura. Era prisioneiro de uma organização chamada Prometheus.

― Prometheus? Não é uma daquelas arenas onde têm lutas

clandestinas? ― Eu tinha ouvido falar daqueles locais havia algum tempo,

mas nunca fora a um deles.

Sacudiu a cabeça.

― Sim. Nessas que sabíamos, os lutadores eram adultos e livres, mas

descobri que há Prometheus que sequestram crianças do sexo masculino e os


ensinam a lutar entre si, promovendo lutas mortais. ― Tinha asco em sua

voz. ― Isso não é o pior; também permitem que os garotos sejam molestados

e machucados por homens convidados a irem a esses lugares.

Cerrei os punhos. Tinha a sensação de que algo sombrio havia

acontecido com meu cunhado, assim como com a Lily, mas não tão hediondo

assim. Era asqueroso demais até para nós, mafiosos, que convivíamos com a

crueldade dia a dia.

― Fiquei com essa cara também quando soube. Ele foi resgatado

depois de anos por Lyn, que agora tem sua organização não só de assassinos

de aluguel, mas de resgate de crianças presas em arenas Prometheus. Sua

batalha é árdua. ― Tinha respeito em sua voz.

― Quem revelou isso a você? Cavei informações sobre ele e não

descobri nada.

― Ele mesmo veio me procurar alguns dias atrás, pedindo uma aliança

entre nós, não só entre nossas máfias, mas com a organização dele, o ramo
de resgate. ― Fitou-me. ― Perguntou se poderia ter sua ajuda em um dos

resgates, que acontecerá em breve.

― Você disse o quê? ― sondei curioso.

― Que a escolha é sua. Como esse caso mexe diretamente com você,

acho que é uma escolha sua, não minha, embora o cargo de consigliere

facilite muito caso opte por ajudá-lo. ― Deu um suspiro duro. ― Não serei

contra, aliás, sou a favor de dizimar essa escória da Terra. Com seu novo

cargo, você pode ajudar mais a Dark Revenge. Esse nome, vingança

sombria, combina com o que fazem para dizimar essa escória maldita.

― Vou conversar com ele sobre o assunto. ― Sacudi a cabeça, zonzo.

Quando eu achava que já tinha visto tudo, aparecia aquilo. É claro que eu

sabia sobre tráfico humano, acontecia muito, mas aquela rede de

monstruosidade era demais. Fosse como fosse, eu daria um jeito de ajudar

meu cunhado naquela jornada e, assim, eliminarmos a organização

Prometheus pela raiz.


― Sim. ― Ficou de pé, e eu também. Estendeu a mão para mim, que a

apertei. ― Bem-vindo ao novo cargo.

Assenti.

― Obrigado.

Fiquei feliz com a nova função. Antes, achava que não ficaria, pelo

tamanho da responsabilidade, mas, convenhamos, eu era responsável com

meus afazeres e jamais fugia das atribuições que me eram dadas. Era

promissor, ainda mais quando eu teria a chance de ajudar outras pessoas,

especialmente aquelas crianças prisioneiras. Espero começar logo a minha

vingança sombria, pensei.

Liliane

Olhando-me no espelho, sentia-me como uma princesa, uma que esteve

presa e foi liberta pelo seu príncipe encantado. Tirando as partes sombrias,
minha vida daria uma boa história, uma que eu desejava que não se

encerrasse tão cedo, aliás, que durasse por muitos e muitos anos.

O vestido era branco, cravejado de brilhantes, uma das tradições

russas. Como tradição italiana, eu estava usando um véu.

Fiz algumas mudanças nas tradições, e assim todos saíram ganhando.

Samuel não fugiu de sua tarefa, ele realmente pagou os micos, que foi ele ter

de fazer mímica. Até pedi aos meus irmãos que deixassem isso de fora, e

eles concordaram, mas meu noivo não aceitou, dizendo que regras eram

regras e não deveriam ser quebradas. No final, todos levaram na esportiva e

se divertiram muito. Com famílias que se amam é assim, todos se unem no

final.

Após cumprirmos todas as tradições escolhidas, modificadas ou não,

só restou uma a se concretizar, uma tradição americana. Como vivia nos

Estados Unidos, achei melhor incorporá-la.

Eu tinha um objeto novo, que simbolizava a nova vida que estava se

iniciando. Gostei disso. Era um broche que Bonnie me deu.


― Falta algo velho, que simboliza o passado, que jamais deve ser

esquecido com a chegada da nova vida ― disse Bonnie, tirando-me dos

meus pensamentos.

― Tenho isso que ganhei de Andreas quando éramos crianças. Mesmo

quando não tinha lembranças, esse rosário me trouxe muita paz. ― Suspirei,

ajeitando o véu.

― Posso te emprestar isso. ― Faina colocou uma pulseira no meu

pulso. ― Um símbolo de afeto das pessoas que nos amam e que se mantêm

perto na passagem do velho ao novo.

― Vou te dar um presente. ― Vovó colocou uma presilha em meu

cabelo.

― Algo azul está na liga decorada em sua coxa debaixo do vestido. ―

Sorri, avaliando-me. ― Perfeito.

Vovó, Faina e Bonnie também estavam deslumbrantes.

― Chegou a hora, vamos ― chamou Misha do corredor.


Respirei fundo, ansiosa por finalmente pertencer ao meu marido nas

leis dos homens e na de Deus.

― Vamos.

As meninas ajeitaram a imensa calda do vestido, que também era uma

tradição da minha família.

Assim que saí do cômodo, Misha piscou e sorriu.

― Merda, você está perfeita.

― Olha a boca, estamos em uma igreja ― ralhou vovó.

― Foi mal.

― Vou na frente ― vovó disse e se dirigiu para a nave da igreja.

Olhei para meu irmão.

― Vai me levar? Achei que fosse Andreas. ― Era tradição o chefe da

família levar as noivas ao altar.

Ele tinha ocupado o cargo por direito, embora eu sentisse que havia

feito isso pelos irmãos. Parecia que realmente gostava de trabalhar com seu
chefe na outra organização, Lyn.

Samuel me contou que Lyn e Andreas resgatavam garotos como eles,

que foram presos e treinados para serem assassinos. Era um gesto nobre

deles. O mundo era cruel e a cada dia ficava pior. Bem, não o mundo em si,

mas algumas pessoas.

― Ele vai. Está nos esperando na entrada da igreja ― respondeu

Misha. ― Vou levá-la até ele.

Assenti, segurando o braço do meu irmão gêmeo.

― Lembra quando eu dizia que nunca ia deixar você se casar porque

não queria que amasse alguém mais do que a mim? ― ele questionou,

suspirando.

― Sim. Prometemos nunca nos casarmos. ― Sorri, pensando em como

crianças eram ingênuas.

― Uma parte de mim ainda se sente assim, mas a outra está contente,

porque você está feliz com Samuel ― falou enquanto andávamos. ― Se há

alguém contra quem não luto por estar levando você embora é ele. É um
homem que sei que entraria na frente de uma bala para salvá-la, assim como

eu.

― Misha... ― Minha garganta se fechou de emoção.

― Eu amo você, maninha. ― Parou e beijou minha testa. ― Seja feliz

e realizada.

― Também amo você demais! ― Respirei fundo, com olhos úmidos.

― Não a faça chorar ― repreendeu Bonnie à nossa frente.

Ele se afastou e alisou meu rosto.

― Hoje é um dia para ser feliz, então seja. ― Sorriu. ― Agora vou

ocupar meu lugar.

Ele saiu, e não demorou muito para Andreas vir ocupar o seu lugar.

― Está lindo de preto. Realça seus olhos claros. ― Sorri, pegando

seu braço. Notei-o tenso, mas não se afastou.

Sorriu um pouco, e até seus olhos ganharam um pouco de vida.


― Não vamos discutir beleza. Nossos pais amariam estar aqui neste

momento.

― Eles adorariam, não é? ― Prosseguimos caminhando pelo curto

corredor que levava à porta da igreja. ― Sabe? Em toda escuridão, há

sempre uma luz. ― Olhei para Bonnie, que andava alguns metros à frente.

Ele seguiu meu olhar. ― Temos que agarrá-la e não soltar nunca.

― E se a escuridão for impossível de alcançar? ― sussurrou, ainda

olhando para ela.

Notei algo em relação a Bonnie e Andreas. Sentia que os dois estavam

meio próximos após ele a ter ajudado na floresta naquele dia. Mesmo que

eles negassem e tentassem disfarçar, percebi que estavam criando um laço,

que um sentimento nascia ali. Esperava que eles ficassem juntos no futuro.

― É uma luz poderosa, capaz de nos tirar do abismo profundo e levar

para a superfície. Confie em mim, estive lá. ― Respirei fundo. ― Faça igual

Samuel fez comigo, comece aos poucos, sendo seu amigo, depois os
sentimentos vão começar a florescer, tão poderosos quanto o sol, e, por mais

que lutem contra, será como lutar contra uma onda gigante.

Ele não respondeu, talvez ponderando tudo. Deixei que assimilasse as

minhas palavras e foquei em meu dia perfeito. Acreditava que um dia seria a

vez dele.

Quando chegamos à porta da igreja, o Hino Nupcial começou a tocar.

Entramos no local, e evitei ficar nervosa com o mar de rostos

desconhecidos, focando nos que eu conhecia.

― Está segura ― garantiu Andreas ao meu ouvido.

― Eu sei, é só nervosismo diante de tanta gente ― sussurrei só para

ele.

Parei de olhar as pessoas ao redor e foquei em meu noivo, de pé no

altar, tão perfeito como um anjo. Seu rosto estava reluzente, seu sorriso era

como o sol, estonteante.

Não demorou muito para eu ser entregue a Samuel.

― A quem estou dando Liliane Volkov? ― Andreas encarou-o.


― A mim, Samuel Mancini ― respondeu. ― E, a partir de agora, seu

nome será Liliane Mancini.

― A partir de hoje, ela é sua para cuidar, respeitar e zelar até o final

de suas vidas ― Andreas falava como um verdadeiro chefe. Mesmo não o

querendo, o cargo lhe caía bem.

― Sim, farei tudo isso ― jurou Samuel.

Essas palavras eram tradição da minha família. Por Samuel, eu sabia

que ele gostaria de se referir ao nosso amor também, mas não podia dizer

nada assim, pois todos acreditavam que alguém poderia me usar contra ele.

Andreas se afastou, indo para seu lugar de pé ao lado do púlpito.

O padre ministrou a cerimônia e nos fez repetir cada palavra. Dizemos

nossos votos, mas nada romântico pôde ser dito. Não importava; nós

sabíamos como nos sentíamos, o amor que tínhamos um pelo outro.

E enfim fomos declarados marido e mulher. Pelas regras da minha

família, teríamos que fazer naquele momento uma tatuagem que simbolizasse

os noivos, um sinal de aliança, lealdade e fidelidade, mas não foi preciso,


pois já tínhamos feito uma há muitos meses antes, e a completamos com

nossos nomes posteriormente. A do Samuel além de Raio de Sol, agora

possuía Liliane e a minha tinha o nome do meu amado Samuel.

― Pode beijar a noiva ― disse o padre.

― Finamente minha ― disse Samuel, sorrindo e depositando seus

lábios nos meus, selando juntos nossas vidas.


Liliane

Dez anos mais tarde

Durante esses anos, terminei a escola e consegui vaga em uma

faculdade de gastronomia, que terminei há dois anos. Desde então comecei a


trabalhar oficialmente com a vovó e a montar mais restaurantes, expandindo

sua marca. Graças a Deus estava dando certo.

Agora eu começaria uma família com meu marido. Estávamos prontos.

Eu tinha acabado de chegar do médico com o resultado do exame de

gravidez, que deu positivo.

Samuel e eu estávamos tentando engravidar havia um ano. Até achei

que não conseguiria e temia que, de alguma forma, os exames que eu tinha

feito no passado estivessem errados, mas fiz outros, que deram o mesmo

resultado. A doutora me incentivou a relaxar e a não pensar muito sobre o

assunto.

Funcionou. Nós dois fizemos uma viagem pela Itália, onde conheci

lugares lindos.

Eu estava completamente em êxtase com a notícia. Agora só faltava

contar para o Samuel assim que ele chegasse. Por isso resolvi fazer um

jantar romântico.
Organizei tudo para o jantar e fiquei esperando-o chegar, ansiosa

demais. Já tinha contado o resultado a vovó e a Bonnie, e as duas estavam

em êxtase.

Enquanto esperava, liguei para Misha.

― Oi, princesa da minha vida. ― Ouvi um sorriso em sua voz.

― Oi. Estou grávida de dois meses! ― Soltei de uma vez.

Ele se engasgou com algo.

― Grávida?

Devia tê-lo preparado antes de soltar algo assim.

― Sim, descobri hoje.

Misha ficou em silêncio por alguns segundos, então ouvi sua voz

controlada.

― Fico contente por você, maninha. ― A verdade estava em cada

palavra. ― Contou a Samuel?


― Ainda não, estou esperando que ele chegue em casa para dizer. ―

De repente ouvi o barulho de um carro chegando e depois da garagem se

abrindo. ― Acho que acabou de chegar.

Levantei-me, animada.

― Vá dizer a ele. Posso contar aos nossos irmãos ou você mesma faz

isso?

― Pode dizer. Amo você.

― Também te amo.

Despedimo-nos, e desliguei. Olhei para a porta, por onde Samuel

entrava, então ele veio me encontrar na cozinha.

― Oi! ― Ia me abraçar e beijar como sempre fazia quando chegava

em casa, mas parou, olhando a mesa enfeitada com velas e flores, em estilo

romântico. ― Marcamos alguma coisa? ― Consultou o celular, como se

tivesse perdido alguma mensagem ou ligação.

― Não, queria fazer uma surpresa ― respondi.


― Se eu soubesse que você tinha preparado essa surpresa, teria dado

um jeito de vir mais cedo. ― Beijou meus lábios. ― Estava com saudades.

― Eu também estava. ― Derreti-me em seus braços. Beijá-lo era algo

que eu amava fazer e parecia que, com o tempo, queria mais e mais, mas

foquei em me afastar para lhe contar a novidade. ― Sente-se, que prepararei

seu prato.

Ele concordou e se sentou, avaliando-me.

― Você parece mais radiante que de costume. O que estamos

comemorando?

Antes que eu o servisse, peguei a ultrassom de nosso filho e a mostrei

a ele.

― Nosso bebê está a caminho. ― Quiquei, eufórica por dentro e por

fora.

Ele piscou ao olhar a foto.

― Está grávida? ― Assenti, e de repente ele me pegou pela cintura e

colocou sentada na mesa em sua frente. ― Um filho nosso... ― Levantou


meu vestido, revelando minha calcinha, mas ele estava olhando meu ventre

ainda liso por enquanto. Logo teria o tamanho de um continente, e eu amaria

cada segundo daquilo.

― Nunca achei que pudesse ser mais feliz do que neste momento. ―

Beijou minha barriga e depois olhou meu rosto. ― Queimarei o Céu e o

Inferno por vocês dois.

― Sei que sempre nos protegerá. ― Eu não tinha medo quanto a isso.

― Eu te amo e agradeço a Deus e a você por me fazerem sentir como se

estivesse nas nuvens, flutuando.

― Gosto de deixá-la flutuando em todos os sentidos ― provocou com

um sorriso, alisando minhas coxas. Isso me fez gemer. ― O que vovó

pensaria se eu comesse você na mesa da cozinha dela?

Meu centro se apertou de necessidade.

― Vamos para o quarto. ― Corei, não querendo imaginar vovó

sabendo daquilo.
Ele sorriu, pegando-me nos braços, e coloquei minhas pernas e braços

à sua volta. Depois fomos para o nosso quarto comemorar um nos braços do

outro a nossa felicidade, afinal o jantar podia esperar.


Andreas

Alguns dias após o casamento de Liliane

Vazio, escuridão e raiva faziam parte da minha vida desde que tudo foi

tirado de mim. Antes era luz, amor e proteção, depois só houve dor, caos e

uma sede de vingança contra quem me levou ao abismo.


Ser preso e forçado a lutar com crianças até a morte foi um tormento,

mas ser abusado sexualmente ano após ano por homens repugnantes que

ficavam de pau duro só por ver garotos lutando foi o pior. Isso levou tudo de

mim, não restando nada além de ruína.

Expulsei a névoa da fúria que as lembranças evocavam em minha

cabeça e foquei em minha vingança naquele momento.

Segui para onde estava um dos dois homens que me fizeram ser quem

eu havia me tornado, uma concha vazia desprovida de emoção.

Assim que entrei na cela, olhei para o meu irmão. Não, podíamos ter o

mesmo sangue, mas não éramos mais família.

Sergey estava nu em uma mesa, amarrado. Olhou-me assim que entrei e

sorriu.

― Veio me torturar um pouco mais? ― provocou, olhando para si

mesmo e depois para mim. ― Não importa o que faça, não vou quebrar.

― Todos dizem isso, mas vai depender do que for dado a você. ―

Sabia por experiência própria que lutar não adiantaria nada. Eu o havia feito
muito, por anos, mas não adiantou.

― Vai fazer homens me estuprarem igual fizeram com você? Por isso

estou nu? ― zombou. ― Não importa se acha que não tem alma; no fundo,

ainda é sentimental e acredita em ética. Eu teria me vingado do mesmo jeito,

se tivesse acontecido comigo.

― Não pego um estuprador para fazer o serviço com você por um

único motivo: não posso ver um, que o mato, e não por bondade, pois não

tenho isso ― falei de modo frio. ― E dá para fazer você pagar sem precisar

disso. Há outros meios tão ruins quanto.

― Uma vez fui lá, na arena Prometheus em que você estava preso, e o

vi lutar de forma feroz, com um ar de vingança, uma que não seria capaz de

cumprir, então depois o local mudou, e você desapareceu. Se soubesse que

iria fugir do local, eu mesmo teria matado você. ― Fuzilou-me, com a

crueldade evidente em seus olhos.

― Que pena. Agora vou fazê-lo pagar. Aí, quando implorar, quem

sabe tiro você da miséria. ― Se fosse por mim, ficaria nela para sempre. ―
Está preso há pouco tempo. Vamos ver como reage a anos de cativeiro sob

as piores torturas que nunca viveu.

Peguei um pingo de medo em seus olhos, mas ele mascarou, sorrindo

friamente.

― Como está nossa irmãzinha? Mate-me agora, ou em breve vou dar

um jeito de sair daqui e fazê-la pagar caro. Vamos ver se ela ainda aguenta

mais vinte homens fodendo todos os buracos dela.

Cerrei meus punhos, com a fúria crescendo tão forte que agi sem

pensar, lançando-me para ele e socando sua boca tão duro que sua cabeça

chegou a virar, mas parei ante sua risada. O bastardo havia me pegado.

― É disso que se trata, Andreas. Você age como se não tivesse

emoções, mas tem, pois se importa com essas pessoas. ― Riu zombeteiro

Respirei fundo, não caindo na dele.

― Acha que, ao me provocar, vou antecipar sua morte? ― Afastei-me,

embora meus instintos me induzissem a continuar socando-o até sua vida ser

ceifada.
― Não custava nada tentar. ― Deu de ombros. ― Seja como for, não

vou implorar por minha vida.

― Os mais fortes sempre dizem isso, mas no final todos suplicam. ―

Peguei os eletrodos e os instalei nos órgãos genitais dele, fazendo-o mexer-

se, mas estava bem preso. ― Hoje será na parte da frente, amanhã e depois,

em todos os buracos que você tem. Vamos ver se, no final, ainda vai estar

com essa confiança toda. Tenho prática nisso. Caso desmaie, tenho sais

aromáticos para trazê-lo de volta.

Liguei os aparelhos na carga mínima, fazendo-o gemer e depois fui

aumentando até seus gritos tomaram o lugar.

― Conheço cada grito de cada tortura. Sabe por quê? Vivi isso por

anos, com fios elétricos, amarrado em correntes, suspenso na porra do teto,

enquanto um maldito verme me tomava de toda forma que achava que tinha

direito. ― Parei um pouco, fazendo-o respirar com dificuldade.

― Seu maldito... Termine logo isso...


― Mal comecei, e já está implorando? Fiquei preso por anos, sendo

torturado e sofrendo coisas piores. Você vai ficar o mesmo tempo, para

sentir tudo que vivi.

Sua tortura e minha vingança estavam apenas começando. E eu

apreciaria cada segundo disso.

Algum tempo depois, meu telefone tocou. Até pensei em não atender,

mas podia ser importante.

Saí da sala de tortura ouvindo a voz de agonia do meu irmão. Poderia

estar me sentindo mal, porém, não estava. Finalmente me sentia vingado, por

ora. O telefone tocando estridente e exigentemente me tirou o

desejo de sangue, de voltar e fazê-lo sofrer mais.

Suspirei ao ver quem era... A loira em quem eu evitava pensar desde

que a salvei naquela noite na mata, quando estava sendo atacada pelo seu

perseguidor. Fiquei enfurecido com a cena e o matei, esquartejando-o.

A mulher só ficou lá, catatônica, encarando-me com os olhos

arregalados e aterrorizados. Algo nela me fazia querer vê-la, fazia-me


pensar nela e imaginar o que estaria fazendo. Uma reação estranha, pois eu

não tinha nenhuma emoção, nada que me conectasse a alguém a não ser

lealdade e honra. Não estava vinculado a nenhum outro tipo de sentimento.

Então o que me chamava atenção nela? Seria a escuridão que eu via em seus

olhos, assim como via nos meus? Parecia que ela vivia em uma luta interna

com seus demônios, da mesma forma que eu lutava com os meus diariamente.

Atendi a ligação, mas, antes que ela falasse, ouvi palavras que me

desestabilizaram por completo.

― Andreas, por favor, me ajude! ― O desespero vincava a voz de

Bonnie, fazendo meu sangue gelar.


Outros Livros da autora já lançados

Série Príncipes da Máfia (com os Dragons e

Salvatores):

Vingança, com Nikolai Dragon

A escolha, com Matteo Salvatore

O protetor, com Alexei Dragon

O executor, com Luca Salvatore

Série Máfia Destruttore (com os Morellis):


Alessandro

Miguel

Rafaelle

Spin-off Miguel

Stefano

Série MC Fênix:

Shadow

Kill

Daemon

Nasx

Spin-off de Shadow, Redenção

Axel
Série Dilacerados

Você é minha

A aposta

Louco por você

Marca da escuridão

Domado por você

Sempre foi você

Série Destinos, livro de fantasia

Híbrida

Despertada
Tormenta

Eclipse das luas

Livro único

Destinada para ele


Livros da autora a serem lançados

Livro único em parceria

Devil, Acorrentados pelo ódio

Série Deadly Reapers:

El Diablo

Demolidor

Arrow

Knife

Cowboy

Outros.

Série Máfia Pacheco:


Valentino

Razor

Fabrízio

Santiago

Benjamin

Série Darkness (com os Volkovs):

Misha

Demyan

Kostya

Faina
Série Dark Revenge

Andreas Volkov

Lyn

Outros.
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[1]
Nota da autora: “Pequeno raio de sol” em italiano.
[2]
Nota da autora: Preciso falar com Doroteia e preparar tudo, afinal nem sabia que ia viajar.
[3]
Nota da autora: Um aviso seria bom.
[4]
Nota da autora: Pare de chamar suas vítimas de “peixes”.
[5]
Nota da revisora: irmão, em italiano.
[6]
Nota da revisora: meu coração, em italiano.
[7]
Nota da autora: Adeus, princesa.
[8]
Nota da autora: meu coração, minha alma.

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