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264 ¢ PAULO HENRIQUES BRITTO. “J, TOO, DISLIKE IT”* N a verdade, eu nunca quis ser poeta. Em primeiro lugar, porque a prosa sempre me fascinou mais que a poesia. As coisas que mais me interessavam - a andlise psicoldgica, 0 vislumbre de um fragmento da realidade, a visdo de uma épo- ca e um mundo, a explicacdo racional das coisas - tudo isso era dominio do romance, do conto, da novela, do ensaio. Jé a poesia tinha algo de enviesado, uma afetacdo um tanto irri- tante; por exemplo, essa coisa de trocar de linha sem mais nem menos, sem nenhum respeito pela Iégica nem pela gramatica; e a exploracdo do som das palavras, uma coisa que eu acha- va um tanto pueril. Mas o que mais me irritava, o que me pa- recia pior de tudo, era a pretensao da poesia de dizer o indizi- vel, de expressar coisas recOnditas, espirituais; o préprio pressu- posto de que hi coisas que vale a pena dizer mas que nao po- dem ser ditas com clareza - tudo isso agredia meu sdlido racio- _nalismo, que sempre prezei pelas muitas vezes que ele me aju- dou a preservar a sanidade. Por que acabei escrevendo poesia? Um pouco, sem diivida, por reconhecer minhas limitagées no campo da prosa. Por vol- ta dos vinte anos tive um surto de imaginacdo criativa, que explorei em meia duizia de contos sofriveis; aos vinte e cinco, © veio ja estava esgotado. Quanto a prosa discursiva,-ensaisti- ca, também tive por ela uma paixao intensa e nao correspon- dida; atraido pelos raciocinios limpidos e lineares, por muito tempo pensei em me dedicar a algum tipo de trabalho que me levasse a escrever ensaios; mas aos trinta anos eu ja havia constatado que minha inteligéncia era indisciplinada e superfi- cial, entusiasmada por cada novidade que desencavava, mas preguicosa demais para levar mais a fundo uma escavacao. Mas no foi s6 por isso que acabei caindo na poesia. Na verdade, nunca consegui me livrar dela; apesar de tudo, sem- pre escrevi poesia, desde os seis anos de idade, mais ou menos. No final da adolescéncia, jé havia desenvolvido razoavelmen- * Marianne Moore De PAULO HENRIQUES BRITTO ¢ 265 te meu senso critico, mas minha técnica permanecia rudimen- tar, de modo que eu percebia claramente como eram ruins meus poemas. Mesmo assim, a poesia persistia, teimosa. Persis- tia por pura necessidade de expressio emocional. Isto me irrita- va também, era mais um motivo para eu implicar com a poe- sia, talvez o principal. Porque meus mentores intelectuais - os concretistas, Caetano Veloso, Joao Cabral - eram poetas mu- nidos de programas, de manifestos, poetas que pareciam escre- ver exatamente © tipo de coisa que queriam e&crever e acha- vam que deviam escrever, visando a um objetivo definido. Alias a escola oposta, os proponentes da arte engajada, que eu também admirava - se bem que menos como artistas do que como cidadaos - também pareciam escrever precisamente ‘os poemas que julgavam importante ser escritos. Eu nao conse- guia levar a sério meus poemas; sempre que tentava escrever algo que se conformasse a uma intencdo-conscientemente assu- mida, fosse de natureza estética ou ideoldgica, o resultado era ainda mais catastrdfico do que de costume; os poucos poemas que me pareciam menos ruins, eu nao os escrevera tentando fazer nada em particular. Pior ainda: alguns deles eu simples- mente n4o entendia, nao seria capaz de explicar se me pergun- tassem o que eu quisera dizer ao escrevé-los. Por isso eu me julgava um primitivo, um romantico anacrénico; por isso me envergonhava de meu melhor poema muito mais do que de meu conto mais desengoncado. A reconciliagéo com a poesia me veio um tanto tarde - mais ou menos aos vinte e cinco anos. Um dos momentos im- portantes neste processo foi minha primeira leitura de “Uma faca s6 lamina‘, que me fez passat uma noite.em.claro.de-pu- _ta excitagdo nervosa. Mas nao entendi muito bem o que tinha acontecido comigo. A coisa s6 se esclareceu quando resolvi re- ler alguns poemas de Wallace Stevens, que eu tinha tentado ler uns cinco anos antes e que me Raviam parecido tovalmen- te impenetraveis. Reli os poemas. Continuei sem entendé-los, € claro; s6 que desta vez percebi que eles nao estavam ali pa- ra ser entendidos; que até entao eu vinha me recusando a ad- mitir isso. O fato é que fiquei absolutamente aturdido com os poemas de Stevens. A primeira sensagdo foi um prazer ab- surdamente intenso; logo em seguida, um mal-estar dificil de explicar. Para exorcizé-lo, resolvi traduzir dois dos poemas ime- 266 # PAULO HENRIQUES BRITTO diatamente, constatei, constrangido, que podia traduzi-los muito embora nao os entendesse muito bem._ ‘Assim, comecei a pensar mais a sério sobre a questao do que a poesia representava para mim - tanto a poesia que eu lia e que me afetava daquele modo quanto a que eu proprio escre- via. Nao foi dificil perceber onde estavam os mal-entendidos que tornavam tao equivoca minha relagao com a poesia. Em primeiro lugar, a questdo da expresséo do indizivel: nao se tra- tava necessariamente de realidades transcendentes, e sim ape- nas de realidades que, por nao estarem_perfeitamente apreen- didas pela consciéncia, prestavam-se menos para 0 discurso li- near e causal. Pela primeira vez eu entendia racionalmente “que © enviesado da linguagem poética era uma necessidade or- ganica e néo um convencionalismo. Relendo meus poucos po- emas publicdveis, percebi que o motivo pelo qual eles funciona- | vam era justamente o fato de que eles nao poderiam existir sob nenhuma outra forma senao a pottica. De modo geral, es- Ses por aviam brotado ou de introspeccoes, claras para mim, vivéncias emocionais que ainda nao haviam se cristalizado numa forma facilmente rotulavel, ou de preocu-_ pagdes com.a-propria questao-da linguagem, da relacdo entre linguagern’e tealidade; uma quéstao que, por sua prépria natu- teza auto-reflexiva, estd fadada a permanecer indefinida. Isto explicava por que motivo eu jamais conseguira escrever um poema politico que prestasse: em. relacdo & questao politica eu tinha uma visdo bem mais definida das coisas, e esta minha clareza me impedia de conceber um poema que nao resvalas- se no prosafsmo mais flagrante. Assim, a aceitagao sia foi, no meu caso, concomitat técom a constatagao dos limites do discurso racional. Isto nao quer dizer, porém, que para mim a poesia seja 0 discurso do irracional; muito pelo contrario, vejo-a como a tentativa da lin- guagem de apreender o que se encontra imediatamente além dos dominios do ja codificado, de dar forma aquilo que ain- da nao tem uma forma definida. E como se a poesia fosse um posto avancadé da razad na selva das sensacdes ainda mal com- preendidas, das percepgoes necessariamente incompletas ou im- ‘precisas. Mas essa imagem nao é exata. Pois a poesia nao visa ‘a tranformar estas apreens6es parciais em vis6es nitidas, capa- PAULO HENRIQUES BRITTO ¢ 267 zes de serem expressas em prosa linear; seu objetivo nao é colo- nizar_a selva, e sim fix4-la num estado nao muito distanciado de seu estado natural, domesticando-a apenas o necessario pa- ra que possa passar pelo crivo da linguagem. Dai seu carater ndo-linear, seu resfduo de inexplicabilidade. Entenda-se que nao estou apresentando uma visaéo do que acho que a poesia deva ser, e sim apenas do que a minha po- esia representa para mim. Esta concepgao representa, sem dui- vida, uma limitaco. Ela estabelece duas fronteiras definidas- para minha sensibilidade poética, excluindo, de um lado, to- da poesia que parta de um compromisso inequivoco com uma visao do mundo, uma ideologia, uma convicgéo qualquer; e, de outro, toda poesia que constitua uma simples exploracao das possibilidades formais do idioma e da linguagem poética, uma utilizagao da palavra como significante (quase) vazio, co- mo conotador livre de denotagdes. Nao consigo territério da_poesia sendo co “réncia clara e 0 ludismo verbal. Talvez seja uma drea um_tan- to estreita, uma mera linha divisoria, sem espessura. Talvez _Por isso me seja tao dificil escrever r poesia.

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