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LUIS ROBERTO BARROSO CONSTITUCIONALISMO DEMOCRATICO A ideologia vit > século XX tigatnas leitor deve levar em conta que limitacBes de tempo e espaco impuseram simplificacdes e sintetizagies extremas. INTRODUCAO, 0 constitucionalismo democratico fot fa ideologia vitoriosa do século Xx. Nele se condensam as promessas da modernidade: poder limitado, dignidade da pessoa huma- na, direitos fundamentais, justica material, tolerdncia, respeito ao outro e- quem sabe? até felicidade, Nesse arranjo institucional se fundi- n duas ideias que percorreram trajetérias diferentes: o constituc 0, herdeiro da tradigdo liberal que remonta ao final do sé- cculo XVIL, expressa a ideia de poder limitado pelo Direito e respeito aos direitos funda mentais. A democracia, por sua vez, traduz a ideia de soberania popular, de governo da maioria, que somente se consolida, verda~ deiramente, ao longo do século XX, com a consagrasio do sufrégio universal e o fim das restrigSes & participagao politica d rentes do nivel de riqueza, do sexo ou da raca. te | = Para arbitrar as tensdes que muitas vezes existem entre ambos ~ ie, ente direitos fundamentals e sobe- rania popular -, a maior parte das de mocracias contemporneas instituem premas. Portanto, 0 pano de fundo no qual se desenvolve a nossa narrativa inclu: (2) uma Constituicko que garanta dieitos fundamentais, (i) um regime democraticoe (i) a existéncia de uma (0 modelo vencedor ~ 0 constitucionalismo democratico ~ chegou ao Brasil com atraso, mas nfio tarde demais, &s vésperas da vira- da do milénio, com a centralidade dada 4 Constituicio de 1988. => A exposiclio que se segue e 4 jurisdic&o constitucional | eee f lo Ao longo do século, outras experién- cias institucionais disputaram a primazia mundo afora: 0 marxismo-leninismo ci Tocava no centro do sistema, no a Consti tuigo, mas o Partido. Os regimes militares que dominaram a América Latina por lar- go perfodo gravitavam em toro das For: as Armadas, 0 fundamentalismo islamico tem como peca central o Coro. Nenhuma dessas propostas foi mais bem sucedida, dividida em trés partes. A Parte | anali- ssa brevemente o constitucionalismo no ‘mundo, dos seus primérdios & configu- ragdo atual. A Parte Il analisa, também. concisamente, o constitucionalismo no Brasil. E a Parte tit 6 dedicada ao novo direito constitucional brasileiro, tal como vem sendo praticado ao longo dos PARTE Dois Modelos de Constit ismo © constitucionalismo moderno 6 herdeiro de trés, movimentos politicos e filo- = séficos, que foram o cont tualismo, o tluminismo e 0 liberalismo. Apesar da pre~ ncla histérica da Revo- 0 Inglesa, 0 constitucio: nalismo é tradicionalmente Gem: reconduzide a dois outros processos historicos: a Revolucdo Francesa © a Independéncia dos Estados Unidos da américa, Duas das primeiras Constituigies es- critas do mundo ~ a americana, de 1787, ¢ “ a francesa, de 1791 - deram origem a dois modelos de constitucionalismo —bas- tante diferentes. No mode- lo francés, que se irradiou pela Europa continental, a Constituiggo tinha uma dimensio essencialmente politica, no comportando aplicagao direta e imedia- ta pelo Poder Judicidria, 0 grande principio era o da supremacia do Parlamento e as leis ndo eram passiveis de controle de constitucionalidade. 4J4 © constitucionalismo americano, ao menos desde de Marbury v. Madison, julgado em 1803, caracterizo\ conhecimento de uma dimensao juridica Constitui¢do, com a possibilidade de sua se pelo re- aplicagdo direta e imediata por todos os ér- eis do Poder Judiciério. 0 grande principio aqui, desde 0 comeco, foi o da supremacia da Constituigdo, em que juizes e tribunais, e especialmente a Suprema Corte, podiam exercer 0 controle de constitucionalidade e, consequentemente, deixar de aplicar as normas que considerassem incompativeis com a Constituicao, A prevaléncia do Modelo Americano ‘Apés a Segunda Guerra Mundial, o mo- delo americano prevaleceu na maior parte do mundo democratico. assim & que o texto constitucional e a pratica institucional de diferentes pafses incorporaram os seguin- tes elementos: (}) supremacia da Constitui- io, aplicdvel diretamente, sem depender de intermediacaa legislativa; (i) controle de constitucionalidade dos atos do Legislativo edo Executive por uma corte suprema ou corte constitucional; e (ill) atuaclo proativa dessas cortes na protecdo dos direitos fun- damentais. Note-se que a f6rmula europeia 6 orga nica e processualmente distinta da ameri- cana, por haver optado pela criagao de tribu: nais constitucionais (em lugar de supremas cortes),situados fora da estrutura ordindria do Poder Judicidrio, Tais cortes detém com- peténcia exclusiva para a declarac&o de in- constitucionalidade de leis e seus integran tes t8m mandato (nao sendo vitalicios, como nnos Estados Unidos). Porém, os conceltos subjacentes siio os mesmos: invalidade de guaisquer atos contrérios & Constituico, ca- bendo a um érgio de natureza judicial a ul- tima palavra sobre o seu sentido e alcance. Apenas para registro, houve um pri meiro precedente de tribunal constituclo- nal na Austria, em 1920, mas sem grande repercussdo mundial. No Brasil, desde a pri- ‘meira Constituicdo republicana, seguiu-se 0 modelo americano de suprema corte, igual- mente sem grande expresso pratica até a Constituicdo de 1988 m Surgimento do Estado alde Direito 0 Estado constitucional de direito de- senvolve-se, coma assinalado, a partir do término da 2° Guerra Mundial, tendo se aprofundado no tltimo quarto do sécul XX. Ele veio substituir 0 Estado legistativo de direito, em cujo centro estava a lei. 34 ago- a, as leis passavam a estar subordinadas A Constituicdo. No novo modelo, a validade das leis 4 nao depende apenas da forma de sua produco, mas também da compatibili dade de seu contetido com as normas cons itucionais. > Mais que isso: a Constituicio, além de impor limites ao legisladar e a0 administrador, determina-lhes, tam- bém, deveres de atuacio, A primeira referéncia no desenvol- vimento do novo direito constitucional na Europa foi a Lei Fundamental de Bonn (Constituigo alema'), de 1949, sobretudo ‘A constituiglo slem, promulgada em 1949, tem 1 Fundamental’, que a designaco origingvia de sulinhavn seu caréter proviséri, concebids que foi para uma fase de transigSo. A Constituicdo de- ras6 deveria ser ratificada depois que o pats 90 recuperasse a wnidade, Em 31 de agosto de 8 apés a instalacao do Tribunal Constitucio nal Federal, ocorrida em 1951. A segunda re feréncia de destaque é a da Constituicao da Italia, de 1947, e a subsequente instalacao da Corte Constitucional, em 1956. A partir dai teve inicio fecunda producao teérica e jurisprudencial, responsavel pela ascens&o cientifica e normativa do direito constitu- cional nos paises de tradi¢ao romano-ger- minica. Ao longo dos anos 70, uma nova onda de redemocratizacao e reconstitucio nalizagdo reforgou a adeso ao nove mode- lo, incluinde Grécia (1975), Portugal (1976) e Espanha (1978). Na América Latina, a década de 80 assistiu ao fim dos regimes militares, que se impuseram ao longo dos anos 60 e 70, como subproduto da guerra fria. A Consti- tuicdo brasileira, como sabemos, é de 1988. (ol assinado 0 Tratado de Unificaglo, que regulou a alesdo da Repiblica Democrética Alem (RDA) & Reptiblica Federal da Alemanha (REA) Apds a unifi- cago nio foi promulgada nova Constituig Des eo dia 3 de outubro de 1990 a Lei Fundamental vigora em toda a alemanha. Na Europa central e oriental, a onda de re~ democratizago e reconstitucionalizacao seguiu-se & queda do Muro de Berlim, ocor rida em outubro de 1989. Na Africa do Sul, a transigdo do regime do apartheid para uma democracia multipartidaria teve inicio em 1990 e culminou com a Constituicao que en- | trou em vigor em fevereiro de 1997. => Para evitar ilusdes, deve-se re- gistrar que esses processos nem sempre Slo lineares e sem sobressaltos. Justa- mente ao contrétio, marcados por ex- periéncias autoritarias e pela falta de tradigo constitucionalista, paises di- ersos, na América Latina, na antiga Unido Soviética ou na Europa Oriental, tém passado por desvios, avangos e re- trocessos. 0 amadurecimento politico e institucional é um proceso histérico e no um fato datado, te ¥t PARTE Il O CONSTITUCIONALISMO NO BRASIL I Aacidentada Historia Constitucional b constit no nos tém faltado. antes pelo contrério, nes sa matéria teremos pecado mais pelo excesso do que pela escas- sez. Assim é que, numa sucesso de percalcos, foram editadas, em quase 200 anos de independén- cia e cerca de 130 de Repiibli coito Constituicées', num melan célico estigma de instabilidade e falta de continuidade de nossas instituigdes 1 18%, 191, 1896, 1997, 1946, 1967, 1969 (formalmente ‘uma emenda, mas materialmente uma carta nova) 21 politicas. Em meio a outras constatacGes, a experiéncia revela que a simples existéncia formal de uma Constituigdo é de parca uti- lidade. ‘A marea do constitucionalismo bra-~ sileiro, até a Constituigo de 1988, sempre fora uma notavel falta de efetividade, a no realizacdo na vida real dos mandamentos constitucionais. Dois exemplos emblemati- feos: a Carta de 1824 estabelecia que a “a lei serd igual para todos”, dispositivo que con- vviveu, sem que se assinalassem perplexida- de ou constrangimento, com os privilégios da nabreza, o voto censitirio e o regime es- cravocrata. Outro: a Carta de 1969, outorga~ da pelo Ministro da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronautica Militar - trés se- nhores insuspeitos de exageros progressis- tas -, assegurava um amplo elenco de liber- dades piiblicas inexistentes e prometia aos trabalhadores um pitoresco rol de direitos sociais nao desfrutaveis, que incluiam “co: Ténias de férias e clinicas de repouso” Buscava-se na Constituigo, no 0 ca- minho, mas 0 desvio; néo a verdade, mas o disfarce. A disfun¢ao mais grave do cons- jtuctonalismo brasileiro, naquele final de regime militar, era a falta de efetividade das normas constitucionais. indiferentes a0 que prescrevia a Lei Maior, os estamen- tos perenemente dominantes construiam uma realidade prépria de poder, refratéria ‘.uma real democratizacio da sociedade e do Estado, O regime militar se estendeu de 1964 1985, Nesse periodo, sobretudo apds 0 Ato Institucional n° 5, o direito constitucional deixou de ter qualquer papel relevante. Com a redemocratizagao e a convoca¢ao da AS sembleia Nacional Constituinte, teve inicio a luta pela conquista de efetividade pelas hormas constitucionais. Como dito, parte do problema institucional brasileiro era a existéncia crénica de um constitucionalis- ‘mo de fantasia, que inclufa na Constituigo romessas que nao seriam cumpridas. 0s primeiros anos de vigéncia da Constituicio de 1988 envolveram o esforgo da teoria constitucional para que 0 Judi cidtio assumisse 0 seu papel e desse con He cretizagao efetiva aos principios, regras e direitos inscritos na Constituigao. Pode pa recer dbvio hoje, mas 0 Judiciario, mesmo © Supremo Tribunal Federal (STE), relutava em aceitar esse papel. Ao longo da década de 90, essa disfungdo foi sendo progressi- vamente superada e o STF foi se tornando, verdadeiramente, um intérprete da Cons- tituigdo. © constitucionalismo chapa-branca do regime militar, que procurava dar tintu- ras de legitimidade ao autoritarismo, cedeu lugar ao constitucionalismo da efetividade. ‘os poucos, surgiu a demanda por mais so- fisticagio na interpretagdo constitucional, que exigia prineipios prépr iegorias teéricas especificas. Ao longo das anos 2000, consolidou-se no Brasil um modelo cons- titucional mais ambicioso e proativo na concretizacfo dos direitos fundamentais, referido como novo direito constitucional, constitucionalismo do pds-guerra, constitu- cionalismo contemporaneo ou neoconstitu- clonalismo. A Constituigio de 1988 ‘A Constituicao de 1988 ¢ 0 simbolo maior de uma histéria de sucesso: a tran sigo de um Estado autoritétio, intoleran- te e muitas vezes violento para um Estado democratico de direito. Ao longo dos trinta anos de democracia, que se completaram em 2018, destaco trés conquistas de grande relevancia e visibilidade: 1, Estabilidad institucional Desde o fim do regime militar e, so- bretudo, tendo como marco histérico a Constituicio de 1988, 0 Brasil vive o mais longo periodo de estabilidade institucional de sua histéria. E no foram tempos ba- nals. Ao longo desse periodo, o pais convi veut com escandalos em série, que incluem 0 dos “Andes do Orcamento”, 0 “Mensalio", a “Operacio Lava-Jato” e duas demiincias criminais contra o Presidente em exercicio, para citar os de maior visibilidade, A tudo isso se soma o trauma de dois impeach- ments de Presidentes da Repliblica eleitos pelo voto popular: o de Fernando Collor, em 1992, com adesio majoritaria da sociedade; eo deilma Roussef, em 2016, que produziu ‘um ressentimento politica sem precedente na histéria do Brasil. Todas essas crises foram enfrentadas dentro do quadro da legalidade constitu- ional. # impossivel exagerar a importén- cia desse fato, que significa a superagaio de muitos ciclos de atraso. 0 Brasil sempre fora opais do golpe de Estado, da quartelada, das 2 E-certa que partdéries da Presidente Dilma Rous- sefeoutros abservadores caracterizam como"golpe" 2 sua destituicSo, mediante procedimento de nt em 2016, Do pont de vista juridco-c nal, fo} observada a Constituigao e orto estabelecido pela prdpro Supremo Tribunal Federal. Do ponto de Vista politico, porém, a auséncla de comportamento ‘moralmente reproudvel or parte da President alas ‘ada sempre dard margem a uma lelturaseveramen- te rica do episédio. Sua queda se deu, em verdade, por perda de sustentago politica, em process seme- ante & mogio de desconfianga dos sistemas parla- ‘mentarstas, em tm pas prsidenciaisa mudangas autoritérias das regras do jogo. Desde que Floriano Peixoto deixou de convo- cat eleigdes presidenciais, ao suceder Deo- doro da Fonseca, até a Emenda Constitucio nal n° 1/1969, quando os Ministros militares impediram a posse do vice-presidente Pedro Aleixo, o golpismo foi uma maldicdo da Re- piiblica. Pois tudo isso é pasado, Merece destaque 0 comportamento exemplar das Forgas Armadas desde a redemocratizagaio do pais. Em suma: trinta anos de estabilidade institucional, apesar de tudo. Nessa maté- ria, s6 quem nao soube a sombra no reco- nhece a luz Estabilidade monetitria Todas as pessoas no Brasil que tm 40 anos ou mais viveram uma parte de sua vida adulta dentro de um contexto econd- mico de hiperinflaglo. A meméria da in- flagéo é um registro aterrador. Cada um de nés tera 0 seu proprio registro de hor- ror da convivéncia com sucessives planos econémicos que ndo deram certo: Cruzado 28 1, Cruzado Ml, Bresser, Collor Ie Collor 1. até que a inflacao veio a ser domesticada com o Plano Real, a partir de julho de 1994, tendo inicio uma fase de estabilidade monetéria, com desindexacao da economia e busca de equilibrio fiscal. até hoje, um percentual relevante de ages que tramitam perante a Justiga brasileira estd relacionado a dispu- tas acerca da corregdo monetaria e de dife- rentes planos econdmicos que interferiram ‘com sua aplicaczo. Em desdobramento da estabilidade ‘monetiria, entrou na agenda da sociedade a percepcao da importancia:da responsabi lidade fiscal. Embora nao seja uma batalha totalmente ganha, aos poucos foi se conso- lidando a crenca de que se trata de uma pre- missa das economias saudaveis. Responsa- bilidade fiscal nfo tem ideologia, nfo é de direita ou de esquerda, A no observancia da regra basica de no se gastar mais do que se arrecada traz como consequéncias (© aumento de juros ou a volta da inflacao, disfunges que penalizam drasticamente as pessoas mais pobres. A pobreza e a desigualdade extrema so marcas indeléveis da formacao social brasileira. apesar de subsistirem indicado- res ainda muito insatisfatérlos, os avancos obtidos desde a redemocratizagao so mui- to significativos. Nas titimas trés décadas, entre 30 e 40 milhGes de pessoas deixaram a zona de pobreza extrema, passando a des frutar de alguns dos beneficios da sociedade de consumo e da vida civilizada. Programas como o Bolsa Familia foram muito relevan- tes nesse processo ‘Ao longo do mesmo period, o indice de Desenvolvimento Humano - 1DH, medi: do pelo Programa das Nagdes Unidas para © Desenvolvimento (PNUD) foi o que mais cresceu entre os paises da América Latina e do Caribe. Um dos objetivos do milénio, da ONY, entre 1990-2015, era reduzir a pobreza em $0%. Conseguimos reduzi-la em 72,7% E certo que houve uma certa reversio de expectativas nessa area, em razio da cri- se econémica dos tiltimos anos, com cerca de 4,1 milhdes de brasileiros voltando & po- breza. De todo modo, o balanco da incluso social no Brasil nos tiltimos 20 anos é extre- ‘mamente positivo e merece ser celebrado. => Veja-se, portanto, que em me- | nos de uma geracio, derrotamos 0 au- | toritarismo, a hiperinflacdo e a pobre- za extrema. Nada é impossivel. Temos andado‘ha direc&o certa, ainda quando naoma velocidade desejada. Na quadra atual, ha uma enorme demanda por in- tegridade, idealismo e patriotismo na sociedade brasileira. E esta é a energia que pode mudar paradigmas e empur- rara historia. m de paradig No plano teérico, 0 quarto final do sé- culo XX, no Brasil, foi o cenério da supera- fo de algumas concepgBes do pensamento juridico elassico, que haviam se consolida- do no final do século XIX. tdeias que eram ligadas ao formalism, ao positivismo e 20 legalismo, Bis as trés grandes mudancas de a que assinalam o Direito nos dias A. Superagéio do formalismo juridico. 0 pensamento juridico classico alimentava duas ficgdes: a) a de que o Direito, a norma juridica, era a expresso da razio, de uma justica imanente; e b) que o Direito se con- cretizava mediante uma operagao légica e dedutiva, em que o juiz fazia a subsuncio dos fatos A norma, meramente pronun- ciando a consequéncia juridica que nela ja se continha. = Ao longo do século Xx, consoli- dou-se, contrariamente, a convieco de que: a) 0 Direito é, frequentemente, no a expresso de uma justica imanente, mas de interesses que se tornam domi- nantes em um dado momento e lugar (€ que, por isso, precisa ser confronta- do com critérios de Justiga previstos na Constituico}; e b) em uma grande quantidade de situagdes, a soluco para 0s problemas juridicos nao se encontra- 14 pré-pronta no ordenamento juridico, Ela terd de ser construida argumentati- vamente pelo intérprete. A ideia de obje- tividade plena do Direito e de neutrali- dade do intérprete comega a se desfazer noar. 7 2 8B, Advento de uma cultura juridica pés- -positivista/atenuagio da. positivismo juri dico. Nesse ambiente em que a solucio dos problemas jurfdicos no se encontra inte- gralmente na norma juridica, suxge uma cultura juridica pés-positivista, Se a soluctio nio esta integralmente na norma, é preciso procuré-la em outro lugar. E, assim, supe: ra-se a separacdo profunda que o positivis- ‘mo juritico havia imposto entre o Direito e ‘a Moral, entre o Diteito e outros dominios do conhecimento, Para construir a solugdo que ‘no est pronta na norma, o Direito precisa se aproximar da filosofia moral ~ em busca da justica e de outros valores -, da filosofia politica - em busca de legitimidade demo- cratica e da realizagdo de fins pliblicos que promavam 0 bem comum e, de certa for ‘ma, também das ciéncias sociais aplicadas, ‘como a economia, a psicologia e a estatistica. => 0 pés-positivismo reivindica uma pretensio de correcdo moral para © Direito, vale-se da normatividade dos principios como elemento de concreti zagdo da justica e atribui centralidade & dignidade da pessoa humana e aos di- reitos fundamentals na interpretagio juridica em geraP, 2. Muito préxime do pes-positv Inclusivo, Embora defend a separackoe 19 pomto de vista dos eleltos praticos,é 0 denominado positvsmo 33 ie C. Ascensao do direito piiblico e centra~ lidade da Constituicao. Por fim, 0 século XX assiste a ascensao do direito piblico. ateotia juridica do século XIX havia sido construida predominantemente sobre as categorias do direito privado, 0 Século XIX comeca com Cédigo Civil francés, o Cédigo Napoledo, de 1804, ¢ termina com a promulgacao do c6- digo Civil alemao, de 1900. Os protagonistas doDireito eram o contratante e o propriet Flo. Ao longo do século Xx, assiste-se a uma progressiva publicizacio do Direito, com a proliferagdo de normas de ordem piiblica, Ao final do século Xx, essa publiciza~ go do Direito resulta na centralidade da Constituicio. Toda interpretaglo juridica Moral, o postivismo incluso, na linha preconiza dda por HLA, Hart (The concept of law), sustenta que a “Moral pode ingressar no Dirit se for abrigado no que denomina de "egra de reconiecimento" Vale dizer: constituigdes que consagram direitos fundamentals ¢ valores morais (sob a forma de prncipios), em titima anilise, promovem essa reaproximagko. Este €0cas0 4a Constituiso brasileira e, possivelmente, de quase todas as constitugGes demecrdticas do mundo, deve ser feita & luz da Constituicao, dos seus valores e dos seus principios. Toda interpre- taco juridica é, direta ou indiretamente, intexpretacio constitucional. Interpreta-se a Constituigao diretamente quando uma pretensAo se baseia no texto constitucional (uma imunidade tributéria, a preservagao do direito de privacidade); ¢ interpreta-se a Constituicio indiretamente quando se apli- cao direito ordinario, porque antes de apli- cé-lo é preciso verificar sua compatibilidade com a Constituigdo , ademais, o sentido ¢ o alcance das normas infraconstitucionais devem ser fixadas & luz da Constitui protagonismo da Constituicao, alca~ da ao centro do sistema juridico - de onde foi deslocado 0 diteito privado e seu princi- pal monumento, 0 Cédigo Civil -, deu lugar a.um fenémeno conhecido como filtragem constitucional ou constitucionalizacdo do di- relto, que importa na leitura de todo o orde- namento juridico infraconstitucional com a lente da Constitui¢ao, seus mandamentos e principios. Essa mudanca de paradigma impactou de forma relevante ramos como 36 o direito civil (com a eficdcia horizontal dos direitos fundamentais), odireito penal (com a ideia de proporcionalidade se projetando na vedago tanto do excesso quanto da pro- tecao deficiente) e o direito administrativo (com a releitura constitucionalmente ade- quada da ideia de supremacia do interesse piblico) PARTE IIL O NOVO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO © constitucionalismo do pés-guersa, constitucio- @ nalismo de direitos, direito | CONSTITUICAO constitucional contempor: neo ou. neoconstitucionatis~ rmo, como por vezes é referi- do entre nés, significou a in- conporaca (0A teoriae A priti- ca brasileiras das categorias que se disseminaram pelo [7 <<. constitucionalismo —mun- dial, a ponto de alguns autores falarem em ‘um constitucionalismo global. As principais referéncias concretas dessas navas concep- (es S40 a Suprema Corte americana eo Tri- bunal Constitucional Federal alemio, com projegdes importantes em outras partes do mundo, como Colémbia e Africa do Sul. Em ‘outros paises, como Poldnia e Hungria, hou- vve avangos e depois retrocessos, => Esse novo direito constitucio: nal tem come marco filosético, como ja assinalado, a superacao ou atenuacio do positivism juridico e como marcos teéricos importantes o reconhecimen- to de forga normativa & Constituicaio, a expansao da jurisdigo constitucional eo desenvolvimento de uma nova dog- matica da interpreta¢do constitucional, para lidar com a complexidade e o phu- ralismo da sociedade contemporanea, Nesse ambiente, verifica-se um papel mais proativo das cortes constitucio- nais na concretiza¢ao de direitos funda- mentais e uma permanente discussao sobre a exata fronteira entre o Direito ¢ a Politica, isto é, entre o que seja espaco da interpretacao constitucional e o que seja espaco de conformacao legislativa, ape 38 E essa visio nfo formalista e nao (20) positivista do Direito e da vida, alia- da & centralidade da Constituigo, que tem sido apelidada no Brasil de neaconstitucio- nalismo. 0 termo tem, em primeiro lugar, uma dimensti descritiva: ele identifica um conjunto importante de mudangas ocorri- das no constitucionalismo contemporaneo, identificadas acima, que incluem a) a ela borado de Constituigdes analiticas, com dispositivos voltados & protectio dos direi- tos fundamentals de diversas geragdes; b) a expansio da jurisdigao constitucional em todo o mundo, com a criagio de tribunais constitucionais ou cortes supremas desti- nnadas a fazerem valer a Constituicio; e c) a ascensii institucional do Poder Judictario 0 aumento da discricionariedade judicial, em razio da complexidade da vida moder- na e de uma nova percep¢ao da interpreta- (lo constitucional, 0 termo identifica, igualmente, um endosso a essas transformactes, em que 0 Direito assume um papel mais substantivo e transformador da realidade social. Deixa 39 40 =m seguir, a andlise de alguns aspectos desse novo direito constitu- cional, a sua zona de conforto tradicional, que é 0 da conservacao de conquistas politicas rele vantes e passa a ter, igualmente, uma fun- do promocional, atuando como um ins- trumento de avango social. Nesse sentido, neoconstitucionalismo é no apenas uma forma de descrever o Direito constitucional atual, mas também de desejé-lo. Jim fendmeno mundial ‘A ascensio institucional do Poder Ju- diciério é um fendmeno mundial, que tem seu marco inicial no 2° pés-guerra. Juizes e tribunais deixam de integrar uma espé- cie de departamento técnico especializado do governo e se transformam efetivamente em um Poder politico, que disputa espaco com os outros dois, H4 trés grandes causas apontadas pelos autores em geral para este fato: (). o reconhecimento de que um Judictério forte e independen- teéum componente essencial das democracias modernas, para preservar os. direitos fundamentais e as regras do jogo democratico; (ii) um certo desencanto com a politica majoritaria, em razio da crise de representatividade e de funcionalidade dos par lamentos em geral; (ii) atores politicos, muitas ve- io capazes de pro- duzir consensos em relacio a questdes em que hd de sacordos morais razodveis, preferindo transferir o Gnus de certas decistes para o Ju- 41 a] dicidrio, cujos membros no dependem de votos. f 0 caso de uniges homoafetivas, in- terrupgao de gestacio, direi- tos de minorias ete. Exemplos desse protagonismo judi- cial em temas relevantes poder ser encon- trados em paises diversos e distantes entre sipitos quais a Suprema Corte ou o Tribunal Constitucional produziu a deciso final em temas controvertidos: Canada (testes mis- seis americans em seu territério), Israel (construgdo de um muro na fronteira com o territ6rio palestino), Turquia (preservagao do Estado laico em face do avango do fun- damentalismo islamico, situacao que nao prevalece nos dias atuais, apds a reago ao golpe de 2016). Nos Estados Unidos, foi a Su- prema Corte que decidiu (e mal) a eleigao de 2000. Jincias brasi No Brasil ha uma certa exacerbacao do fenémeno por causas préprias. A prin- cipal delas é a constitucionalizagao abran gente que temos entre nés. A Constituigio brasileira cuida da separacdo de Poderes, da organizacao do Estado e dos direitos funda mentais, como as constituigdes em geral, mas também trata de ordem econémica, de sistema previdenciétio, de protecao do meio ambiente, da crianga e adolescente, do ido- so, da policia, dos cartérios, do colégio Pedro I, dos indios. Isso foi, em certa medida, a consequéncia inexordvel do processo cons tituinte e da participagao ampla de uma sociedade que ficara alijada do processo de- mocratico por mais de duas décadas. A se- ‘Bunda causa 6 0 acesso relativamente facil ao Supremo Tribunal Federal, por um niimero expressivo de legitimados ativos, por via de ages constitucionais diretas. Isso permite que quase toda questo relevante seja leva- da diretamente & suprema corte do pais. 48 4 => Sem surpresa, a vida brasilel- ra se judicializou amplamente: da re forma previdencidria & importacao de pneus usados, passando por abandono afetivo, uso de drogas e até colarinho de cchopp (0 Tribunal Regional Federal da 4* Regio estabeleceu que o colarinho in- tegra a bebida para fins de medicao da quantidade servidal). A judicializagaio vai do importante ao desimportante, do sublime ao ridiculo, nT 3. Judicializacao e ativismo judic Como consequéncia da ascensao do Judiciério, ocorreu uma notdvel judictali- aco da vida. Judicializagdo significa que questdes relevantes do ponto de vista poli- tico, social ou moral esto sendo decididas, em caréter final, pelo Poder Judiciario. Tra- ta-se, como intuitivo, de uma transferéncia de poder para juizes e tribunais, em detri- mento das instancias politicas tradicionais, que So 0 Legislativo e o Executivo. A judicializagdo é um fato, que decor- re de fatores mundiais, potencializados no Brasil pelas circunstdncias descritas aci- ma. 0 ativismo judicial é prime da judicia- lizago, mas os dois conceitos no se con: fundem. © ativismo judicial nfo é um fato, uma atitude. Trata-se de um modo proativo de interpretar a Constituigao, expandindo 0 seu sentido e alcance. Ele esta associado a ‘uma participacdo mais ampla e intensa do Judicidtio na concretizagdo dos valores fins constitucionais, com maior interferén- cia no espaco dos outros Poderes. 0 oposto de ativismo é a autocontenciio judicial Nos tiltimos tempos, no Brasil, a ex- presstio ativismo judicial perdeu o sentido original. Fendmeno semelhante havia ocor- ido nos Estados Unidos. A expresso hoje se tornou uma forma depreciativa de se re- ferir a esse papel mais expansivo do Judi- cidrio e sobretuda do STF. E um pouco como neoliberalismo. 0 termo ja no veicula uma dela, mas uma critica genérica, onde cada tum coloca o que vai na sua cabeca. Por isso, tenho procurado evitar a expresso, substi- 46 => Arrematando as ideias des- se tépico: no ambiente da novo direito constitucional teve lugar uma exponen- cial ascenso politica e ins Poder Judiciario. Com ela velo uma sig: nificativa judi portante, porém mais intensa do que desejavel ~ ¢ algum grau de ativismo judicial - que pode ser ora mais ora me- nos legitimo, ‘tuindo-a por atuagdo expansiva ou proativa, Hi situagdes em que é legitimo e d sefével uma atuacdo expansiva do Judici rio. E ha outras em que essa atuaco sera ilegitima e indesejvel. um pouco mais & frente nés vamos procurar demarcar esses espacos. itucional do izagao da vida ~ im- " dude di Comph ida, Indeterminagio do Direitoe Interpretacio Constitucional Paralelamente as transformagées no direito aqui descritas, as sociedades con- tempordneas foram se tornando cada vez mais plurais € complexas. Esses dois fato- res produziram um impacta relevante sobre a Interpretacdo juridica em geral, sobre a {interpretaso constitucional em particular. A idela de uma nova interpretagio se liga ao desenvolvimento de algumas fér- mulas originais de realizago da vontade da Constituicdo, com uma visdo menos forma- lista do direito e menor apego a uma con- cepgo de positivismo anterior & 2° Guerra ‘Mundial, Nao se trata de abandonar os mé- todos tradicionais - 0 subsuntivo, fundado em regras ~ nem dos elementos tradicio- nais da hermenéutica, como o gramatical, 0 histérico, 0 sistematico e o teleolégico. Cuida-se, na verdade, da necessidade de se satisfazerem demandas deficiente ou in- tt a7 48 suficientemente atendidas pelas {6rmulas classicas. Alguns exemplos da complexidade & do pluralismo do mundo contemporaneo: a) >) 9 pode um casal surdo-mudo uti- lizar a engenharia genética para gerar um filho surdo-mudo e, assim, habitar o mesmo univer- 0 existencial que os pais? uma pessoa que se encontrava no primeiro lugar da fila, sub- meteu-se a um transplante de ‘igado. Quando suirgiu. um novo figado, destinado ao paciente seguinte, o paciente que se sub- ‘metera ao transplante anterior softeu uma rejeicio e reivindica- vva 0 novo figado. Quem deveria recebé-lo? pode um adepto da religito Tes- temunha de Jeova recusar ter- minantemente uma transfusio de sangue, mesmo que indispen- sével para salvar-Ihe a vida, por ser tal procedimento contratio & sua conviccao religiosa? ) pode uma mulher pretender en- gravidar do marido que jé mor- eu, mas deixou o seu sémen em ‘um banco de esperma? €) pode uma pessoa, nascida fisio- logicamente homem, mas con- siderando-se uma transexual fe- minina, celebrar um casamento entre pessoas do mesmo sexo com outra mulher? Nenhuma dessas questies 6 teérica. Todas traduzem casos concretos ocorridos no Brasil e no mundo. Para lidar com essas situagSes complexas, que se sucedem em um mundo marcado pela diversidade, fot preciso desenvolver novas categorias para a interpretagéo constitucional. Tais ¢ate- gorias incluem a normatividade dos prin: cipios, 0 reconhecimento das colisies de normas constitucionais, a necessidade de cemprego da técnica da ponderagao e a rea- bilitagao da argumentagao juridica. Esta & 49 a sistematizago que eu adoto e proponho, e que corresponde & prética dos principais tribunais constitucionais do mundo. ‘Todas elas foram concebidas em um. ambiente em que se multiplicaram os cha- mados casos dificeis. Casos para os quais no existe uma solucdo pré-pronta no orde- namento juridico, Casos dificeis surgem em diferentes situacdes, como as decorrentes de: () ambiguidade na linguagem (termos expresses como calamidade puiblica, re- levancia e urgéncia ou impacto ambiental precisam ter 0 seu contetido preenchido & luz de situacdes concretas da vida); (ii) de- sacordos morais razodveis (pessoas escla- recidas e bem intencionadas tém visdes distintas sobre temas como suicidio assis- tido, descriminalizago de drogas leves ou ensino religioso em escolas puiblicas); (iti) colisées de normas constitucionais ou de di- reitos fundamentais (ConstituigBes abrigam valores contrapostos, gue entram em tenso diante de determinadas realidades faticas) Alguns exemplos de colisia de nor- ‘mas: a) na discussio judicial sobre a cons- trugdo de duas usinas hidrelétricas, entra~ ram em chogue o desenvolvimento nacional ea protecio ambiental; b) no debate sobre a necessidade ou no de autorizacao prévia para a divulgacio de biografias, estavam em tensdo o direito de privacidade e a liber- dade de expressao; c) nas controvérsias en- volvendo tabelamento de precos, o choque se dé entre a livre iniciativa e a proteco do consumidor. Como nao ha hierarquia entre normas constitucionais, nfo é possivel afir- ‘mar, aprioristicamente e em abstrato, qual valor, interesse ou direito deve prevalecer. A solugo precisa ser construida racional e argumentativamente, a partir da realidade fatica subjacente, Sobretudo nos casos de colisto de nor- ‘mas ou de direitos, boa parte dos tribunais constitucionais do mundo se utiliza da téc- nica da ponderagao, que envolve a valoraciio de elementos do caso concreto com vistas produgo da solucao que melhor realiza a vontade constitucional naquela situacao. As diversas solugdes possivels vio disputar a escotha pelo intérprete. Como a solucio 52 ‘do est pré-pronta na norma, a decisio judicial nao se sustentaré mais na f6rmu- la tradicional da separacio de Poderes, em que o juiz se limita a aplicar, ao ltigio em exame, a solucHo que jé se encontrava ins- crita na norma, elaborada pelo constituinte ou pelo legislador. Como este juiz se tornou coparticipante da criacAo do Direito, a legi- timagdo da sua decisio passaré para a ar- gumentagdo juridica, para sua capacidade dde demonstrar a racionalidade, a justica e 2 adequacao constitucional da soluco que construiu. Surge aqui o conceito interessante de ‘auitério' A legitimidade ca decisdo vai de- pender da capacidade de o intérprete con- vencer 0 auiditério a que se dirige de que aquela é a solucdo correta e Justa. Nao te- mos condigdes de tempo de percorrer esse caminho, que no entanto tem o seu fascinio. Nesse admirvel mundo novo que ve- nnho descrevendo, j4 no tem mais aplica- 1 V, Chaim Perelman e Lucie olbrechts-Tyteca, Tra- ‘ado da argurmentagio: a nova retires, 1996, p22 (do plena a velha afirmacio de Hans Kelsen de que cortes constitucionais somente po- dem atuar como legislador negativo, Como visto, em alguma medida relevante, juizes criam o direito ao interpretarem principios abstratos, a0 ponderarem normas constitu- cionais e ao produzirem decisées aditivas integradoras de lacunas ou omissées. Nao sera possivel aprofundar, nes- se momento, a discussio acerca de quais fatores influenciam uma decisAo judicial, sobretudo de uma corte constitucional, no- tadamente nos casos dificeis, em que sem impde uma atuacHo mais criativa. Ha uma vasta literatura conternpordnea sobre esse tema*. Em sintese apertada, ¢ possivel dizer ue existem: (i) fatores juridicos: juizes, na: turalmente, levam em conta a Constituicao, as leis, a jurisprudéncia e a doutrina acerca da matéria que esto decidindo; (i) fato- res Ideoldgicos: embora nfo possam e no devam ter posturas partidétias, juizes tem 2. No Brasil, v. por todos, Patricia Perrone Campos Mell, Nos hastdores do STF, 206, te a sua prépria concepgio do que seja bom, justo elegitimo e, naturalmente, projetam- -na em seus julgamentos; e (il) fatoresins- titucionais: ha circunstdncias externas a0 direito que também so relevantes para 0 processo decisério, como as relacBes entre 0s Poderes, as influéncias da sociedade, da midia e da opinio piblica, a viebilidade de cumprimento da decisdo et. Ha quem nao goste de nenhuma des- ssas categorias com as quais estamos traba~ Ihando, Nem neoconstitucionalismo, nem casos dificeis, nem ponderacao, nem fa- tores extrajuridicos que influenciam uma decisao judicial. A vida comporta miiltiplos pontos de observacao. & a verdade nao tem dono. Deus nos livre do pensamento tinico. Devemos celebrar a diferenca. Vinicius de Moraes, em passagem inspirada, escreveu: “Bastar-se a si mesmo é a maior solid4o”. $6 cabe aqui uma adverténcia aos que negam a realidade por preferirem que ela fosse dife- rente: na vida, no adianta quebrar o espe- lho por ndo gostar da imagem. Papéis das Supremas Ci rangos nos Direitos Fundamentais Do modo como eu vejo, cortes consti- tucionais e supremas cortes, como o Supte- mo Tribunal Federal, desempenham trés grandes papéis: contramajoritério, repre- sentativo e iluminista, 1. Opapel contramajoritirio A atuacao contramajoritaria se dé nas hipéteses em que o Tribunal invalida atos do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, por consideré-los contrérios & Constituicao. E um dos temas mais estudados na teoria constitucional, que procura responder & se- guinte pergunta: por que razio juizes que no so eleitos podem sobrepor a sua inter- pretacio & vontade politica do Presidente da Repiiblica, eleito com dezenas de milhdes de votas, ou & dos membros do Congresso, igualmente eleitos? © entendimento que prevaleceu em 55 quase todo 0 mundo democratico é que a suprema corte pode intervir, em nome da Constituicio e da vontade origindria da maioria que a elaborou, para conter as pal- xBes momentaneas das maiorias e, assim: a) assegurar o respeita as regras do jogo de- mocratico, impedindo o impeto de se perpe- tuarem no poder; e b) assegurar 0 respeito aos direitos fundamentais, que constituem umazeserva minima de justica em toda so- ciedade civilizada. Tipicas decisdes contramajoritarias, na experiéncia brasileira, tém sido de decla- aco de inconstitucionalidade (i) da criagao de tributos, (ii) da cobranga de contribuictio previdencidria em certos casos, (ii) da prot- bigdo de progressdo de regime prisional em certos crimes. Porém, 0 que quero aqui destacar gue, como regra geral, © STF exerce essa competéncia contramajoritaria ~ ista &, 0 poder de declarar leis ou atos normativos inconstitucionais ~ com grande parciménia autocontencao. u fiz o levantamento em um outro trabalho académico e o niimero de dispositivos de leis federais invalidados é bastante reduzido, F aqui se torna importante a distin¢ao que se fez anteriormente entre judicializa- G40 e ativismo, Juizes e tribunais, uma vez provocados pela via processual adequada, io tém a alternativa de se pronunciarem ou nfo sobre a questao. H4 diversas maté- rias controvertidas que foram de fato judi- cializadas, mas em relagdo &s quais a deci- sfo do STF nfo foi ativista, mas autocontida, = Trés exemplos de decisies que ilustram essa afirmagio: a) células tronco embriondrias: embora 0 tema fosse controvertido, o Tribunal, por 6 votos a 5, manteve a validade da lei que havia sido votada pelo Congreso; b) acdes afirmativas para negros: 0 Tribu- nal, em surpreendente unanimidade, julgou improcedenteo pedido de incons- titucionalidade que previa cotas para ingresso em universidades pilblicas; ¢) demarcagio da reserva indigena Raposo ado Sol: 0 Tribunal, em iiltima ané- | ee pelo MRIS Ha ed Nose [Peto resdente da teiblc, ‘manteve a validade da demarcacao rea continua que havia sido feita Veja-se, entdo: a judicializacdo é ine- vitével, porque a possibilidade de propor agGes dessa natureza est prevista na Cons- tituigo e nas leis. Mas judicializacao nao significa que houve atuacdo ativista ou ex- pansiva do Judiciario, 2 Opapel representativo ‘Alem da fungao contramajoritéria, ha um papel particularmente importante de- sempenhado por cortes constitucionais em geral e pelo Supremo Tribunal Federal em particular, que é a func3o representativa. ‘Trata-se do papel de atender a demandas sociais que no foram atendidas a tempo ea hora pelo processo politico majoritario, 0u seja, o Judiciério se torna representati- vo quando 0 Legislativo nao tenha conse- guido sé-lo. Alguns exemplos: a) b) Proibicfo do nepotismo nos trés Poderes. 0 STF primeiro decidiu em relaciio ao Judicirio e depois, estendeu aos trés Poderes. Ine- xistia lei proibindo a nomeacao de parentes até o terceiro grav para cargos em comissio, isto é, de livre nomeacio, sem concu so, em diversas areas do servigo piiblico. 0 Congreso e as Assem- bleias Legislativas n&o atua- ram. Mas havia uma evidente demanda social nesse sentido. © STR, entfio, interpretando os principios da moralidade admi- nistrativa e da impessoalidade, previstos na Constituicdo, deles extraiu a regra de proibi¢ao da nomeacdo da parentada, Fidelidade partidaria. #4 uma Imensa demanda social por re- forma politica que 0 Congresso no consegue atender (nem o °) ‘STP pode fazer). Mas, nessa ques~ ‘to pontual, quando ela chegou no STE, o Tribunal entendeu que ‘a mudanga de partido por candi- dato eleito em eleigtes proporcto- nais acarretava a perda de man- dato. Esta é uma situacdo que deixa os eleitores extremamente indignados e que a sociedade re- udia, Logo, o Tribunal entendeu que a mudanga de partido frau- ava o principio democratico. Financiamento eleitoral_ por empresa. A despeita de casos gra- vissimos de corrupgSo associa- dos ao modelo de financiamento eleitoral brasileiro, 0 Congresso Nacional nfo enfrentava 0 pro- blema, removendo distorgdes graves do sistema. Dentre elas a possibilidade de: a) empresas to- marem empréstimo no BNDES e utilizarem dinheiro piblico para financiar os candidatos de seu interesse; b) a mesma empresa financiar mais de um candida- to, Seo fizer, nfo esté exercendo aireito politico (para quem acha que empresa pode titularizar tal direito). ou foi achacada ou est comprando favores futuros. c) a empresa que financiou a cam- panha nao pode ser contratada pela Administragio Piiblica. se ndo, estar-se-ia permitindo que © favor privado (doagao de cam- pana) fosse pago com dinheiro paiblico (contrato administrati- vo). Todas essas situacdes viola vam os principios da moralida- de administrativa e republicano, que impoem um grau mfnimo de decéncia politica 3. Papel iluminista © terceiro © iltimo papel desempe- nhado por cortes constitucionais ¢ o papel iluminista. Trata-se de uma competéncia perigosa, a ser exercida com grande parci- 6 ‘ménia, pelo risco demo- cratico que ela represen- ta epara que cartes cons- titucionais nao se trans- formem em instincias hegeménicas. Mas as constituigdes so produ- to do tluminismo e devem ser interpretadas honrando essa tradicio. ‘Ao longo da histéria, alguns avangos imprescindiveis tiveram de ser feitos, em nome da razio humanista, contra o senso comum, as leis vigentes e a vontade majo- ritéria da sociedade, A aboliglo da escravi- 0 oua protecao de mu- Theres, negros, homos- sewuais, transgéneros inorias religiosas, por exemplo, nem sempre péde ser feita adequada- oyna Mente pelos mecanis- | mos tradicionais de canalizagdo de rein- | vinaicacbes sociats. Para além do papel puramente repre- sentativo, cortes constitucionais desempe- a) nham, por vezes, excepcionalmente, um papel iluminista, Atuam para empurrar a histérla, para avancar 0 processo civilizaté- rio. Exemplos: a) Estados Unidos: Brown v. Board of Education: a Suprema Corte, por decisdo judicial, terminou com a segregacao racial nas es- colas piblicas. Sem lei e prova~ velmente sem apoio majoritario; b) Africa do sul: por decistio judi- cial aboliu-se a pena de morte considerou-se inconstitucional a criminalizagao da homossexua- lidade; ©) Israel: a Suprema Corte consi- derou inconstitucional a tortu- ra de “terroristas’, mesmo em situagdes extremas, contra a vontade do Parlamento e da po- sigdio majoritéria da sociedade. Tribunal Constitucional Federal chancelou a criminalizagio do holocausto. 6 => No Brasil, so exemplos desse | tipo de atuacao a) a deciséo que equiparou as unides homoatetivas as unides estaveis convencionais e abriu caminho para o casamento de pessoa do mesmo sexo. Nada documenta que essa fosse uma osicao majoritaria na socieda- de, mas era uma avanco civili- zatérlo que se fazia necessério ealeinao vinha; interrupcio da gestacio de fe~ tos anencefilicos: apesar da grande reagio & interrupcio da gestacio em geral, que hd na sociedade brasileira, violava a dignidade da mulher obrigé-laa ‘manter até o fim uma gestacao invidvel. Posteriormente, em 2016, a Y Turma do STF esten- deu esse direito de interrupcio da gestagao em qualquer caso, durante o primeiro trimestre, oa > Uma observacao final de gran- de importancia: para que nao se distor- am os prinefpios, os meios e os fins do novo constitucionalismo, deve-se enfa- tizar, na linha das ideias apresentadas, que ele no autoriza o voluntarismo, 0 decisionismo judicial ou, para utilizar um termo mais pernéstico em voga, 0 solipsismo. Deixe-se registrado, portan: to, em letra de forma, que o juiz nfio é 0 | criador original do direito e ndo esta au- torizado a, deliberadamente, fazer valet suas convicgdes e valores subjetivos, a pretexto de estar interpretando o Direi- to, No constitucionalismo democratico, ‘uma decisio judicial legitima deve per- correr o seguinte itinerrio: a) reconduzir-se sempre a uma norma juridica, seja um prin- cipio ou uma regra, ficando a margem de atuagio do intér prete limitada pelas possibi- lidades semanticas do texto interpretado (dimenséo nor- mativa); ae let b) observar os valores e direitos fundamentais abrigados na | Constituiglo, independente- mente de a decisio ser po-| pular ou impopular.Diretes fundamentais protegem as mente, contra a vontade das maiotias. 0 populismo judi- tial é tio ruim quanto qual- quer outro (dimensao deonto- Vézica)€ ©) ultrapassadas as duas etapas anteriores, sua atuacdo de verd pautar-se pela producto | do melhor resultado possivel | para a sociedade (dimensdo pragmética). 6 1Na Parte I das presentes anotacées, fi- cou consignado que prevaleceu no mundo contemporaneo, substantivamente, 0 mo- delo norte-americano de constitucionalis- ‘mo. Esse modelo é fundado nos seguintes elementos essenciais: uma Constituicdo que institua um regime democratico econtenha tum catélogo de direitos fundamentais; apli- cago direta e imediata das normas consti- tucionais, independentemente de interme- iagdo legislativa; e existéncia de supremas cortes ou cortes constitucionais com o papel institucional de fazer valer a Constituigao, podendo, inclusive, invalidar atos dos ou- tros dois Poderes. Na Parte Il, foram apontadas vicissitu- des pretéritas do constitucionalismo brasi- leiro, com énfase na falta de efetividade das Constituigdes de uma maneira geral. Esse ci- 68 clo fot rormpido pela Constituicio de 1988, que a0 longo do tempo se tornou um documento verdadeiramente normativo, com capacida~ de de limitar © poder politico e conformar progressivamente a realidade. Sob sua vigén- cia foram obtidas conquistas importantes, como estabilidade institucional, estabilidade monetérla e incluso social. Constituig&o de 1988 foi, igualmente, contemporénea de expressivas mudancas de paradigmas no di- reito em geral, que inclufram a superagio do formalism juridico, 0 advento de uma cul- tura pés-positivista e a passagem da Consti- tuiglo para o centro do sistema juridico. ‘A Parte Ill foi dedicada ao novo direi- to constitucional praticado no Brasil e no mundo democratico romano-germanico em geral, que tem recebido designacdes di- versas: constitucionalismo democratico, constitucionalismo do pés-guerra, consti- tucionalismo de direltos ou neoconstitu- cionalismo, Da perspectiva deste autor, as caracteristicas a seguir identificadas tém uma dimens&o descritiva - te, limitam-se a expor a realidade existente - e uma di- mensio normativa ~ ie., é assim que deve set, mesmo, o direito constitucional. Tais caracteristicas incluem: a ascensdo institu- cional do Judiciério e a expansfo da juris- digo constitucfonal, pela criaglo generali- zada de cortes constitucionais ou supremas cortes; a atuagao proativa dessas cortes na concretizacéo dos direitos fundamentais, inclusive das minorias; uma interpretagio juridica menos formalista e liberta de certos dogmas do positivismo anterior & 2 Guerra Mundial; e @ consequente reaproximacio entre o direito e a ética, marcada pela nor- matividade dos principios, a centralidade dos direitos fundamentais e a pretensio de cortego moral das decisées judiciais. 1 A legitimidade demoeritica da atuagio das Supremas Cortes No constitucionalismo democratico, ccabe as supremas cortes ~ no caso brasilei- ro, ao Supremo Tribunal Federal -, ao me- nos do ponto de vista formal, a tltima pala~ 0 ‘ura acerca da interpretagio da Constituicao. Esta é uma competéncia, todavia, que deve ser exercida sem arrogincia, sem pretenso de hegemonia e com respeita 8s préprias capacidades institucionais do Judiciario, le- vando em conta as competéncias e o peso demacratico dos outros dois Poderes. Come zegra geval, o Judicisrio deve ser deferente para com as escolhas politicas do Legislative e para com a discricionariedade ‘administrativa razodvel do Poder Executivo. As situagfes que autorizam uma atuagio ‘mais expansiva das supremas cortes dizem respeito & proteco das regras do jogo de mocratico ~ para evitar abusos e eventual autoritarismo das maiorias - e salvaguarda dos direitos fundamentais, que constituen uma reserva minima de justica nas socie- dades democréticas. Fora dessas situacbes, no normal da vida, a atuacio judicial deve ser marcada pela autocontencéo. ‘Um componente importante da legi- timidade democratica e do relacionamen- to entre Poderes é a existéncia de dilogo institucional, S&o exemplos dessa forma de atuacdo, por parte das supremas cortes, 0 apelo ao legislador para que legisle (alteran- do norma existente ou sanando uma omis- sfo), a edi¢do de norma temporéria até que o legislador venha a dispor a respeito ou a flxago de prazo para que o legislador pro- vveja acerca de determinada matéria, com a adverténcia de que se ndo o fizer, a nor- ‘ma serd criada jurisdicionalmente. Da par- te do Legislative, salvo o caso de cldusulas pétreas, existe sempre a possibilidade de superar uma decisao do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, mediante a edigio de uma emenda constitucional, am incerramento Terminando como comegamos: 0 constitucionalismo democritico foi a ideo- logia vitoriosa do século XX, prevalecendo sobre os madelos alternatives: marxismo- -leninismo, regimes militares e fundamen- talismos religiosos. 0 Estado democrético de direito significa o ponto de equilibrio en- n tre 0 governo da maioria, o respeito as re- gras do jogo demacrdtico ¢ a promocio dos direitos fundamentais. Trata-se de uma fé racional que ajuda a acreditar no bem e na justica, mesmo quando nfo estejam ao al: cance dos olhos. A judictalizagao das relacbes politicas e sociais - que é inevitivel em algum grau ~ no pode suprimir o espaco da politica e eliminar o governo da maioria. 0 Judiciatio nao pode presumir demais de si mesmo. Na frase feliz de Gilberto Amado: “Querer ser ais do que se é, é ser menos". £ preciso buscar, permanentemente,o equifbrio ade- quado a cada momento entre supremacia da Constituigao, interpretaco judicial éa Constituigdo e processo politico majoritatio, A vida institucional, assim como a vida social e a vida individual de cada um é a busca permanente de equilibrio. E a vida é a travessia continua de uma corda bam- ba. Cada um de nés, nfo importa quem esta no palco ou.na plateia, est sempre se equi- librando, Tomamos decisies a cada paso. Durante o trajeto, a gente se inclina ora para um lado, ora para 0 outro lado, e segue em frente. Por vezes, o piblico poderd ter a ilusdo de que o equilibrista esta voando. Nao 1 problema nisso. A vida é feita de certas ilusBes. Mas 0 equilibrista tem que saber {que nfo esté voando. Porque se ele acreditar rnisso, se ele presumir ser mais do que pode ser, nfio haverd salvacfo. Ele vai cair. Ena vvida real no tem rede. => No constitucionalismo demo cratico, cortes supremas ou cortes cons titucionais t&m um papel decisive ne equilfbrio institucional. £, na minha vi fio, devern cumprir o seu papel do mes ‘mo modo como acho que a vida deve se vivida: com valores, com determinagac | com uma dose de bom humor e com hu mildade, SOBRE 0 AUTOR Professor Titular de Direito Constitucional da univer sidade do Estado do Rio de Janeiro ~ UERI. Mestre em. Direito pela Yale Law School. Doutor e livre-docente pela ERI, Pés-doutor pela Harvard Law School. Senior Fellow na Harvard Kennedy School. Ministro do Supremo Tribunal Federal

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