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Do que trata este livro? Esse Teatro que chamam simplesmente de Gi 1po, © mais alto € 0 mais artistico nome correspondente a isso, na arte, seria Ensemble. Criar um Ensemble é extremamente dificil, O mais dificil ainda é preserva-lo, Somente os verdadeiros artistas sa~ bem como é dificil passar por um Jongo caminho, apés ter sido, testado por derrotas, vitérias, crises, diwvidas, amor do paiblico, sucessos pern confianga, a confianga nos colegas e no Teatro para o qual esti dedicada a vida inteira! Esse caminho tinico! Nés o herdamos de Stanislavski. O Ensemble de grandes atores foi criado por ele no comeco do século passado e existe até hoje como uma das mais belas lendas teatrais. Infélizmente, hi pouquissimos exemplos desse tipo de lendas na histéria de teatro. Uma delas €0 Grupo Galpio. O Ensemble é uma familia. A maioria dos atores sonha em ter uma familia de correligionirios na arte, ‘mas a sua vida, geralmente, é a vida de sem-teto solititios [no sentido figurado}, que ocasionalmente se retinem para alguns projetos isolados e depois correm, cada um para um lado, quando (© projeto termina, Esse é um problema no apenas do teatro contemporineo, mas também da sociedade e da familia, Ainda yecer junto. Como é dificil preservar a auto bem que ha fendmenos tinicos como o Galpio, um grupo que serve de exemplo para nds de como se pode e deve v trabalhar e criar juntos. fer, amat, ‘Meus queridos participantes do Galpio, 30 anos é um periodo considerivel, vocés ji nio estio tio jovens, mas vocés decidiram tornar-se meus alunos, 0 que significa que voegs voltaram a ser jovens. Como seu professor, direi que a sua idade & perfeita, esti plena de bom gosto e de energia, assim comio um bom vinho, Nio tentem parecer mais jovens, no hi nada pior e mais vulgar do que uma mulher idosa querer parecer uma moga. se esquegam de que vocés ja tém 30 anos ¢ esté na hora de pensar sobre anova geracio. O Ensemble pode permanecer vivo apenas quando é capaz de gerar uma nova vida. Voeés ito cons- truir sua nova Casa, seu novo teatro ¢ isso & perfeito! Mas a festa nessa nova casa sem as vozes dos jovens, sem novas, ideias, novos laborat6rios e novos projetos iri parecer com ma mudanga para uma casa de repouso, Isso sera terrivell Nilo cometam 0 erro dos outros Ensembles. Desejo a vocés que a sua familia artistica cresca a cada ano, apenas assim seu Ensemble permaneceri jovem para sempre. Juurij Alschite 2011 Inicio Observando 0 voo dos passaros Observo uma revoada de pissaros. Nem todos sio capazes de voar em grupo. O voo de um dinico pissaro é belissimo, mas 0 de uma revoada é magico. © movimento sincronizado de cem elementos me encanta com a magia da sua harmonia ¢ dos seus lagos invisiveis, Ninguém os adestra, ninguém os guia. Fazem tudo sozinhos — instintivamente. Talvez, com tio perfeito entendimento é que deveriam se comunicar tanto as pessoas sobre a Terra quanto os atores sobre © palco. Mas isso no acontece conosco, Seri que um dia sabiamos como fazer isso e hoje jf ndo sabemos mais? Nio hi muito tempo, cheguei 4 conclusio de que uma das ligGes mais fteis para quem estuda os segredos da arte se aprende observando o trabalho das abelhas ¢ das formigas. Pro- cure imergir com um miicrosc6pio na fascinante agitagio dos micrébios que seguem leis por nés desconhecidas. E, proximo 4 margem, o movimento de um cardume de peixes assustados. pela sua presenga... O que pode existir de mais interessante e instrutivo? Talvez aqui se oculte 0 segredo do livre sopro da vida. Eu estou convencido de que uma companhia é a forma mais alta de unio entre seres vivos, A magia de um grupo que se move como uma unidade pode transmitir tudo: ener- gia, cmotividade, atmosfera, mas pode também revelar — ¢ isto € 0 mais importante ~ um sentido mais alto da existéncia, escondido ¢ secreto, Ora se revela por um instante, ora desa~ Parece novamente. E jogar um divertido esconde-esconde. De qualquer modo, tal sensago consegue sempre escapar, e nés no nos rendemos a ideia de perdé-Ia de vista nem mesmo por pouco tempo. Frequentemente falamos da harmonia, do entendimento, como um porto, como uma terra prometida que almejamos ¢ sonhamos. Mas nio hi terra prometida alguma para quem deixa de procurar. E uma miragem que se mostra para desaparecer em seguida. Ea harmonia é somente um instante, uma longa viagem de sé um segundo, f como a felicidade humana que lampe| logo depois desaparece. Por isso nfo faz sentido segura existe porum ftimo somente:se-cas-'e = caste. Nio importa quanto dura esse dtimo no tempo real (séculos, anos ou dias), porque ‘num tempo metafisico ele gana vida num s6 instante. E 6 jus tam fe nesse instante que reside a essential beleza da harmonia;, quanto mais magica, mais dificil éagarri-ta. Instantinea beleza, se trata, por certo, da beleza no sentido comum da palavra, aquela beleza que podemos tocar, comprar, vender ou fazé-la nossa, Podemios to somente ser a Beleza do instante. Na ngidos por cla, como por um raio, sem, porém, poder capturi-la, porque ela ao mesmo tempo existe ¢ deixa de existir. Mostra-se como uma aparigio divina: trata-se verdadeiramente de outro tipo de beleza. Na arte existem pintores que criam para os séculos, produzem obras perenes, e outros que criam para os instantes. Esses sio poucos. Si0 conhecidos somente no circulo restrito daqueles que assistiram 3s aparigdes da beleza instantinea, A partir da minha experiéncia como diretor posso dizer que s6 agora entendi, depois de muitos anos de experiénci: do teatro é uma arte tecida de instantes de be que aarte faarte do mondlogo, a arte do diflogo, a arte de estruturar a composigio cénica, ¢ hd, ainda, a arte de criar instante. Jé de inicio eu sabia que essa era a qualidade mais refinada de uma direcio, mas s6 agora sou plenamente consciente disso, © instante a arte do 1. A polavra fecidade (seas) contin cas (momento) 4 ‘oxsenvAno © ¥oO Dos HSssAnos invisivel, do tinico ¢ do inexistente. Nao se pode capturi-lo, no se pode transmiti-lo, até mesmo analisi-lo é impossivel Pode-se apenas estremecer, surpreendido, como se atingido por uma pontada no coragio, Um desses instantes migicos é representado, na arte teatral, justamente pelo instante da com= panhia, Para mim a companhia é uma apari¢io que lampeja ¢ em seguida desaparece. No instante da companhia cu participo da magia do teatro. Bis que ela aparece! E, enti, ji nio existe mais. Essa é a beleza. A respeito da companhia, contam-se lendas, como se fosse um milagre. Fala-se da vida de antigas companhias como da vida de pessoas ilustres, porque também a vida delas é de um instante, E assim, verdadeiramente: as companhias nascem, vivem e morrem, exatamente como as pessoas geniais. E neces- sirio conhecer, sobretudo, a vida e as suas leis de subsisténcia, se quisermos estudar a arte do Teatro. As pessoas, as persona- lidades, as individualidades, os arores que representam partes indissoktiveis desse conceito artistico tinico. O que ou quem une e divide as pessoas? O que ou quem as impele a sonhar a ctiagio de uma companbia, e por que chegam frequentemente a destruf-las com as proprias mos? Essas perguntas, ligadas 3 pratica e ao ensino teatral, sempre foram importantes para 0 desenvolvimento do teatro; nio se pode abrir mao delas, nem hoje, nem amanbi. A ideia de uma obra comunitiria dominou o teatro desde ‘0s tempos antigos, E no s6 o teatro: muitos escritores, artistas, iisicos se uniam em grupos, circulos, sociedades. Pensavam, que isso fosse o melhor a ser feito. Haviam compreendido que, quando se busca junto, encontra-se mais velozmente aquilo que . E, entio, © tempo de ajuntar pedras foi substitu pelo tempo de espalhi-las. Despertou-se 0 instinto de auto destruigio. Grande parte dos teatros propagou uma tendéncia 15 negativa ¢ destruidora ~a ideia de que a “companhia” seria um simbolo de velharia empoeirada, que cheiraria a naftalina ¢ que deveria provocar um sentimento de ironia, O principio da “destruigio", proprio das vanguardas, sem divida provocou no teatro da Europa ocidental aberturas extraordinirias; mas © paradoxo que se criou consiste no fato de que os melhores resultados foram obtidos onde a “companhia dos destruidores’ praticavaa destruigio. O principio agregativo produziu, também nese caso, os melhores frutos. Os destruidores, no entanto, englobando tudo na destruigio, confirmaram sempre o mesmo destino: destruir-se com as préprias mios. Esse tipo de teatro {oj atingido pelo hamguiri® ainda que Ihes restasse algo por que viver; ¢ hoje a energia de tal destruigio encontra o proprio escape no palco, mas ji parece ridiculo, Ou melhor, triste. Sio tantas as coisas que ji destruimos, seja na vida da arte, sea na arte da vida. Agora a sociedade esti mudando, chegou novamente © tempo de “aintar as pedras”, devemos viver juntos, nio hi outro caminho, Também o teatro esti se transformando, Nao € nem mesmo possivel imaginé-lo fora dos prinefpios de uma companhia teatral. Quem nao o compreende hoje amanhi ficari para tris, Est tudo escrito em Tehekhov. Vocés se lembram de A guivora? “Homens, ledes, iguias e perdizes, cervos de grandes chifies, gansos, aranhas, peixes silenciosos que habitavam as Aiguas, estrelas do mar e criaturas que os olhos nao eram capazes de ver ~ em suma, todas as vidas, todas as vidas, todas as vidas, depois de concluirem seu triste ciclo, se extinguiram. Quem quer que tenha relagio com 0 teatro, independente- mente do seu papel (preparar, montar espetaculos, interpretar, cuidar da formagio dos estudantes ou analisar os processos que > Suicidio ritual que integra o cédigo de honra dos samuraisjaponeses 3. TCHEKHOY, Antoy Paulo: Cosae & Naify A guivora, Tradueao de Rubens Figueiredo, Sie 04. p.20 (N.d.) 16 acontecem no teatro como estudioso ou critico de teatro), creio que esteja comecando, sem divida, a refletir sobre a defini de “companhia”. Anteriormente eu disse: “Hoje chee’ concu- io de que a conparia é um instante”; mas no creio que exista m tinico conceito de companhia, definitive. Ele muda e se desenvolve com base no tempo, na evolucio da civilizagio, na ideia de cctimeno e de esséncia da personalidade humana. E isso me parece muito instrutivo ¢ interessante. © conceito que exprime a esséncia da companhia, ¢ também a definigio do espaco no qual atuam as relagdes no interior de uma com- panhia, € imenso e inclui a interago de cada pequeno étomo semelhante aos movimentos das estrelas dispersas pelo universo; assim era concebido em épocas antigas. Por isso, a0 comegar a falar da companhia teatral, parece-me necessirio esclarecer primeiramente a distingo entre compantia de arte, companhia de teatro € compantita de atores, A primeira vista parecem conceitos afins e ligados entre si, mas, na realidade, diferenciam dos outros de modo significative. Imaginemos uma companhia sob a forma de pirimide com a ponta para cima; é na base que reside 0 conceito de companhia de arte: ela € 0 espago, © ambiente em que o artista nasce, vive ¢ cra, Cada artista possui um Ambito préprio, um microcosmo proprio da sua vida criativa. E tudo aquilo que determina a diregio do seu processo criative. A compauthia de arte sio as pessoas com as quais voce percorre uma estrada comum, com as quais vocé encontrou consonancia de visées filoséficas, de estilo de raciocinio, de estética dos principios attisticos: os professores, os artistas, os compositores, os eseri~ tores amados, os pensadores, etc. No meu caso, Dostoievski Magritte, Tehekhov, Platio, Fellini, Shostakovitch, Pirandello € pelo menos outra dezena de pessoas sio todos autores com ©S quais compartilho a mesma esfera artistica. E esse o terreno do qual me mutro constantemente e gragas a qual vivo e erio como artista. Se cles nao existissem, eu também nio existria, Eu nio enceno, por exemplo, uma comedia de Sheridan, ¢ no recorro i miisica de Chopin, nfo porque sejam autores ruins, mas porque temos “grupos sanguineos” diferentes. As rolinhas no voam junto das pombas. Ambas sio aves espléndidas, mas pertencem a bandos diferentes, Ambas compartilham a terra, . a sensa¢io do voo, mas concebem tudo isso de modo distinto. O conceito de or de Schiller certamente nio ¢ igual Aiquele de Dostoievski, Deve-se considerar que os roteiristas, os diretores, os compositores, os coreégrafos, 0s artistas, os atores com quem vocés encenam no vivem necessariamente 0 mesmo mundo de voc’s, ou, em outras palavras, no fizem parte do circulo da “sua” companhia de arte. Estou convencido de que esta €a questio fundamental, a mais importante pata win artista compreender qual é fonte da qual se nutre, em qual atmosfera vive e sobre qual terreno artistico floresce a sua obra, A companhia de teatro Fazem parte desse conceito todos os enca dos camareiros aos montadores de cenitio até os diretores, os regados de teatro, dramaturgos, os maquiadores, a administragio, etc. De todos eles depende nio s6 0 sucesso do espeticulo, mas também a vida de todo o teatro, ¢ até mesmo as ideias criativas que determinam a sua existéncia, ff s6 uma impressio a de que as is pela limpe: ‘Jo com os ensaios. No teatro uma coisa se transmite atra- vés de outra, difunde-se sempre como um eco; tudo se soma: humores, ideias e, sobretudo, energia. A energia de todas as pessoas responsiv do palco nio tenha alguma rel Pessoas que trabalham sob 0 mesmo teto se concentra na energia sul ‘inica da companhia de teatro. Pode-se dizer que o espe € a somatéria das energias de todo o teatro, porque 0 marce- neiro € 0 carpinteiro, o maquiador, o figurinista e os atores concentram no espeticulo parte da propria energia. Quando K. Stanislavski escrevia que 0 teatro comeca do cabide, queria dizer exatamente isso, Nao se pode preparar um bom espet se no hi concérdia entre os administradores ou 0s técnicos, Ao contririo, o trabalho de cena funciona bem melhor se cada a coletividade do teatro ama e apoia a culo ator percebe que tod: cle e a0 seu espeticulo. Isso voeés sabem AAs primeiras duas definigées sio bem simples. Mas, quan- do comegamos a falar da companhia de atores, ¢ & exatamente 19 dessa companhia que se ocupa este livro, encontramos, entio, 4 medida que nos aproximamos do vertice da nossa pirimide abstrata, uma dezena de formulagdes diferentes. De nossa parte seria incorreto contestar ou ridicularizar as definigdes arcaicas cou superadas. A cada fase do desenvolvimento do teatro corres- ponceu uma visio diferente da companhia, ligada justamente A visio de mundo dos nossos predecessores, 3 f€ dos nossos mestres (Somos gratos a eles por tudo!) e aos principios daquele teatro do qual rodos nés dependemos. Hoje em dia esse conceito ainda esti mudando diante de nossos olhos ¢ esta adquirindo tum novo significado, E me parece que no seja mais suficiente conceber a companhia de atores unicamente como a capacidade de refletir juntos, de acreditar na mesma coisa, de compreender uns aos outros ¢ de utilizar uma metodologia de trabalho ¢ uma técnica nica ~ como faziamos nos tempos de escola, mundo mudou, © Teatro mudou, Tornou-se de tal unaneira complexo ¢ diversificado, de tal forma poliédrico, multilingue € multiforme que, para definir © conceito de companhia, & necessério, primeiramente, empenhar-se para procurar ¢ en= contrar um consenso entre as diversas crengas, os conceitos & as escolas teatrais. Hoje € necessirio conseguir conciliar © que ‘ontem parecia inconciliavel e até mesmo hostil. Acolher essa demanda do teatro contemporaneo nio ¢ tio fiicil e por isso ‘demanda dos arores, dos diretores ¢ dos professores uma atengio especial e um trabalho meticuloso. Na escola aprendemos que © conceito de companhia de atores implica um dado objetivo, razdo pela qual ela nasceu, &capaz de fazer conviver os seus elementos e é capaz de moverse em divegao a «8 objetivo, Hoje essa concepeio me parece nio somente erra- da quanto bastante superficial ¢ insuficiente. Uma companhia certamente no é um escopo, um método, pessoas, atores, & uma coexisténcia, ou seja, o momento, o instante em que tudo aquilo que forma uma companhia, todos os seus componentes se fundem em uma unidade exclusiva, A harmonia nio é con- siderada como quietude e siléncio, mas sim como um trovio ¢ tum raio provocados por muitos gestos diversos. E uma reagio em cadeia instantinea, depois da qual acontece uma explosio artfstica que conduz 4 mudanga na qualidade do ambiente e no nascimento de uma nova estrutura, Os japoneses denominam isso safori; 0s judeus, ashir! Assim se originou 0 noso univers —em um instante, seguido de uma potente explosio. Milhdes de anos de tensio e, enfim, uma distensio de uma poténeia colossal. E é exatamente na diregio de um evento igualmen- te explosivo que se movem os atores por um tempo muito Tongo. Mas para cles é imperceptivel. Talvez tudo comece na infincia, através do processo de instrugio e formagio, até os ensaios e, depois, o espeticulo. E possivel preparar-se para o cvento-companhia por anos, mas cle vive sé um instante ¢, em, seguida, desaparece para sempre, Uma companhia é sempre um milagre. E uma manifestacio da arte que aparece diante de nés como um sinal daquela harmonia divina que cada homem e cada artista aspiram, LEE Mien Ti Primeiro Capitulo As companhias que nao existem mais As raizes Formar 0 individuo, as suas relagdes com 0s outros ¢ com 0 Estado € considerado, da antiga Grécia aos dias de hoje, tuma das tarefas mais importantes. Pertencia 8 cultura antiga 0 mito da unidade entre humanidade, deuses ¢ universo. Quando pergun= taram a Sécrates de onde vinha, ele respondeu: do Universo. O mundo animal e vegetal, 0 mundo interior do homem e a sua alma se permeavam como algo completo e indivisivel, imerso uma condigio de harmonia, A violagio da suprema harmonia divina era considetada pelos homens a causa principal de todos 08 cataclismos que aconteciam no mundo visivel. As desgracas de carter pessoal eram interpretadas como um castigo enviado Pelos deuses ao homem por nio ter respeitado os principios da harmonia, seja no trabalho, seja no amor ou em qualquer outra esfera do seu agir (desde a alimentagio até o cuidado dos filhos). Dedicar-se a alcangara harmonia era considerado 0 tinico meio capaz de impedir a desordem no mundo e na alma do homem € de restabelecer um vinculo com o Cosmo que, por sta vez, deveria reconciliar © homem consigo mesmo. Os homens desejavam estar juntos, fandirem-se nam tinico movimento. Eles explicavam essa sede de unidade com o fato de que essa seria a esséncia primigénia da natureza humana. E Tecordavam a antiga lenda segundo a qual, uma vez, o homem 23 era uma criatura com dois sexos, até o dia em que os deuses © puniram dividindo-o em duas partes. A sede ¢ 0 desejo de plenitude exam entendidos como a mais alta manifestagio do amor pela harmonia. No Banguete de Platio, Aristéfanes diz “.. B, antes daquele momento, eu repito, éramos um; mas agora por causa da nossa arrogincia © deus nos dividiu e nos dispersou, como os lacedeménios fizeram com os arcides. E é de se temer que, se nio formos corretos em relago a0s deuses, sejamos novamente fendidos e tenhamos que vagar sem rumo como certas figuras em baixo-relevo das estrelas, serradas pela metade através do nariz, reduzidos 4 metade como dados. Eis porque é necessirio exortar cada homem a ser respeitoso com ‘os deuses, para evitar essa represilia ¢ para alcangar o bem...” A ideia do teatro antigo esti ligada a essa representagio de completude. Nao por acaso 0 coro se torna um dos personagens principais das tragédias antigas de Esquilo, Séfocles e Euripides. O coro comenta 0 desenvolvimento da agio transmutando-se numa espécie de alter ego do herdi mitolégico — de Prometeu, de Edipo Rei, de Electra. No teatro antigo é possivel chamar de ator-individuo (no sentido em qui nds 0 entendemos) somente © Protagonista, isto é, aquele que encena o papel principal, e 0 Corifeu, 0 chefe do coro. Se o teatro, por um lado, a arte da individualidade (¢ é dificil imagin4-lo sem atores de brilhante € distinta personalidade), por outro é a arte da comunhio, da unitio, da companhia de personalidade. A questo de como combi iar esses dois postulados ocupou a mente dos homens de teatro de todos os tempos, A histéria do teatro conheceu nio poucas companhias de atores fuundadas sob as mais diversas regras: a Commedia dell’Ante, na qual os atores, ‘mesmo improvisando livremente, entendiam-se e salvaguarda- 1. PLATONE. Sinpsisio XVI, in Id, Opere Complete, 5. Bari: Laterea, 1998. P. 169, s1ausino Casireo, AS COMPANHIAS QUE NAO BRISK MAIS vam 0 vinculo artistico que 05 unia; 0 teatro clissico, em que 6 personagens secundarios eram considerados somente como acompanhamento dos principais e nfo deveriam emergir do plano de fundo geral; a companhia criada no século XVIII pelo diretor e ator D. Garrick, influenciado pelos estudos teéricos do filésofo iluminista D. Diderot; os experimentos de FL. Schréder (amigo intimo de Lessing) no teatro de Hamburgo; as pesquisas de J. W. Goethe sobre a diregio; L. Chroneck, que soube encontrar para cada obra interpretada no teatro de ‘Meiningen um estilo cénico nico (nos espeticulos de Chro- neck atores ilustres comecaram a encenar em cenas de massa, pela primeira vez na histéria do teatro); a companhia de atores intimista nos teatros naturalisticos de A. Antoine na Franga e de ©. Brahm na Alemanha; todos os conhecemos. Mas eis que chegou o século XX, fundamental para o teatro, no qual surgiram tanto democracias quanto terriveis ditaduras, lutas do individuo pela independéncia e crescente autoconsciéneia das massas. No inicio desse século a ideia de companhia estava literalmente no ar, como um reflexo da situagio social da Europa. E tudo isso nfo poderia deixar de irromper-se no teatro europeu. Mas eu diria que 0 principio da companhia teatral foi representado, na forma mais plena € mais intensa, na Rdssia, pelo prestigioso Teatro de Arte de Moscou. A sua vitéria tornou-se famosa em todo 0 mundo do teatro; nasceram numerosas lendas sobre o seu diretor K Stanislavski, sobre a constelagio de atores e sobre a unicidade da companhia, A histéria do Teatro de Arte exige uma atengio especial, rio porque represente um exemplo particular. Pelo contririo, Pode ser considerada como um modelo tipico (muitos teatros, em seguida, percorrerio o mesmo caminho). Estudar a hist6- tia desse teatro permite compreender os principios gerais que 25 regulam as relagdes entre 0 complexo teatral ¢ o seu lider, a companhia de atores ¢ a individualidade do ator. K. Stanislavski ¢ V. Nemirovitch-Danchenko, que fandavam com 0 Teatro de Arte de Moscou um modelo de teatro do século XX, tinham entendido que aquela nova realidade poderia dizer-se verda- deiramente “artstica” somente se tivessem mudado tudo ~ da dramaturgia j arte da interpretacio, da diregio d administragzo, da criagio de uma companhia teatral Ginica a educagio de um piblico proprio. Todo 0 organismo teatral deveria fundir-se em um sistema nico. Estava fundada a base da pirimide — a companhia de arte (Tchekhov, Gorki) -, formada a companhia de teatro, adestrada a companhia de atores. Eu diria que sio poucos os diretores, na historia do teatro, que conseguiram fandar uma companhia com um grupo de atores assim tio “heterogéneos”. Os atores do Teatro de Arte frequentaram diferentes escolas, tinham experiéncias profi sionais distintas e sabiam coloci-las em pritica, cada um a seu modo. “Era necessirio soldar, fundir junto, reduzir a0 mesmo denominador todos os membros da companhia, jovens e velhos, amadores ¢ profissionais, inexperientes ¢ especialistas, talen- tosos desprovidos de talento, desgastados e ainda intactos”. Mas soldar as pessoas e, ainda mais, os artistas, nio é simples. Nas primeiras representagdes K. Stanislavski compunha aos poucos, antes que comegassem os ensaios, e registrava cuida- dosamente toda a vida dos atores sobre © palo, No plano da direcao, além de indicagSes precisas sobre como interpretar esse ou aquele papel, indicava com qual voz deveria falar 0 intérprete, como deveria mover-se e se deslocar de um lugar Para 0 outro, Hoje isso parece sacrilego, mesmo que ainda se encontrem alguns diretores que acreditam na aceitabilidade 2. STANISLAVSKI, K. La mia vite nell" arte, Traduzione italiana di M. Borsellino Di Lorenzo, Torino: Einavsli, 1963. p. 241 26 de tal trabalho, Naqueles anos 0 Teatro de Arte de Moscou se dirigia essencialmente sob a indiscutivel autoridade artistica de K. Stanislavski, semethante a uma ditadura que requeria determinados sacrificios. Para fundar e cultivar a companhia de atores, K. Stanislavski deveria mostrar-se rigorosamente exigente no s6 com 0s outros, mas também consigo mesmo, Nasceram lendas horripilantes sobre 0 despotismo de direcio de K. Stanislavski. Mas, diante do espeticulo, tudo mudava radicalmente: a critica ¢ pitblico celebravam sempre a riqueza eavvariedade de individualidades, a perfeita harmonia de todos oselementos do espeticulo e, de modo particular, da companhia dos atores. Mas uma ditadura como essa nfo poderia continuar por muito tempo e, como acontece frequentemente, a severa disciplina comegou a transpor as fronteiras da crueldade, Muitos nio resistiram e abandonaram 0 teatro, tantos atores extraordi~ indrios interronperaus suas eatseisas. Toram embora realmente (05 mais brilhantes ¢ talentosos? Obviamente, sim. Para eles foi realmente dificil, Aos mais talentosos e fortes coube 0 destino de se tornarem lideres de outras companhias. Mas, com seus novos grupos, adotaram, porsua vez, 05 mesmos modelos crudis para exigir uma unidade “artistica”. Tendo partido esse ou aquele componente, a companhia do Teatro de Arte tornou-se outra, emergiram novas relagdes, e, portanto, o trabalho de formagao da companhia do Teatro de Arte nunca se interrompeu. Cada sucesso ou fracasso do Teatro de Arte serviu: para instruir a sua companhia. Atores ¢ diretores reconheceram sinceramente a vantagem de ver emergir a unidade artistica durante os espeticulos e utilizaram esse prinefpio do movimen- to coletivo também durante os ensaios. Essa foi a confirmagao ais importante da poténeia do método agregativo: grande produtividade, riqueza artistica, capacidade de unit os atores ~ desde o estado inicial do trabalho em uma Gnica completude 27 artistica. O método agregativo dos ensaios, inaugurado pelo Teatro de Arte, tornou-se um dos métodos mais concretos do teatro russo. Além da nova metodologia para os ensaios ¢ da nova es- tética do teatro, gerada pela interpretagio de individualidades eminentes, 0 experimento do Teatro de Arte decretou uma nova ética teatral:a ética da unidade, da beleza e da integridade artistica, Com a experiéncia adquirida na cri io da companhia, K. Stanislavski foi o primeiro (e nio por acaso) a atentar e a formular os principios da ética do ator e do diretor, Escreveu: “Se durante o primeiro ano o grupo de vocés for formado por cinco ou seis pessoas que compartilham © mesmo objetivo, dediquem-se de todo coracio ¢ se liguem ideologicamente e de ‘maneira indissolivel, alegrem-se e saibam que jé estio na meta- de da obra’, Masse por um lado sabe-se que é possivel cultivar um talento verdadeiro “somente numa atmosfera dgil, simples e tanquila [..] em que se desenvolva uma atividade auténoma’’, percebe-se também que “a forca do ator, a sua capacidade de elevar-se as alturas dos grandes pensamentos ¢ sentimentos € um resultado da sua boa educacio, A boa educacio, como a autodisciplina, [..] tem a mesma importincia como elemento criativo que amor tem para a arte’, Algum tempo se Passou até que K. Stanislavski aprendess ssim 2 confiar nos atores € comegasse a perceber que era necessirio reuini-los sob a ideia de um alto valor estético e que era necessitio cultivi-los no somente como intérpretes, mas também como pensadores que professam os mesmos prineipios artisticos. Mas, repito, antes de 3. STANISLAVSKI, K. I avoro dell” ator su se stesso a cura di G. Geerieri Bari: Laterza, 1996. p. 503. 4. STANISLAVSKI, K. Liattorecativ, a Firenze: La asa Usher, 1989. p. 71 ‘ura di F, Cruciani e C, Fallet 5. Ibidem. p. 57 28 chegara esse resultado, K. Stanislavski e a sua companhia teatral percorreram o dificil caminho da ditadura. Pessoalmente eu no concordo com o fato de que essa seja a tinica estrada que se possa percorrer. Na juventude eu também a pratiquei por algum tempo, mas sempre me permaneceu a impressio de um qué embaragoso. Hoje acredito que o sentimento de liberdade ¢ de unidade deva fandamentar a criagio de um teatro. © percurso que parte do ponto “ditadura” foi percorrido por numerosos diretores na Ruéssia e na Europa: uma com- panhia de atores, via de regra, se formava “do alto” devido a pesadas presses do seu lider. Uma tinica individualidade de destaque dominava a iniciativa dos demais. O caminho em diregio 3 democracia frequentemente passava pela repressio. E cada vez mais foram levantadas perguntas que intimidaram quem estuda e aprecia a histéria do teatro: um objetivo, mes- mo o mais sublime, vale um sacrificio sequer? Quais sio os limites do prego que & necessirio pagar pela liberdade? Pode a coletividade da companhia sufocar uma Gnica pessoa que no esteja perfeitamente integrada? Fssas perguntas sio ainda hoje de dificil solusio, mesmo no século XXI. E, apesar dis- so, a propria ideia de companhia permaneceu viva por todo 0 século XX, desenvolveu-se ¢ se fortificon na mentalidade teatral, Foi fruto do desenvolvimento de todo o teatro europeu, uma realidade estética que nasceu concreta e que foi vivida sofrida por todos os seus componentes mais significativos. Nas mais diversas fases do teatro do século XX, as personalidades teatrais de destaque perceberam que fandar uma companhia jonalmente preparada e maledvel, rica em seu interior, profis capaz de representar uma solugio expressiva de certa comple xidade, nao é tarefa simples, Mas, entre perceber essa realidade © concretizi-la, hé um abismo, aquele que sempre se abre entre ®sonho ¢ a realidade. 29 Parece-me importante notar que, com a chegada do século XX, 0 conceito de companhia transformou-se radicalmente, mesmo porque se formou, de maneira muito ripida, um novo modo, sociale filos6fico, de vero papel do individuo-- membro essencial e construtivo de uma coletividade, Naquele século nio er possivel filar de uma compania sem considerar o pape! crescente de cada um de seus atores, de cada individualidade. Nio era possivel definir a esséncia da companhia, da sua vidac da sua arte, sem resolver © complexo problema da relacio entre 0 valor artistico da companhia e aquele do individuo, Entio se apresentou esse novo problema que era necessitio resolver. Sobre o rastro de K. Stanislavski, segundo o qual nio & possivel falar de espeticulo excepcional se nio hi uma com. Panhia de atores, diretores iustres do século passado Procura- ram resolver a questio por meio das mais variadas teorias ¢ de priticas muito interessantes, Por exemplo, a companhia de teatro vista por Antonin Artaud é algo que nio se prende a uma definicao, & mutivel,, esti em constante transformagio ¢ se sujeita completamente 4 vontade do diretor. Sao colocados em davida nio somente os aspectos do mundo sensivel, mas também do mundo interior do homem. Antonin Artaud desconfia manifestagio de hi manidade e propde eliminar 0 conteado psicolégico do ator. E justamente a personalidade do homem a degradar, segundo Artaud, 0 significado do teatro como tal, para distanciilo da Sua missio principal. A personalidade do ator, segundo a de- finigio de Artaud, deve transformar-se em um tipo de sina! hharmonia de sinais ~ ¢ io de pessoas. Admitido 0 postulado de K. Stanislavski, segundo o qual a interpretacao de um s6 ator provoca um enorme efeito sobre a interpretacio de toda a companhia, Bertolt Brecht delineia um Principio te6rico © uma técnica de preparagio da companhia PnastiNo CABfFULO. AS COMPANIMAS QUE NAO BXISTEN MAIS absolutamente inovadores. O seu teatro épico estabelece novas relagdes entre companhia e individualidade, “O ambiente: social [..] deveria constituir objeto de atengio em sie porsi mesmo’ Era presumivel que a coletividade se tornasse 0 personagem principal das suas obras, ainda que no inicio elas fossem com- postas de uma tinica pessoa. O teatro brechtiano considera que, no século XX, se deve conceber a humanidade como massa, no interior da qual & praticamente impossivel distinguir cada componente indivi- dualmente @ légica do desenvolvimento hist6rico tornou 0 individuo muito insignificante, efémero e incapaz de tomar decises neste mundo). O homem se transforma em uma espécie de produto social da época em que vive. Qualquer que seja a individualidade, ela pode ser facilmente decomposta nas suas distintas fiingSes sociais, 0 que a faz acessivel a compreensio. Desse modo o homem & uma videira que participa do traballiw do complexo mecanismo social. Se uma tinica pessoa deixa de ser 0 centro emocional do espeticulo, cria-se um vazio. Para preenché-lo Bertolt Brecht leva ao palco “os coros, por meio dos quais 0 espectador é instruido a respeito de circunstincias de tum fato desconhecidas dele’. © teatro de Brecht nao deposita confianca alguma no homemt e © avalia por meio da opinio Piblica, evidenciando constantemente como o homem, na realidade, considera que é aquilo que os outros pensam dele. © portador da verdade objetiva torna-se, na estética de Bre- cht, a coletividade, Para 0 dramaturgo a humanidade é um Nés, €nio um Eu, A individualidade é indiferente: nao participa das escolhias. Desse modo, nas relages entre companhia e individu- alidade, © papel de apoio no teatro de Brecht é desempenhado © BRECHT, B, Sern Tera. Tradurione italiana di Castellani ¢ ati Torino: Einaucli, 2011, p. 63 7 Ibider. p. 64, 3 pela companhia. O herdi é um tipo e nfo uma individualidade Deve ser considerado ¢ julgado como elemento de um coro que © fez propria imagem e semelhanga, Do que foi dito aé aqui, Podemos chegard conclusio de que a compannhia é, para Bertolt Brecht, antes de tudo, um sistema de sinais sociais, Nio inferior, mas crucial foi a importincia da questio “companthia” na obra de Jerzy Grotowski. No artigo Porn teatro pobre (1965), Jerzy Grotowski enfatiza a sintonia, considerando ue a interpreta¢io de uma companhia de atores recorda de ‘modo particular a exibigio de uma orquestra sinfénica que ©xecuta uma Opera. Para ele, 0 espeticulo é a soma dos perso- ‘agens interpretados por todos os componentes, Jerzy Groto- \wski construia a companhia de cada espeticulo com a mesina ‘meticulosidade que seria necessiria para uma 6pera, Quem prestou maior atengio as probleméticas relativas &

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