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NARRATIVAS DE HISTORIA DA AMERICA FIXADAS NO ENEM: UMA ABORDAGEM CURRICULAR MARCUS LEONARDO BOMFIM MARTINS Seja pelo desconhecimento dos paises entre si, pela predominéncia de perspectivas europeias ou pela valorizagao das identidades nacionais, tornamo-nos “o outro” de nossa prépria hist6ria (CONCEICAO; ZAMBONI, 2013, p. 421). Entendo os itens do ENEM nao como produtos de acordos / consentimentos, mas sim como discursos que se intercruzam com diferentes demandas, expectativas, memdrias, matrizes tedricas e historiogréficas e concepgées de avaliagdo. Além disso, estas rnarrativas priorizam determinados assuntos, personagens e periodos cronolégicos, excluindo ou marginalizando tantos outros ao longo do tempo. (VELASCO, 2018, p. 37). ‘A escolha do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como espaco discursive para a investigacao das narrativas de Histéria da América que circulam na educacio basica nao é aleatéria. Ela assenta-se em uma perspectiva que concebe politicas de avaliacao como politicas curriculares que participam da “disputa pelo que hé, pelo que esté acontecendo, pelo para-onde-vao as coisas, em suma, mais do que uma guerra de interpretacdes, uma disputa hegeménica pelo mundo em que vivemos. ” (BURITY, 2010, p. 8). Proponho-me, nesse texto, a explorar a questiio de quais as narrativas da Histéria da ‘América que tém sido fixadas no Enem. Assumo como pressuposto que, essa proposta implica em dialogar com as esferas de selecdo curricular, produzidas em meio a relacdes assimétricas de poder que terminam por definir, igualmente, lembrancas e esquecimentos, que animam os processos identitérios quando, o que estd em jogo, sdo os passados da Histéria da América, legitimados para serem ensinados/aprendidos nas aulas de Histéria no Brasi Divido, pois, esse texto em duas partes. Na primeira apresento as lentes teéricas, inscritas em uma abordagem discursiva em perspectiva pés-fundacional, forjadas a partir do campo do Curriculo. Na segunda, mobilizando as ferramentas produzidas e apresentadas na primeira parte, sumario a abrangéncia e analiso os itens de Histéria da América que tiveram lugar no Enem nas suas Ultimas dez edigdes (2009-2019). O foco da andlise recai sobre os contetidos, personagens, periodos cronolégicos e eventuais relagdes com a Histéria do Brasil. Entendo que a problematizagao escolhida para ser desenvolvida ao longo desse texto tem potencial para animar as continuas discussdes sobre © papel do ensino de Histéria no contexto de disputas por projetos identitarios e de diferenca. 1 ENEM: ESPACO DE DISPUTAS E FIXACAO DE CONHECIMENTO VALIDO A SER ENSINADO/APRENDIDO A Teoria do Discurso é uma teoria de andlise do social na qual a dimensao ontoldgica do politico ocupa um lugar de destaque. Partindo do pressuposto que a realidade social no esta dada @ priori, mas que é construida politicamente, e que o acesso 4 materialidade se dé pelo discurso, defendo a poténcia desta teoria para analisar como algumas coisas adquirem estabilidade no mundo social, 0 que Laclau (2005) chama de hegemonia, entendida também como “luta de poder” (LACLAU, 2011, p. 50). A abordagem pés-fundacional radicaliza as criticas as leituras essencialistas de mundo, desconfiando das afirmagdes categéricas e das generalizagdes. Contudo, nao se trata de negar a existéncia de qualquer tipo de fundamento, mas de negar sua transcendéncia, seu cardter atemporal, inumano e apolitico, enfim, trata-se de explorar “seu estatuto ontoldgico” (MARCHAT, 2009, p. 29) percebendo-o, portanto, como contingente e histérico. Se ha, pois, a impossibilidade de um fundamento ultimo e definitivo, é no politico — atravessado pelas relagées de poder - que se constroem determinadas leituras de qualquer ordem social em busca de hegemonia. © politico’ é o lugar da possibilidade da subversio, é a explicitagao da precariedade dos fechamentos de sentidos, “é 0 que pde em xeque uma ordem constituida, demonstrando sua contingéncia” (MENDONCA, 2012, p. 13). Enfim, 0 politico & 0 conflito que, ao mesmo tempo constitui e coloca em risco 0 instituido, é a dimensio ontolégica que constitui o social (LACLAU, 2005), enquanto a politica é a tentativa de controlar o politico, de estabelecer uma ordem, 6 a hegemonizacao, a sedimentago, o fechamento de sentido, é a dimensao 6ntica. A énfase na linguagem ¢ uma caracteristica do pés-fundacionismo. Essa perspectiva parte do pressuposto que a linguagem, ao invés de representar 0 mundo, o constréi, isto 6, a linguagem cria aquilo de que fala ao invés de simplesmente nomear o que existe no mundo. (LOPES; MACEDO, 2011). Assim, operar na pauta pés-fundacional implica em abrirmos mao de certezas e verdades que se situam fora do jogo da linguagem (GABRIEL, 2013). Nesse sentido, a realidade social ndo aparece como algo a ser desvendado, mas compreendido a partir da sua infinidade de formas, das varias possibilidades de se alcangar miltiplas verdades, contingentes e precirias, Operando com essas breves definicdes para tratar o objeto de estudo deste texto, trata-se de compreender que nao existe uma Histéria da América determinada por um fundamento ultimo Tara uma discussie teérica aprofundada entre a politica eo police, ver Mautfe, Chantal. On the poiial. New York: Routledge, 2005, ° que a constitua e, ao mesmo tempo, a legitime para ser ensinada e aprendida na educagdo basica Eno politico que seus significados so disputados e fixados. Portanto, dizer o que é e 0 que no é Historia da América legitima nao implica em mobilizar a ideia de um ente transcendental, cabendo a mim, neste texto, apresenté-lo em sua plenitude e observar empiricamente como se apresenta nos itens do Enem. € mais condizente falar em compreender o que tem sido fixado como Historia da América valida, deslocando a empiria do papel de referendo para a funcao de terreno de disputa Tendo essa postura epistémica como pano de fundo, é possivel descartar de imediato a ideia de que hé um significado Gnico para se pensar o curriculo, decorrendo dai a necessidade de esclarecer com qual entendimento de cur uulo irei operar na producao das andlises pretendidas. Lopes e Macedo (2011) explicitam bem como é conceber o curriculo na perspectiva teérica aqui assumida: © curriculo 6, ele mesmo, uma pratica discursiva. Isso significa que ele 6 uma pratica de poder, mas também uma pratica de significagdo, de atribuicdo de sentidos. Ele constréi a realidade, nos governa, constrange nosso comportamento, projeta nossa identidade, tudo isso produzindo sentidos. Trata-se, portanto, de um discurso produzido na intersegao entre diferentes discursos sociais e culturais que, 0 mesmo tempo, reitera sentidos opostos Por tals discursos e os recria. Claro que, como essa recriagao esté envolta em relacbes de poder, na intersegao em que ela se torna possivel, nem tudo pode ser dito, (LOPES; MACEDO, 2011, p. 41). Interessa-me aqui situar 0 Enem como politica de avaliacdo. O entendimento de curriculo ora mobilizado permite que se compreenda que as politicas de avaliacao se constituem como politicas curriculares na medida em que representam “espacos de hegemonizacio de sentidos do que deve ser ensinado/aprendido nas escolas da educacao basica interpelando assim, diretamente os sujeitos posicionados nas relagdes de ensino-aprendizagem como professores e alunos.” (GABRIEL; MARTINS, 2018, p. 233). Sendo 0 Enem, desde 2009, a principal porta de entrada (ou barragem) para 0 acesso a0 Ensino Superior Piblico no Brasil, entendo, tal qual Rocha (2013), que essa politica de avaliacéo tem se configurado como a “fina flor dos validados”. Essa expresso reafirma o status assumido pelo Enem de ser um dos principais elementos que “movimentam selegées e decises tomadas em meio 0s processos de producao e distribuicao do conhecimento escolar.” (RAMOS, 2014, p. 28), e como “(..) lugar de fixagao de sentidos de conhecimento escolar de qualidade e de validacio do que deve ser ensinado.” (RAMOS, 2014, p. 235). A precariedade de todo fechamento do processo de significagao de qualquer ordem social (aqui o Enem é entendido como uma) permite que se reconheca que as politicas de avaliagao se constituem, simultaneamente, como espaco de hegemonizacao, mas também, como espaco de luta pelo direito de dizer o que é conhecimento de qualidade, sendo, pois, um ato de significado. Fazendo a transposi¢ao desse entendimento para 0 objeto de investigacao desse texto, trata-se de identificar os conhecimentos escolares particulares sobre Historia da América que, nas uiltimas ® dez edigdes do Enem, tém assumido o papel de conhecimentos escolares universais a partir desse recorte que & no apenas geografico, mas também politico e epistemoldgico. Cabe sublinhar que a perspectiva teérica discursiva na pauta pés-fundacional me permite deslocar a apreensdo da tensdo entre universal e particular de forma a nao colocar esses dois elementos como antagénicos, mas como elementos estruturantes do jogo politico da definico. Portanto, no se trata de tomar o universal como vildo e o particular como panaceia, ou vice e versa, mas de explorar a permanente tensao entre ambos nas lutas politicas inerentes aos processos de significagio. Reconheco, no entanto, que so diversas as demandas particulares de identidade/diferenca que interpelam a escola e seu curriculo, em busca da adequagdo dessa instituico a essas demandas, ea Histéria da América legitimada, por meio do Enem, para ser ensinada e aprendida nas aulas de Historia na Educaco Bésica, ndo escapa a essa tenséo. Dessa forma, ndo existe uma identidade/ diferenca pura em relacdo & Histér da América representada nos itens do Enem, mas um hibrido identitério hegemonizado contingencialmente. Esse hi rido identitério fixado nos itens do Enem tensiona, portanto, os limites front igos do “eu” e do “outro” nas disputas pela configuragdo de uma identidade nacional brasileira por meio do ensino de Histéria. Para isso, é necessério reconhecer, como o faz Gabriel (2013b), a alteridade como elemento estruturante do conhecimento histérico escolar. Para essa autora, o curriculo de Historia 6, a0 mesmo tempo, condigdo de possibilidade das demandas de diferenca e espaco-tempo hibrido produtor de identidades narrativas, nas quais 0 “outro” esta sempre presente. ‘Ainda que em cada aula de Histéria na educagéo basica “nds” e “outros” possam ser constituidos, contingencialmente, nas refiguragées narrativas produzidas pelos sujeitos envolvidos na relago de ensino-aprendizagem, é inegével que as politicas de avaliacao, e em especial o Enem, atuam no sentido de limitar 0 curso do jogo politico de produgdo de sentidos de conhecimento de qualidade. No entanto, é a aposta nos sentidos de curriculo aqui mobilizados, em perspectiva discursiva, que permitem o reconhecimento da impossibilidade do fechamento total de sentidos, © que tora a luta, apesar de assimétrica em termos de relagdes de poder, permanente, e com possibilidade de outras configuragdes hegemédnicas, mais plurais e democriticas. Séo esses entendimentos que validam e tornam pertinentes as anélises propostas neste texto 2 SENTIDOS DE HISTORIA DA AMERICA FIXADOS NO ENEM Selecionar as dez tltimas edigdes do Enem (2010-2019) gerou um volume de 450 questdes da drea de Ciéncias Humanas e suas tecnologias” para serem analisadas. Considerando que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anisio Teixeira (Inep) - érgdo responsvel pela gest3o do Enem ~ articula nessa grande drea as disciplinas de Historia, Geografia, Sociologia e Filosofia, 0 primeiro desafio consistiu em identificar quantos desses itens correspondiam a disciplina de Historia. TA despeite das dsputas teérico-politicas travadas no campo educacional sobre esse termo, opto por, neste estudo,reproduzir © termo tal qual estabelecido ofcialmente ® cutir as front No cabe nas balizas pensadas para esse texto, s entre as disciplinas. No entanto, para que a tarefa de situar um mapa relacional da Histéria da América nesse texto discursivo se tornasse possivel, quando havia dividas em relacdo a classificagdo da questéo no que diz respeito a sua inscri¢o disciplinar, optei por priorizar, nos gabaritos, a relacéo com contetidos classicos da disciplina ou ligadas ao oficio do historiador. A escolha pelo gabarito se dé pelo entendimento de que ele “cumpre a funcéo de corte antagénico do processo de producao de significados, representando a hegemonizagdo de sentidos de verdadeiro sobre o que esté sendo exigido pela questo. ”? (MARTINS, 2019, p. 80). A partir desse movimento foram identificadas 173 questdes de Historia dentre as 450 da rea de Ciéncias Humanas, o que corresponde a 38,5% do total, representaco esta que considero significativa, uma vez que a drea abarca ainda outras trés disciplinas escolares. Para dar conta da proposta de sumariar a presenca da Historia da América, explorei as 173 questées e as dividi Historia da América, Histéria Geral e Outros’. Mesmo em quatro partes: Histéria do Brasil, reconhecendo que essa forma de classificacao tende a reatualizar tradigdes do cédigo disciplinar da Historia (CUESTA FERNANDEZ, 2009) que 0 campo do Ensino de Histéria tem questionado em seus aspectos politicos e epistemolégicos, considero-a potente para enfrentar a questo proposta para esse trabalho. 0 Gréfico 1 contempla visualmente a presenca e a abrangéncia da Historia da América no contexto das questées de Historia no Enem entre 2010 e 2019. Grafico 1 — Distribuigio das questées de Histéria no Enem (2010-2019) 16 14 2 { | viasicasasuces | Historia Geral | ] I Outros (Mba Na ble Ba A Ba ls Bll Von 2010 2011 2012 2013 2014 201 2016 ZOL/ 201s 2019, ‘Ano de Aplicagao do Enem 4 Quantidsde de Questes Fonte: Elaborada pelo autor. (Gifs do onialoal ens que se referiam a Histria das Estados Unidos foram classifcados come Histéria da América quand reacionada 20s demals paises do continante e como Histria Geral nos demais caso. ‘Questses que se referem a Teoria da Histri, Ofiio do historiador ou Ensino de Misra E facilmente justificdvel a lideranca de questées de Histéria do Brasil e, a depender do Angulo escolhido para olhar, até mesmo a vice-lideranga de questées de Histéria Geral neste ranking. © estranhamento se dé quando se observa em perspectiva comparativa a frequéncia e abrangéncia da Historia da América (menos de 5% do total das questdes de Historia). Em quatro dos tims dez anos nao houve questdes de Histéria da América nesse exame, o que nao chegou a acontecer em edigao alguma com a categoria “Outros”. Ademais, com excegdo de 2010, no qual igualou o numero de questées de Historia Geral, e de 2012 e 2017, quando empatou com as questdes ligadas 8 Teoria da Hist6ria, Oficio do historiador ou Ensino de Histéria, a subalternizag3o dessa tematica se evidencia pelo fato de nos demais anos da série considerada, a Histéria da Amér a foi a que menos se fez presente na avalia¢o que define a “fina flor dos validados” (ROCHA, 2013) no Brasil Considerando 0 universo obtido (oito questdes)® de questdes de Histéria da América identificadas’, optei por analisar todos os textos de referéncia, comandos de questo e gabaritos, tendo como foco os conteiidos, personagens, periodos cronolégicos e eventuais relagées com a Histéria do Brasil. A abordagem desses elementos em escala holistica e articulada permite que se construa um quadro de inteligibilidade, cuja andlise apenas individual das quest6es impediria, do que tem sido validado, a ser ensinado e aprendido sobre Historia da América na educagdo basica. Essa escolha, no entanto, néo desconsidera os limites oferecidos por questées objetivas para construcées de metanarrativas, consistindo esas, portanto, em elaboragées discursivas possiveis a partir da articulagao dos elementos selecionados como foco da investigacao empitica. As oito questdes contemplam seis contetidos/temas: Povos pré-colombianos; Guerra do Paragual; Ditaduras civil-militares; Conquista da América; Colonizagéo Espanhola e Integracao regional. Desses, as tematicas dos regimes militares e da conquista da América apresentaram duas questdes, enquanto as demais apresentaram apenas uma. Sobre esses contetidos, as verdades fixadas podem ser definidas nas seguintes sentencas: 1) A principal caracteristica da sociedade inca era a impossibilidade de se mudar de extrato social e a existéncia de uma aristocracia hereditéria; Il) Dificuldade de elaboracao de explicagdes convincentes sobre os motivos da Guerra do Paraguai; Ill) Na ditadura chilena o poder judiciério estava subordinado aos interesses politicos dominantes; IV) O interesse espanhol na colonizacéo da América implicou a fundagSo de cidades como estratégia para controlar a circulacao de riquezas; F010 (26, 2, 42); 2012 (20}, 2013 (06); 2016 (13); 2027 (53); 2018 (68), Para faciitaraidentificarSo, todas questéescitadasreferem-se aos cadernas da cor azul, que podem ser abtidos por meio do seguinte cendereso eletrdnico:htp//portalnep gov.br/provas-e-gabarits. Acesso em 25 ma. 2020. © V) A conquista dos astecas contou com uma frustrada resist€ncia a um poder considerado superior; VI) A Operacao Condor tinha como objetivo coordenara repressao de ativistas oposicionistas; Vil) A Alianga do Pacifico foi criada em 2012 com o objetivo econémico de fomentar a competitividade no mercado externo; Vill) Apesar da superioridade numérica e da estrutura dos povos pré-colombianos, a estratégia dos conquistadores para superar as disparidades foi explorar as rivalidades existentes entre os povos nativos. Nao é objetivo deste texto avaliar a proximidade ou o distanciamento dessas verdades histéricas legitimadas no Enem com as recentes producées historiogréficas sobre as tematicas identificadas. Esse movimento tenderia a reforcar perspectivas de andlise que tendem a sublinhar uma espécie de tese do descompasso quando o que est em questo é a relacao entre o conhecimento histérico académico e o conhecimento histérico escolar. Tal tese inclina-se a reforgar dicotomias e assimetrias entre espacos distintos de produgdo de conhecimento desconsiderando, portanto, as especificidades epistemoldgicas do conhecimento histérico escolar, assim como de seus regimes de verdade e historicidade igualmente especificos. Interessa, no entanto, explorar, ainda que ligeiramente, os efeitos de sentido que tais verdades histéricas enunciadas nessa politica de avaliago tendem a produzir para os processos de identificagao e subjetivacao que atravessam as aulas de Historia na Educacao Basica. Para enfrentar esse desafio, a andlise dos personagens e da cronologia articulados nas narrativas se mostra potente, pois como afirmam Gabriel e Martins (2016, p. 206): A categoria “sujeito histérico” é da ordem da prética, da agéncia, do agir no mundo, e sua operacionalizac3o no contexto de ensino-aprendizagem envolve questées tanto de cunho epistemolégico relacionado ao debate historiogréfico como referentes & formagao ético- politica do aluno dessa disciplina Os povos pré-colombianos que aparecem nessas narrativas si apenas os incas e astecas. Chama atengao que as narrativas nas quais esses povos aparecem nao séo mencionados anos ou séculos, nem qualquer outro registro cronolégico, remetendo a ideia de auséncia de historicidade desses povos. Ou seja, incas e astecas séo apresentados como blocos hegeménicos no tempo e no espaco correspondendo, portanto, a sujeitos coletivos homogeneizados em sua identidade coletiva de inca ou de asteca. Nessas narrativas, a superioridade numérica, a estrutura e as tentativas de resisténcia desses povos sucumbem a superioridade do europeu em seu proceso de conquista para a satisfacao de seus interesses econdmicos. Fazer mencao a estrutura, em especial dos astecas, para tratar dos povos pré-colombianos, do proceso de conquista espanhol e da consequente colonizacéo (essa sim situada no século XVI), parece sé fazer sentido para reforcar a superioridade intelectual europeia. Ademais, escolher ® abordar esses povos por essa perspectiva, para além de reafirmar o eurocentrismo da estruturacéo narrativa, implica uma escolha politica em priorizar mostrar “derrotas” e nao relagdes especificas de protagonismo ou de reconhecido valor cultural desses povos. Nessas tematicas, os personagens mobilizados séo incas, astecas, Cristévao Colombo, Hernén Cortez e habitantes da América. Sublinhe- se que a superioridade europeia também pode ser observada na correlaco de forcas dos individuos europeus sobre as coletividades americanas. Em relacdo a integragao regional, o recorte se da pela Alianca do Pacifico, vigente desde 2012, que contempla México, Colémbia, Peru e Chile. 0 foco de abordagem é a questao econémica € no hé identificacdo comum entre os paises membros, intuindo-se que ela se da apenas pela questo geografica. Se na anilise articulada dos povos pré-colombianos, do processo de conquista e da colonizacao prevaleceu uma perspectiva de sujeito coletivo homogeneizado e sem historicidade, aqui a perspectiva de sujeito que emerge é a de sujeitos sem histéria, correspondendo a “auséncia ago singular de tais sujeitos” (GABRIEL; MARTINS, 2016, p. 221) no processo de sentido na parti histor ‘0 em questo. Em outros termos, trata-se de perceber que nao hd nada que considere a razdo especifica de serem esses e ndo outros paises da América Latina na Alianga. Mobilizar essa temética, no entanto, facilita a observagio do “outro” que constitui os processos de identificago. No caso dessa questao®, o titulo da reportagem da qual o trecho retirado para servir como texto de referéncia para o item apresenta o Mercosul ocupando esse lugar do “outro”. Sendo o Brasil um dos principais membros do Mercosul, por conseguinte, é ele também um dos “outros” da narrativa fixada nessa questo do Enem. De forma mais explicita, o Brasil evocado como sujeito histérico nas narrativas dos temas Guerra do Paraguai e Ditaduras civil-militares. No primeiro caso, brasileiros, argentinos, Paraguai € imperialismo inglés so os personagens articulados em divergentes narrativas que disputam hegemonia sobre as raz6es para o maior conflito bélico latino-americano: a Guerra do Paragual. A énfase no patriotism e heroismo dos brasileiros, com destaque para os soldados, tem sido substituida por uma perspectiva que desloca esse herofsmo para uma condigo de subalternidade aos interesses econdmicos do imperialismo inglés na regio. Sublinha-se, no entanto, as dificuldades na producdo de explicagdes convincentes sobre os motivos dessa guerra Ao priorizar validar essas dificuldades, o Enem, de alguma forma, nao fecha a porta para a possibilidade de reaparecimento da figura do sujeito histérico tomado como herdi, ainda que de forma coletivizada, elemento este que, tanto na historiografia académica como na historiografia escolar, encontra-se em absoluto desuso, a despeito das aproximacdes desses campos com os estudos biogréficos em diferentes matrizes tedricas e possibilidades de apropriacao e articulagao. Quando o tema sdo as ditaduras civil-militares, o Brasil aparece em condicdo de igualdade com os demais paises da regio que experimentaram ruptura de suas ordens democréticas vigentes. 0 foco da questo é a Operacao Condor, tamada como organizacao coletiva das Forcas Armadas dos fem 53 do caderno arl de 2027, paises que partilhavam a luta contra o comunismo militante na regio. E 0 caso, além do Brasil, de Paraguai, Argentina, Bolivia, Uruguai e Chile. O ativismo comunista é, portanto, o exterior constitutivo do processo identitario dessas nacdes no contexto latino-americano da segunda metade do século XX. Em outras palavras, 0 que torna o Brasil membro de uma coletividade que podemos chamar de ‘América Latina, nesse contexto, é a rejeico comum ao comunismo. Chama atengao a temdtica que marca explicitamente a relagdo do Brasil com os demais paises da América Latina nos itens do Enem: o protagonismo militar. Essa situaco pode ensejar leituras que tanto mobilizam a dentincia desse protagonismo, como perspectivas conservadoras que entendem esse protagonismo como efeito da incapacidade da sociedade civil latino-americana organizada de oferecer respostas para seus problemas e suas crises. €, pois, no contexto de cada aula de Histéria que uma ou outra légica poder ser enfatizada, pois na principal politica de avaliagao do pais, optou-se por uma abordagem mais factual, no caso da questo sobre a Operagdo Condor, e de indeterminagdo no caso da Guerra do Paraguai: Outras duas marcas da configuracgo narrativa que inscreve o Brasil como um “mesmo” endo como um “outro” na Histéria da América s80 0 recorte politico no pés-independéncia e a Historia Geral como pano de fundo. O periodo colonial e o anterior a ele excluem qualquer relacio com a histéria brasileira. Uma hipstese para esse quadro pode ser a condicéo de hegemonia possivelmente ocupada por perspectivas historiograficas que tendem a nomear os territérios da regido como América Portuguesa e América Espanhola. Tal hipétese ¢ reforcada pela segunda marca anunciada. Se na questo sobre a Guerra do Paraguai, o conflito entre os paises latino-americanos tem sido pensado como efeitos dos interesses da até ento maior lideranga mundial, a Inglaterra, na questo sobre a OperagSo Condor, o anticomunismo tem na Guerra Fria a sua origem. Ambas as marcas assinaladas convergem para um elemento que por mais denunciado que seja parece néo ter sua hegemor abalada quando o que esté em jogo sao as narrativas histéricas legitimadas para serem ensinadas e aprendidas na educagdo basica: 0 eurocentrismo. CONSIDERACOES FINAIS Oestudo de Histéri da América no Brasil no é recente. Desde o periodo imperial brasileiro, seus contetidos faziam parte do curriculo do Colégio Pedro Il (BITTENCOURT, 2005). Apesar das disputas que envolvem o que e 0 como ensinar qualquer tema ou contetido, predominou no pais, independente do periodo histérico, a exclusio do Brasil da Histéria da América. Nesse sentido, Bittencourt (2005: p. 10) destaca que A Histéria da América, ao ser dada separadamente da Histéria do Brasil, no possibilitava um estudo sincrénico e, portanto, de dificil entendimento da insercio do Brasil em uma histéria americana. Restava a possibilidade dos alunos apreenderem o sentido de uma identidade latino-americana & qual o Brasil nao pertencia Como abordado ao longo desse texto, considerando a principal politica avaliativa do pais - aqui entendida como politica curricular - 0 Brasil inda é, majoritariamente, o “outro” da identidade latino-americana. Apenas é articulado discur amente como um equivalente quando a narrativa em questo, considerando o contexto pés-independéncia, subjuga a América Latina aos processos histéricos relacionados & Histéria Geral. A andlise dos itens do Enem confirma a permanéncia do eurocentrismo como elemento estruturante das narrativas latino-americanas, produzindo, assim, efeitos sobre os processos de identificagdo nacional/continental, interpelando a tenséo entre universal e particular. Sem deixar de reconhecer as politicas curriculares, em especial o Enem, como politicas que tentam estabelecer uma interrupcao do processo de produgdo de sentidos sobre o que é conhecimento valido para ser ensinado e aprendido nas escolas da Educaco Basica, conhecimento de qualidade, e, enfim, a perspectiva te6r aqui mobilizada autoriza o entendimento de que os fechamentos produzidos no momento do corte antagénico deixam sempre algumas fissuras. nesses espacos que os sujeitos envolvidos nas relagdes de ensino-aprendizagem podem agir Trata-se de reconhecer que politica curricular alguma impede a produgao de narrativas outras nas aulas de Histéria, uma vez que o como ensinar, isto é, os sentidos forjados em sala de aula por meio das énfases, omissées, negacdes, analogias e metéforas, sao fruto de escolhas politicas dos docentes (MONTEIRO, 2007). Obviamente esse entendimento de curriculo ndo exime que se enfrente essa questo em muiltiplos espacos - e 0 avango dos estudos decoloniais e a incorporacao de epistemologias outras na historiografia escolar possuem elevado potencial para esse enfrentamento - mas outras narrativas sobre Historia da América, que contemplem o Brasil, e que nao se restrinjam de serem ao eurocentrismo como fio condutor e a nogées de sujeitos sem historia séo passive criadas em cada aula de Hist6i REFERENCIAS BITTENCOURT, C. M. F. Ensino de historia da América: reflexes sobre problemas de identidades. 2013. Revista Eletrénica Da ANPHLAC, (4), 5-15. https://doi.org/10.46752/anphlac.4.2005.1358. Disponivel em: https://revista.anphlac.org. br/anphlac/article/view/1358. Acesso em: 28, mai. 2020. BURITY, Joanildo Albuquerque. Teoria do discurso e educacGo: reconstruindo o vinculo entre cultura € politica. Revista Teias, v. 11, n. 22, pp. 7-29, maio/agosto 2010. 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