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EDUCACAO ESTETICA E ANIMAGAO CULTURAL: REFLEXOES AESTHETICAL EDUCATION AND CULTURAL ANIMATION: THOUGHTS Victor Andrade de Melo! Universidade Federal do Rio de Janeiro RESUMO: A partir d i i forgo de repensar o er. Crescentemente tem sido apontados os limites de uma atuagio tarefista que r a tal tendo pouco em vista as caracteristicas do contexto em que atua, bem como a nao compreensao completa de sua im claro compromisso com a it lo partir de entdo, tem sido comum as eriticas A concepeao tradicional de " » Procurando-se destacar a necessidade deste profissional assumir a dimensdo de um ani I, tarefa sensivelmente mais Se tais teflexdes foram de grande importancia, pode-se observar hodiernamente uma certa tendéncia a uniformizagio dos discursos, que muitas vezes acaba por esconder a necessidade da busca de novas referéncias tedricas, que possam tornar mais claro © processo de intervengao-da animagio cultural. Alguns esforcos até primam por levantar um conjunto de caracterfsticas do animador cultural, mas 0 proprio processo de animagao nio tem sido discutido com profundidade e inovacio. Este at objetiva discutir alguns olhares sobre a animaciio cultural/a partir de aproximagées com all, compreendida enquanto , € com as reflexdes construidas pelos estudiosos ligados aos E: rais. A pretensdo basica € que este conjunto de olhares, mais do que se afirmar enquanto verdade inabalavel, Possa retomar e mesmo reorientar a discussio acerca da tematica. PALAVRAS-CHAVE: Animagio cultural; estética 1 Enderego para contato: victor@marlin.com.br ; ae ! _“. Licere, Belo Horizonte, v.5, n.1, p.101-113, 2002 Dr. Victor Andrade de Melo Introdugaio "O que os grandes empresdrios dizem contra os agitadores é a mais pura verdade: so um grupo de pessoas intrometidas e perturbadoras que se dirigem as camadas perfeitamente contentes da comunidade e espalham em seu seio as sementes do descontentamento. Eis a razdo pela qual os agitadores stio absolutamente necessdrios, Sem eles, no estado de imperfeigdio em que nos encontramos, néio haveria avango na civilizagéo"”, A partir da década de 80, inserido no contexto de reavaliagdo das instituigdes brasileira, tipico daquele perfodo pés-ditadura, no Brasil tornou-se mais comum 0 esforgo de repensar o papel tradicionalmente ocupado pelo profissional de lazer, Crescentemente, ainda mais no Ambito do discurso e menos nas formagdes profissionais e nos foruns de atuagao, tem sido apontados os limites de uma atuagao tarefista que restringe a tal profissional o papel de somente oferecer um conjunto de atividades, tendo, pouco em vista as caracteristicas do contexto em que atua, bem como a nao compreensio completa de seu papel enquanto um educador que deve ter um claro compromi: di tatus quo. » procurando-se destacar a necessidade deste profissional assumir a dimensio de um animador cultural, tarefa sensivelmente mais complexa. Se tais reflexes foram de grande importancia, pode-se observar hodiemamente uma certa tendéncia a uniformizagio dos discursos, que muitas vezes acaba‘por esconder a necessidade da busca de novas referéncias tedricas, que possam tornar mais claro o processo de intervengao tipico da animagiio cultural. Alguns esforcos até primam por tentar levantar um conjunto de caracteristicas do animador cultural, mas © préprio processo de animagao nao tem sido discutido com profundidade e inovagao, dando até mesmo, no limite, a impresstio de que é um problema resolvido. Tenho buscado entabular iniciativas no sentido de melhor esclarecer as possibilidades e intencionalidades da atuagdo do animador cultural, procurando apresentar os limites das consideragdes em vigor e formular novas compreensdes acerca desse processo especifico de intervengiio pedagégica. Assim sendo, este artigo objetiva discutir alguns olhares sobre a animagao cultural a partir de aproximagées com a Estética, compreendida enquanto disciplina filos6fica, e com reflexdes construidas pelos estudiosos ligados aos Estudos Culturais. Minha pretenstio basica é que este conjunto de olhares, mais do que se afirmar enquanto verdade inabalavel, possa retomar e mesmo reorientar a discussio acerca da tematica, de alguma forma contribuindo para arejar os pensamentos difundidos na area de estudos do lazer. 2 Oscar Wilde, A alma do homem sob o sociatismo, 1891, 102 Licere, Belo Horizonte, v.5, n.1, p.101-113, 2002 Educagao estética e animagdo cultural: reflexdes A Educagiio Estética "Pouco afeto as.formas da escola, ndo estarei em perigo de pecar contra o bom gosto pelo seu mau uso. Minhas idéias, nascidas antes do trato regular comigo mesmo do que da rica experiéncia do mundo ou da leitura, ndo negarao sua origem; serdo culpadas de varias falhas, mas nao de sectarismo; irtio antes cair por fraqueza propria que ficar em pé por autoridade e forga alheia". A um processo de it a que tem acultura como sua , ‘anima", alma). Desde o inicio entio devemos compreender que a intervengdo no ambito da significa levar je maneira mais ex, ermanente articulagdo entre icita podemos afirmar determinadas que existe uma . Ao observarmos de forma mais complexa e dindmica tal articulago, devemos até mesmo dizer que as’ sensibilidades simultaneamente expressam e contestam conjuntos de valores, da mesma forma que os valores se ajustam e contestam determinadas percepcées. Tendo em mente as reflexdes recentes sobre a intervencdo pedagégica no Ambito do lazer, parece-me posstvel sugerir que temos investido muitos ésforgos nas S a0: ensado menos nas possiveis contribuigdes s. Preocupados em organizar idéias supostamente desorganizadas no senso comum (posigao impregnada de um vanguardismo no minimo petulante), temo que pouco temos nos incomodado com a formagao e a consolidago dos olhares. Gosto muito da provocagiio de Michel ONFRAY (2001, p.63): Eu sempre acreditei que os mais esquecidos constituem (...) um fermento mais eficaz para as revoltas légicas ou as revolugdes do que as vanguardas esclarecidas do proletariado, as pontas de langa de uma eminéncia da classe trabalhadora. Sinto mais simpatia pela revolugdo artistica (...) do que pela arte das revolugées, pelos poetas e pelos malditos (...) do que pelos dialéticos e revoluciondrios profissionais (...). Blanqui e Rimbaud no lugar de Lénin e Trotski. Ao abordar as preocupagdes com os olhares, com as sensibilidades, lembro-me de Friedrich SCHILLER (1995, p.26) quando afirmava: 3 SCHILLER, 1995, p. 23. 0 livro foi ori -Licere, Belo Horizonte, v.5, n.1, p.101-113, 2002 103 Dr. Victor Andrade de Melo Espero convencer-vos de que esta matéria é menos estranha @ necessidade que ao gosto de nosso tempo, e mostrarei que para resolver na experiéncia 2 problema politico é necesstirio caminhar através do estético, pois é pela beleza que se vai 4 liberdade, Mais a frente continua o autor: A formagéo da sensibilidade é, portanto, a necessidade mais premente da época, néo apenas porque ela vem a ser um meio de tornar 0 conhecimento melhorado eficaz para a vida, mas também porque desperta para a propria melhora do conhecimento (p.50). Por certo niio se trata de restringir 4 beleza, notadamente em sua concep¢io clissica, a fungdo de uma tervengdo no Ambito da estética, O objeto da estética € mais amplo, contemplando inclusive 0 feio, o grotesco, até mesmo a partir da ae relativizagdio e ressignificagdo do conceito de belo. Considero " como o estudo de um i (isso é, mesmo com autonomia, ha uma certa relagéio entre Adolfo VAZQUEZ (1 999) & um dos que considera que a categoria de estético nao estd somente ligada a arte e ao belo. Esté também na natureza, na técnica, na indastria, na vida piblica ou privada, nos centros de trabalho ou de entretenimento, no lar ou na rua. Wolfgang Fritz HAUG aponta sentido semelhante: " Utilizo 0 conceito de estético de um modo que poderia confundir alguns leitores que associam-no fortemente & arte. A principio, uso-o no sentido cognitio sensitiva — tal como foi introduzido na linguagem erudita — como conceito para designar o conhecimento sensivel (1997, p.16). Retomando a discussdo sobre a importancia das Preocupagdes com a estética, vale a pena dialogar com Oscar Wilde (apud BECKSON, 2000. p.84): "Anseio pelo tempo em que a estética tomari o lugar da ética e o senso da beleza serd a lei dominante da vida. Justamente porque isso jamais acontecera é que anseio por esse tempo", Considerando a proposta de Wilde como Provocagdo, como bem expressa sua Ultima frase, nio podemos concordar que deve-se sobrepor as preocupagées estéticas as éticas, até por acreditar que a Preservacao de suas relativas autonomias ndo significa deixar de buscar entender dinamicamente as suas relagdes*, Mas acho 4 Mare JIMENEZ (1999) afirma: “Insistimos, vérias vezes, na ambighidade da nolo de autonomia estética: a estética Consttui-se em esfera particular, separada dos outros dominios do conhecimento, mas, a0 mesmo tempo, ‘autonomia’ significa também tomada de consciéncia das relagdes que ligam a est 3" (p.192). 104 : Licere, Belo Horizonte, v.5, n.1, p.101-113, 2002 Educagao estética e animagao cultural: reflexdes valido chamar a aten¢do para a importincia da educagiio estética e refletir se no dmbito de nossas propostas de intervengio nao temos minorado as potencialidades dessa perspectiva. E fundamental compreender a Estética no como uma disciplina normativa, nem como uma teoria inétil: ela é uma teoria nfio-normativa que ecealuarn \esforgo de observagiio e de criagdo. Ela é somente valida no limite de sua realidade e de sua existéncia concreta (mesmo quando as obras siio abstratas). Mais ainda, ela deve estar sempre aberta para observar e procurar interpretar 0 novo. Isso é nao s6 uma exigéncia cientifica, como também uma opgao ideolégica que permite aceitar o diferente ¢ a diversidade. Tomemos cuidado, entio, para que a Estética nao acabe funcionando como um discurso de poucos para poucos. Ela nao pode ser repressora, | Assim sendo, um a no mfnimo pode permitir aos i Iver 0 ar ¢ criticar (mais tolerantes e multirreferenciais) Sem falar na néo menos importante possibilidade de fencializar 0 prazer individuo, Ndo podemos esquecer que todos estamos submetidos constantemente a situagGes estéticas, como bem chama a atengdo Adolfo VAZQUEZ: Académicos ou nio, em determinados momentos de nossas vidas todos vivemos em uma’ situagdo estética, por mais ingénua, simples ou espontdnea que seja nossa atitude como sujeitos nela, Ante a flor que se da de presente, o vestido que se escolhe, 0 rosto que cativa, ou a cangdo que nos agrada, vivemos essa relacdo peculiar com 0 objeto, que chamo de situagdo estética. E a vivemos guiados por certa consciéncia ou ideologia estéticas (1999, p.17). Contra a estetizagio da politica nao creio ser adequado a politizagao da estética. Parece interessante o pensamento de Michel ONFRAY (2001), quando propée algo mais complexo, uma estética generalizada: Contra a estética particular, submetida aos imperativos separados, e com muita fregiéncia colocados como awziliar do poder dominante, ela visa 4 ultrapassagem das oposigées entre a arte e a vida, a rua e o museu, ndo para fazer como ocorre freqiientemente, da vida e da rua referéncias € critérios novos, mas para convocar a arte e 0 museu a uma dindmica ascendente (p.220). . Um estética generalizada por certo buscard néo se desvincular, mas responder ao empobrecimento das sensibilidades, processo difundido e estimulado por uma _// cere Belo Horizonte, v5, n.1,p.101-113, 2002 105 Dr. Victor Andrade de Melo fatia consideravel do mercado. Espera movimentagdo e circulagio, descobrindo © pensamento conservador estabelecido em tal difustio e que penetra pelas frestas da sociedade, Entende que a redugio da capacidade de pensar esta diretamente ligada a redugao da capacidade de sentir, cuja causa e conseqiléncia notaveis se encontram na intolerancia 4 diversidade cultural. Por isso é que vai compreender que a educagao estética pode. transformar a existéncia cotidiana, injetando nela um principio fundamental de liberdade e escolha. t Partindo dessas reflexdes, creio que o animador cultural deve estar bastante atento a dimensio dé ", muitas vezes até mais do que com a "educago pelo lazer", que alias, se nado bem encaminhada, corre o risco de ser extremamente autoritéria e de se aproximar de outros modelos de interven pedagégica, como a escolar, ferindo a especificid 0 = e discutir novas linguagens; u Vale sempre ressaltar, logo, que a experiéncia ae ane se esgota e nem est somente ligada a sensibilidade, ao sentimento, 4 emogao, estando também ligada ao conhecimento, ao intelecto, a razio. Uma posigio de equilibrio € fundamental para pensar 0 processo de animagdo cultural: "Trata-se, sobretudo, de procurar a harmonia entre a sensibilidade, a paixiio e a raziio, de conciliar 0 dualismo fundamental do homem constituido de natureza e cultura" (JIMENEZ, 1999. p.24). Esse parece ser um desafio fundamental, como bem aponta JIMENEZ: s-enguanto a razdo e a sensibilidade forem rivais ou enguanto uma predominar em detrimento da outra, 0 homem pode ser considerado Sragilizado, desequilibrado. Ndo conseguird ser livre nem auténomo. Um homem por demais racional, que somente obedece as injung6es de seu intelecto, precisa de uma moral, de uma religido ou de uma ordem transcendente. Em compensagdo, um individuo por demais sensivel, vitina de um excesso de sentimentalidade, precisa de uma ciéncia, de algumas regras bem ordenadas capazes de inculcar-the alguma razdo (1999, p.48). No se trata de fazer uma op¢do entre a razfio e a emogao, mas trabalhar no sentido de apontar para uma razio que abandone a pretensdo de ser universal € totalizadora, ao mesmo tempo que considera que a sensibilidade também tém aspectos racionais ¢ sdo geradoras de conhecimento, E ao intervir nessa perspectiva, 0 animador cultural deve perceber q\ processo i: i ‘ica também tem o desafio de evitar e/ou reverter as rupturas entre a cultura e o piiblico, o de buscar esclarecer e reconciliar as provocagées dos artistas com o gosto do piiblico a ser educado. 106 Licere, Belo Horizonte, v.5, n.1, p.101-113, 2002 Educagio estética e animagao cultural: reflexdes O Modo de Enderecamento A partir desse ponto de vista, nio estou preocupado em apresentar o animador como alguém que vai organizar idéias, mas como um s, alguém que procura s acerca dos Este é um conceito apre inalmente dos estudos do cinema que procura discutir como se estabelecem de forma dinamica as relagdes entre um filme e o publico (ELLSWORTH, 2001). Sua origem esté na inversdo da original pergunta sobre o que o espectador espera do filme. Ao invés disso, pergunta-se: "quem este filme pensa que vocé é? A quem esse filme esta sendo enderegado?". Supostamente um filme induz o seu publico a pensar de determinada forma, uma indicagdo subliminar de uma postura esperada, propagando uma série de valores e intencionalidades. Logo, se o animador entendesse tal relago, poderia ensinar © seu publico a assistir’ estando atento e subvertendo a ldgica original. Potencializaria-se assim a sua possibilidade de interveng’io pedagégica. Contudo,.as coisas nao sao lineares, em fungao das ressignificagdes e das diferentes historias e constituigdes de cada subjetividade. Um filme é enderecado para alguém que é imaginado, mas normalmente & grande a diferenga entre o imaginado e o que alguém realmente é, até mesmo porque um filme é feito para um grupo, que nunca é homogéneo. Nao ¢ possivel pensar em enquadramentos lineares, nem do ponto de vista da manutengiio da ordem social, nem do ponto de vista de sua superacao. Com isso nao estamos dizendo que o modo de enderegamento (ou modos de enderegamentos, na medida. em que em um mesmo filme/texto varios sio encaminhados) nao tenham poder, Eles nao sio isentos, neutros, seduzem e estio diretamente ligados aos intuitos do produtor. Podem procurar enquadrar por relagdes desiguais de poder forjando inconscientemente subjetividades especificas Licere, Belo Horizonte, v.5, n.1, p.101-113, 2002 107 Prof. Dr. Victor Andrade de Melo e interessantes a determinados projetos. Somente nao podemos dizer que trata-se de um processo linear. Obviamente que se conseguirmos enquanto animadores culturais encaminhar modos de enderecamento diferenciados, tendemos a obter posicionamentos € reflexdes também diferenciadas, mas nunca teremos certeza do sucesso dessa empreitada, pois, lembremos sempre, esse ndo é um processo linear. Mais ainda, ndo se trata de substituir uma alienagdo a favor da ordem social por outra suposta contra a ordem social, nem negar ao publico as possibilidades de prazer, tio bem trabalhadas de forma dinamica pela cultura de massas. Se a inddstria cultural tem sucesso: é também porque articuladamente consegue despertar prazer ao mesmo tempo que induz a uma representagao de prazer interessante para seus intuitos, Contrapor isso somente é possivel se paulatinamente conseguirmos despertar novas, Possibilidades ¢ novas representagées de prazer. . Assim, vale para o animador ficar longe de dicotomias, Desejamos sim contribuir para a formagio de pessoas educadas, criticas e informadas, que podem: desenvolver novos olhares, mas isso nao significa: a) a restrigfo’a somente um produto julgado pelo animador como “o mais correto"; b) informar linearmente © que deve ser pensado; ¢) que mesmo os "informados" no Possam se "enquadrar", bem como os supostamente “ndo-criticos" nfo possam perceber diferengas. O modo de enquadramento nfio ¢ estético e depende do "uso" que o piiblico faz do produto. Qualquer piblico, em menor ou maior grau, em diferentes momentos, simultaneamente absorve e repele os valores encaminhados pelos produtos acessados. Com tal complexidade, poderiamos nos perguntar, conforme faz Elizabeth ELLSWORTH (2001, p.41): pode a mudanea social comegar ou ser estimulada pelas formas pelas quais os piiblicos sdo enderecados pelos filmes? E, uma ver que a educagdo fem a ver com mudanga, como um educador ou uma educadora pode reescrever algumas dessas questdes, Mais a frente, a prépria autora responde: "O fato de nfo existir um ajuste exato entre o enderegamento ¢ as respostas torna possivel ver 0 enderecamento de um texto como um evento poderoso, mas paradoxal, cujo poder advém precisamente da diferenga entre enderecamento e resposta" (ELLSWORTH, 2001. p.43). Trata-se exatamente de considerar, no Pprocesso de animagdo cultural, 0 espaco dessa diferenga, tendo em vista que € historicamente construido, carregado de imprevistos do inconsciente e que se constitui em grande recurso para o animador, desde que ele nao queira controlar, mas sim tematizar e estimular 0 descontrole. O proceso de animagao cultural deve sempre dar espaco para as diferentes apreensdes, considerando melhor o individuo, suas instabilidades ¢ escolhas, nunca a partir da reificagdo do coletivo ou de uma objetividade somente declarada, nunca alcangével, 108 Licere, Belo Horizonte, v.5, n.1, p.101-113, 2002 Educagao estética ¢ animagdo cultural: reflexdes De fato, se fosse possivel obter ajustes perfeitos entre as relagdes sociais e a realidade psiquica, entre o eu e a linguagem, nossas subjetividades e nossas sociedades seriam fechadas. Completas. Acabadas. Mortas. Nada a fazer. Nenhuma diferenga. Nao haveria nenhuma educagdo. Nenhuma aprendizagem. (ELLSWORTH, 2001. p.56) O processo deve ser aberto, possibilitando sempre espaco para a escolha, medo, prazer, fantasia, enfim, a diferenga. lo. Chegamos a impossibilidade de ajustes perfeitos entre ‘aquilo que um professor ou um curriculo quer e aquilo que um estudante compreende; entre aquilo que uma instituigdo educacional quer e aquilo que o corpo estudantil responde; entre aquilo que uma professora "sabe" e aquilo que ela ensina; entre aquilo ao qual o didlogo convida e aquilo que chega sem ser convidado. (ELLSWORTH, 2001. p.71) Essa impossibilidade de enquadramento é um grande recurso e ndo uma tsims, pos permit espe dono conforma, da cratvidnd, da trasgressio, E, vale destacar, seria de grande valia se o animador cultural aprende-se com tais reelaboragées, para além de acreditar que pode sozinho ensina-las*, E importante até mesmo discutirmos a propria idéia de mediagao e didlogo, sempre tio presente quando falamos na atuagio do animador cultural. Se considerarmos que qualquer didlogo nunca € neutro (nem deve ser, na medida que carrega intencionalidades conscientes ou nao), podemos dizer que é em si um modo de enderegamento: O didlogo no ensino nao é veiculo neutro que carrega as idéias e as compreensées de quem fala para Id e para cd, através de um espaco livre e aberto, entre os dois pontos. Ele é um veiculo desenhado com uma tarefa particular em mente e o acidentado terreno entre falantes que ele atravessa faz com que haja uma passagem constantemente interrompida e nunca completada, (ELLSWORTH, 2001. p.67) Logo, se um processo de didlogo e mediagdo for encaminhado tendo em vista a chegada de uma conclus4o em comum ao final, estaré desconsiderando as 5 Anteriormente procurei trabalhar a impossibilidade de enquadramento ¢ a necessidade de compreensio das reelaboragées tentando fazer uma leitura das proposigdes tedricas de E.P. THOMPSON (2001). ep 7” Licere, Belo Horizonte, v.5, n.1, p.101-113, 2002 oe 109 Prof. Dr. Victor Andrade de Melo diferengas e inadequages que devem sempre ser respeitadas, embora tensionadas. © didlogo é sempre necessirio, mas deve permitir as ressignificagdes. E vilido o alerta de ELLSWORTH: Supée-se que o diélogo seja capaz de tudo: desde construir conhecimento, resolver problemas, assegurar a democracia, implantar processos cooperativos, assegurar a compreenséio, construir virtudes morais e diminuir 0 racismo ou 0 sexismo até satisfazer desejos por comunicagdio e conexdo. Mas ndéo é assim tao facil. (2001, p.66) Enfim, o animador cultural é um educador de sensibilidades que procura “bagungar" © instituido ao apresentar possibilidades de reelaborag’io dos modos de enderegamento, mas deve tomar muito cuidado para no tentar substituir © estabelecido por uma nova institui¢o, o que seria inadequado e improvavel. A idéia central € a de permitir espago para as construgées subjetivas, de forma mesmo a impedir que a coletividade venha a agredir os individuos com mais énfase do que o necessério. O Papel do Sujeito importante em nossa compreensio: Gosto muito das posigées de Michel ONFRAY (2001) autor cré que o passo inicial para a superagdo dessa ordet al esteja exatamente na recuperaco do papel de sujeitos nao submissiveis a priori. Isso ¢, uma construgao social mais justa somente pode se dar quando tivermos individuos fortes € ativos, sujeitos que possam se expressar e se posicionar de maneira clara e explicita. E necessirio, logo, dar espago para a auto-descoberta dos individuos e isso s6 sera possivel a dos excessos de di: role, Onfray sugere entio o como prince um: ara Minha logica permanece hedonista (...). Eu jé esclareci com freqiiéncia, nGo o bastante, que o imperativo categérico do hedonismo considera — esta segunda parte, insepardvel, constitui a genealogia da politica que proponho — ela vale como modalidade de um ética alternativa 4 do ideal ascético. (ONFRAY, 2001. p.62) 6 Em entrevista ao jomal O Globo, Onfray define hedonismo como: "uma ética pOs-cristd preocupada em realizar © sujeito, por ele mesmo e pelo outro, nfo contra 0 outro, com o méximo de prazer, ao mesmo tempo que evita 0 desprazer" (p.3). 110 Licere, Belo Horizonte, y.5, n.1, p.101-113, 2002 Educagao estética e animagio cultural: reflexdes Em mundo que parece apresentar a falta de alternativa como normal e os prazeres superficiais e provisérios como suficientes, a proposta de ONFRAY (2001) parece-me clara e interessante: (ao despertar) Uma politica hedonista exige antes de mais nada uma ética preocupada com a erradicagdo deste inferno sobre a terra, uma moral de combate contra essa fumagas fugidas do Tartaro, um voluntarismo estético declarando guerra, de maneira radical ¢ imperdodvel a essa politica de terras e colheitas destruidas onde gemem somente aqueles que passam a vida a perdé-la. (p.63) Por isso defendo que mais do que estar preocupado em construir uma uniformidade de valores supostamente revolucionarios, 0 animador cultural deveria buscar valorizar e ressaltar as diferengas, os diferentes olhares sobre uma realidade a partir da mediagio e didlogo no dmbito das representag6es diversas, sempre tendo em vista buscar estimular cada individuo 4 busca do prazer em seus sentidos mais ampliados. E se isso n&o significa uma cruzada direta contra o trabalho, por certo €no minimo um questionamento claro 4 forma como esse se organiza e mesmo a sua consideragio como categoria central de andlise: o trabalho nao é a coisa mais importante da vida, 0. prazer sim, e este pode permitir, se sua compreensdo for ampliada, um reencantamento do mundo: O desencantamento do mundo se faz pelo abandono de um principio de divindade, em beneficio de um outro, a riqueza, enquanto de fato triunfa sempre o ideal ascético que necessita, com 0 mesmo arrebatamento, do trabalho, esta perpétua expiagdo legitimada e justificada, quaisquer que ‘sejam os deuses aos quais os sacrificios sdo. destinados. (ONFRAY, 2001. p.108) Onfray nao teme em apresentar claramente uma diferenga de atuagZo entre a direita e a esquerda, deixando claro que a no existéncia ou negacao de tal divisiio somente interessa a manuteng%o da ordem social. Entretanto, chama.a atengdo para que ‘a esquerda nao acabe, sob o pressuposto de boas intengdes, utilizando os mesmos mecanismos da direita. Para tal, procura recuperar o que chama de "mistica de esquerda", conjunto de principios que devem embasar uma atuagdo questionadora do status quo. Dessa maneira, o autor aponta claramente que considera que o ideal ascético e disciplinador é uma caracteristica da direita conservadora, enquanto as propostas de Contrapée © principio libertério contra o principio da autoridade, ressaltando que isso deve _~ Licere, Belo Horizonte, v.5, n.1, p.101-113, 2002 111 Prof, Dr. Victor Andrade de Melo significar sempre a valorizaca’o do desenvolvimento da capacidade de julgamento independente e de a¢ao auténoma. Nesse entendimento, 0 autor deixa claro a importancia da educacao estética: "Nao ha mistica de esquerda sem um voluntarismo. estético, sem a aquiescéncia a. uma escatologia dentro da qual a energia toma uma parte, minima Para os pessimistas, mas importante, posto que decisiva para os otimistas" (ONFRAY, 2001. p.129). Cabe ao animador cultural, mais do que conduzir rebanhos por supostos caminhos de felicidade, buscar despertar e ampliar em cada individuo a descoberta subjetiva do prazer enquanto principio transformador de vida. E ébvio que cada individuo possui a capacidade de sentir prazer e escolher, mas seria isto um principio de sua vida? Estaria essa possibilidade minorada, reduzida, acanhada? Trata-se da descoberta de novos principios de vida, com menos constrangimentos, com mais poesia e arte no cotidiano, apoiada em compreensées estéticas diversas, ampliadas e divergentes, e no homogéneas ¢ restritas, Com isso, faz o animador cultural uma opgdo politica clara, repaginada contudo se comparada 4s estratégias tradicionais. A opgio de uma guerrilha cotidiana retoma a idéia de um compromisso da construgdio de subjetividades fortes para tornar possivel a destruigdo de uma coletividade que encontra sua forca exatamente na opressio ¢ submissio dos individuos. Terminando sem a Pretensio de Concluir Nao pretendo concluir este artigo de forma tradicional, até mesmo Porque seu intuito é exatamente o oposto: antes apresentar um conjunto de reflexdes em construgiio, . Diferentes reflexdes por certo podem trazer novos desafios e muito ainda ha a ser feito, trazendo impacto inclusive para’ outros Ambitos, como a formagio profissional’. Mas por agora, sto essas as contribuigdes possiveis. se assim nossa reflexio. O compromisso fundamental do me, & com os individuos, na medida que a educagao de sujeitos fortes € fundamental para o esbogar de uma coletividade mais justa. O compromisso do animador cultural nio é 0 de determinar a construgdo dessas subjetividades, mas ii resentar novos olhares, representagdes € novas formas de obtengiio de prazer. O animador cultural, enfim, tem um contribuig&o para: Uma problematizagdo dos prazeres que autoriza uma resolugdo dos desejos sem o parasita da culpa, uma nova erética e uma cultura de si que supdem uma definigdo ampliada de dietética entendida como uma ética generalizada, um governo de si no qual o regime de prazeres parece menos 7 Teno encaminhado esse conjunto de reflextes em minha experiéncia cotidiana de professor da disciptina “Teoria do Lazer", ministrada na Eseola de Edueagdo Fisica e Desportos da UFRJ. Por falta de espago, tal discussio fica para outro momento, 112 - Licere, Belo Horizonte, v.5, n.1, p.101-113, 2002 Educagao estética ¢ animagio cultural: reflexdes, uma ocasidio de sofrimento que uma possibilidade hedonista, uma intersubjetividade contratual e jubilatoria (...) 0 desejo nao mais definido pela falta mas pelo pleno, a confusdo da ética, a estética e da existéncia, a vida pensada como uma obra de arte. (ONFRAY, 2001. p.175) Referéncias BECKSON, Karl. O melhor de Oscar Wilde. Rio de Janeiro: Garamon, 2000. ELLSWORTH, Elizabeth. Modos de enderegamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educagio também. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Nunca fomos humanos. Belo Horizonte: Auténtica, 2001. p.7-76. HAUG, Wolfgang Fritz. Critica da estética da mercadoria. Sao Paulo: Editora da UNESP, 1997. HIDALGO, Luciana. Onfray incita 4 revolug&o pelo hedonismo — entrevista. O Globo, Rio de Janeiro, caderno Prosa e Verso, p.3, 22 de setembro de 2001. JIMENEZ, Marc. O que é estética? Sio Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999 MELO, Victor Andrade de. Lazer e camadas populares: reflexdes a partir da obra de Edward Palmer Thompson. Movimento, Porto Alegre, ano VII, n.14, p.9-19, 2001/1. ONFRAY, Michel. 4 politica do rebelde: tratado de resisténcia e¢ insubmissio. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. SCHILLER, Friedrich. A educagdo estética do homem, Sao Paulo: Iluminuras, 1995. VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. Convite a estética. Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 1999. ABSTRACT: Since 80's, it have been usual rethink the role and the importance of leisure professional actuation. Nevertheless, we can realise a tendency of stabilisation of comprehension about this actuation, developed since a supposedly critical point of view. This article has for purpose to debate different views about cultural animation trying to make links to Aestethic, a philosophical frame, and to Cultural Studies thoughts. It intends not to spread out a finished truth, but to retake and even reguide the discussions about this subject. KEYWORDS: Cultural animation, aesthetic Licere, Belo Horizonte, v.5, n.1, p.101-113, 2002 113

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