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1 Burocracia Model Uae) nee eile prt eer) Ore ime ere) filers Tato MARIA RITA LOUREIRO FERNANDO LUIZ ABRUCIO REGINA SILVIA PACHECO (ORGANIZADORES) wo” _FeV_ Copyright © 2010 Maria Rita Loureiro, Femando Luiz Abrucio ¢ Re Sopris Regina Silvia Direitos desea edigio reservados 4 EDITORAFGV Rua Jomalista Orlando Dantas, 37, 2231-010 — Rio de Janeiro, RJ — Brasil “Tels: 080-021-7777 — 21-3799-4427 Fax: 21-3799-4430, E-mail: editon@tgy-br — pedidosedicora@fgy.be wwwefexbr/editora Impresso no Brasil/Printed in Brazil ‘Todos os direitos reservados. reproduio no autriada desta publicasio, no todo ‘ou em parte, constcuivilagao do copyright (Lei n#9.610/98). Os coneeitos emitidos nese lve sto de ineiraresponsabilidade dos autores edigio — 2010 Prepanagio de originais: Mariflor Rocha Editorasio cletrinica:sspecto:design Revisio: Aleidis de Beltran ¢ Marco Antonio Corréa Capa: aspectordesign Ficha catalogréfica elaborada pela lotece Mario Henrique Simonsen burecac © police no Brasil: desafios para » ordem democrt no séco MMI / Orgs. Maia Rta Lovree, Ferando Loe Abi 6, Regine Siva Pacheco ~ fio de Jence :Edtore FCW, 2010, 4392p. " Incl bibiograi. ISBN: 978-85-225-0777-1 1. Burocracia — Brasil. 2. Ad i iministracao pOblica — Brasil. 3. Politicas piblicas — Brasil 4 Formulagdo de politicas — Brasil. 5. Reforma administrative — Brasil. Loureiro, Maria Rita Garca, Il, Abrucie, Fernando ‘Luiz IL Pacheco, Regina Silvia Vioto Monteiro. IV, Fundagio Getulio Vargas cop—355 Sumario Prefacio Luiz Carlos Bresser-Pereira Introdugao Parte | — Burocracia e ordem democratica no Brasil 1. A formacao da burocracia brasileira: a trajetoria € 0 significado das reformas administrativas FERNANDO LULZ ABRUCIO, PAULA PEDROTI E MARCOS VINICIUS PO Burocratas, partidos e grupos de interesse: 0 debate sobre politica e burocracia no Brasil MARIA RITA LOUREIRO, CECILIA OLIVER! E ANA CRISTINA BRAGA MARTES, Controles democraticos sobre a administraao piiblica no Brasil: Legislativo, tribunais de contas, Judicidrio e Ministério Publico ROGERIO BASTOS ARANTES, MARIA RITA LOUREIRO, CLAUDIO COUTO [MARCO ANTONIO CARVALHO TEIXEIRA 4. Monitoramento das politicas ptiblicas e controle da burocracia: 0 sistema de controle interno do Executivo federal brasileiro cceclua ouvERL aa 25 27 Bs 109 149 Parte Il — Gestao da burocracia no Brasil contemporéneo 5. ‘A agenda da nova gestao publica REGINA Sita PRCHECO Uma radiografia do emprego pUblico no Brasil: analise e sugestdes de politicas ‘NeLson maRcoNt Profissionalizago, mérito e protegao da burocracia no Brasil REGINA Siva PAcHECO Carreiras burocréticas e suas transformacoes: © caso dos gestores governamentais no Brasil RACHEL CRUZ Nem politico nem burocrata: 0 debate sobre o dirigente publico DANIEL DE BONIS E REGINA SILVIA PACHECO Referéncias Sobre 05 autores 181 183 219 277 307 329 363 389 1 A formagao da burocracia brasileira: a trajetoria e o significado das reformas administrativas Fernando Luiz Abrucio Paula Pedroti Marcos Vinicius P6 Este capitulo traga a trajetéria da burocracia brasileira afim de entender sua constituigao e o papel acupado no processo de modernizagao do Es- tado, Embora scja apresentado um amplo panorama histérico, 0 texto se concentra nos momentos em que ocorreram importantes transformagbes ¢ reformas da administragéo piblica brasileira. Essa concentragio em ‘eventos ou momentos estratégicos se deve ao faro de eles representarem paradigmas dos problemas enfrentados pelo reformismo no Brasil O capieulo se divide em cinco partes. Na primeira, discute-se a ori- gem da administragao publica brasileira, em especial no periodo impe- tial, quando a alta burocracia teve uma ambigua atuagio de moderni- zagio do pais, com clementos progressistas € conservadores. Mostra-se ainda a situacéo na Primeira Republica, momento em que houve um retrocesso geral na estrucura burocritica, mas também a formagio das dluas primeiras burocracias modernas no Brasil: as Forgas Armadas eadiplomacia Na segunda parte é analisada aquela que é considerada a primeira re- forma administrativa do pais:o modelo daspiano, criado por Vargas. Seus 28 UROCRECI E POLITICA NO Bs dilemas e suas ag6estiveram um efeito prolongado sobre a administragio pliblica brasileira ao longo do século XX. E possivel dizer que a vis daspiana de reforma foi a inspiracao ¢ o fantasma das demais. O Decreto-Lei n*200 eo projeto de administragao piiblica dos mili- tares sio discutidos a seguir. Aqui, algumas caracteristicas varguistas si0 levadas a0 paroxismo, combinadas com uma tentativa de modernizagio gerencial de parcela da méquina piblica. Como resultado, pode-se dizet que esse modelo levou ao ponto mais alto do Estado nacional desenvol- vimentista, mas foi sepuleado com a crise do regime auroritio e do pré- prio tipo de Estado ac qual dava suporte. A reforma do Estado tornou-se um tema central com a redemocrati- zagio do pais. Nesse contexto, o debate sobre a gestio publica tornou-se imporante, embora, i primeira vista, em menot medida do que outros, como a democratizagio ¢ a descentralizagio. No entanto, a discussio acerca da administragio piblica ganhou um sentido mais amplo, envol- vendo mais aspectos do que noutros perfodos ¢ se tornando pega-cha- ve para que as politicis piblicas deem conta da expansao crescente das demandas sociais, ‘Tendo a nova realidade democritica como pano de fundo, a quarta se- so do capiculo procura analisar a trajetéria da reforma da administracio piiblica da Nova Republica até o governo Lula. O centro da discussio sio as relagoes de complementaridade e confronto entre o modelo propug- nado pela Constituisio de 1988 ea proposta reformista apresentada pelo ‘ministro Bresser-Pereita, no primeiro mandato de FHC. Apesar de haver outros movimentos paralelos de reformas,o entendimento desse debate & a melhor chave pata explicarasituagio atual da administragio publica. Na conclusio, sio colocados os desafios mais imporcantes para a ges- to piiblica brasileira no século XXI, tomando como base nio s6 05 con- tetidos, mas também as estratégias reformistas, pensadas com base em nossa experiéncia histérica, As origens da administraco publica brasileira A administragao piiblica genuinamente brasileira 6 péde nascer com a in- dependéncia do pais. Porém, nao € possivel entender suas bases iniciais sem analisar 0s efeitos que 0 periodo colonial tinha deixado, Afinal, foram mais de 300 anos de colonizagio, além de os primeiros governantes do Brasil independente terem forte relagao com a metrpole portuguesa. Do ponto de vista administrativo, ¢ possivel distinguir duas grandes formas de comando no period colonial." A primeira tinha um viés cen: tralizado, baseado no controle mais estrito, por parte da metrépole, das atividades administrativas realizadas no Brasil. Seus principais instru- mentos, como o Conselho Ultramarino ¢ a Igreja Catdlica, procuravam garantir uma uniformizagio do processo colonizador A figura principal rao governo-geral,instituido como mecanismo contra o fracasso da ad- ministracio privada das capitanias heredicérias. O modelo administrativo proposto caracterizava-se por um excesso de procedimentos ¢ regulamen- tos, tendo como fundamento filosdfico uma visio de que o Estado vem antes da sociedade, sal qual Faoro (2001) descreveu o paradigma ibérico que perpassou a colonizagio do Brasil ‘A outra forma de comando administrative advinha de farores des- centralizados de poder. Particularmente, resultavam da estrutura local de governanga, matcada pelo poderio patrimonialista presente tanto nas cAmaras municipais como nas capitanias hereditirias. Ademais, como 0 Estado portugués nio aleangava a maior parte do territério brasileiro, prevalecia entao o que Sérgio Buarque (1997) chamava de personalismo, entendido como privatizacio do espago piblico. ‘A miscara de centralismo excessivamente regulamentador, ¢ geral- mente pouco efetivo, com o patrimonialismo local resume bem o modelo de administracio colonial. Essa situagio comegou a mudar em meados 1 Sobre a administragio piblica no periodo colonial, ver Garcia (1975), Leal (1986) ¢ Ho landa (1997), A FoRMAGAD DA BUROCPACIA BRASILEIRA INE POLITICA NO BRASH do século XVIII, comas reformas pombalinas, em Portugal, que geraram ‘maior intervengio sobre os assuntos da Coldnia, particularmente nas reas de mineragio. Novo impulso ao poder piblico foi dado pela che- gada da Familia Real portuguesa, em 1808, que colocou o Brasil como centro do Império portugués, criando instituigées, principalmente no Rio (a Corte), que podem ser vistas como a base do Estado nacional que sera proclamado em 1822 (Costa, 2008:836). Na verdade, a inflexio no papel do Estado ¢ da burocracia no Brasil se deveu principalmerte as ages do marqués de Poubul, que procurou formar liderangas politco-administrativas, particulatmente em Coimbra, «que pudessem atuar como altos burocratas em todas as coldnias. Esse pro- cesso gerou uma nova elite de brasileros, bastante homoggnea em seus ropésitos. No final do perfodo colonial e inicio do Império, tal grupo ‘ocupot altos postos governamentais, tendo sido central no processo de In- dependéncia e na organizagio de um projeto de nacéo (Carvalho, 2003). Inicia-se ai uma historia em que a alea burocracia fara parte de varios ‘momentos estratégicos do pais, tendo, no geral, um ambiguo papel mo- démizador. De um lado, foi esse grupo, centrado no Estado, que pode planejar a Independencia e atuar em prol da unidade nacional. Por outro, contudo, ela nio rompzu — ou néo teve como romper — com a institui- fio mais arraigada do Brasil de entio: a escravidio, Se no caso do sistema escravocrata pode se dizer que essa elite fez.0 que eta possivel,ndo se pode esquecer que ela inaugurou uma forma “estado céntrica” e centralizada de fazer reformas, que, mesmo tendo softido modificagées incrementais a0 longo do tempo, foi uma marca de nosso modus operandi reformista Cabe frisar, no entaato, que os atores burocriticos, inclusive nos mo- ‘mentos de maior autonomia, s6 podem ser compreendidos em sua inter- secgio com o sistema politico. Uma anilise sintética do papel da burocrs- cia no Império exemplifca bem esse argumento, Apés um periodo de grande turbuléncia, com a Regéncia, 0 Impétio consolida e estabiliza seu modelo politico no Segundo Reinado, E nesse periodo a burocracia esatal seré fundamental para duas fungdes, Na pri- meira, mais nobre, participaré da definigao das principais diretrizes do pais, seja por meio do exercicio de fungées especificamente burocriticas, seja por meio do Conselho de Estado, érgio de assessoria do imperador. © conselho era dominado por funcionarios piblicos, que ld chegavam _geralmente por conta de sua experiéncia politica, mas sta atuago buro- cedtica prévia marcava sua visio de mundo. Essa alea burocracia era, no geral, sclecionada segundo certo tipo de érito, baseado num saber generalista. Contudo, nio era recrutada de acordo com principios universalistas como concurso piblico, nem era jonalizada em termos de carreira? Na verdade, mesmo na melhor profi parte da elite burocritica, meritocracia ¢ relacionamentos pessoais de apadrinhamento conviviam na selegio ¢ promogio dos funcionirios. 56 que a burocracia também tinha outro papel. Ela servia para a distri- buigao de empregos piblicos para garantir apoio politico ¢ social. Trata- se do fendmeno da patronagem, tio bem descrito por Graham (1997). ‘Os beneficiérios desse modelo cram cabos eleitoras eficazes na conquista do voto no interior — inclusive familiares da elite agréria decadente que do conseguiam melhores postos —, parcelas pobres nao escravizadas ¢ até minorias urbanas educadas que nio obtinham acesso a cargos buro- criticos mais nobres (Carvalho, 2003:165). No mundo escravocrata, 0 Estado tinha como uma das tarefas oferecer empregos numa economia pouco dinamica — o que no dizer de Joaquim Nabuco significava que o “Servigo piiblico era a vocagio de todos’. Foram gerados, entio, dois mundos burocriticos, um mais vinculado 0 mérito ¢ outro & patronagem, Desse tipo de dualidade dos primérdios daburocracia brasileira surgitam duas interpretages clissicas. A primeira teve como grande expoente Oliveira Vianna (1987), analisea conservador 2 Umalei de 1831 insti pela primes eno Basi mecanismo do concur piblico, so io pata ingeso de funcioniros no Minstso ds Fazenda. Porém, como mosta Carvalho (2003168), esl ft divers ez modicaa um provvel indo da Auld de compra. |AFORMACKO DA BUROCRAC 32 nasi. ¢ um dos inspiradores do Estado varguista (particularmente do modelo corporativo). Ele chamava o topo da burocracia imperial de “homens de mil” — afinal, cada qual valia, segundo o autor, por no minimo mil ho- ‘mens. Essa visio positivaestava muito marcada pela fragilizagio pela qual passou a administragio piiblica na Primeira Republica. Em linha oposta, esté Faoto (2001). Para ele, rratava-se de um estamento buroctitico, isto é,de um grupo que usava de forma pattimonialista o seu poder, de modo aenfraquecer 2 autonomia da sociedade perante 0 Estado. © faco é que a burocracia imperial tinha essas duas caracteristicas, Ela foi essencial para construir a nagéo brasileira, evitando o fracionamento «que marcou o restante da América Latina e mitigando o localismo oligét- quico presente no pais. Mas o fez também reduzindo a esfera piblica ao comando patrimonial dos agentes estatais, Em outras palavrashavia uma alta burocracia selecionada pelo mérito, mas que nio era piblica ¢ tam pouco controlada publicamente, nem no sentido liberal nem em tetmos democriticos. A alta burocracia respondia, basicamente, a0 imperador, ‘© mesmo que concentrara em si todos os quatro poderes definidos pela Constituigio de 1824, Os “homens de mil” de Oliveira Vianna, na verdade, estavam bem Tonge do sentido moderno da burocracia, segundo a caracterizagio we- beriana. A selegao meritocrévica estava vinculada a formagio intelectual dos escolhidos ¢ aos lagos sociais que tinham entre si, no a um modelo institucional de buroctacia, tornando 0s altos funcionarios piblicos do Impétio diferentes dos daspianos criados por Vargas, como veremos de- pois. Além disso, por vezes esses burocratas defendiam posiges moder- nizadoras, como a aboligio, porém, eles nio propunham um novo tipo de Estado e de administragao publica para transformar a realidade social da qual advinham: uma sociedade extremamente desigual. Havia na verdade uum confliro entre algumas de suas ideiase suas posigdes sociais prévias ‘Também é preciso relativizar o poder dessa burocracia imperial. Boa parte das fungdes ditas estatais eram realizadas por entes privados, como 4 Guarda Nacional, principal instrumento de garantia da ordem piblica, que congregava mais de 600 mil homens na década de 1870, a0 passo que todo o funcionalismo, nessa mesma época,estavaem torno de 80 mil pes- soas (Carvalho, 2003:158). Em poucas palavras, o modelo centralizador, com uma pequena elite de mérito, no chegava aos recOnditos do pais, Vale ressaltar que naquele momento as administragées piblicas pelo mundo afora ainda eram igualmente marcadas por fortes tragos patrimo- nialistas. As primeiras reformas de sentido burocritico-weberiano come- , ‘A FORMAGEO D8 BUROCRACIA BRASILEIRA TIC NO BRASIL de forma negativa) os resultados das politicas piblicas. Do ponto de vista de nossa trajet6ria administrativa, descentralizar foi uma decisao acerta- dda, mas precisam ser criadas algumas condigées para potencializé-ta, pois ainda ha uma enorme fragilidade politico-administrativa na maioria dos municipios e em grande parte dos estados brasileiros. Nio obstance as qualidades das medidas em prol da profissionaliza- sio do servigo piblico previstas na Constituigio de 1988, parte dessa legislacio resultou, na verdade, em aumento do corporativismo estatal, e nao na producio de servidores do piiblico, para lembrar a origem da palavra (Longo, 2007). Os equivocos desse processo comegaram com a conquista de estabilidade por milhares de funciondrios que nao haviam prestado concurso pitblico, Ademais, foram criadas falsas isonomias (como a incorporagio absurda de gratificagées ¢ beneficios) e legisla- ‘98es que tornaram a burocracia mais ensimesmada e mais distance da populagio — exemplo claro disso foi a no regulamentagio do direito de greve, que na pritica se tornou irrestrito, prejudicando basicamen- te 0s mais pobres. Por fim, estabeleceu-se um modelo equivocado da previdencia publi injusta pelo prisma social. ‘A soma desses aspectos com @ crise fiscal do Estado redundou, na década de 1990, num cendrio administrativo em que 0 maior incentivo , tornando-a invidvel do ponto de vista atuarial € a0 fancionario publico estava no final da carreira — a aposentadoria integral —, enquanto seus salérios minguavam e crescia a parcela das gratificagées no rendimento, as quais dependiam mais da forsa politica de cada setor do que do mérito medido por avaliagGes de desempenho. Pouco a pouco, a opiniao pablica percebeu que a Constituigio de 1988 nao tinha resolvido uma série de problemas da administracao publica brasileira. Essa percepsio infelizmente foi transformada, com 4 era Collor, em dois riciocinios falsos e que contaminaram 0 debate puiblico: a ideia de Estado minimo eo conceito de marajés. As medidas tomadas nesse periodo foram um desastre. Houve o desmantelamento de diversos setores ¢ politicas piiblicas, além da redugio de atividades estatais essenciais, Como 0 funcionétio piiblico foi transformado no bode expiatério dos problemas nacionais, disseminou-se uma sensagio de desconfianga pot toda a miquina federal, algo que produziu uma l6- sgica do “salve-se quem puder”, Foi nesse contexto que, patadoxalmente, se constituiu um regime juridico unico extremamente corporativista. 0 iirdnico dessa histéria burlesca de Collor é que, em nome do com- bate aos marajis a0 “Estado clefante’, seu governo foi marcado por uma ampla corrupgio e pela tentativa de usar 0 poder estatal para ampliar os tenticulos privados de seu grupo politico. ‘Apés o interregno do governo Itamar, que chegou a produzir docu- menos com diagnésticos importantes sobre a situagéo da administragio publica brasileira (principalmente o trabalho organizado por Andrade e Jaccoud, 1993), mas que nio teve grande iniciativa reformista, a gestio do presidente Fernando Henrique Cardoso foi bastante ativa. Entre os seus pilares, estava a criagéo do Ministério da Administragio ¢ Reforma do Es- tado (Mare), comandado pelo ministo Bresser-Pereira. Sua plataforma foi ctigida a partir de um diagnéstico que ressaltava, sobretudo, o que havia de ais negativo na Constituicéo de 1988, ¢ apoiava-se fortemente no estudo ¢ tentativa de aprendizado em relacio a experiéncia internacional recente, ‘marcada pela construgio da chamada nova gestio publica. Bresser foi pionciro em perceber que a administragao publica mundial passava por grandes mudangas¢ las seriam necessérias igualmente no Bra- sil, mas nem sempre ele soube traduzir politicamente tais transformagoes &s peculiaridades brasileiras. Esse diagndstico foi exposto de forma clara e profunda no livro Reforma do Estado para a cidadania (1998). Vale ressaleat 0s principais avangos obtidos pela chamada Reforma Bresset, Em primeico lugar, a maior mudanga realizada foi, paradoxal- mente, a continuasio ¢ aperfeigoamento da civil service reform. Howe tuma grande reorganizacio adminiscrativa do governo federal, com des- taque para a melhoria substancial das informag6es da administragio pu- blica — antes desorganizadas ou inexistentes — ¢ o fortalecimento das carteiras de Estado. Um niimero importante de concursos foi realizado e | FORAGHO OA BUROCRACIA BRASILEIRA POLITICA NO BRAS + ROCRA a capacitagio feita pela Enap, revitalizada. Em suma, o ideal meritocra- tico contido no chamado modelo weberiano no foi abandonado pelo Mare; 20 contririo, foi aperfeigoado. ‘No tema da profissionalizagio, é possivel ver uma continuidade aper- feigoada da Reform: Bresser em relagio is propostas da Constituigio de 1988, Na verdade, noutros aspectos, como a descentralizagio e a demo- cratizagio, também hé mais continuidades do que descontinuidades. £ importance frisar ese argumento, pois parce do debate enxerga apenas as diferengas entre estes dois marcos reformistas, normalmente para marcat tum dos lados como 0 “melhor” ou o “progressista” em relagio 20 outro, As divergéncias da Reforma Bresser em relagao & Constituicao de 1988 nao se relacionam com 0 espirito mais profundo da Carta Constieucio- nal, Elas se concentram em dois pontos. O primeiro refere-se as formas conporativistas e burocratizantes que foram incorporadas ao capiculo da administragio publica, Além disso, 0 modelo do plano ditetor estabele- ceu um didlogo coms experiéncias recentes de reforma, a0 passo que os constituintes privilegiaram a discussio sobre os problemas da trajevoria hist6rica do Estado brasileiro. © campo das eriticas & Constituigao de 1988 fica claro nas Emendas n# 19 € 20, Essas medidas propostas pela Reforma Bresser definiram te- tos para o gasto com funcionalismo, alteragbes no cariter rigido e equi- vocado do regime juridico tinico, introdugio do principio da eficiéncia entre 0s pilares do discito administrativo c a maior abertura para o con- trole do Estado pela sociedade. Tais mudangas constivuiram-se em pegas essenciais na criagao de uma ordem juridica que estabeleceu parametros de restrigio orgamentitia, de otimizagio das politicas ¢ democratizagio da gestio publica, O ministro Bresser também foi responsivel por um movimento refor- 1ista menos palpvel em eermos legislativos, e mesmo de dificil mensu- ragio, pois tem efeitos mais de longo prazo. Ele se empenhou obstinada- mente na disseminagio de um rico debate no plano federal e nos estados sobre novas formas ée gestdo, fortemente orientadas pela melhoria do de- sempenho do setor pitblico. Nesse sentido, a existéncia do plano diretor como diretriz. geral de mudangas teve um papel estratégico. Esse projeto foi essencial pata dar um sentido de agenda As agbes, ultrapassando a ma- nifescagio normalmente fragmentadora das boas iniciativas de gestio. [A partir da observasio das experiéncias recentes de reforma da ges- tao publica no plano internacional, Bresser se apoiou numa ideia mo- bilizadora: a de uma administragio voltada para resultados, ou modelo getencial, como era chamado & época. A despeito de certas mudangas institucionais requeridas para se chegar a esse paradigma nao terem sido aprovadas, houve um “chogue cultural”, Os conecitos subjacentes a essa visio foram espalhados por codo o pais, com impacto muito grande para os estados ¢ municfpios, que produziram uma sétie de inovagdes governamentais nos iltimos anos. ‘Ademais, a Reforma Bresser elaborou um novo modelo de gestio, que propunha uma engenharia institucional capaz de estabelecer um espago piiblico nao estatal. As organizagées sociais (OSs) e as organizagées da sociedade civil de interesse piblico (Oscips) sio herdeiras desse movi- mento — s6 nos governos estaduais, ha cerca de 70 OSs atualmente. O espitito dessa ideia pode ser visto, hoje, nas chamadas parcerias pitblico- privadas (PPPs). Nao obstante a inovagao conceitual, tais formas deram mais certo nos estados do que na Unio, sofrendo no plano federal uma enorme resisténcia ao longo da gestao do ministro Bresser-Pereira. Para entender os problemas ¢ fracassos da Reforma Bresser, impor- tante analisar o contexto em que ela foi realizada." Em primeiro lugar, © legado extremamente negativo deixado pela era Collor, perfodo em gue houve um desmantelamento do Estado ¢ 0 servigo publico fora des- prestigiado. Por conta disso, quando as primeiras propostas da gestio Fernando Henrique Cardoso foram colocadas em debate, grande parte da 10 Sobre o procesto deciséro envolvendo a eeforma da gestio pblica no periodo Breser, consulta também os excelentestrabalhos de Rezende (2004), Martins (2002) ¢ Costa (2002), AFORIAGKO.OA BUROCRACIA BRASILEIRA 62 BUROCRACIA E POLTICR NO BRASH reagao adveio da ideia de que reformar o Estado significaria necessariamen- te seguir o mesmo ciminho “neoliberal” trilhado pelo presidente Collor. © termo reforma do Estado, no fundo, foi ideologizado na disputa politica ¢ na produgio académica, em boa medida como resultado deste legado ini- cial da década de 1990, Criou-se, aqui, um path dependence negativo em relagio & reforma administrativa Um segundo aspecto que influenciou o debate foi o histérico das reformas administrativas no Brasil. Tivemos duas grandes ages nesse sentido, ambas em perfodos autoritérios: 0 modelo daspiano e o Decreto- Lei n® 200. De tal forma que nao tinhamos uma experiéncia democritica de reformismo, baseado no debate, na negociagio ¢ num processo deci- sério menos concentrador. Essa inexperiéncia das elites sociais e polticas brasiciras no barrou a reforma como um todo, mas foi um empecilho para parte de suas proposigbes. Mas o entcndimento da proposta Bresser depende da andlise de um ter- cciro aspecto balizador do debate e da luta politica nos anos FHC. Trata-se da prevaléncia da ecuipe econémica e de seu pensamento na logica do go- vemno Fernando Hearique. Obviamente que o sucesso inicia da estabiliza- «ao monetétia possbilitou um avango na discussio reformista, afora ter in- cluido demandas importantes de eransformagio do Estado, como a agenda previdenciitia, Ademais, nao havia uma incompatibilidade natural entre 0 ajuste fiscal ¢ o Plano Dirctor da Reforma do Aparelho do Estado, O que houve, contudo, foi uma subordi «io do segundo tSpico em relagio a0 primeiro. Isso ficou bem claro na discussio da Emenda Consticucional n® 19, na qual o aspecto financeiro sobrepujou o gerencial. A visio economicista estreita da equipe econdmica barrou varias ino- ‘ages instituciona‘s, como a maior autonomia as agéncias, dado que ha- via o medo de perder 0 controle sobre as despesas dos drgiios. Mas havia ‘outras resisténcias politicas, vindas primordialmente do Congresso. Os parlamentares temiam a implantagio de um modelo administrative mais transparente e voltzdo ao desempenho, pois isso diminuiria a capacidade de a classe politica influenciar a gestio dos érgios piiblicos, pela via da manipulagio de cargos verbas. Ademais, também havia sendes no cleo central do governo, sob a influéncia do ministro chefe da Casa Clévis Carvalho, o que levou 0 Palicio do Planalto a nio apostar numa reforma administrativa mais ampla, Nesse contexto, o Mare nao teve a capacidade de coordenar 0 conjun- to do processo de reforma do Estado, O melhor exemplo de um tema que escapou ao alcance da Reforma Bresser foi o das agéncias regulatérias, ‘montadas de forma completamente fragmentada ¢ sem uma visio mais geral do modelo regulador que substituiria o padrio varguista de inter- vvengio estatal. O fracasso dessa estraégia ficou claro, por exemplo, no episddio do “apagio’, que teve grande relagio com a génese mal resolvida do marco regulatério no setor elétrico. fato € que muitas alteragdes importantes no desenho estatal e nas politicas piiblicas sob o governo FHC passaram ao largo da agenda da .gestio publica proposta pelo ministro Bresser-Pereira. Nao se trata de di- zet que as ideias colocadas pelo plano diretor estavam todas corretas, 0 que nao ¢ verdadeiro, Mas ¢ preciso fazer com que a agenda de reforma da gestio publica tenha um cardter transversal, capaz de estabelecer um novo patadigma administrativo ao pais — e isso 0 projeto de Bresser pro- porcionava em maior medida do que a visio da equipe econdmica. [Nio ha diividas de que as condligbes politicas prejudicaram a Reforma Bresser. Contudo, cla também continha erros de diagnéstico. Um deles se relaciona com 0 conceito muito restrito de carreras estratégicas de Estado, tanto para o governo federal como parao contexto federativo. Ao delimicar ‘o nticlco estratégico em poucas fungées governamentais, basicamente liga- das diplomacia, as finangas piblicas, Area juridicae carrira de gestores governamentais, o projeto da Reforma Bresser deixou de incorporar outros setores essenciais da Unio, fundamentais para que la atue como regulado- ra, avaliadora ¢ indutora no plano das relagées intergovernamentais. Dois exemplos revelam bem o problema da definigéo restrita feita ppelo plano diretor: a fungio de defesa agropecuaria ea tarefa de protegio do meio ambiente, que ficaram de fora da proposta original. No primei- 6 A FoRMAGKO OMB No BRASIL ro caso, como ficou claro no episddio da febre aftosa, o governo fede- ral tem um papel importante pata garantir uma das principais molas da economia brasileira, 9 setor agropecudrio. Jé a questéo ambiental é um bem piblico estratégico para o desenvolvimento brasileiro, ¢ os governos subnacionais, especialmente na regio amazénica, nio tém condigdes de resguardé-la sozinhos. ‘Além disso, a definisio de carreira estratégica valida para a Unio no deve ser 2 mesma para os governos estaduais e municipais, uma vez que as fungées bisicas sio bem distintas. Néo obstante essa incorregao, cabe frisar que a Reforma Bresser tinha toda a razio em atwar em prol de uma burocracia estratégica, de modo que o micleo bisico precisa ter um status difetenciado em relagio 20 restante do funcionalismo, como tem ocorrido em todo o mundo, Assim, certas fungées que nio constituem 0 niicleo do Estado podem ser realizadas por funcionstios terceirizados ou podem ser repassadas para entes privados, a0 passo que as atividades essenciais preci- sam de um corpo meritocritico constantemente capacitado ¢ com maior estabilidade funcional. E por essa raz4o que a nogio de emprego puiblico, regido pela CLT e diferente do modelo estatutétio (necessirio para as car- reiras estratégicas), deve ser resgatada da maneira que fora enunciada pela Emenda n° 19, Cabe Srisar que isso nao tem nada a vet com 0 conceito de insulamento bucocritico, porque nio se pretendia “insular” tal burocracia, ‘mas estabelecer mecanismos diferenciados de controle para o conjunto do aparato estaral, aumentando a accountability. ‘Um segundo erro de diagndstico da Reforma Bresser foi estabelecer, em boa parte do debate, uma oposigio completa entre a chamada administra «io burocritica eas novas formas de gestio. Essa visio erapista 6, em pri- _meiro lugar, contraproducente, dado que gera um atrito desnecessério com setores da burocracia estraégica que poderiam ser conquistados mais facil- mente para o processo de reformas. Além disso, a perspectiva dicotomica levaa crer que “uma capa substitui a outra’, Ao contratio, rata-se mais de ‘um movimento dialé:ico em que hi, simultaneamente, incorporagoes de aspectos do modelo weberiano e criagio de novos instrumentos de gestio. Desse modo, a nova gestéo piblica tem uma série de peculiatidades «que dizem respeito A necessidade de se ver instrumentos gerenciais ¢ de- mocriticos novos para combater os problemas que o Estado enfrenta no mundo contemporineo. Se o formalismo e a rigidez. burocratica devem ser atacados como males, alguns alicerces do modelo weberiano podem, porém, constituir-se numa alavanca paraa modemnizagio, principalmente em prol da meritocracia ¢ da separagio clara entre 0 piblico eo privado, Em stuma, a Reforma Bresser nio teve forga suficiente para sustentar uma reforma da administragio piblica ampla ¢, principalmente, conti- rua. O legado negativo do perfodo Collos, a pouca importincia dada 0 tema por parte do niicleo central do poder ¢ as resisténcias da fea econdmica criaram obsticulos 20 projeto do plano diretor. Nao se pode esquecer, ainda, da oposigio perista& reforma, movida pelo peso do cor- porativismo dentro do partido e por uma estratégia de tachar qualquer reforma da era FHC como “neoliberal”. Além disso, a sociedade estava fortemente mobilizada pelas questées da estabilidade monetiria e da res- ponsabilidade fiscal, eos principais atores politicos e sociais nao deram o mesmo statues ao tema da gestdo piblica. ‘A teforma da gestéo piiblica, ademais, enfrentou um problema estru- tural: boa parte do sistema politico tem um célculo de carreira que bate de frente com a modemizagio administrativa. Profissionalizar a burocra- \dicadores sio agdes. que reduziriam a interferéncia politica sobre a distribuigdo de cargos © cia e avalié-la constantemente por meio de metas ¢ vverbas piiblicas. Essa situasio s6 pode ser mudada com a conscientizagio dasociedade e de uma clite da classe politica sobre os efeitos negativos do nosso “patrimonialismo profundo" O segundo governo FHC, mesmo tendo incorporado algumas con- uistas da Reforma Bresser, comegou com a extingio do Mare e foi marca- do, na maior parte do tempo, pelo empobrecimento da agenda da gestio publica. Decerto que os avangos na érea fiscal representavam continuida- decom as reformas anteriores. Também houve inovagbes vinculadas a sis- temética de planejamento, centradas no plano plusianual (PPA), embora A FORMAGRO.OA BUROCRACIA BRASILEIRE sunoce este tenha avangado mais em termos de programagao orcamentiria do que em termos de programagio das politicas puiblicas — nao por acaso, © PPA hoje funciona mais como um “orgamento plurianual” (“OPA”). De qualquer modo, os primeiros trés anos do segundo mandato foram caracterizados pela austncia de uma estra égia de gestio publica. Um panorama dos caminhos da gestio puiblica brasileira desde a rede- ‘mocratizagio nao pode ficar apenas na dinimica diacronica ¢ cronolégi- ca. Houve uma série de ages inovadoras que nao ficaram circunscritas a um dos periodos governamentais em anilise, Seus impactos, entretanto, foram fragmentados e dispersos, sem que por isso fossem menos impor- tantes. Destaque aqui deve ser dado a cinco movimentos: +o mais importante movimento foi montado em torno da questio fis cal. Ele conseguiu vérios avangos, alguns interligados com a agenda constituinte e outros com a proposta Bresser. © seu corolétio foi a aprovagio da Lei de Responsabilidade Fiscal. Na verdade, essa coali- 20 trouxe enormes ganhos de cconomicidade ao Estado brasileiro, mas no teve tanto sucesso no que se refere & eficiéncia (fazer mais com menos). A agenda da eficiéncia vai exigir agdes de gestio pabli- «a, algo que os economistas, membros majoricérios desse grupo, ainda no compreenderam a imporeincia, Para tanto, terio de conhecer me Ihor os mecanismos da nova gestao publica; # 0s governos estaduais, e principalmente os municipais, introduziram diversas novidades no campo das politicas piiblicas. Maior parti cipagio social, ages mais Ageis, ¢, no caso especifico dos estados, a expansio dos centros de atendimento integrado, uma das maiores te- volugées na administragéo publica brasileira contemporinea. Mesmo assim, hd uma enorme hetcrogeneidade entre esses niveis de governo, com uma grande parcela deles ainda vinculada 20 modelo burocritico tradicional ou, pior,a formas patrimoniais — ou ainda a uma mistura estranha, mas comum, de ambos 0s modelos; + ocorreram também diversas inovagées nas politicas piblicas, particu- larmente as vinculadas 8 étea social, Mecanismos de avaliagio, formas de coordenagao administrativa e fnanceira, avanco do controle social, programas voltados & realidade local e, em menor medida, ages in- tersetoriais aparecem como novidade, Saiide, educagio ¢ recursos hi- dricos constituem as dteas com maior transformagio. E bom lembrar que uma das politicas mais interessantes na érea social, os programas de renda minima acoplados a instrumentos criadores de capacidade cidada, teve origem nos governos subnacionais ¢ no na Unido; ‘© constituiu-se uma coalizio em torno do PPA eda idea de planejamen- to, nao na sua versao centralizadora e tecnocratica adotada no regime militar, mas sim, segundo uma proposta mais integradora de dreas a partir de programas ¢ projetos. Embora o PPA esteja mais para um “OPA” na maioria dos governos, alguns estados trouxeram inovag6es importantes, como a regionalizacio e a utilizagio de indicadores para nortear o plano plurianual; + talveraagéo reformista mais significativa na gestio pablica brasileira ce- nha sido o governo eletrénico, Impulsionado pela experiéncia do gover- no estadual de Sao Paulo, ele se espalhou por outros estados, capitais ¢ governo federal. Sua disseminagio é impressionance. Seus resultados io cexcelentes em termos de organizacio das informagSes. Mais importante ainda, a tecnologia da informagio tem levado & redugao dos custos, bem como ao aumento da transparéncia nas compras governamentais — re- duzindo o potencial de corrupgao. O ponto em que houve menor avan- ¢0 do governo elettdnico é exatamente na maior interatividade com os cidados, em prol da maior accountability. Conclusao: a administracao publica atual governo Lula continuow uma série de iniciativas advindas da experi- éncia anterior da modemnizagio do Estado brasileiro, particularmente no reforgo de algumas carrciras, no campo do governo eletrdnico e na nova moldagem que deu & Controladoria Geral da Unido, hoje um importante 67 | FORMAGHO OA BUROCRACIA BRASILEIRA instrumento no combate a ineficiéncia ¢ @ corrupgao. Além disso, apro- veitou sua inspiragio na democracia participativa para discutir mais ¢ melhor o PPA com a sociedade, em varias partes do Brasil, realizando um avango no campo do lanejamento. Sé que a experiencia petista no plano local, com virios casos de sucesso, tem sido menos aproveitada do que se esperava, infelizmente. Claro que ¢ dificil avaliar um perfodo governa- mental que ainda no acabou, mas alguns pontos podem ser ressaltados. © ponto mais visvel da presidéncia Lula no campo da administragio publica rem sido, até agora, sta incapacidade de estabelecer uma agenda em prol da reforma da gestéo piblica. Interessante notar que inovagdes administrativas ocorreram em varias politicas pitblicas, como no Bolsa Familia ¢ nas propostas da rea educacional, com instruments de mo- nitoramento ¢ avaliacio bastante avangados. Porém, tais avangos nao se espalham para todo 0 governo, cuja fragmentagio ¢ um obsticulo & mo- dernizagio, A pior caracteristica do modelo administrativo do governo Lula foi © amplo loreamento dos cargos piiblicos, para virios partidos e em di- versos pontos do Executivo federal, inclusive com uma forte politizagao da administrago indireta e dos fundos de pensio. Esse processo nao foi inventado pela gestio petista, mas sua amplitude e vinculagio com a corrupgio surpreendem negativamente por conta do histérico de luta republicana do Partido dos Trabalhadores. Se houve algo positivo na ctise politica de 2005 é que, depois do conhecimento pelo grande pi- blico do patrimonialismo presente em varios érgios da administragio direra e em estatais, tornou-se mais premente o tema da profissionaliza- ao da burocracia brasileira. ‘Ao mesmo tempo que abriu as portas da administragao publica & politizagio, 0 governo Lula deixa como legado positive aperfeigoa- mento de alguns importantes mecanismos de controle da corrup¢ As ages da Policia Federal , prineipalmente, 0 trabalho da Controla- doria Geral da Unio io inegiveis avangos da gestao petista que devem ser definitivamente ircorporados pelo Estado brasileiro. Outra experiéncia bem-sucedida no campo da gestio piblica no governo Lula se deu no plano federativo, representada por duas ages: 9 Programa Nacional de Apoio Modernizacio da Gestio e do Pla- nejamento dos Estados « do Distrito Federal (Pnage) ¢ 0 Programa de ios Brasi- Modernizagio do Controle Externo dos Estados ¢ Munici cizos (Promoex). Esses projetos tm como objetivo modernizar a ad- ministrago piblica das instancias subnacionais, particularmente no nivel estadual." © Phage ¢ 0 Promoex nao sao os primeiros programas de modesniza- ‘¢o das instituigbes subnacionais comandados pelo governo federal. No governo FHC houve o avango do Programa Nacional de Apoio & Admi- nistragio Fiscal para os Estados Brasileiros (Pnafe), que teve um carver pioneiro no auxilio aos governos estaduais na drea financeira. No entanto, 1 dois programas supracitados sio diferentes em razio de tratarem basi- camente da temitica da gestio publica. Depois de duas décadas de refo mas nas quais a redugio do aparato e dos gastos estatais constituit o fio condutor do processo, © Phage ¢ o Promoex priorizaram a reconstrugio da administragZo pablica em suas varidveis vinculadas ao planejamento, 205 recursos hummanos, & sua interconexio com as politicas publicas e a0 atendimento dos cidadaos. Os resultados dos programas Pnage/Promoex nio podem ser avalia- dos ainda porque sua implementagéo est truncada — em grande parte, por conta da miopia fiscalisea da area fazendria. Mesmo assim, vale des- tacar trés qualidades do projeto. Em primeiro lugar, a proposta de um programa nacional para a heterogénca federagio brasileira, fazendo com que a Unio realize o seu papel de indutor de mudangas, Uma segunda qualidade esta vinculada & realizagio de um amplo diagnéstico antes de propor modelos fechados aos estados. Dessa maneira, evitou-se a légica “olugao em busca de problemas” que alimencou algumas reformas in- 1. Para uaa deserigso mais detalhada desses programas, ver Abrucio (2005b), 69 A FoRMacho Da BUROCRACIA RASILE BUROCRACIA E POLITICA NO BRASIL duzidas pelo governo federal no periodo FHC. Por fim, 0 maior avango do Pnage/Promoex foi construit tais programas por meio de ampla pat- ticipasio e discussio com os estados ¢ tribunais de contas, Esse modelo intergovernamental ¢ interinstitucional é mais participativo ¢ funciona ‘mais em rede do quede forma piramidal, Sua concepgio €a mais adequa- da para implementa: ages administrativas numa federagio, em nitido contraste com a (nefasta) tradicio centralizadora do Estado brasileio. Embora o governo Lula esteja colhendo bons resultados em certas 4ircas de politicas publicas — normalmente porque a variavel gestao tem sido af estratégica — seu avango poderia ter sido bem maior se tivesse implementado uma visio integrada ¢ de longo prazo para a administra- 40 pblica brasileira. Para que os préximos governos tenham maior sucesso nesse terreno, vale destacar quatro pontos que devem ser priori- dade para modesnizar o Estado do século XXI (cf. Abrucio, 2007): + aperfeigoamento da profissionalizacio da burocracia, reduzindo o ni mero de cargos em comissio, criando formas de certificagio dos altos, dirigentes piblicos, aumentando 0 investimento em capacitagio dos servidores piblicos, resolvendo o problema do dircito de greve e, so- bretudo, melhorando a qualidade da burocracia subnacional; + melhoria da cficiéncia estatal, comegando pela reformulagio da lé- gica orcamentiria, hoje marcada pelo engessamento da maior parte das despesas, pelo excessivo poder de contingenciamento dado a Fa- zendac pela faltade um monitoramento efetivo dos gastos piiblicos, regulado por metas. A administragio piblica também pode see mais cficience se ampliar 0 uso do governo cletrdnico apostar na desbu- roctatizagio, voltando 4 agenda de Helio Beltrio, abandonada nos tiltimos anos; + busca de maior efetividade da gestio piblica, orientando-a por in- dicadores e instrumentos de planejamento de curto, médio ¢ longo prazos. Nesse campo, 0 melhor remédio ¢ incorporar boa parte dos instrumentos da gestio por resultados, aos quais seriam acrescentados mecanismos de maior coordenagio inter intra e extragovernamental; «por fim, deve-se continuar no caminho da democratizagao do Esta- do brasileiro, que foi inaugurada pelas reformas realizadas 20 longo da redemocratizagio, inclusive incorporando novos mecanismos, como 0 ombudsman. Ademais, é preciso aperfeigoar a forma como a sociedade controla o poder piiblico, tomando mais efetivos os ins- trumentos de accountability jA existentes, como os conselhos de po- Ifticas piblicas. [A realizagio dessas reformas poderd fazer com que 0 processo de modernizagio da administrasio publica perca grande parte dos vicios presentes em sua trajetéria. Mas, para isso, ¢ preciso ter em mente que a um reformismo mais aberto, democritico melhoria da gestao vai exi «¢ que nao veja na burocracia uma solugio descolada do aperfeigoamen- to do sistema politico. | FORIAGKO DA BUROCRACIA BRASILEIRE

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