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CAPITULO IV A DIMENSAO AMBIENTAL DA TEORIA DA SOCIEDADE DE RISCO Heline Sivini Ferreira’® SUMARIO: 1. Introdugio. 2. Risco: nogées preliminares. 2.1 Pe- rigos ¢ riscos: a sociedade em evolugao? 2.2 Os principais elementos de configuragao da sociedade de risco. 3. As interferéncias da ciéncia e da tecnologia na configuracéo da sociedade de risco. 4. A construgao institucional do risco. 4.1 O exercicio simbélico da ciéncia. 4.2 O uso simbélico da politica. 4.3 A funcao simbélica do direito. 5. A Percep- 40 Piblica do Risco. 6. Conclusao. Referéncias. 1. INTRODUCGAO Dentre as varias propostas que objetivam analisar ¢ compreender a crise civilizacional vivenciada pela modernidade, encontra-se a teoria da sociedade de risco, elaborada pelo socidlogo alem4o Ulrich Beck na década de 1970 e amplamente examinada por varios pesquisadores de diversas 4reas do conhecimento. Trata-se de uma construgio teérica que, ao diagnosticar um estado de crises miltiplas ¢ interconectadas, 2% Professora Adjunta do Curso de Graduagio ¢ do Programa de Pés-Graduagio em Diteito da Pontificia Universidade Catdlica do Parand (PUCPR). Membro do Grupo de Pesquisa ‘Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e Sociedade Hegeménica’ (PUCPR/CNPq) e do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental e Ecologia Politica na Sociedade de Risco (UFSC/CNPq); Diretora de Assuntos Internacionais do Instituto © Direito por um Planeta Verde (IDPV); Coordena- dora Regional da Associagio dos Professores de Direito Ambiental do Brasil (APRODAB/SUL); Membro da Commision on Environmental Law da International Union for Conservation of Nature. email: hsivini@yahoo.com.br 108 serve como substrato para a discussao sobre as realizagées ¢ as limita- cées da sociedade industrial e da propria modernidade. Sua compreen- sto evidencia nao apenas os equivocos que permeiam as nogées de progresso, desenvolvimento e crescimento econémico, mas também a apropriagao da natureza por um mercado que se mostrou indiferente a qualquer forma de degradacéo do meio ambiente. Abaixo, propée-se a andlise da teoria referida a partir da sua dimensio ambiental, pontuan- do-se aspectos que revelam os limites do proprio sistema capitalista de produgio em face de uma crise ecoldgica que ameaga a existéncia da vida na terra. 2. RISCO: NOGOES PRELIMINARES O termo risco é comumente adotado para indicar o prentincio ou indicio de uma ameaga ou perigo. Muito embora seja uma definicao recente, o seu significado evoluiu ao longo dos tempos, acompanhando as transformacées da sociedade. Ainda que a origem do yocabulo nao seja precisamente conhecida, acredita-se que no século XVII a concep- go de risco guardava estreita relagéo com os navegadores que se langa- vam cm aguas desconhecidas 4 procura de riquezas. Havia, portanto, uma equa¢io que considerava perigos incertos ¢ oportunidades espera- das, uma imprecisa nocao de célculo que foi posteriormente fortalecida com a expansao da indistria e do capital. Nos séculos seguintes, 0 ter- mo passou a ser associado as atividades desenvolvidas por banqueiros ¢ investidores ¢, desde entao, parece ter mantido uma estreita relagao com 0 setor econémico. E 0 que afirma Mythen (2004, p. 13) quando considera que “nos tempos modernos, 0 risco permanece firmemente unido ao mundo econémico através de formas de célculo estatistico, especulacao do mercado de valores e aquisicées de empresas. Os merca- dos capitalistas nao podem ser sustentados sem risco [...)””. » Traduzido pela autora: “in modern times, risk remains firmly coupled to the economic world through forms of statistical calculation, stock-market speculation and company acquisitions 109 Na economia, entretanto, 0 conceito de risco parece manter tradi- cionalmente uma certa distancia da nog4o de incerteza. Nesse sentido, Knight (2006) explica que a distingéo pratica entre risco e incerteza encontra fundamento em dois aspectos, quais sejam: probabilidade e resultado. Assim sendo, tem-se: se 0 conjunto de probabilidades é co- nhecido ¢ analisado sob a perspectiva de um resultado desfavordvel, tem-se © risco; em contrapartida, se 0 conjunto de probabilidades é desconhecido ¢ analisado sob a perspectiva de um resultado favordvel, tem-se a incerteza. Por essa razdo, fala-se em risco de perdas — probabi- lidade concreta e resultado desfavordvel — ¢ incerteza de ganhos — pro- babilidade abstrata ¢ resultado favoravel. Na segunda metade do século XX, entretanto, essa distingo sim- plista parece perder o seu carter funcional e, néo mais como elementos dissociados, riscos e incertezas comesam a partilhar 0 mesmo conjunto de probabilidades — desconhecidas. De fato, o risco na sociedade contem- pordnea encontra-se fortemente vinculado 4s nogées de probabilidade € incerteza. Nesse sentido, Jaeger et al. (2001, p. 17) assinalam que a despeito das variagées na utilizagao do termo, algumas caracteristicas uni- ficam o significado do risco. A primeira delas seria a possibilidade de se al- cangar um resultado futuro por meio de agées presentes. A segunda, por stia ver, seria a incerteza, ou seja, 0 risco pressupde nao apenas a possibi- lidade de que um evento possa acontecer, mas também a negagao de que ocorreré com uma certeza previamente estabelecida. Por fim, o impacto sobre valores bumanos surge como tiltima caracteristica. Nesse contexto, considera-se que “nem toda incerteza constitui um risco; [...] 0 risco s6 esta presente na medida em que a incerteza envolve algum atributo [...] que impacta de alguma forma a realidade humana”, Analisado sob essa perspectiva, & possivel perceber que o risco es- tabelece uma vinculacéo com o futuro. Converte-se, portanto, em uma Capitalist markets cannot be sustained without risk [...). % A expressio ‘sociedade contemporinea’ sera aqui utilizada como sindnimo da expressio ‘socie~ dade de risco', ambas se referindo ao estigio atual de evolusio da sociedade moderna. » Traduzido pela autora: “not all uncertainty is risk; [...] risk is present only to the extend that uncertainty involves some feature [..] that impacts human reality in some way’ 110 modalidade de relacéo com 0 tempo ou, como menciona De Giorgi (1994), uma forma de determinagao das indeterminagées do futuro se- gundo 0 medium probabilidadelimprobabilidade. Nesse mesmo senti- do, Luhmann (2006) considera que 0 futuro jd nao é passivel de conhe- cimento, razao pela qual também a sociedade perde os seus parimetros de definigio®. Com isso, uma nova telagao parece estabelecer-se entre 0 futuro ea sociedade, entre as incertezas projetadas em uma dimensio temporal ¢ a propria dimensio social. Como resultado, o futuro passa a ser percebido através da probabilidade: 0 que é mais ou menos provavel ou mais ou menos improvavel. Em tempos presentes, isso significa que 0 futuro se perde como objeto de conhecimento e, consequentemente, as possibilidades de alterd-lo ficam limitadas. Através das nogées de probabilidade, incerteza ¢ futuro, é possivel comegar a entender o significado do risco. No entanto, a formulagao de um conceito especifico parece ser ainda inoportuna. Primeiramente porque a compreensio do risco difere em fungao do tempo e do contex- to em que se apresenta, Em razdo dessa indeterminacio, diferentes for- mulagées do risco tendem a ser articuladas e contestadas entre distintos grupos sociais. Ademais, considerada a natureza multidimensional do risco, uma formulacio tinica poderia tender a generalizacio e, assim, simplificar um conceito cuja natureza ¢ essencialmente complexa. ‘Até mesmo Beck (2000), que percebe o risco sob uma multiplici- dade de lentes, mostra-se resistente 4 ideia de fixar um conceito preciso e determinado. A justificativa, talvez, tenha amparo no fato de que, ao Sobre a relagio entre passado, presente e futuro na sociedade contemporinea, Capella (1998) assinala que, com a crise do progresso, 0 presente revela-se excessivamente diferente do passa- do ¢, por suposto, também do futuro. Diante de processos de transformagio tio acclerados, a experiéncia social vé-se profundamente limitada, Nesse contexto, a tradigéo perde importincia ‘como modelo de orientagio, e o processo de aprendizagem passa a operacionalizar-se por meio do rauma oriundo da nova situacio. Desligada do passado e desencantada com o futuro, a sociedade passa a viver o tempo presente intensamente. Hé uma supervaloriza¢io do presente imediato, e © vazio deixado pelo abandono da esperanca passa a ser preenchido por pequenas excepcionali dades. Formacse, assim, uma sociedade eminentemente consumista cuja consciéncia encontra-se disponivel 8 colonizagio, favorecendo, inegavelmente, 0 crescimento da produgao industrial. faturo descaracteriza-se como tempo prospero e feliz, os projetos de vida sio esvaziados ¢ a impre- visibilidade passa a compor a vida social lll reunir um amplo conjunto de elementos que podem ser analisados sob variadas perspectivas em razdo das circunstancias, 0 conceito de risco esté além de uma formulagio simples e concisa. E o que indica 0 autor nos seguintes termos: [.u] esse conceito refere-se aqueles métodos e praticas através dos guais as futuras conseqiiéncias das decisées individuais ¢ insti- tucionais sio controladas no presente. Nesse sentido, os tiscos constituem uma forma de reflexividade institucionalizada e reve- lam-se fundamentalmente ambivalentes, De um lado, conferem expresso ao principio da aventura; de outro, os riscos fazem sur- gir o questionamento sobre quem se responsabilizard pelas con- seqiténcias, ¢ se as medidas e métodos de precaugao ¢ de controle da incerteza fabricada nas dimens6es do espaco, tempo, dinheiro, conhecimento/desconhecimento, dentre outtas, sio adequadas ¢ apropriadas ou nao” (BECK, 2000, p. xii) Ao lado da probabilidade, da incerteza e do futuro, Beck (2000) atribui mais uma caracteristica ao risco: ¢ resultado de decisées presen- tes. O acontecimento provavel, porém incerto, que se projeta no futuro sob a denominagao de risco é, portanto, uma derivagao de decisoes que se concretizam no tempo presente. No campo da biotecnologia, por exemplo, a manipulacao genética de um animal envolve diversas decisées: decide-se sobre o gene a ser introduzido, sobre o vetor a ser utilizado e sobre a técnica a ser empregada. O préprio ato de mani- pular j4 foi cle mesmo precedido por uma deciséo fundamentada em expectativas. Esse conjunto de decisées envolve probabilidades que sto incertas nao apenas quanto & sua ocorréncia, mas também quanto & sua dimensdo. Em tiltima instancia, portanto, os riscos associados a 3 Tradugio da autora: “this concept refers to those practices and methods by which the fucure consequences of individual and institutional decisions are controlled in the present. In this re- spect, risks are a form of insticutionalised reflexivity and they are fundamentally ambivalent. On. the one hand, they give expression to the adventure principle; on the other, risks raise the ques- tion as to who will take responsibility for the consequences, and whether or not the measures and methods of precaution and of controlling manufactured uncertainty in the dimensions of space, time, money , knowledge/non-knowledge and so forth are adequate and appropriate” 112 um organismo geneticamente modificado séo produto de decisées pré- vias que devem considerar a possibilidade de impactos se manifestarem através dos tempos. Também com o propésito de compreender o significado do risco, alguns autores recorrem A distingao entre risco e perigo. Isso porque, conforme menciona Serrano (2006), isco é um conceito histérico tar- dio introduzido para caracterizar situagdes cuja representagao se fez inadequada pelo emprego de termos como acaso ott perigo. Por essa tazio, 0 tisco como conceito sé pode ser entendido a partir do mo- mento em que é diferenciado do perigo. Nesse mesmo sentido, Leite Ayala (2004) assinalam que 0 conceito de risco é recente ¢ dissocia-se de uma dimensio de justificacao mitica e tradicional da realidade, para aproximar-se de uma dimensio racional fundada nas decis6es huma- nas. De acordo com essa linha de raciocinio, pode-se afirmar que os riscos diferem dos perigos na medida em que identificam uma fase do desenvolvimento da modernidade na qual a interpretagéo das ameacas desvincula-se das causas naturais e intervencées divinas para vincular-se aos processos de tomada de decisées. Essa parece ser também a diferenciagao adotada por Pardo (1999) Analisando a relacao existente entre técnica ¢ natureza, 0 autor consi- dera que os perigos tém causas essencialmente naturais, ou seja, origi- nam-se a partir das variagées do préprio ambiente. Com o propésito de climinar esses perigos, o homem passou a agir sobre 0 meio ¢, em- pregando a técnica como instrumento, fez surgir os riscos. Conclui-se, portanto, que o risco se origina de atividades humanas, enquanto 0 pe- rigo deriva de processos naturais, Sabe-se, entretanto, que a intervengéo do homem sobre a natureza nao se limitou a eliminagao dos perigos ou mesmo dos primeiros riscos criados. As decisées ¢ atividades huma- nas, associadas & inovacao cientifico-tecnolégica ¢ ao desenvolvimento econdmico, continuam a produzir riscos, ¢ estes sio propriamente os frutos da modernidade avangada®, % Expressio utilizada por Beck (19982) para fazer referéncia & segunda modernidade. 113 Seguindo essa mesma linha de pensamento, Beck (2004a, p. 111) considera que 0 risco ¢ produto de escolhas sociais, enquanto o perigo encontra-se vinculado a fatores externos. E segue o autor: “perigo é 0 que nés presenciamos nas épocas em que as ameacas nao podem ser interpretadas como resultantes de decisées humanas”*; em contrapar- tida, os riscos “marcam 0 inicio de uma civilizagéo que pretende tornar previsiveis as conseqiiéncias imprevisiveis das suas préprias decisdes”™. Como se verd adiante, estes conceitos encontram-se presentes na nar- rativa histérica que perfaz 0 caminho desde a sociedade pré-industrial até a sociedade de risco, contextualizando que foi aqui analisado. Por enquanto, convém apenas assinalar que o risco pode ser compreendido como a representagéo de um acontecimento provavel ¢ incerto que se projeta no futuro através de determinacées presentes. Distingue-se do perigo pela sua dimensio racional, ou seja, pelo fato de resultar de ages e decisées humanas. Destaca-se ainda o fato de possuir uma natureza complexa. 2.1 Perigos e riscos: a sociedade em evolugao? Para Beck (1995, 1998a, 1998b, 2002, 2004b), os conceitos de perigo ¢ risco inserem-se em uma ampla estrutura que descreve 0 pro- cesso evolutivo da sociedade ao longo dos tempos. De acordo com essa narrativa, o autor identifica trés fases de evolugdo da sociedade que diferem entre si quanto & caracterizagao do perigo e do risco. Sao cla a sociedade pré-industrial, como pré-modernidade; a sociedade industrial, como primeira modernidade; e a sociedade de risco, como segunda modernidade ou modernidade avangada. Nesse contexto de desenvolvimento histérico, as modificagées na composigao ¢ na orga- » Traduzido pela autora: “danger is what we face in epochs when threats can't be interpreted as resulting from human action". * Traduzido pela autora: “[risks] mark the beginning of a civilization that secks to make the un- foresecable consequences of its own decision foresceable” 114 nizagao do risco, dentre outras significativas transformagées, parecem ter desempenhado um papel essencial no proceso de transigo entre as distintas fases de evolugio da sociedade, realgando decisivamente as suas principais caracteristicas, como se analisard adiante. Conforme menciona Beck (2002, p. 78), a sociedade pré-indus- trial apresenta como traco distintivo os perigos incalculaveis. Fendme- nos como pragas, fome, enchentes e secas eram comumente atribuidos a forcas externas, como os deuses, os deménios ou as forsas da propria natureza. Ainda que houvesse uma no¢4o do risco**, considerado es- tritamente como possibilidade de um acontecimento, tais fenémenos nao cram projetados pela tomada de decisées. Em sentido inverso, constituiam parte inerente do destino coletivo de paises, populagées ou culturas. “Os perigos pré-industriais, néo importa quao grande devastadores, cram golpes do destino que se descarregavam sobre a hu- manidade a partir de fora, sendo atribufveis a um outro”**. No curso do processo de desenvolvimento, essas caracteristicas foram sendo transformadas e a sociedade industrial passou a combi- nar duas espécies de ameagas: os perigos que tipificaram a sociedade pré-industrial ¢ os riscos produzidos pelas agées e decisées humanas. Outrora vinculadas téo somente ao destino, as ameagas passam a agre- gar também a dimensio dos riscos fabricados, ou seja, produzidos pela propria humanidade. Neste estagio, fala-se sobre tiscos calculAveis cujos potenciais efeitos podem ser contidos. Essa idéia de controle racional dos acontecimentos se expande, fazendo surgir uma diversidade de sis- temas de seguro ¢ transformando a sociedade em um grupo de risco previdente (MYTHEN, 2004; BECK, 1998b). Essa relagao que se estabelece entre riscos, sistemas de seguro ¢ so- ciedade parece legitimar 0 modelo de produgao da sociedade industrial, ou seja, os riscos continuam a ser produzidos mas ha um aparato cogni- tivo e institucional que garante o seu controle. Esse processo, considera ** Como jé mencionado anteriormente, 0 conceito de risco é produto da modernidade. Traduzido pela autora: “los perigos preindustriales, no importa cudn grandes y devastadores, eran _golpes del destino que se descargaban sobre la humanidad desde fuera y que eran atribuibles a un otro” 115 Beck (1998b), tem um grande significado politico, pois constitui um momento da histéria no qual a sociedade parece ter desenvolvido meios para lidar consigo mesma, para conter os possfveis efeitos negativos derivados das suas préprias decisées. Olhando em retrospecto, todavia, percebe-se que esse mesmo processo foi responsavel pela conducao da sociedade industrial a um estado de autolimitagao. Tomando a desigualdade social como parimetro de anilise, Beck (1998a) menciona que a sociedade industrial se fundamentou na dis- tribuigdo de bens com base em um principio regulador de escassez. No centro dessa sistematica, existia uma questao: como repartir a rique- za produzida de uma maneira desigual ¢ ao mesmo tempo legitima? Posteriormente, os problemas ¢ conflitos relacionados a repartigéo de riquezas associaram-se a problemas ¢ conflitos relacionados 4 produsio de riquezas. Além do intercimbio de bens, os males oriundos do acele- rado processo de desenvolvimento também passaram a ser distribuidos, © que proyocou uma crise no funcionamento da sociedade industrial. No centro dessa nova sistemética, uma nova questéo: como repartir 08 riscos produzidos sistematicamente pelo processo de modernizacio sem obstaculizar 0 crescimento econémico ou ultrapassar os limites do concebivel e suportavel? O estado de autolimitagao da sociedade industrial, impulsio- nado pelos avancos técnico-cientificos e pelo crescimento econémico, fez nascer a sociedade de risco. Aqui se acumulam novamente os peri- gos € os riscos, estes tiltimos, entretanto, subdividem-se em dois gran- des grupos: os previsiveis ¢ calculdveis ¢ os imprevisiveis e incalculaveis. Isso significa que aos riscos caracterfsticos da primeira modernidade somam-se agora os riscos que vio delinear a segunda modernidade. Nessa perspectiva, assinala-se que a sociedade de risco se origina quan- do os riscos oriundos de agées ¢ decisées humanas rompem os pilares de certeza estabelecidos pela sociedade industrial, minando, como con- seqiiéncia, os seus padrées de seguranca. E acrescenta Beck (1998a): quando hé violagéo do pacto de seguranga, h4 também violagio do pacto de consenso. 116 A wansigao da sociedade industrial para a sociedade de risco, con- sidera Mythen (2004), forca 0 confronto com os limites do modo de producéo capitalista. Se na primeira modernidade os riscos puderam ser aceitos como uma parte necessaria do progresso, na segunda mo- dernidade ja ndo podem ser simplesmente percebidos como aspectos positivos ¢ inevitaveis de um acelerado processo de modernizacéo. A propria variagao da natureza do risco é capaz de evidenciar que uma sociedade estruturada essencialmente sobre o capital ¢ insustentavel sob os mais variados aspectos, destacando-se aqui o ambiental. 2.2 Os principais elementos de configuragéo da sociedade de risco Diante do que foi até entéo analisado, percebe-se que 0 risco é um dos elementos essenciais para a compreensio da segunda modernidade. Isso porque 0 movimento de transi¢io da sociedade industrial para a sociedade de risco tem como matco inicial a natureza diferenciada das ameagas fabricadas. Deve-se mencionar que embora essencial, 0 risco nao é 0 tinico elemento de configuracio da sociedade contemporanea Na verdade, outras transformacées também favoreceram a passagem da G Passage primeira para a segunda modernidad ponto de partida, propée-se a anilise de alguns outros elementos que, . Tendo, portanto, o risco como considerados essenciais 4 pesquisa que se pretende desenvolver, confe- tem sustentagdo & teoria da sociedade de risco. Oportunamente, assina- la-se que alguns dos aspectos a serem aqui abordados sera retomados a partir de discussées anteriores. Dentre os principais elementos que configuram a sociedade de ris- co, destaca-se inicialmente as transformagées ocorridas na relagdo entre risco, espago e tempo. No entender de Beck (2002, 2006), a sociedade in- dustrial encontrava-se essencialmente vinculada a fendmenos limitados em fungao do tempo e do espaso geografico. Uma vez iniciado 0 pro- cesso de transic4o para a sociedade de risco, fendmenos diferenciados foram sendo agregados aqueles existentes ¢, como resultado, surgiram 117 novas modalidades de riscos que transcendem os limites temporais € espaciais até entao estabelecidos. Isso significa que os riscos da segunda modernidade ja nao podem ser contidos em espagos geograficos especi- ficos ¢ determinados. De igual maneira, seus possiveis impactos perdem a caracteristica da instantaneidade, podendo afetar geragées presente e futuras. Nesse mesmo sentido, Espinosa (2001) assinala que os tiscos oriundos do processo de modernizacio constituem ameacas ubiquas globais, nao sendo facilmente identificados no tempo ¢ no espago. Como exemplo de tiscos transfronteitigos ¢ transtemporais tem-se as mudangas climéticas decorrentes do aquecimento global. De acordo com 0 Painel Intergovernamental sobre Mudanga do Clima (IPCC), © aquecimento do sistema climético é um fendmeno inequivoco. “A atmosfera ¢ 0 oceano aqueceram-se, a quantidade de neve ¢ de gelo diminuiu, ¢ 0 nivel do mar aumentou”*” (IPCC, 2014, p. 02). Nesse processo, a influéncia do homem jé nio pode ser contestada. “As emis- sdes antropogénicas de gases de efeito estufa aumentaram desde a era pré-industrial, impulsionadas em grande parte pelo crescimento econd- mico ¢ populacional, sendo atualmente as mais elevadas da histéria’** (IPCC, 2014, p. 04). E os impactos sobre os ecossistemas terrestres, que ultrapassam fronteiras e geracées, tendem a aumentar se nada for feito em tempo habil. De acordo com o IPCC (2014, p. 08), “a conti- nuagio das emissées de gases de efeito estufa causaré mais aquecimento ¢ mudangas de longa duragéo em todos os componentes do sistema climatico, aumentando a probabilidade de impactos severos, pervasivos ¢ irreversiveis sobre as pessoas ¢ os ecossistemas”>”. O segundo elemento a ser considerado refere-se & propria natureza do risco. Mencionou-se anteriormente que as ameacas caracteristicas da Iraduzido pela autora: “Ihe atmosphere and ocean have warmed, the amounts of snow and ice have diminished, and sea level has risen”. » Tiaduzido pela autora: “Anthropogenic greenhouse gas emissions have increased since the pre industrial era, driven largely by economic and population growth, and are now higher than ever”. » Traduzido pela autora: “Continued emission of greenhouse gases will cause further warming and long-lasting changes in all components of the climate system, increasing the likelihood of severe, pervasive and irreversible impacts for people and ecosystems" 118 segunda modernidade podem ser compreendidas como representagdes de um acontecimento provavel ¢ incerto que se projeta no futuro como reflexo de decisées presentes. Especificamente na segunda modernidade, além de adquirirem mobilidade temporal e espacial, essas representacées de acontecimentos futuros também se redefinem em esséncia. De acordo com Beck (2002), os riscos decorrentes das novas tecnologias, a exemplo da energia nuclear da biotecnologia, revelam um potencial de destruigio historicamente desconhecido, o que sugere a inexisténcia de instituicées adequadamente preparadas para administrar o pior acidente imagindvel, assim como demonstra a debilidade da ordem social contemporanea para garantir sua constituigao perante um cendrio catastréfico. Em se tratando da energia nuclear, amplamente abordada como alternativa para reduzir a emissio de gases poluentes responsaveis pelo aquecimento global, seus riscos s4o evidentes, a despeito dos varios dis- cursos sobre a normalidade nuclear’. Conforme assinala Smith (2006), as plantas de energia nuclear poderao desencadear sérias ameagas, prin- cipalmente se desenvolvidas em larga escala. A ocorréncia de acidentes catastréficos como Chernobil (1986) ¢ Fukushima (2011), a dificulda- de de se manusear os residuos radioativos de vida longa e a possibilida- de de proliferagao de armas nucleares“' sio apenas alguns dos exemplos a serem considerados. E acrescenta 0 autor: para que a energia nuclear possa contribuir de forma significativa na redugéo das emisses de did- xido de carbono, seriam necessarios entre 1000 e 2500 reatores operan- do globalmente até a metade do século XXI. Isso significa a criag4o de uma nova planta a cada uma ow duas semanas No que se refere ao emprego da biotecnologia, pode-se afirmar que 05 riscos envolvidos no isolamento ¢ na recombinacao de genes so “ CE IRWIN, Alan; ALLAN, Stuart; WELSH, lan. Nuclear risks: three problematies. In: BECK, Ulrich; ADAM, Barbara; LOON, Joost Van (orgs.). The risk society and beyond: critical issues for social theory. London: Sage Publications, 2000, ® De acordo com Smith (2006), cenério de crescimento mencionado exigiria que a capacidade mundial de enriquecimento de urinio aumentasse algo em torno de duas a seis vezes. Apenas 1% dessa capacidade seria suficiente para fornecer uranio enriquecido para aproximadamente 210 armas nucleares por ano, 119 também diversos. De acordo com Ho (1999a), a nova era biotecnoldgi- ca tem comprometido a integridade da ciéncia, reduzido os organismos a mercadorias, intensificado a exploracéo do meio ambiente, incentiva- do a biopirataria, ameagado a satide dos seres vivos ¢ debilitado a diver- sidade bioldgica. Afora essas conseqiiéncias, nao se pode desconsiderar a renovacao do interesse militar por armas biolégicas. Nesse sentido, Rifkin (1999, p. 97-98) considera que: ..] as novas tecnologias podem ser utilizadas para programar genes, de modo a torné-los infecciosos e aumentar sua resistén- cia a antibiéticos, sua viruléncia e estabilidade no meio ambien- te. E possivel inserir genes letais em microorganismos inécuos, obtendo como resultado agente biolégicos que 0 corpo accita como sendo inofensivos ¢ aos quais nao reage. [...] Os cien- tistas afirmam poder clonar toxinas scletivas, projetadas para climinar grupos étnicos ou raciais especificos, cuja composi¢ao genotipica predisponha para determinados padroes de doenca. A manipulacéo genética pode ainda ser utilizada para destruir certas variedades ou espécies de culturas agricolas ¢ animais do- mésticos, se a intengdo for prejudicar a economia de um pais Como terceiro elemento a ser analisado, tem-se a faléncia dos pa- droes de seguranca. Em uma sucinta descrigéo da sociedade contem- porinea, Beck (1998b) considera tratar-se de um modelo no qual os riscos, criados durante 0 acelerado processo de modernizag4o, tornam- se predominantes ¢ jé néo podem ser adequadamente controlados pelas instituigdes que serviram & sociedade industrial. Percebe-se que, ao lado de riscos intensificados ¢ legitimados por um modelo de desenvolvi- mento limitado, surge também o desafio de conservar os padroes de seguranga que conferiram estabilidade a primeira modernidade. Como a manutengio do status quo nao se mostra possivel, a sociedade de risco acaba por reproduzir a sociedade industrial e confrontar-se automatica- mente com os seus limites. A fragilidade dos sistemas de seguranga ¢ a inconsisténcia dos mecanismos de controle tradicionalmente adotados pela sociedade 120 industrial convertem-se em caracteristicas fundamentais da sociedade de risco que, posteriormente, yao desdobrar-se no conceito de irres- ponsabilidade organizada’, Por enquanto, convém apenas assinalar que os riscos caracteristicos da primeira modernidade se baseiam em relagées de definicdo® estabelecidas através de procedimentos lineares. A existéncia do risco ou a probabilidade de sua materializagao pode ser previamente estimada ¢ as medidas apropriadas aplicadas, daf porque se falar em riscos previsiveis e calculéveis. Na segunda modernidade, entretanto, essas relacées de definicao simplistas, indispensdveis & com- preens4o e ao dominio dos ambientes de risco, submergem & complexi- dade das novas ameacas. E o que afirma Beck (2002) quando considera que estas novas ameacas invalidam as estruturas de célculo dos riscos na medida em que, primeiramente, as agées preventivas revelam-se insuficientes dian- te da possibilidade de grandes desastres, interferindo negativamente na nogio de seguranga e no controle antecipado dos resultados. Ademais, diante de riscos globais ¢ méveis cujos efeitos sio muitas vezes irrepa- rdveis, a tradicional sistemética da indenizagdo monetéria parece tor- nar-se inconsistente. Por fim, ao adquirir uma natureza diferenciada complexa, 0 proprio risco desvincula-se das suas concepgées origindrias e, como resultado, tem-se abolidos os padres de normalidade, as bases de célculo e os procedimentos de avaliacao até entéo implementados. Percebe-se, portanto, que a sociedade de risco se converte em um mo- delo de organizacéo social nao asseguravel no qual, de forma paradoxal, a protecéo diminui 4 medida em que aumentam os riscos. Parece oportuno assinalar que, muito embora a sociedade de ris- co reste como conseqiiéncia da sociedade industrial, 0 movimento de transigéo de um modelo para o outro ndo constitui precisamente uma escolha. Para Beck (1998b), essa passagem ocorre de forma involunté- ria no curso de um processo de modernizacdo que se tornou auténomo, © Para mais detalhes sobre o fenémeno da irresponsabilidade organizada, cf. item 1.3, © As relagées de definigéo constituem um elemento central na teoria da sociedade de risco. Para mais detalhes, cf. item 1.3, 121 independente e cego as conseqiiéncias indesejadas produzidas de forma re- sidual. Assim sendo, ainda que o risco seja concebido como produto de de- cis6es humanas, deve-se considerar que tais decisées integram um sistema mais amplo que, de forma automatica, se deixa conduzir pelos ideais desen- volvimentistas € economicistas. Comportam-se como engrenagens de uma grande maquina cujo trabalho é impulsionado mecanicamente através da energia. E, como em um ciclo, so estes mesmos riscos, inicialmente cria- dos de maneira desapercebida, que originam os questionamentos sobre a validade dos fundamentos que sustentaram a sociedade industrial. ‘Acessa conjungio de crises miltiplas e interdependentes, comparti- Ihada por todos os povos em diferentes niveis, Beck (1998a, 2002, 2004a, 2006) denomina sociedade de risco global. Essa nogao de globalidade, o quarto ¢ tiltimo elemento de configuragio da sociedade contemporanea a ser aqui examinado, pode ser traduzida através de riscos cuja capacidade de destruigio acaba por fragilizar algumas das fronteiras erigidas pela huma- nidade. O discurso de coalizoes que emerge a partir de ameagas comuns ¢ potencialmente catastroficas enfraquece o Estado como estrutura auténo- ma de controle sem, contudo, dissolvé-lo como estrutura de poder. Para Beck (2004), a globalidade dos riscos nao significa propriamente o fim do Estado, mas representa o esgotamento de um modelo que se forma a partir de uma rigida concepgao de territério. E segue o autor: “[. os Estados pretendem sobreviver, eles devem cooperar. No entanto, uma porque cooperagio de longo prazo transforma a prépria esséncia da autodefinigao dos Estados” (BECK, 2006, p. 177). De fato, 0s conflitos da atualidade ja nao podem ser enderecados ao modelo de Estado concebido ¢ construido pela primeira moderni- dade. Inicialmente porque, como jé analisado, a natureza catastr6fica “ Para Morin e Kern (2003), nao é possivel descrever uma crise inica ¢ isolada no atual estagio de evolusio da sociedade. De forma diversa, verifica-se a existéncia de uma multiplicidade de crises que se inter-relacionam. Essa diversidade de problemas conduz. 4 nogio de ‘policrise’, ou seja, um. conjunto de crises que se originam e se sustentam mutuamente. Como se percebe, essa nosio também est presente no discurso da sociedade de risco. © Traduzido pela autora: “[...] because states want to survive they have to cooperate. However, long-term cooperation transforms the self-definition of states to their core” 122 dos riscos desestabiliza os padrées de seguranga que outrora conferi- ram estabilidade 4 sociedade industrial. Ademais, porque esas ameacas tornaram-se também globais ¢ jé nao podem ser pensadas através de concepsées estritamente nacionalistas. Sob a ética do risco, portanto, percebe-se que o Estado, constituido a partir dos elementos povo, so- berania ¢ territério, revela-se um modelo limitado diante de problemas que ultrapassam fronteiras geogréficas ¢ impactam diversas nagées, po- dendo, inclusive, se perpetuar no tempo. Ainda assim, é uma forma de organizacao necessdria em razao da dupla dimensao associada aos ris- cos. Nesse sentido, assinala-se que qualquer movimento exclusivamen- te local ou exclusivamente global de reorganizagao politica, juridica ¢ social dos riscos seria necessariamente um direcionamento parcial da sociedade contemporinea. 3. AS INTERFERENCIAS DA CIENCIA EDA TECNOLOGIA NA CONFIGURAGAO DA SOCIEDADE DE RISCO Em um contexto de crises miiltiplas ¢ interdependentes, parece essencial que as interferéncias exercidas pela ciéncia e pela tecnologia no processo de configuragao da segunda modernidade sejam também. analisadas. De uma forma geral, pode-se considerar que 0 crescente interesse pelo tema encontra fundamento na natureza diferenciada dos riscos e danos que tém resultado da aplicacéo indevida da ciéncia no campo da atividade tecnolégica, particularmente da tecnologia militar ¢ industrial. Nesse sentido, propée-se um estudo mais detalhado sobre a contribuicéo de ambos os dominios para o proceso de transforma cao que faz a sociedade industrial converter-se gradativamente em uma sociedade de risco. Inicialmente, convém estabelecer uma disting4o basica entre cién- cia e tecnologia. Em um plano abstrato, ¢ considerando as fungées es- pecificas de cada dominio, Agazzi (2004) assinala que a ciéncia pode ser caracterizada por proporcionar ao ser humano um conhecimento obje- 123

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